Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
94/15.4 PATVR.E1
Relator: CARLOS DE CAMPOS LOBO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA A SENTENÇA
Sumário:
I - É de exigência legal inalienável que por força da leitura da sentença/acórdão, se perceba a razão que determinou o tribunal decidir num certo sentido e não noutro, também possível.

II - Seguindo as regras da experiência comum, alguém que dá uma bofetada, pontapeia, torce um braço e encosta facas na barriga ou se propõe a partir os dentes de outrem, no mínimo quer atingir o corpo do visado, agredir, maltratar, provocar medo/insegurança, a não ser que tudo isto ocorra num contexto de brincadeira, diversão ou quiçá rotina romântica de um casal, ainda que fora dos cânones de normalidade. Nessa medida, necessário se tornaria perceber e acompanhar qual o caminho realizado pelo tribunal recorrido e a ponderação feita para concluir como o fez.

III – Não resultando da decisão recorrida, de forma clara e percetível, como era exigível, os motivos que orientaram o processo de formulação do juízo lógico que levaram à decisão proferida, o que impede o tribunal de recurso avaliar se ocorreu ou não uma apreciação objetiva e racional de toda a prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, dos conhecimentos científicos e até do bom senso, impõe-se declarar a sua nulidade, por falta de exame crítico da prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção)

I – Relatório

1.No processo n.º94/15.4PATVR.E1, da Comarca de Faro – Tavira – Instância Local – Secção Comp. Gen. – J1, foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido A, divorciado, filho de…, nascido a 4 de setembro de 1967 em Lisboa, residente em Estrada Vale Mourão…, Agualva-Cacém da prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, nºs 1 alínea a) e 2 do CPenal, pelo qual fora acusado pelo Digno MºPº.

2. Inconformado com o decidido, recorreu o Digno MºPº questionando a decisão proferida, concluindo: (transcrição)

1 – A sentença é omissa no que tange à fundamentação dos factos considerados como não provados;

2 - E, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, do mesmo diploma legal;

3 - Ora, este n.º 2 do artigo 374.º, do CPP, prescreve que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”;

4 – Nessa sequência, deverá a sentença ser declarada nula por falta de fundamentação nos termos dos preceitos legais invocados;

5 – Sem prescindir, e caso V. Exas. não declarem a sentença nula nos termos supra referidos, entendemos que ocorreu um erróneo julgamento da matéria de facto, porquanto, ante a prova produzida, e analisada a mesma, deveriam ter sido considerados como provados os factos elencados de 18 a 26;

6 – Nessa sequência, entendemos dever ser reapreciada a prova gravada, a qual se indica, em cumprimento disposto no artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal:

A) Declarações do arguido, gravadas no sistema desde 09:59:02 a 10:08:34;

B) Depoimento de FC, gravado no sistema, desde 10:08:36 a 10:36:04;

C) Depoimento de MS, gravado no sistema, desde 10:36:07 a 11:34:11;

D) Depoimento de MC, gravado no sistema, desde 11:44:02 a 12:03:11; e

E) Depoimento de JO, gravado no sistema desde 12:03:14 a 12:12:37.

7 - Quanto ao facto 18, tal resulta do depoimento da ofendida e dos seus filhos, tendo o arguido negado a sua prática (declarações que consideramos não credíveis, por estarem em manifesta oposição aos depoimentos colhidos e por não serem compagináveis à luz das regras do normal acontecer); o mesmo se diga no que concerne aos factos 19 e 20; com efeito, as testemunhas referiram que o arguido telefonou a várias horas do dia e da noite, exigindo que a ofendida lhe entregasse quantias monetárias, caso contrário, quebraria objectos existentes na residência onde permaneceu e pertencente á ofendida; quanto aos factos descritos em 20, os filhos da ofendida referiram que o arguido lhes telefonou anunciando esses mesmos factos, inexistindo motivos para não dar credibilidade a estes depoimentos; já no que respeita aos factos descritos de 21 a 26, a sua prova decorre manifestamente quer de todos os depoimentos produzidos em julgamento, quer ainda porquanto se tratam de factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo legal incriminador; levando em linha de conta que o que importa, para a prova do dolo, é que o agente preveja o decurso causal entre a sua acção e o resultado no caso concreto, traduzir-se-ia a consideração como provados dos factos elencados sob os n.os 21. a 26., porquanto o arguido previu o decurso causal entre as suas acções, consideradas como provadas sob os n.os 1. a 9 e 18. a 20; e esse resultado de cada uma das condutas, traduz-se na ofensa à integridade física da ofendida, na ofensa da honra e dignidade desta, na ofensa e cercear da sua liberdade de autodeterminação por lhe causar medo e inquietação, na ofensa da dignidade da companheira enquanto ser humano e mormente enquanto pessoa com a qual tinha habitado como se de marido e mulher se tratassem; também previu o resultado que a prática dos aludidos actos objectivos no interior da residência do então casal provocaria na ofendida um ainda maior sentimento de insegurança e incapacidade de defesa perante as suas condutas; sendo igualmente evidente que o arguido, com as suas condutas, quis produzir os resultados da lesão dos bens jurídicos em jogo no caso concreto; sendo a vontade de realização do resultado um processo íntimo, é evidente que a verificação directa e objectiva por parte do Tribunal não é possível; o elemento volitivo do dolo é sempre apreciado de forma indirecta, através dos demais elementos dos autos, designadamente dos próprios factos objectivos; por exemplo, no crime de violência doméstica, releva a verificação do tipo de condutas do agente para com a vítima, a sua frequência, a sua violência física ou psicológica, dimensões e arquétipos essenciais para a prova do dolo do tipo de tal crime, na sua vertente volitiva; isto porquanto, o elemento intelectual é extraído dos próprios valores do homem médio (na falta de causas justificativas ou de desculpação, e sempre que o agente seja imputável); com efeito, o homem médio, aquele que, nas circunstâncias do agente e de todos os agentes, sabe e tem consciência que desferir agressões em outrem é ilícito, bem como proferir expressões injuriosas e depreciativas da honra e da consideração de outrem, e também encostar objectos cortantes na barriga de outrem, ao mesmo tempo que se proferem expressões que, pelo seu teor, são susceptíveis de fazer o outro recear pela sua liberdade e integridade física; no caso concreto, como já referimos e se retira do que acabámos de expor, é evidente que o dolo se mostra comprovado e, nessa medida, os factos elencados de 21. a 26 deveriam ter sido considerados como provados;

8 - Logo, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal;

9 - Caso se entenda que os factos não se subsumem a tal norma penal incriminatória, sempre deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, em concurso com a prática de um crime de ameaça, este p. e p. pelo artigo 153.º, do mesmo diploma legal;

10 - Sem conceder, desde já pugnamos pela declaração de nulidade do despacho que indeferiu o nosso requerimento de inquirição de três testemunhas ao abrigo do disposto no artigo 340.º, do Código de Processo Penal, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, e que se determine a inquirição de tais testemunhas, por se reputarem essenciais para a descoberta da verdade material; isto, na medida em que a ofendida relatou que as três testemunhas cuja inquirição por nós foi requerida, assistiram o arguido a dizer-lhe que ela “tinha a cara toda borrada”, o que desde logo releva em sede de prova, atendendo ao objecto definido no libelo acusatório.

3. O arguido respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação da sentença proferida, apresentando as seguintes conclusões:

1 - O presente resposta advém do recurso interposto sobre a douta sentença que absolveu o arguido da prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nº 1 alínea b) e nº 2 do Código Penal.

2 - O recurso interposto pelo MP impugna a sentença proferida pelo Tribunal a quo relativamente à matéria de facto, na parte em que absolveu o arguido, como autor material, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º nº 1 alínea b) e nº 2 do Código Penal.

3 - Não se verificam os vícios previstos no disposto do art. 379º nº 1 alínea a) do CPP apontados no recurso interposto pelo MP.

4 - Ademais, os fundamentos do recurso apresentados pelo MP não têm a virtualidade de invalidar os fundamentos constantes da motivação da sentença, razão pela qual a defesa do arguido pugna pela manutenção do decidido na decisão e diga-se bem decidido pelo Tribunal a quo.

5 - A sentença recorrida não enferma de qualquer vício que justifique a revogação da condenação da arguida no que concerne ao crime supra aludido, porquanto fundamentada na prova produzida em sede de audiência de sessão e julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.

6 - Quanto à declaração de nulidade do despacho que indeferiu o requerimento de três testemunhas ao abrigo do art. 30º do CPP, nos termos do art. 120º nº 2 alínea d) do CPP por se reputarem essenciais para a descoberta da verdade material, diga-se que o arrolamento de novas testemunhas durante a audiência de julgamento tem carácter excepcional e deve fundar-se na sua estrita necessidade, para melhor se apreciar e decidir a causa, e em circunstâncias supervenientes ocorridas. É ónus do requerente motivar tais necessidade e natureza superveniente.

7 - De outro modo, estaria encontrada a forma de acrescer à prova anteriormente indicada nova prova, num indefinido devir, protelando-se o processo e defraudando-se as regras gerais de arrolamento de prova.

8 - Nesse sentido, veja-se a título de exemplo a jurisprudência sobre essa questão e nomeadamente o acórdão de 04/02/2013 proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no processo nº ---/11.8GAEPS.G1 que com votação unânime.

9 - Por último, não foram violados os preceitos ou princípios processuais invocados pelo recorrente Ministério Público.

Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso interposto, por ausência de fundamentos de facto ou de direito que inquinem a decisão proferida, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos, com o que se fará justiça!

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que se passa a designar de C.P.P.), emitiu parecer pronunciando-se também no sentido da procedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância.

Houve resposta ao parecer, pronunciando-se o arguido nos precisos termos constantes da sua resposta ao recurso – fls. 270 a 282.

5. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação
1.Questões a decidir
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é dado, nos termos do art.º 412º, nº1 do CPPenal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido.

Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido – os quais nem sempre se mostram muito claros, atentando na motivação e nas conclusões apresentadas - e os poderes de cognição deste tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões:

-declaração de nulidade do despacho que indeferiu o requerimento de inquirição de testemunhas, por violação do disposto nos artigos 120.º, nº2, alínea d) e 340.º do CPPenal.

-nulidade da sentença proferida por violação do disposto no artigo 379.º, nº 1 alínea a) do CPPenal;

-factos incorretamente julgados/impugnação – artigos 18 a 26;

-subsunção dos factos provados à previsão dos artigos 143.º, nº1 do CPenal (ofensa à integridade física) e 153.º do mesmo diploma legal (ameaça).

2. Apreciação
2.1. O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos: (transcrição)

1. Factos provados
1. O arguido conheceu MS em 1999, em Lisboa, e, alguns meses volvidos, passaram a residir em comunhão de cama, mesa e habitação, na Rua 4 de Infantaria…, em Campo de Ourique.

2. Em 2002, na sequência de doença do progenitor da ofendida, o casal veio residir para Tavira, juntamente com o filho, então menor, F, tendo passado a habitar na Praceta José Pinheiro e, posteriormente, na Fonte Salgada.

3. Há cerca de 12 anos, no restaurante Bica, em Tavira, o arguido, na presença dos pais da companheira, no meio de uma discussão entre a ofendida e a mãe desferiu uma bofetada na ofendida que a atingiu no lado direito da face quando esta lhe disse para não se meter no assunto.

4. Em inúmeras ocasiões, e até à separação do casal, ocorrida em Março de 2015, o arguido encostava o cabo de uma faca à barriga da companheira simulando que a ia espetar ou torcia-lhe o braço.

5. Em diversas ocasiões, na via pública, o arguido levantou a perna na direcção da companheira, simulando o gesto de que a iria atingir na cabeça.

6. Numa dessas ocasiões, o arguido acabou por atingir a companheira num braço e disse-lhe “por vezes as brincadeiras acabam mal”.

7. Eram frequentes as discussões entre o casal, sempre relacionadas com dinheiro, e com injurias mutuas.

8. Algumas vezes quando a ofendida falava mais alto ou dizia alguma coisa que o arguido não gostava, o arguido dizia-lhe: “Queres que te parta os dentes e vais para o hospital para pôr uma dentadura nova”.

9. Em Abril de 2015, em consequência da separação ocorrida em Março de 2015, o arguido deixou a residência, passando a residir em Rio de Mouro, não mais tendo entrado em contacto com a ex-companheira.

10. O arguido não tem antecedentes criminais.

11. O arguido vive em casa de uma irmã.

12. O arguido trabalhou como praticante de padaria do 1º ano no Jumbo de Sintra de 1 de Setembro de 2015 até 30 de Abril de 2016, está desempregado e aufere € 11.18 por dia de subsídio de desemprego.

13. O arguido tem o 4º ano de escolaridade.

2. Factos não provados

14. Desde a data referida em 3., em diversas ocasiões que não foi possível apurar concretamente no tempo, o arguido dirigia-se à companheira, e questionava a mesma “se queria ir para o hospital”, ao mesmo tempo que lhe torcia o braço.

15. Numa das ocasiões em que encostou o cabo de uma faca à barriga da companheira verbalizou “Vê lá se queres que te mande alguns dias para o hospital”.

16. Concomitantemente, e com frequência diária, o arguido passou a dizer à companheira “Tu és minha e tens que fazer o que eu quero”.

17. O arguido impediu a companheira de usar saia.

18. Com frequência diária, sempre no referido hiato temporal, o arguido dizia à companheira “vai para o caralho” e “vai à merda”.

19. Na noite em que ocorreu a separação do casal, o arguido passou a pedir dinheiro à ex-companheira, telefonando-lhe a qualquer hora, quer de dia, quer durante a noite, exigindo que ela lhe desse dinheiro e dizendo ainda que iria quebrar os objectos existentes em casa.

20. Como a ex-companheira deixou de atender os seus telefonemas, o arguido passou a telefonar para os filhos daquela, anunciando os mesmos factos.

21. Com o comportamento descrito, o arguido quis, como conseguiu, maltratar o corpo e saúde da companheira e atingi-la na sua integridade física, o que lhe foi indiferente por ter sido querida tal conduta.

22. Com as expressões que lhe dirigiu, quis e conseguiu o arguido atingir a companheira na sua honra e consideração, o que lhe foi indiferente, por ter sido querida tal conduta.

23. Com os anúncios que lhe dirigiu e telefonemas que efectuou, quis causar na companheira, receio e perturbação da sua vontade de auto-determinação, bem sabendo que as expressões que lhe dirigiu eram adequadas a produzir tais efeitos, o que lhe foi indiferente, por assim o desejar.

24. Sabia ademais que os seus actos afectavam a dignidade pessoal da companheira, com quem tinha coabitado como se de marido e mulher se tratassem, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e que eram adequados a criar nela sentimentos de insegurança e dependência em relação a si, aterrorizando-a e humilhando-a, o que igualmente quis e conseguiu.

25. Tal como sabia que, ao praticar parte dos actos descritos no interior da residência do casal, estava a privar a companheira de qualquer possibilidade de reacção, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança, sobretudo ao ter praticado factos na presença dos filhos da companheira, o que também lhe foi indiferente por ter sido desejado tal resultado.

26. Em tudo, o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

2.2. Fundamentação da matéria de facto: (transcrição)
A CONVICÇÃO do tribunal quanto à matéria de facto provada e não provada fundou-se genericamente na análise e apreciação de toda a prova produzida e examinada em audiência de julgamento à luz do princípio da normalidade e das regras da experiência comum, nomeadamente:

. nas declarações prestadas pelo arguido A. que negou a prática dos factos descritos na acusação, com excepção da bofetada no restaurante Bica, em Tavira, esclarecendo que tal sucedeu quando a ofendida, após ter sido chamada à atenção por estar a agredir verbalmente a mãe, chamou filho da puta ao arguido e bateu-lhe no ombro, o arguido “perdeu as estribeiras” e deu-lhe um estalo.

Em declarações finais referiu que todos os objectos que foram referenciados no decurso da audiência de julgamento como desaparecidos foram comprados por si (com o cartão Jumbo), declarações que foram confirmadas pela ofendida - que acrescentou que por essa razão não apresentou queixa quanto aos objectos desaparecidos/que foram levados pelo arguido.

. no depoimento prestado pela testemunha FS, filho da ofendida, que declarou ter vivido com o arguido e com a mãe cerca de 10 anos, até 2009, e que referiu ter assistido a discussões normais entre o casal, sempre motivadas pelo dinheiro, acompanhadas de ofensas reciprocas tais como “vai para o caralho” e “vai à merda” . Referiu ainda as brincadeiras do arguido com o cabo de uma faca e a torcer o braço.

Quanto ao estalo desferido num restaurante em Tavira apenas se recorda do estalo não se recordando do contexto em que tal ocorreu.

Esclareceu ainda que a mãe é que terminou a relação porque, segundo disse, já não sentia nada pelo arguido e que a queixa foi apresentada na sequência da separação por causa dos objectos desaparecidos (portátil, aspirador, rádio do carro, câmara de filmar) e dos telefonemas que o arguido fazia a dizer que não saía de casa e que se fosse obrigado a sair partia tudo, mais acrescentando que nunca atendeu o telefone ao arguido.

. no depoimento prestado pela ofendida MC que referiu ter vivido em união de facto com o arguido desde 2000 até fins de Março de 2015 (altura em que a ofendida saiu de casa), esclarecendo que em 2003 vieram viver para Tavira por causa do agravamento do estado de saúde do pai da ofendida. Quanto à queixa apresentada, confirmou que foi na altura da separação porque o A. começou a telefonar todos os dias a dizer que se matava, que a ofendida ia dar com ele enforcado numa arvore, chegando a aparecer no local de trabalho da ofendida a pedir para a ofendida voltar para ele, que não tinha dinheiro, que precisava de dinheiro para recomeçar a vida dele e que se a ofendida não lhe desse dinheiro partia tudo, acrescentando que na altura o arguido estava desempregado e não tinha subsidio de desemprego. Mais referiu que, como a ofendida bloqueou o telemóvel, passou a ligar para o filho da ofendida a dizer a mesma coisa - situação que não se comprovou pois segundo o depoimento prestado pelo filho da ofendida, a testemunha FS, este nunca atendeu o telefone ao arguido.

Relativamente à bofetada descrita na acusação, referiu que foi a única vez que o arguido a agrediu fisicamente, esclarecendo que tal ocorreu no meio de uma discussão entre a ofendida e a mãe, quando o arguido tentou meter-se na discussão e a ofendida disse-lhe que não tinha nada que se meter no assunto e ele deu-lhe uma estalada. Referiu ainda que ao longo da relação ouve outras coisas, tais como: apontava-lhe uma faca à barriga e depois virava rapidamente a faca ou torcia-lhe o braço; outras vezes quando iam na rua o arguido levantava a perna a simular que ia dar-lhe um pontapé na cabeça, sendo que uma das vezes bateu-lhe com a perna e disse-lhe “por vezes as brincadeiras acabam mal”; algumas vezes quando a ofendida falava mais alto ou dizia alguma coisa que o arguido não gostava de ouvir, o arguido dizia-lhe “vê lá se queres que te parta os dentes e vais para o hospital pôr uma dentadura nova.

Referiu também que nas discussões mais acesas o arguido a mandou para o caralho e à merda, admitindo que nessas discussões também mandou o arguido para o caralho e à merda.

. no depoimento prestado pela testemunha MS, filha da ofendida, que referiu as discussões frequentes entre o casal por motivos de dinheiro e trabalho, os insultos como estupida, parva e baleia, admitindo que tais insultos eram recíprocos, e as brincadeiras com facas (a simular que ia espetar a ofendida).

Quanto aos telefonemas após a separação, referiu que nunca falou com arguido porque nunca atendeu o telefone e que segundo aquilo que a mãe lhe disse o arguido primeiro queria que a mãe voltasse para casa e só depois é que se colocou a questão do dinheiro porque o arguido não queria sair de casa sem nada e ameaçava que pegava fogo à casa.

É de salientar que a testemunha fez uma análise subjectiva dos factos, analisando os sentimentos (vergonhas e medos) da mãe à luz do que para si é tolerável, sendo manifesto que a testemunha nunca aprovou o relacionamento da mãe com o arguido, razão pela qual não foi valorado o seu depoimento.

. no depoimento da testemunha J que declarou conhecer o arguido há cerca de 2 anos de Santa Luzia e ter trabalhado com o arguido 1/2 meses e que referiu nunca ter ouvido falar em nada relacionado com o comportamento do arguido em relação à companheira.

. no depoimento da testemunha ML que declarou ser namorada do arguido há 6 meses e ter conhecido o arguido em ambiente de trabalho há 10 meses nada tendo dito ou esclarecido sobre os factos em discussão.

Teve-se ainda em conta:

. o CRC do arguido junto a fls. 131.
. o contrato de trabalho junto a fls. 171 a 174.

. as declarações prestadas pelo arguido sobre a sua situação pessoal e económica que mereceram credibilidade.

2.3. Das questões a decidir

Foi o arguido absolvido da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, nºs 1 alínea a) e 2 do CPenal, pelo qual fira acusado pelo Digno MºPº.

Desde logo, e por questões de sequência lógica, cabe ponderar o suscitado vetor da eventual cometida nulidade prevista no artigo 120.º, nº 2 alínea d) do CPPenal, uma vez que, como se defende em sede recursiva, o tribunal a quo não acalentou, adequadamente, a dimensão da previsão do artigo 340.º do CPPenal quando, no momento do julgamento foi requerida a audição de três testemunhas para, “(…) com maior certeza e segurança conferir credibilidade às declarações da ofendida, quer ainda porque poderia e deveria ter conhecido de factos que não importassem alteração substancial dos descritos na acusação”.

O último referido preceito legal não é mais do que uma das concretizações dos direitos constitucionais expressos nos artigos 20.º, nº1 – direito de acesso ao tribunal – 32.º, nº1 – garantias de defesa – e 32.º, nº7, todos da CRP – direito de intervenção do ofendido no processo penal.

Consagra-se por esta via, a possibilidade de os sujeitos processuais poderem requerer, em sede de audiência de julgamento, a produção de prova, sendo esta faculdade, neste momento, excecional.

Da leitura do preceito em exame, resulta claro que exorbitam três critérios materiais de admissibilidade da prova: - prova essencial (aquela que é indispensável, absolutamente indispensável ou estritamente indispensável), cuja omissão desencadeia nulidade sanável prevista na alínea d) do nº2, do artigo 120.º do CPPenal; - prova necessária (aquela que se reputa útil, de interesse, adequada, relevante), cuja omissão determina a verificação de uma irregularidade nos termos do artigo 123.º do CPPenal e prova conveniente (aquela que não assume qualquer interesse para o que se discute) a qual não constitui qualquer vício processual[1].

Diga-se também que, a atual redação da alínea d) do nº2 do artigo 120.º do CPPenal, estendendo a sua previsão a atos/diligências respeitantes à fase de julgamento e de recurso, decorrendo da Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, visa abarcar a omissão de diligências que sejam absolutamente indispensáveis, ou seja, todas aquelas de cuja dependência pode estar a finalidade do processo e a correspondente decisão[2].

Verifica-se, assim, esta nulidade, sempre que se está perante a omissão de atos processuais de prova que se apresentem como essenciais/absolutamente indispensáveis/estritamente indispensáveis/inexoravelmente indispensáveis[3] - a sobredita prova essencial.

Cumprirá então, olhar o retrato destes autos.

Pretendia o Digno M.ºP.º que se procedesse à audição de três testemunhas para, supostamente, se sedimentarem factos não constantes do libelo acusatório, nunca referidos em momento algum, a não ser em audiência pela ofendida, os quais, nem sequer se situaram no tempo. Tencionava-se igualmente, apurar da credibilidade do depoimento da ofendida.

Atentando em todo o processado nada do mesmo emerge que demonstre que, por alguma via, em audiência esteve em causa a credibilidade do depoimento de MS, como claramente foi referido pela Mma Juiz a quo – cf. fls. 182.

Diga-se ainda, que a procura da verdade material, a realização da justiça, o alcance dos fins norteadores de um processo penal, não podem fazer-se a qualquer custo e sem o respeito pelos mais elementares princípios vigentes – entre eles também o da segurança jurídica.

E, nessa medida, a audição de testemunhas sobre factos nunca trazidos a terreiro, nunca referidos por quem quer que seja, nomeadamente pela ofendida, surgindo como novidade em audiência e apenas por esta, parece não se enquadrar nos normativos adiantados.

Atente-se também, que a invocada alteração não substancial dos factos que se pretendeu ver verificada, parece não fazer aqui qualquer sentido. Poderá recorrer-se a este instituto, crê-se, se da prova produzida, o tribunal entender que resultam novos factos e, já não, ir procurar/investigar novos factos para produzir essa alteração. De outro modo, a alteração ocorre sempre que no decurso da audiência o tribunal considere consolidados novos factos e não, vir produzir nova prova nunca requerida até então, para depois eventualmente demonstrar esses tais novos factos.

O Digno Mº P.º, nunca requereu a alteração não substancial dos factos. Pediu antes a produção de nova prova para em momento posterior, eventualmente, atingir esse fim. Trata-se de um uso indevido deste instituto. Não se pode suprir uma acidental deficiente/incompleta investigação em sede de inquérito, com o recurso a este mecanismo.

A entender-se como o propugnado pelo Digno M.º P.º, estar-se-ia num constante percurso investigatório sem um fim à vista. Sempre que uma referência nova surgisse em julgamento, supostamente sustentada em provas nunca apresentadas até então, produzir-se-iam essas mesmas provas que, em tese, poderiam desencadear a produção de outras, face a novas referências, acompanhadas de novas provas.

E tudo, a coberto da possibilidade inserta no artigo 358.º do CPPenal. Seguramente que não foi esse o objetivo do legislador, nem é essa a dimensão da descoberta da verdade material e da realização da justiça.

Face a todo o apontado, entende-se que carece de qualquer fundamento esta invocação.

Importa agora analisar a adiantada nulidade praticada e regulada no artigo 379º, nº 1 alínea a) do CPPenal.

Atentando nesta previsão, retira-se que a nulidade em referência ocorre sempre que a sentença “(…) não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374.º (…)”, ou seja, nos casos em que falha “(…) a enunciação como provados ou não provados de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção, a responsabilidade civil constantes da acusação ou pronúncia e do pedido de indemnização civil e das respectivas contestações (….), incluindo os factos não provados da contestação, importando saber se o tribunal recorrido apreciou ou não toda a matéria relevante da contestação (…) a indicação da razão de ciência de cada pessoa cujo depoimento o tribunal tomou em consideração (…) a indicação dos motivos de credibilidade de testemunhas, documentos ou exames (…) a indicação dos motivos porque se preferiu uma versão dos factos em detrimento de outra”[4].

Com estas exigências pretendeu o legislador concretizar o princípio constitucional expresso no artigo 205.º, nº 1 da CRP, o qual no domínio penal reclama uma fundamentação reforçada, com vista a uma total transparência da decisão.

A clareza da decisão impõe que os seus destinatários a apreendam e entendam nas suas diversas dimensões, postulando que o tribunal para além de indicar com clareza os factos que considerou provados e aqueles que entendeu não provados, aponte também, de forma clara a razão de tal, demonstrando e explicitando o percurso feito para formar a sua convicção, indicando o caminho traçado quanto à valoração que fez das diversas provas e como as interpretou/leu [5].

Em suma, é de exigência legal inalienável que por força da leitura da sentença/acórdão, se perceba a razão que determinou o tribunal decidir num certo sentido e não noutro, também possível.

No caso dos autos, o que se questiona prende-se com a falência e/ou exiguidade da sua fundamentação, no que tange ao exame crítico da prova, ou seja, se de modo bastante e suficiente o tribunal a quo realizou uma “(…) enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevantes por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da sua convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável de vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”[6].

Considerou o Digno M.ºP.º que “(…) A sentença é omissa no que tange à fundamentação dos factos considerados como não provado”.

Debruçando a atenção para todo o decidido na sentença em sindicância, com efeito, não se descortina, de modo cristalino e transparente o que levou o tribunal recorrido a considerar provada determinada factualidade e não provada outra. Não está apenas em evidência falha de fundamentação quanto ao circunstancialismo não provado, mas sim também quanto ao provado.

Na verdade, se houve preocupação em reproduzir o que foi declarado pelas diversas pessoas (arguido e testemunhas), nada se evidencia que mostre o percurso feito pelo tribunal, a partir dessas referências, para justificar porque se entenderam provados e não provados determinados factos e a linha de pensamento seguida nesse sentido.

Fazem-se menções de partes respeitantes às diversas declarações para nunca se retirar, de cada uma delas, o que se considerou relevante e porquê, para concluir provada ou não provada determinada factualidade, especificando.

Olhando todo o processo decisório produzido, entende-se que na verdade não é clara, completa e segura a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo, sendo confuso e até contraditório todo o caminho seguido para a sua concretização. Na decisão proferida enuncia-se, de modo até pormenorizado o declarado pelo arguido, ofendida e restantes testemunhas. Contudo, em nenhum momento se faz corresponder tal a cada um dos factos provados, nem se retira em que medida, apesar de ter sido afirmado, não se lhe deu valor e porquê.

Teria sido importante, no mínimo, que o tribunal recorrido indicasse em relação a que factos em concreto, qual o contributo de cada um dos diversos intervenientes teve para o seu apuramento. Não foi feito.

Desconhece-se também a importância e qual a sua medida dos diversos depoimentos prestados em audiência – arguido, ofendida, testemunhas -, no sentido de confirmarem ou infirmarem os factos em discussão.

No que tange ao arguido afirma-se “(…) negou a prática dos factos descritos na acusação, com excepção da bofetada no restaurante Bica, em Tavira, esclarecendo que tal sucedeu quando a ofendida, após ter sido chamada à atenção por estar a agredir verbalmente a mãe, chamou filho da puta ao arguido e bateu-lhe no ombro, o arguido “perdeu as estribeiras” e deu-lhe um estalo”. Em nenhum momento se retira em que medida tal foi decisivo ou contributivo para considerar assente ou não assente determinada matéria.

Fazem-se diversas referências ao depoimento da ofendida “(…)Relativamente à bofetada descrita na acusação, referiu que foi a única vez que o arguido a agrediu fisicamente, esclarecendo que tal ocorreu no meio de uma discussão entre a ofendida e a mãe, quando o arguido tentou meter-se na discussão e a ofendida disse-lhe que não tinha nada que se meter no assunto e ele deu-lhe uma estalada. Referiu ainda que ao longo da relação ouve outras coisas, tais como: apontava-lhe uma faca à barriga e depois virava rapidamente a faca ou torcia-lhe o braço; outras vezes quando iam na rua o arguido levantava a perna a simular que ia dar-lhe um pontapé na cabeça, sendo que uma das vezes bateu-lhe com a perna e disse-lhe “por vezes as brincadeiras acabam mal”; algumas vezes quando a ofendida falava mais alto ou dizia alguma coisa que o arguido não gostava de ouvir, o arguido dizia-lhe “vê lá se queres que te parta os dentes e vais para o hospital pôr uma dentadura nova.

Referiu também que nas discussões mais acesas o arguido a mandou para o caralho e à merda, admitindo que nessas discussões também mandou o arguido para o caralho e à merda.” Contudo, também aqui, não indica o tribunal recorrido o que valorou, porquê e em que medida, para confirmar ou infirmar determinados factos.

Apontam-se diversos passos do depoimento da testemunha FS, filho da ofendida, sem, no entanto, se fazer qualquer correspondência ao que se concluiu como provado e não provado.

A tudo isto soma a circunstância de, apesar de se terem dado como provados determinados factos, os quais, objetiva e isoladamente são suscetíveis de poder, configurar atos que interferem na integridade física de alguém, beliscar a dignidade de uma pessoa, se ter considerado depois, como não provado, não ter havido intenção de o fazer. Seria importante perceber o raciocínio que o tribunal recorrido elaborou para, entender provado que o arguido “(…)4. Em inúmeras ocasiões, e até à separação do casal, ocorrida em Março de 2015, o arguido encostava o cabo de uma faca à barriga da companheira simulando que a ia espetar ou torcia-lhe o braço. 5. Em diversas ocasiões, na via pública, o arguido levantou a perna na direcção da companheira, simulando o gesto de que a iria atingir na cabeça. 8. Algumas vezes quando a ofendida falava mais alto ou dizia alguma coisa que o arguido não gostava, o arguido dizia-lhe: “Queres que te parta os dentes e vais para o hospital para pôr uma dentadura nova” para depois concluir como não provado(…) Com o comportamento descrito, o arguido quis, como conseguiu, maltratar o corpo e saúde da companheira e atingi-la na sua integridade física, o que lhe foi indiferente por ter sido querida tal conduta (…)22. Com as expressões que lhe dirigiu, quis e conseguiu o arguido atingir a companheira na sua honra e consideração, o que lhe foi indiferente, por ter sido querida tal conduta (…) 24. Sabia ademais que os seus actos afectavam a dignidade pessoal da companheira, com quem tinha coabitado como se de marido e mulher se tratassem, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e que eram adequados a criar nela sentimentos de insegurança e dependência em relação a si, aterrorizando-a e humilhando-a, o que igualmente quis e conseguiu.

Seguindo as regras da experiência comum, alguém que dá uma bofetada, pontapeia, torce um braço e encosta facas na barriga ou se propõe a partir os dentes de outrem, no mínimo quer atingir o corpo do visado, agredir, maltratar, provocar medo/insegurança, a não ser que tudo isto ocorra num contexto de brincadeira, diversão ou quiçá rotina romântica de um casal, ainda que fora dos cânones de normalidade. Nessa medida, necessário se tornaria perceber e acompanhar qual o caminho realizado pelo tribunal recorrido e a ponderação feita para concluir como o fez.

Na verdade, não se está perante um percurso onde transpareça uma valoração racional e lógica, compatível com um raciocínio límpido e entendível.

Resulta claro, crê-se, que não se erguem na decisão de forma clara e percetível, como era exigível, os motivos que orientaram o processo de formulação do juízo lógico que levaram à decisão proferida o que, impede o tribunal de recurso avaliar se ocorreu ou não uma apreciação objetiva e racional de toda a prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, dos conhecimentos científicos e até do bom senso.

E, nessa medida não é possível acompanhar a partir da sentença revidenda qual o percurso traçado para o processo decisório e assim se efetuar o controlo sobre o mesmo, de molde a concluir-se ou não pela presença de fundamentação factual devidamente sustentada no diverso acervo probatório carreado.

Face a todo este expendido nada mais resta que não seja entender que a decisão recorrida enferma de nulidade, atento o plasmado no artigo 379.º, nº1 alínea a) do CPPenal, por não conter de forma cabal, todas as menções exigidas pelo artigo 374.º, nº 2 do mesmo complexo legal, nomeadamente a fundamentação onde conste o exame crítico das provas produzidas em relação à matéria de facto dada como provada e não provada – exceto no que tange aos antecedentes criminais do arguido e factos vertidos nos pontos 9 a 13, inclusivé -, cabendo ao tribunal recorrido a reparação desse vício.

Com efeito, pese embora a estatuição do nº2 do artigo 379.º do CPPenal, deverá ser o tribunal recorrido a suprir a mesma pois, só este está na posse de todos os elementos necessários à explicitação das razões que orientaram a sua convicção em termos de valoração dos diversos meios de prova apresentados.

O conhecimento deste vício, impede que este tribunal se debruce, por ora, sobre os restantes segmentos do thema decidendum.

III - Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes Secção Criminal – 2ªSubsecção - desta Relação de Évora em:

a) Declarar nula a sentença recorrida por inobservância das disposições conjugadas dos artigos 374.º, nº2 e 379.º, nº1 alínea a) do CPPenal, a qual deve ser reformulada pelo mesmo tribunal, proferindo nova decisão onde supra o apontado vício de fundamentação, apresentando exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção relativamente à factualidade vertida na sentença, nos termos acima expendidos (excetuam-se os factos vertidos nos pontos 9 a 13 e os antecedentes criminais do arguido);

b) Não conhecer as demais questões suscitadas em sede de recurso por se mostrarem prejudicadas.

Sem custas pelo arguido/recorrente, nos termos do que decorre do preceituado no artigo 513.º, nº1, última parte do CPPenal.

Évora, 15 de dezembro de 2016

(o presente acórdão, integrado por catorze páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do CPPenal)

Carlos de Campos Lobo

António Condesso

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[1] Neste sentido ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pg. 856.

[2] Neste sentido GASPAR, António da Silva Henriques e outros, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, pg.360.

[3] Neste sentido ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, ibidem, pg.306.
[4] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, ibidem, pg.944-945.

No mesmo sentido, GASPAR, António da Silva Henriques e outros, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, pg.1120-1121.

[5] No Acórdão do STJ de 10/04/07, proferido no processo nº 83/03.1TALLE.E1.S1, in dgsi.pt, escreveu-se “(…)Perante os intervenientes processuais, e perante a comunidade, a decisão a proferir tem de ser clara, transparente, permitindo acompanhar de forma linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão sobre a matéria de facto (…) A mesma fundamentação implica um exame crítico da prova, no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido (…)”.

[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 07/06/2016, processo nº 26/14.7 GCMFR.L1-5 Relator ARTUR VARGUES