Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1200/19.5T8OLH.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DESTITUIÇÃO DE GERENTE DE SOCIEDADE COMERCIAL
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando verificada nos autos a existência de um conflito de interesses entre o requerente e a sociedade requerida – da qual aquele é sócio e gerente – incumbe ao juiz, como resulta do disposto no artigo 25.º, n.º 2, do C.P.C., providenciar, oficiosamente, pela regularização da instância, designadamente, nomeando à sociedade um representante especial ou curador ad litem, como forma de assegurar a respectiva representação em juízo, nomeação que pode ocorrer entre os representantes da sociedade ou os sócios e, na falta de acordo, entre eles, através da nomeação de uma terceira entidade (v. g. um revisor oficial de contas).
Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1200/19.5T8OLH.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) na qualidade de sócio veio, ao abrigo do art. 1055º do C.P.C., interpor acção de destituição de membro de órgão social com prévia suspensão do mesmo, contra (…), e a sociedade “(…) – Clínica Dentária, Lda.”, pedindo que seja suspensa de imediato a primeira requerida das funções de gerente da segunda requerida, sendo provisoriamente confiada a gerência ao requerente, bem como seja a primeira requerida destituída das funções de gerente da segunda requerida com fundamento em justa causa.
Para tanto, alegou, em sínteses que a primeira requerida tem consecutivamente desviado para fins particulares dinheiros da sociedade, usa o cartão de crédito/multibanco da sociedade para pagar despesas particulares e, com as disponibilidades da sociedade efetua pagamentos de viagens mensais para o Brasil, para fins e interesses particulares da própria.
Foi determinada a suspensão provisória da primeira requerida do cargo de gerente da segunda requerida, sem audiência prévia daquela, e, posteriormente, foram ambas citadas para, querendo, contestarem os pedidos – cfr. nº 3 do mencionado art. 1055º do C.P.C.
Apenas a primeira requerida apresentou contestação alegando, em síntese, que a presente ação tem apenas intuito de vingança pessoal do outro sócio, motivado pelo divórcio ocorrido entre os dois sócios aqui intervenientes neste litígio. É falso que tenham existido convocatórias para as assembleias de sócios por parte do requerente, pois a única convocatória foi feita pela requerida em 27/9/2010. Não houve qualquer assembleia de sócios depois da saída do requerente da casa de morada da família, em agosto de 2018, pois até essa data não havia qualquer necessidade de convocatória para esse efeito. A última acta assinada pela requerida foi a de final de 2016, não tendo assinado qualquer acta em 2017, sendo que a assinatura nela constante não é dela. Até julho de 2019, data em que o requerente deliberou de motu próprio o aumento dos vencimentos dos gerentes da sociedade, a requerida apenas recebia o valor mensal de € 798,67, passando a auferir € 2.041,00. Não houve distribuição dos lucros de 2018 e de 2019. É absolutamente falso que a requerida se tenha apossado de valores pertencentes à sociedade e deles tenha feito uso em proveito próprio, como alega o requerente, sem que este tivesse conhecimento. O valor de 2019 dos lucros é superior ao valor detido pela requerida, pelo que o mesmo só pode estar retido pelo requerente. Quer o requerente, quer a requerida faziam uso dos valores existentes nas contas da sociedade para fins particulares, em particular para as despesas do agregado familiar, que nenhum prejuízo causava à sociedade, pois que apenas haveria menos valores de lucros a distribuir a final. Era uma prática de ambos os sócios, com o conhecimento e consentimento mútuos. Dos parcos documentos carreados para os autos não resulta que a requerida se tenha apossado do valor de € 50.269,73. É verdade que a requerida tem na sua posse os valores correspondentes ao seu trabalho e o requerente o dele e dos outros médicos. As viagens que fez ao Brasil foram para efeitos da sua formação. Inexiste lesão grave e irreparável ou de difícil reparação de um grave direito, quer pelos danos que possam advir dessa conduta, quer pela demora na tutela definitiva e, de igual modo, inexiste periculum in mora. Conclui, assim, pela improcedência da acção, devendo a requerida ser absolvida dos pedidos.
Oportunamente foi realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que, com o acordo das partes, veio a decidir, não só a confirmação ou infirmação da medida de suspensão provisória, como também a decidir sobre a destituição definitiva da gerência em relação à primeira requerida.
Assim sendo, da mencionada sentença consta, como dispositivo, o seguinte:
“Pelo exposto:
a) Mantenho a decisão de suspensão imediata da requerida da qualidade de gerente;
b) Julgo procedente por provada a destituição de (…) da gerência da (…) – Clínica Dentária, Lda.;
c) Não se vislumbra a verificação de litigância de má fé”.

Inconformada com tal decisão dela apelou a requerida (…), tendo apresentado para o efeito as suas alegações e conclusões de recurso.
Pelo relator foi proferido despacho a determinar que a requerida sintetizasse as suas conclusões de recurso (uma vez que aquelas que tinha apresentado o tinham sido em 22 páginas), o que foi feito ao abrigo do disposto no art. 639º, nº 3, do C.P.C., tendo a requerida apresentado novas conclusões devidamente sintetizadas (em 7 páginas), as quais, de imediato, passamos a transcrever:
Da falta de representação da sociedade nos autos:
A. O processo em causa, encontra-se ferido de nulidade, por violação do disposto no artigo 25.º, nº 2, do Código de Processo Civil, uma vez que a Sociedade Demandada nos autos, não poderia ser representada em juízo pelo Recorrido (…)
B. Do mesmo modo, cumpre destacar, que o terceiro sócio da Sociedade, é o menor (…), além da ausência de capacidade judiciária, inviável tornou sua representação, dado ser filho da Recorrente e do Recorrido. Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, acresce que,
Da incorreta valoração da prova produzida:
C. Da prova produzida não resultou provado que a Recorrente se locuptou com dinheiros da sociedade e se utilizou os valores da sociedade em proveito próprio, e se tal facto, pela sua natureza e relevância justificam a sua destituição da gerência da sociedade.
D. Importa, desde logo sublinhar que não se pode aceitar o argumento de que os factos 12, 13, 14, 15, 16, 17, 23, 24, 25, 34, 35, 37 e 38 já estariam confessados, tanto em sede de contestação apresentada (cfr. arts. 78 da contestação) como igualmente nas declarações prestadas em julgamento. Denota-se das linhas gerais da contestação apresentada (oposição), a inexistência de qualquer confissão acerca de matéria de factos e de direito.
E. Do mesmo modo, se anota que das declarações prestadas pela Recorrente em Juízo, não possuem o condão de certificar a ocorrência de qualquer confissão da matéria trazida a relevo.
F. Em nenhum momento do depoimento a Recorrente confessa ter feito seu o dinheiro de caixa da sociedade, sem intenção de o entregar.
G. Releva-se particularmente relevante assinalar que a Sociedade detinha características de empresa familiar
H. A decisão proferida ignorou que sempre foi prática da sociedade, a Recorrente recolher o dinheiro de caixa e que não era prática o depósito no dia seguinte, contrariamente ao que consta da sentença proferida.
I. Sendo portando errado concluir como o Tribunal concluiu no ponto 13 que não havia consentimento e autorização dos sócios para que assim fosse.
J. Não existindo qualquer elemento de prova que revele que em algum momento o Recorrido tenha manifestado, perante a Recorrente, o seu desacordo com a conduta daquela. Aliás, bem pelo contrário dado ter sido claro pelos depoimentos prestados, ser exatamente esse o modus operandi estabelecido.
K. Acresce referir que nunca foi pratica o dinheiro de caixa ser depositado diariamente (contrariamente ao referido no ponto 15 da matéria considerada por provada).
L. Importa aqui assinalar que os valores depositados pelo Recorrido não correspondem às folhas diárias de caixa, nem com o valor total de caixa.
M. O que se verifica pelo confronto das folhas de caixa e os extratos bancários, e também pelo facto do Recorrido já no curso da ação ter depositado mais de € 49.000,00 (vide artigo 35 dos factos provados).
N. Ora, facto de ser assumido pelo próprio Recorrido de ter mais de € 40.000,00 de caixa consigo, o qual depositou já no decurso do processo, através de um único depósito fere de morte a credibilidade do depoimento das testemunhas (…), (…), (…), (…), mostrando que as mesmas mentiram em tribunal, o que fizeram de forma livre e consciente.
O. Este facto jamais pode ser desconsiderado, pois proferiram falso depoimento com o claro intuito de prejudicar a Recorrente, pois bem sabiam qual a matéria em causa nos autos e o pedido formulado em juízo.
P. A respeito do dinheiro de caixa, conclui o Tribunal que a Recorrente se apropriou do dinheiro de caixa, dele dispondo a seu belo prazer (vide pontos 16 a 19 e 37 da fundamentação de facto. O que não se encontra suportado em qualquer elemento de prova.
Q. O Tribunal conclui erradamente que a Recorrente se apropriou do dinheiro de caixa da Sociedade (vide ponto 37 da matéria dada como provada).
R. Para se concluir pela apropriação do dinheiro por parte da Recorrente teria que se ter provado o animus domini por parte daquela, o qual não foi provado.
S. Motivo pelo qual, tendo a Recorrente a posse de alguns valores da sociedade, tal não é suficiente para concluir que a mesma se tenha deles apropriado.
T. Sendo que importa sublinhar que não se encontra suportado na prova carreada para os autos a conclusão vertida no ponto 22 da matéria considerada por provada
U. Relativamente aos Pontos 21 e 33 da matéria dada como provada, importa referir que não foi provado que a atuação da Recorrente confronta a sociedade com a dificuldade em conseguir cumprir as suas obrigações e outras.
V. Aliás, bem pelo contrário, todas as testemunhas foram unanimes no facto de que não se encontram quaisquer obrigações por cumprir.
W. Assim, sendo, em face da prova produzida, designadamente, pelas contabilistas da empresa, foi provada a boa saúde financeira da empresa, que é uma empresa lucrativa, com cumprimento de todas as obrigações vencidas.
X. Não existindo qualquer elemento de prova que infirme tal facto.
Y. Pelo que, não havendo qualquer elemento de prova que suporte o argumento das dificuldades financeiras, não poderia o Tribunal, salvo devido respeito por opinião diversa, ter considerado tal facto como provado, como erradamente o fez (vide ponto 33 da fundamentação de facto)
Z. Sendo que essa errada apreciação da prova tem um evidente impacto na decisão tomada, motivo pelo qual se impõe uma reapreciação da prova também a este respeito.
AA. É particularmente relevante assinalar que não foi feita prova bastante para se concluir a utilização de valores da sociedade em proveito próprio.
BB. De onde resulta, igualmente, não ser verdade que a Recorrente tenha em seu poder o montante de € 50.279,73 (vide ponto 37 da fundamentação de facto)
CC. Nem podia concluir-se a despesa de supermercado era ou não relativa a despesas da sociedade, sendo evidente que uma clinica consume bens de supermercado, o mesmo sucedendo com os produtos de estética e cosmética, que relativamente aos quais não se encontra nos autos prova bastante de que a Recorrente tenha adquirido os mesmos para seu proveito próprio, com dinheiro da sociedade.
DD. Mais, refere o Tribunal que a propósito das viagens deveria ter havido um consentimento da sociedade para tais deslocações, sendo que a verdade é que nada nos autos indica que tal consentimento não existisse, e muito menos que tal prejudique a sociedade, pois não se pode vislumbrar como pode alguém entender que formação especializada na área clinica da Recorrente e da atividade da sociedade não é visto como algo que beneficia a sociedade.
EE. O facto de a Recorrente nas suas deslocações prejudicar a sociedade é uma conclusão quase paternalista do Tribunal, não respaldada em nenhum elemento de prova carreado para os autos.
FF. Assim sendo, ou o Recorrido apresentava prova bastante de que as deslocações ao Brasil haviam sido realizadas para fins lúdicos e não formativos, dado o ónus da prova que sobre si recaía, nos termos do disposto no artigo 342º do Código Civil, ou não há qualquer razão fundada para concluir que tais viagens violam o dever de lealdade para com a Sociedade.
GG. Do mesmo modo, inexiste nos autos qualquer prova cabal e escorreita de que a Recorrente detém em sua posse, por referência aos últimos oito meses, a quantia global de € 50.279,73 (cinquenta mil e duzentos e setenta e nove euros e setenta e três cêntimos), visto que diante a ausência de prestações de contas e/ou auditorias, o valor mencionado é fruto de maquiavélica especulação.
HH. Não havendo qualquer suporte documental que suporte tal valor.
II. Por outro lado, restou consabido dos autos, que a conduta da Recorrente não deu causa a prejuízos a sociedade, designadamente impossibilitando a regularização das conciliações de caixa, a prestação das contas da sociedade, o cumprimento de obrigações fiscais.
JJ. Não obstante o óbvio respeito (que é muito) pelo princípio da livre apreciação da prova do Julgador, consagrado no artigo 607º do CPC ressai consabido que a douta sentença, não extraiu in totum toda esta factualidade provada.
KK. Como se constata, os elementos de prova supra invocados, mormente de ordem documental, impunham decisão diversa, isto é, permitam formar uma convicção distinta inequivocamente e sem margem de dúvidas, decorrente de uma análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos de facto e de direito que foram decisivos para a convicção do julgador.
LL. Em face do exposto resulta que os factos dos pontos 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 27, 28, 29, 30, 33, 35, 37, 41 deveriam ter sido considerados como não provados.
MM. Sendo que o ponto 32 é meramente conclusivo não podendo ser considerado uma matéria de facto provada.
NN. No caso vertente, denota-se que a existência de um conflito entre os sócios/gerentes da Sociedade, entretanto, da parte da Recorrente não houve grave violação com dolo ou negligência forte, dos deveres inerentes aos gerentes.
OO. Haverá violação grave dos deveres do gerente sempre que, tendo em conta a natureza e o grau da violação, se possa concluir pela contrariedade do comportamento (acção ou omissão) ao interesse da sociedade. Neste sentido, a gravidade da violação depende, em regra, da verificação de um comportamento do gerente apto a fazer perigar o interesse social, aferindo-se aquela gravidade por estas consequências.
PP. No entanto, como os factos que integram a justa causa, por serem manifestamente contrários ao escopo social comum, dão origem a uma relação conflitual, a gravidade destes factos funda-se no prejuízo causado ao interesse da sociedade, ou seja, para que a sociedade pretenda legitimamente acautelar o seu interesse mediante destituição do gerente, devem verificar-se não só os factos atinentes ao comportamento ou à pessoa do gerente, que integram a justa causa, mas também a suscetibilidade de prejuízo, o que não ocorreu na espécie conforme alhures demonstrado.
QQ. Dado não existirem factos concretos provados que pela sua natureza e gravidade justifiquem a destituição da Recorrente da gerência da sociedade, entregando a gestão da empresa, património comum e exclusivo do ex-casal e seu filho, ao Recorrido.
RR. Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado, e em consequência ser:
a) - Declarado nulo todo o processado posterior à citação da sociedade, por violação do disposto no artigo 25.º do CPC;
b) - Alterada a matéria de facto dada por provada e serem considerados por não provados os factos dos pontos 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 27, 28, 29, 30, 33, 35, 37, 41.
c) - Considerada por não verificada a justa causa para a destituição da gerência e em consequência revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
SS. Assim se fazendo a tão habitual Justiça.
Pelo requerente não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo artigo 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerida (…), ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se se verifica a falta de representação da sociedade requerida nos autos, tendo sido violado o disposto no nº 2 do art. 25º do C.P.C., o que acarreta a nulidade de todo processado após a citação da dita sociedade;
2º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada;
3º) Finalmente, saber se não foi feita prova nos autos da violação grave dos deveres de gerente, por parte da primeira requerida (cfr. art. 257º do Cód. Soc. Com.) e, por isso, inexiste justa causa para a sua destituição da gerência da sociedade requerida.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo” e que, de imediato, passamos a transcrever:
1. O Requerente e a Requerida são ambos médicos dentistas.
2. Sendo o requerente sócio da sociedade por quotas designada (…) – Clínica Dentária, Lda., Pessoa Coletiva n.º (…), com sede na Rua (…), Urbanização (…), Lote 1, Piso 1, Fração B, 8100-259 Loulé,
3. Detendo uma quota com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros),
4. Além da sua qualidade de sócio, o Requerente exerce, ainda, as funções de gerente.
5. A Requerida é, também, sócia da mencionada sociedade,
6. Detendo uma quota com o valor nominal de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
7. E é, igualmente, gerente da mesma sociedade.
8. Da sociedade em causa, é ainda sócio, o menor (…), filho do Requerente e da Requerida.
9. Que detém uma quota no valor nominal de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
10. A supra mencionada sociedade mantém em funcionamento duas clínicas médico dentárias, sitas, respetivamente, na Rua (…), Urbanização (…), lote 1, piso 1, fração B, Loulé e Rua (…), nº. 26, São Brás de Alportel.
11. Desde pelo menos 2018 que se verificam diversos desentendimentos entre Requerente e Requerida no que há vida societária concerne,
12. Por outro lado, o Requerente tomou conhecimento de que a Requerida se tem apossado e disposto de diversos valores monetários da sociedade comum,
13. Chegando ao ponto de diariamente levar consigo (e fazendo seu) todos os valores que se encontram em caixa, pelo menos da clínica de Loulé propriedade e explorados pela sociedade, sem o consentimento e autorização dos demais sócios,
14. Os quais usa para sua fruição e despesas pessoais, que nada têm que ver com a sociedade ou o cumprimento das suas obrigações e/ou do seu objeto social (cfr. Docs. n.º 10 e 11).
15. Com efeito, o procedimento habitual da sociedade é que diariamente o Requerente ou a Requerida procedam à recolha dos valores constantes de caixa de cada um dos estabelecimentos, os quais se encontram plasmados nas folhas diárias de caixa e que seriam depositados por aqueles, ainda nesse dia ou no dia seguinte, na instituição bancária onde se encontram tituladas as contas bancárias da sociedade (CGD) – (cfr. Docs. nºs. 2 a 9, que ora se juntam e dão por integralmente reproduzidos).
16. Sucede, porém, que há mais de um ano, de forma contínua e reiterada, tal não se tem verificado por parte da Requerida,
17. Que se vem apropriando dos mencionados valores diários;
18. Deles dispondo a seu livre e belo prazer,
19. Sem motivo justificativo,
20. E sem disso prestar contas quer à sociedade, quer ao Requerente.
21. Em claro prejuízo da sociedade, designadamente impossibilitando a regularização das conciliações de caixa, a prestação das contas da sociedade, o cumprimento de obrigações fiscais, etc.
22. À presente data, a Requerida detém na sua posse, sem que para isso tenha título ou direito, e apenas por referência aos últimos oito meses, a quantia global de € 50.269,72 (cinquenta mil, duzentos e sessenta e nove euros e setenta e dois cêntimos).
23. Acresce ainda que a Requerida adquiriu, para todo o ano de 2019, em nome da sociedade e a expensas desta, viagens mensais para o Brasil, país de onde é oriunda (cfr. Doc. nº. 10).
24. Tais viagens são compradas em nome da sociedade.
25. Todos os custos associados a tais viagens são liquidados pela sociedade, com valores monetários da sociedade.
26. Além disso, a Requerida mantém na sua posse um cartão bancário, associado a conta titulada pela sociedade,
27. Através do qual a Requerida liquida despesas de supermercado, almoços, jantares, idas ao cinema, compras (vestuário e calçado), bimby, produtos de estética e cosmética, etc.
28. Tais despesas destinam-se única e exclusivamente a gastos próprios da Requerida,
29. Não tendo esta consentimento ou autorização da sociedade para o efeito.
30. Nunca tendo sido deferido, no foro societário da sociedade, que os sócios e/ou gerentes, poderiam gastar valores monetários da sociedade para seu gozo, fruição e uso pessoal.
31. Até porque a Requerida aufere um salário mensal, pelo trabalho prestado à sociedade, no valor de cerca de € 2.694,70 (dois mil, seiscentos e noventa e quatro euros e setenta cêntimos),
32. Pelo que não se vislumbra qualquer motivo justificativo para que a Requerida retire e se aposse, diariamente, dos valores em caixa de cada um dos estabelecimentos explorados pela sociedade.
33. Toda esta atuação da Requerida, confronta a sociedade com a dificuldade em conseguir cumprir as obrigações e outras, apesar do razoável volume de negócio.
34. O requerente e a requerida faziam uso dos valores existentes nas contas da sociedade.
35. O requerente apenas efetuava os depósitos nas contas da empresa em quantia suficiente para suportar as despesas, retendo outras quantias, mas depois da saída da requerida da gerência da sociedade, em janeiro de 2020, depositou mais de € 49 mil euros;
36. O requerente justificou as referidas não entregas atempadas para evitar que esse fosse usado e despendido pela requerida para fins particulares.
37. A requerida não depositou qualquer quantia da sociedade, que se apoderou ao não ter procedido ao depósito do faturado em Caixa, num valor de pelo menos € 50.279,73.
38. Entende que esse dinheiro lhe é devido por:
- ser fruto do trabalho que desempenhou na sociedade como médica dentista;
- conta da não distribuição de lucros;
- o auferido não ser suficiente para pagar as despesas do seu agregado familiar.
39. A requerida durante o ano de 2019 realizou viagens ao Brasil, à razão de pelo menos uma semana por mês.
40. O valor despendido com as referidas viagens é de € 12.205,92.
41. Dessas 12 viagens, até ao presente momento, apenas as relativas aos meses de Junho, Julho e Setembro de 2019 estão justificadas na contabilidade para efeitos fiscais com formação, num valor de cerca de € 3.000,00.
42. Da faturação declarada e da distribuição de lucros comunicadas à Autoridade Tributária, estejam impostos por regularizar (pagar).

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela requerida (…), aqui recorrente – saber está verificada a falta de representação da sociedade requerida nos autos, tendo sido violado o disposto no nº 2 do art. 25º do C.P.C., o que acarreta a nulidade de todo processado após a citação da dita sociedade – importa ter presente, desde já, o que, a tal respeito, estipula o citado art. 21º do C.P.C.
Assim, estabelece o nº1 de tal preceito legal que as sociedades são representadas em juízo por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.
Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo preceito que, sendo demandada sociedade que não tenha quem a represente, ou ocorrendo conflito de interesses entre a ré e o seu representante, designará o juiz da causa representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respectiva representação em juízo.
No caso em apreço, o M.mo Juiz “a quo” entendeu que o presente procedimento e subsequente acção não só afecta a gerente da qual se pretende a destituição, como também a sociedade. Isto porque, quando os sócios sejam mais do que dois, o tribunal deve ouvir a sociedade, pois existe, em tese, uma terceira vontade a da sociedade (outros sócios). No caso vertente, a sociedade (…) – Clínica Dentária, Lda. tem mais do que dois sócios, em particular três (sendo o terceiro filho menor dos outros dois sócios), pelo que a sociedade deve sempre ser ouvida (por ter interesse em ser ouvida a propósito da suspensão e destituição de um dos seus gerentes).
Deste modo, veio o requerente solicitar a intervenção principal provocada da referida sociedade nos autos, como requerida, o que foi deferido pelo Julgador “a quo”.
De seguida, foi apreciado o pedido de prévia suspensão (provisória) da requerida (…) das funções de gerente da sociedade requerida, o qual veio a ser deferido sem audiência prévia de ambas as requeridas, sendo provisoriamente confiado ao requerente Emanuel assumir a gerência da referida sociedade por forma a garantir a gestão da mesma.
Além disso, foi ainda determinado a notificação e citação da requerida (…) e da dita sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do art. 1055º do C.P.C., bem como, uma vez que foi proferida a decisão cautelar sem a prévia audição das requeridas, a citação das mesmas para, querendo, concomitantemente e de forma autónoma, deduzirem oposição ou recorrerem de tal decisão, atento o disposto nos arts. 366º, nº 6 e 372º, nº 1, ambos do C.P.C.
Assim sendo, notificada e devidamente citada, veio a requerida (…) apresentar a sua oposição nos autos, muito embora, apesar da citação promovida nos autos, não ter havido qualquer manifestação da sociedade requerida, (…) – Clínica Dentária, Lda., no decurso do processo, nomeadamente, verificando-se a total ausência de representação especial para a dita sociedade, a qual era exigida para o caso em análise.
Com efeito, resulta claro quanto a nós uma violação manifesta das regras processuais, a que alude o nº 2 do art. 25º do C.P.C., tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço e a natureza jurídica acerca da representação em juízo das pessoas coletivas e, concretamente, da sociedade requerida.
Na verdade, considerando-se imprescindível (e bem) o chamamento da sociedade aos autos, como parte requerida, a referida sociedade não poderia ser representada em juízo pelo requerente (…), dado não ser processualmente admissível – face às questões em litígio e ao manifesto conflito de interesses – que aquele figurasse em juízo como requerente e, simultaneamente, como representante da sociedade requerida!
E, a este propósito, não será despiciendo salientar que o terceiro sócio da sociedade requerida é (…), menor de idade e filho dos restantes dois sócios (o requerente … e a requerida …). Ora, além da ausência de capacidade judiciária do mesmo, torna-se inviável a sua representação por qualquer dos progenitores, uma vez que, repete-se, o mesmo é filho do requerente e da primeira requerida.
Finalmente, uma vez que foi proferida decisão que determinou a prévia suspensão (provisória) da requerida (…) das funções de gerente, torna-se óbvio e manifesto que não poderá a mesma representar a sociedade requerida no lado passivo da presente acção.
Deste modo, forçoso é concluir que, “in casu”, incumbia ao Juiz a designação de um representante especial para assegurar a respectiva representação em juízo da sociedade requerida – ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 25º do C.P.C. – com o objectivo primordial da proteção dos direitos e interesses da dita sociedade, face à matéria fáctica que é imputada por um gerente (o requerente …) contra o outro (a requerida …).
Por isso, como é afirmado no Ac. do STJ de 6/3/1990, numa sociedade por quotas constituída por dois casais e em que se estabelece no pacto social que, relativamente a todos os actos que criem obrigações para a sociedade, esta só ficara obrigada com a intervenção ou assinatura de dois gerentes – um de cada casal – é aplicável o artigo 21º, nº 2, do Código de Processo Civil se um dos sócios intenta uma acção contra a sociedade e o outro casal (redacção idêntica ao art. 25º, nº 2, do actual C.P.C.) – in www.dgsi.pt.
Em sentido idêntico pode ver-se o Ac. do STJ de 21/9/2000, no qual é afirmado o seguinte:
- Se é o próprio sócio a demandar a sociedade, à citação desta não se aplicam as normas gerais da citação das sociedades, mas sim as especiais sobre a representação das sociedades por quem tenha com elas conflitos de interesses, do art. 21º, nº 2, do C.P.C. (redacção idêntica ao art. 25º, nº 2, do actual C.P.C.) – in CJSTJ, 2000, Tomo 3º, pág.33.
Também em sentido similar aos arestos supra transcritos veja-se ainda o Ac. da R.P. de 16/4/2012, no qual se afirmou que:
- (…) No caso em apreço, deteta-se não só a irregularidade de representação da Ré, como a impossibilidade de os representantes assumirem em conjunto, como exige o pacto social, as funções da sua representação em juízo, ocorrendo ainda um conflito de interesses entre a ré e um seu representante.
Desta sorte, incumbe ao juiz da causa, assegurar a representação da demandada em juízo, designando para o efeito, um curador especial.
Ou, cotejando o sumário do acórdão desta Relação de 15-07-2009:
Verificada a irregularidade da representação, e também a impossibilidade de os representantes assumirem, em conjunto, como impõe o pacto social, as funções de representação e ainda a existência de conflito entre a Ré e um seu representante, incumbe ao juiz, como resulta do disposto nos arts. 21º/2, 40º e 265º, todos do CPC, providenciar, ex officio, pela regularização da instância, mormente, nomeando à sociedade um representante especial ou curador ad litem, como forma de assegurar a respetiva representação em juízo, nomeação que pode ocorrer entre os representantes da sociedade ou os sócios, ou através da nomeação de uma terceira entidade, v. g. um revisor oficial de contas (…) – in www.dgsi.pt.
Deste modo, resulta claro que o disposto no nº 2 do citado art. 25º do C.P.C. aplica-se quando estão em causa acções entre a sociedade e o seu representante, existindo conflito de interesses entre eles e quando a sociedade é demandada como ré ou para intervir em causa pendente, como salienta Lebre de Freitas, mas sempre no lado passivo, tornando-se necessária a nomeação de um representante especial – cfr. C.P.C. Anotado, Vol. 1º, 1999, pág.43.
Por isso, sendo detectada essa irregularidade, incumbe ao juiz, oficiosamente e a todo o tempo, providenciar pela regularização da instância, sendo que a irregularidade sana-se com a intervenção ou citação do representante especial designado.
Todavia, se este não ratificar nem renovar os actos praticados, a irregularidade não se pode considerar sanada, faltando, assim, um pressuposto processual, que não se convalida nas fases processuais subsequentes.
Voltando ao caso em apreço, constatando-se que o requerente (...) pugnou pelo chamamento da sociedade requerida, (…) – Clínica Dentária, Lda., do lado passivo, no qual se encontra também a requerida (…), e peticionando aquele a destituição de gerente desta última, com justa causa, torna-se evidente, quanto a nós, que era necessária e imperiosa a designação de um representante especial à referida sociedade, nos termos do disposto no referido artigo 25.º, n.º 2, do C.P.C.
Todavia, da análise dos autos, verifica-se que tal representação da sociedade requerida não foi ordenada pelo M.mo Juiz “a quo”, pelo que a mesma não teve a oportunidade de se pronunciar devidamente sobre as questões elencadas pelo requerente na sua petição inicial (através do aludido representante especial que fosse nomeado para o efeito), o que tem como consequência uma nulidade insanável, já que tal irregularidade cometida influi necessariamente no exame e na decisão da causa – cfr. artigo195.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.
Nestes termos, forçoso é concluir que a decisão recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, anula-se todo o processado nos autos – a partir da prolação da decisão que determinou a prévia suspensão (provisória) da requerida (…) como gerente da sociedade requerida – devendo ser nomeado um representante especial à sociedade requerida, ao abrigo do que se mostra estipulado no n.º 2 do artigo 25.º do C.P.C.
E, desde já adiantamos que tal nomeação, caso seja possível, deverá ser feita por acordo entre o requerente (…) e a requerida (…) – os quais serão ouvidos expressamente para esse efeito – sendo que, na falta de tal acordo entre ambos, sempre o Julgador “a quo” nomeará uma pessoa idónea para representar a sociedade requerida, preferencialmente um revisor oficial de contas, atenta a factualidade que está em causa no processo.
Assim sendo, face à anulação da sentença recorrida, nos termos acima referidos, fica prejudicado o conhecimento das restantes (duas) questões levantadas pela requerida (…) no recurso de apelação por si interposto para esta Relação.

***

Finalmente, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C. passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

***

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela requerida (…) e, em consequência, anula-se a sentença recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 05 de Novembro de 2020
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás



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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).