Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1306/12.1TBSSB.E1
Relator: JOSÉ MANUEL GALO TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Verificando-se uma transferência bancária originária das contas da Autora para as do Réu e tendo-se provado que o Réu entregou todo o capital recebido a terceiro, transparecendo que funcionou como mero intermédio, não se pode dizer que o aquele se tenha enriquecido à custa da autora.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
“AA – Aluguer de Automóveis, SA” interpôs recurso da sentença que julgou improcedente a acção proposta contra BB.
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e apresentou as seguintes alegações:
1ª) Sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no Art° 607°, nº5, do CPC, a verdade é que essa livre apreciação, e a formação da convicção do julgador dela decorrente, deve ser feita à luz das regras gerais da experiência, do raciocínio e da lógica, e, salvo o devido respeito, caso essas regras tivessem sido atendidas pelo Mmº Juiz a quo na apreciação e ponderação de todos os elementos de prova existentes nos autos, de per si e conjugados entre si, o mesmo teria forçosamente de concluir que os mesmos não sustentam nem fundamentam os factos dados como provados na decisão da matéria de facto sob os pontos H, I e J, relevante para a boa decisão da causa, pelo que a aqui Apelante, ao abrigo do disposto no actual Art°. 640°, nº1, al. a), do C.P.C., desde logo impugna especificadamente aqueles pontos da decisão da matéria de facto;

2ª) Com efeito, e pelas razões aduzidas no ponto I a V das alegações do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, dúvidas não restam que os elementos de prova indicados na decisão da matéria de facto para fundamentar e sustentar a decisão de julgar provados os factos nela aduzido sob os pontos H, I e J, designadamente as declarações de parte do Recorrido e o depoimento da testemunha CC, são manifestamente insuficientes para tal.

3ª) Os referidos depoimentos, pelas razões aduzidas nos pontos I a V das alegações que aqui se dão por integralmente reproduzidas, não constituem elementos de prova bastante que permita concluir que “os montantes referidos em C foram recepcionados pelo Réu a pedido de DD, sua amiga e a quem os mesmos seriam entregues" – ponto H dos factos provados –, que “Alegando encontrar-se em processo de divórcio, situação que era do conhecimento do Réu, e ter dinheiro a receber da sua entidade empregadora, DD solicitou ao Réu a utilização das referidas contas para nelas recepcionar os referidos montantes" – alínea I dos factos provados –, e que "Os montantes transferidos para as contas do Réu foram integralmente entregues pelo Réu a DD" – alínea J dos factos provados –, sendo certo que não foram produzidos outros elementos de prova nos autos que, por si ou conjugados com aqueles, permitam suportar tal decisão do Tribunal a quo, pelo que, não tendo sido produzida prova clara, inequívoca e bastante para considerar tais factos como provados, deve, em consequência, e ao abrigo do disposto no Art°. 662°, n°1, do C.P.C., ser alterada a decisão de julgar provados os factos aduzidos naqueles pontos H, I e J, máxime no sentido de os julgar "Não provados”.

4ª) Pelas razões aduzidas nos pontos VI e VII das alegações, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, atenta a alteração da decisão da matéria de facto nos termos supra expostos, não restam dúvidas que os factos dados como provados consubstanciam a verificação dos pressupostos legais do enriquecimento sem causa, consignados na respectiva noção legal do Art°. 473°, nº1, do Código Civil, designadamente, os mesmos demonstram e consubstanciam a existência de transferências patrimoniais da Apelante a favor do Recorrido, o consequente enriquecimento deste à custa do empobrecimento daquela sem que houvesse qualquer causa justificativa para tal, factos que constituem o Recorrido na obrigação de restituir à Apelante os montantes que dela recebeu injustificadamente bem como na obrigação de pagar à Apelante uma indemnização pelo atraso/mora nessa restituição, correspondente aos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal anual para juros cíveis sobre aquelas quantias, e contados desde a data das transferências, data em que se constituiu nessa obrigação até à restituição efectiva e integral das mesmas.

5ª) Assim, e pelo exposto, deve a sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgando a acção totalmente procedente, condene o Recorrido nos exactos termos em que peticiona a Apelante, tudo nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 473°, nº1, 474°, 479° e 480°, al. b), todos do Código Civil, disposições legais que a sentença ora recorrida violou ao julgar de forma diferente, o que constitui também fundamento bastante para o presente recurso de apelação - Art°. 639°, n°.2, al. a), do Código de Processo Civil.

6ª) Ainda que se entenda, por mera hipótese académica e de raciocínio, que nada há a alterar na decisão da matéria de facto, designadamente nos termos aduzidos nas conclusões 13 a 33, e que, como tal, se mantém na integra a decisão da matéria de facto ora impugnada – o que não se aceita nem se concede –, a verdade é que, pelas razões aduzidas no ponto VIII das alegações, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, os factos nela dados como provados, por si só, consubstanciam a verificação dos pressupostos legais do enriquecimento sem causa aduzidos no Art°. 473°, n°1, do Código Civil, pelo que aquela sentença ora recorrida, ao decidir nos termos em que o fez, violou esta disposição legal, o que constitui também fundamento bastante para o presente recurso de apelação – Art°. 639°, n°2, alínea a), do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente por provado e, em consequência:

i) Ao abrigo do disposto no Art°. 662°, nº1, do C.P.C., deve ser alterada a decisão da matéria de facto nos termos aduzidos nas conclusões 1ª a 3ª deste recurso;

ii) Deve a sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra que, julgando a acção totalmente procedente, condene o Recorrido nos termos peticionados pela Apelante, assim fazendo V.Exª. a habitual Justiça».

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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação do seguinte:
i) questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto;
ii) verificação de erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados analisados à luz do instituto do enriquecimento sem causa.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:

Da discussão da causa [em primeira instância] resultaram provados os seguintes factos:

A) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao aluguer de veículos automóveis e de equipamentos.

B) A actual administração da Autora foi eleita em 12.04.2011.

C) Foi transferida da conta bancária da Autora para a conta bancária do Réu no Banco EE com o NIB 0033 a quantia de € 5000 em 10.12.2010 e a quantia de € 3.800 para a conta bancária do Réu no Banco FF com o NIB 00070 em 15.11.2010.

D) Naquelas datas a Autora não tinha qualquer relação comercial ou outra com o Réu.

E) A Autora não celebrou com o Réu qualquer contrato que justificasse tais transferências.

F) A Autora não devia ao Réu qualquer quantia, designadamente as quantias que lhe foram transferidas para as contas deste.

G) O Réu nada restituiu à Autora.

H) Os montantes referidos em C) foram recepcionados pelo Réu a pedido de DD, sua amiga e a quem os mesmos seriam entregues.

I) Alegando encontrar-se em processo de divórcio, situação que era do conhecimento do Réu, e ter dinheiro a receber da sua entidade empregadora, DD solicitou ao Réu a utilização das referidas contas para nelas recepcionar os referidos montantes.

J) Os montantes transferidos para as contas do Réu foram integralmente entregues pelo Réu a DD.

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IV – Fundamentação:

IV.1 – Alteração da decisão de facto:

Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.

Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados certos factos outros pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.

O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, posto que, a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil.

A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[1].

A jurisprudência mais avalizada[2] firma o entendimento que a «prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.

Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido».

Neste enquadramento jurídico-existencial, a credibilidade concreta de um meio individualizado de prova tem subjacente a aplicação de máximas de experiência comum que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade[3].

Nesta dimensão, apartando-nos agora das situações de prova legal[4],

no ordenamento jus-processual civil vigora o princípio da livre apreciação da prova, que admite o uso, pelas instâncias – in casu, pela primeira instância – de regras de experiência comum, as quais configuram um critério de julgamento, como meio de descoberta da verdade apenas subordinado à razão e à lógica e condicionado à sua motivação e objectivação externa.

Concatenando o disposto no artigo 396º do Código Civil e o princípio geral enunciado no artigo 607º, nº5, do Código de Processo Civil, o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência[5] [6].

É sabido que a gravação dos depoimentos pode revelar-se insuficiente para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do juiz; existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador[7] [8].

Na interligação entre os princípios da livre apreciação da prova, imediação, oralidade e concentração «ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis»[9].

As circunstâncias diversas em que se encontra o Tribunal de primeira instância e o Tribunal de segunda instância «terão de ser ponderadas na ocasião em que o Tribunal da Relação proceda à apreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro da apreciação relativamente aos pontos concretos de facto impugnados»[10].

Por força das regras adjectivas aplicáveis, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente. Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso[11].

A definição da hierarquia dos meios de prova de livre apreciação, pelo tribunal, e bem assim como a consideração de certas provas, em detrimento da desconsideração de outras, ou de determinados depoimentos, em primazia de outros, sustenta-se ainda no aludido princípio da convicção racional, que não afecta o princípio da igualdade processual das partes[12].

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A matéria controvertida é a seguinte:

1) Os montantes referidos em C) foram recepcionados pelo Réu a pedido de DD, sua amiga e a quem os mesmos seriam entregues (facto H).

2) Alegando encontrar-se em processo de divórcio, situação que era do conhecimento do Réu, e ter dinheiro a receber da sua entidade empregadora, DD solicitou ao Réu a utilização das referidas contas para nelas recepcionar os referidos montantes (facto I).

De acordo com o libelo decisório este resultado probatório resulta da «conjugação das declarações prestadas pelo Réu com o depoimento prestado pela testemunha CC».

O apelante entende que estes dois factos deveriam ter sido julgados como «não provados». A sua discordância cimenta-se no seguinte «face à ausência completa de outros elementos de prova que, analisados e apreciados, por si ou conjugados com outros, à luz das regras da experiência, da lógica e do raciocínio, permitissem aferir e concluir pela veracidade do alegado pelo Recorrido nos presentes autos sobre estas matérias, máxime sobre a razão das transferências de montantes da conta da Apelante para a conta do Recorrido e sobre o destino desses montantes». E mais adiante conclui que as declarações do recorrido «nesse sentido não podem, por si só, deixar de ser percepcionadas como declarações de alguém que tem um interesse no resultado da acção» e são «interessadas, parciais e não isentas».

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O Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (artigo 466º, nº3, do Código de Processo Civil). Este inovador meio de prova, dirige-se primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorridas na presença das partes. E, sujeitá-las a arrolar testemunhas sem conhecimento directo, que apenas reproduzam o que teriam ouvido dizer ou que expressem a sua opinião, tem reduzido interesse e muito limitado valor processual[13].

A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime as partes tiverem sido efectivamente ouvidas[14].

Até à entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela lei nº41/2013, de 26/06, as razões determinantes da rejeição deste meio de prova assentavam no «receio de perjúrio; as partes têm um interesse no resultado da acção e podem ser tentadas a dar um testemunho desonesto e finalmente mesmo que as mesmas não sejam desonestas, estudos psicológicos demonstram que as pessoas têm uma maior tendência a recordar factos favoráveis do que factos desfavoráveis pelo que o depoimento delas como testemunhas nos processos em que são partes não é, por essa razão de índole psicológica, fidedigno»[15].
Na verdade, existem factos cuja natureza não se adapta com facilidade à prova documental, pericial ou, mesmo, testemunhal. Assim, a génese do preceito surge como reivindicação de uma corrente jurisprudencial que se estribava na ideia que «não se vê que fique vedado ao legislador ordinário regular a possibilidade de limitar o depoimento de parte de forma a impedir o exercício do direito de o prestar quando o respectivo objecto seja irrelevante enquanto confissão»[16]. A partir desta solução do Tribunal Constitucional foi editada jurisprudência que admitia que o depoimento de parte pudesse ser valorado livremente na parte em que excedia a confissão de factos desfavoráveis[17], como forma de colher elementos para a boa decisão da causa[18].
A sobredita visão pessimista sobre a fiabilidade do meio de prova é rebatida por Luís Filipe Sousa[19]. Para o actual Juiz Desembargador «(ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas de hierarquizá-los diversamente».
Está a estabelecer-se uma linha doutrinal e jurisprudencial que admite a validade da prova por declarações de parte quando a mesma se reporta a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes»[20].
Ou, seguindo a formulação de Elisabeth Fernandez, o recurso ao meio de prova é admissível quando se destina a apurar «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percepcionados por terceiros de forma directa»[21].
Nesta discórdia valorativa sobre a fiabilidade do meio de prova, aquilo que emerge como indiscutível é que o juiz «deverá analisar o discurso da mesma tendo sempre presente a máxima da experiência que dita a escassa fiabilidade do mesmo quanto às afirmações que a esta são favoráveis»[22].
Sem embargo da sua natureza essencialmente supletiva[23], ouvida toda a prova, a opinião deste Tribunal superior é que o depoimento em causa aparenta ser honesto e incide sobre acontecimentos de natureza estritamente pessoal, que, face ao desconhecimento do paradeiro de uma testemunha fundamental (in casu DD), doutro modo, seriam de difícil comprovação.
Estas declarações de parte são confirmadas pela testemunha CC, as quais, pela simples audição, revelam também sinais de probidade e a identidade global com as declarações prestadas pelo seu esposo fortalecem o juízo conclusivo firmado na primeira instância.
E não podemos valorizar sem crivos a ideia preconceituosa que, por ter um interesse directo na causa, esta testemunha também actua de forma «interessada, parcial e não isenta». Esta testemunha referiu que a DD trabalhava para a Autora e que, a dado momento, invocando que se encontrava num processo de divórcio, como tinha valores a receber da sua entidade patronal, pediu ao seu marido que as quantias fossem transferidas para a conta do casal e que depois acertariam as contas. Ficou exarado na douta sentença que «nada no seu depoimento foi de molde a criar no Tribunal a convicção de parcialidade, tendo deposto de forma clara e espontânea pelo que mereceu credibilidade».
As testemunhas arroladas pela Autora (GG e HH) tiveram depoimentos claros e espontâneos. Estas testemunhas que prestam serviços de contabilidade à Autora AA e, no decurso dos respectivos contributos probatórios, relataram que, por força de uma auditoria interna, detectaram diversos movimentos contabilísticos, na conta 22, sem suporte de despesas e isso implicou transferências para contas de terceiros, não só do Réu. Os beneficiários destas operações foram diversas pessoas e o modus operandi foi sempre similar.
Todavia, acima de tudo, estas testemunhas não rebateram a tese apresentada pela parte passiva e perante a consistência dos argumentos apresentados pela defesa o Tribunal a quo poderia ter decidido no sentido em que o fez.
Sem entrar em especulações que não são aqui devidas, implicitamente destas declarações, extrai-se de todo o envolvimento que a referida DD engendrou um esquema para se locupletar à custa do património da sua entidade patronal, envolvendo nesse estratagema terceiros, que poderiam não estar cientes dessa participação num esquema fraudulento.
Deste modo, não sendo possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos pontos concretos de facto impugnados, mantém-se nesta parte a decisão de facto.

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3) Os montantes transferidos para as contas do Réu foram integralmente entregues pelo Réu a DD (facto J).

Relativamente à fundamentação deste facto, a decisão recorrida disserta abundantemente sobre esta matéria nas páginas 133 verso a 135 verso, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido. Em síntese, a motivação da decisão assenta nas declarações «espontâneas» do Réu, conjugadas com o depoimento prestado pela testemunha CC e com a análise dos extractos bancários presentes a fls. 119-122 (Banco FF) e 123-125 (EE).

Parte da faixa 11 da gravação [declarações de parte] regista as operações matemáticas efectuadas sob a direcção da meritíssima Juiz de Direito que permitem reconstituir as transferências e os levantamentos efectuados pelo BB e a sua posterior canalização para as mãos da referida DD.

As explicações dadas pelo Réu pareceram sustentadas e credíveis e foram secundadas pelo depoimento aparentemente coerente e sério da testemunha CC. Além do mais, embora não tenha valor probatório directo ou indirecto, a sentença e o acórdão proferidos no âmbito do processo registado sob o nº 278/12.7TBSSB[24] servem de filtro probatório[25] relativamente às declarações do Réu e permitem reforçar o juízo positivo efectuado pelo Tribunal a quo. Efectivamente, existe uma identidade de procedimentos e o destino final do dinheiro transferido é igual e, por isso, o relato efectuado pela parte ganha credibilidade à luz do anteriormente decidido[26].

O Tribunal de primeira instância apreciou os factos e consolidou a materialidade pertinente, com base no princípio da livre apreciação da prova, por não se encontrar adstrito ao regime da prova vinculada ou legal, sendo que essa factualidade pode ser obtida, através dos vários meios probatórios de que o Tribunal se serviu, sem preferência ou subalternidade de qualquer deles.

A gravação ou o registo audiovisual não consegue, por certo, revelar tudo quanto foi possível ser percepcionado, in loco, pelo tribunal recorrido. O modus como é prestado o depoimento das testemunhas e das partes revela-se, não raro, mais decisivo que o próprio conteúdo das declarações. A gravação ou o registo audiovisual dos depoimentos não permite, como todos concordam, o mesmo grau de percepção das subtis e normalmente imperceptíveis reacções corporais (fenotípicas) dos depoentes (v.g., enfraquecimento da memória, excessiva firmeza dos depoimentos, a mímica utilizada): a interiorização e a valorização dos depoimentos no sentido da formação de uma convicção sobre a veracidade ou o falsificaccionismo das afirmações sobre os factos controvertidos são, muitas vezes, exclusivos de quem os presencia»[27].

No caso vertente, e face ao teor dos depoimentos colhidos (declarações de parte e prova testemunhal), em associação com a documentação presente nos autos, tudo globalmente analisado e ponderado, entende-se, tendo em conta as considerações antes aduzidas, que não há como alterar a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, tendo presente a análise crítica desses depoimentos agora efectuada pelo Tribunal da Relação.

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IV.2) Da verificação de erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados analisados à luz do instituto do enriquecimento sem causa:

O princípio geral do enriquecimento sem causa consta no artigo 473º do Código Civil, segundo o qual «aquele que, sem justa causa, justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locuptou» (artigo 473º, nº1, do Código Civil).

A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473º, nº2, do Código Civil).

São elementos constitutivos do instituto em apreciação o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro decorrentes do mesmo facto e a ausência de causa justificativa para a correspondente deslocação patrimonial verificada. Dada a sua natureza subsidiária, a causa de pedir do enriquecimento sem causa cede perante os elementos constitutivos do incumprimento contratual derivada da responsabilidade civil obrigacional.

Menezes Leitão[28] refere que os pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa são: a existência de um enriquecimento, a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e a ausência de causa justificativa para o enriquecimento. No plano jurisprudencial existe uma sintonia absoluta com esta doutrina[29].

Para que a acção de enriquecimento sem causa proceda não basta que não se prove a existência de uma causa justificativa de atribuição patrimonial; é antes necessário que se prove a falta de causa de deslocação patrimonial, nos termos da regra geral sobre o ónus probandi estatuída no artigo 342º do Código Civil, por essa carência justificativa ser facto constitutivo de quem requer a restituição do indevido[30].

O enriquecimento de alguém somente será injusto, dando por isso lugar à restituição dos valores recebidos, quando a entrega desses valores não seja determinada por uma causa justificativa[31].

Almeida e Costa[32] diz-nos que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o ofendido só «poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos. Sempre que uma acção normal (de rescisão, de pagamento, de reivindicação, etc.) e possa ser exercida, o empobrecido deve dar-lhe preferência: não se levantará, pois, a questão de averiguar se há locupletamento injustificado. E, então, só apurando-se, por interpretação da lei, que essas normas directamente predispostas não esgotam a tutela jurídica da situação é que se justifica o recurso complementar ao instituto do enriquecimento sem causa».

Na mesma linha de pensamento, surgem os comentários de Pires de Lima e Antunes Varela[33] que sublinham o carácter subsidiário do direito e revelam que «desde que o empobrecido tenha, por outro meio legal, maneira de cobrir os prejuízos» deve usar esse procedimento.

O enriquecimento sem causa, como meio de evitar o empobrecimento de uma pessoa em função do enriquecimento do património de outra, não é susceptível de produzir a nulidade de qualquer negócio jurídico. Além disso, o direito à restituição prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento (artigo 482º do Código Civil).

O conhecimento da falta de causa do enriquecimento ou da falta do efeito pretendido pode verificar-se no próprio momento do enriquecimento. Sendo assim, não há senão que aplicar o regime deste artigo, o que aproxima muito a restituição, neste caso, de qualquer outro caso de restituição prevista na lei ou da indemnização por danos. Aproximam-se os casos, mas não coincidem, porque não pode dispensar-se a determinação do enriquecimento e do empobrecimento no momento da transferência de valores, para limitar o direito e a obrigação[34].

Para que haja lugar à condenação judicial na restituição do indevido, por força do enriquecimento sem causa, é irrefragavelmente necessário que se demonstre – mediante alegação e prova da respectiva factualidade – que a quantia constitui a massa patrimonial deslocada do património do empobrecido para o do enriquecido não teve causa justificativa, designadamente por não ser devida em função de qualquer título ou acto válido e eficaz[35].

No caso que nos ocupa é inquestionável que se verificou uma transferência bancária originária das contas da Autora para as do Réu. No entanto, tal como lhe competia, a parte activa não logrou provar que o Réu tenha integrado as referidas quantias no seu património, fazendo-as coisa sua. Antes pelo contrário, aquilo que provou é que o Réu entregou todo o capital recebido a Teresa Maria Carvalho Costa e nas entrelinhas probatórias aquilo que transparece é que funcionou como mero intermédio de um plano gizado por aquela.

Face ao conspecto factual apurado não ocorreu uma situação de enriquecimento do Réu, seja na modalidade de aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de coisa alheia, no exercício de direito alheio ou na poupança de despesas.

Dito de outra forma, as quantias em causa não tinham como destinatário final o Réu antes se dirigiam ao património da Teresa Maria Carvalho Costa, que utilizou as contas da parte passiva como veículo para integrar na sua esfera de disponibilidade o dinheiro proveniente do erário da Autora.

Feito este breve excurso analítico sobre a natureza do instituto jurídico do enriquecimento sem causa, é de firmar conclusão que não assiste razão à sociedade Ré, dado que, apesar do seu empobrecimento, não existe um quadro de enriquecimento do Réu.

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V – Decisão:

Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto.

Custas a cargo da apelante.

Notifique.

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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº5, do Código de Processo Civil).

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Évora, 6 de Outubro de 2016

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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[1] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 435-436.

[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência de 21/06/2016, in www.dgsi.pt.

[3] Sobre esta matéria ver, em sentido próximo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2016, in www.dgsi.pt, que realça que «a prova dos factos assenta na certeza subjectiva da sua realidade, ou seja, no elevado grau de probabilidade de verificação daquele, suficiente para as necessidades práticas da vida, distinguindo-se da verosimilhança que assenta na simples probabilidade da sua verificação».

[4] De harmonia com o princípio da prova livre, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.

[5] Miguel Teixeira de Sousa, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), pág. 115 e seguintes

[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 16/06/2016, in www.dgsi.pt.

[7] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, pág. 273.

[8] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, págs. 280-281.

[9] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 635.

[10] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 282.

[11] Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/01/2012, in www.dgsi.pt.

[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/05/2004, in www.dgsi.pt.

[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/04/2014, in www.dgsi.pt.

[14] José Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 278.

[15] Elisabeth Fernandez, «Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)coerência do Sistema Processual a este propósito», Julgar Especial, Prova difícil, 2014, pág. 27.

[16] Acórdão do Tribunal Constitucional nº504/2004, in www.tribunalconstitucional.pt.

[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/2003 e 16/03/2011, in www.dgsi.pt.

[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/06/2015, in www.dgsi.pt.

[19] As Malquistas declarações de parte – “Não acredito na parte porque é parte”, em Colóquio organizado no Supremo Tribunal de Justiça, estudo disponível na página web do STJ e ainda em www.trp.pt/.../as%20malquistas%20declaraes%20de%20parte_juizdireito%20luis%20f...

[20] Remédio Marques, «A aquisição e a Valoração Probatória dos Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte», Julgar, Jan-Abril, 2012, nº16, pág. 168.

[21] Obra citada, pág. 37.

[22] Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, pág. 56, estudo editado na internet em

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28630/.../Declaracoes%20de%20parte.pdf

[23] Paulo Pimenta, Processo Civil, Declarativo, Almedina, 2014, pág. 357.

[24] Existe identidade de partes e a causa de pedir e o pedido são substancialmente idênticos. Nessa acção estavam em discussão quatro transferências no valor de €16.540,00 efectuadas pela aludida Teresa Maria Carvalho Costa para a conta aberta em nome José Alberto Caldeira Silva.

[25] Não trata aqui de aplicar a disciplina constante do artigo 421º do Código de Processo Civil.

[26] A única diferença é num caso a beneficiária do dinheiro ter emitido uma declaração desvinculatória para o aqui Ré. Na presente hipótese o documento com o mesmo conteúdo não seria possível de obter por a antiga empregada da Autora ter passado a não ter paradeiro conhecido.

[27] Remédio Marques, Cadernos de Direito Privado, I Seminário dos Cadernos de Direito Privado “O Processo Civil entre a Justiça e a Celeridade”, número especial, Dezembro de 2010, pág. 88.

[28] Direito das Obrigações, vol. I, 5ª edição, pág. 401.

[29] Por todos ver: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2015, in www.dgsi.pt.

[30] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/1977, in BMJ 272-196.

[31] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/10/1976, in CJ 1976-III-810.

[32] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 420.

[33] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 321.

[34] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 327.

[35] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/05/2011, in www.dgsi.pt.