Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
733/10.3GBSSB-A.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONTRADITÓRIO
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Impõe-se sempre tentar ouvir pessoalmente o arguido para se aferir da violação culposa das condições a que a suspensão da execução da pena foi subordinada.

2 - Deverão ser salvaguardadas e esgotadas todas as possibilidades de notificação pessoal do arguido para se pronunciar sobre a eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão a que se mostra condenado e, só após tal, se poderá tomar posição sobre as vicissitudes da pena, ou determinando a revogação da suspensão, ou declarando a extinção da pena.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo, com o nº 733/10.3GBSSB, a correrem termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal de Setúbal - Juiz 1, o arguido (...), foi condenado nos presentes autos, por Acórdão de 20-11-2015, transitado em 18-04-2016, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1, do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Esta pena ficou suspensa na sua execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova.
No decurso do período desta suspensão, ou seja, por factos praticados em 16-03-2018, foi o arguido condenado, por sentença de 01-10-2019, transitado em 02-07-2020, na pena 6 (seis) meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
Notificado o arguido nos termos do disposto no artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal, para ser ouvido pessoalmente sobre tais factos, com vista à eventual revogação da suspensão da execução da pena a que se encontra condenado nos termos do disposto no artigo 56º, nº 1, alínea b), do Código Penal, não compareceu e, não foi conseguida a sua comparência.

O Ministério Público emitiu parecer requerendo a revogação da suspensão da execução da pena, porquanto o arguido, ao cometer, mais uma vez, um crime contra as pessoas, colocou em causa as finalidades que estavam na base da suspensão da pena.

Este requerimento não foi pessoalmente notificado ao arguido.

Tal requerimento não teve deferimento, por o Tribunal “a quo” entender que o arguido não foi notificado pessoalmente, de forma a poder exercer o contraditório, sobre a eventual revogação da suspensão execução da pena a que está condenado.

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1. O condenado em pena de prisão suspensa continua afecto às obrigações decorrentes da medida de coacção de prestação de termo de identidade e residência (nomeadamente, a de que «as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada») - Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 6/2010, in DR nº 99/2010, Série I, de 21-05-2010.
2. A suspensão da pena de prisão em que o arguido foi condenado não foi simples, mas subordinada a regime de prova e aos concretos deveres e regras.
3. O arguido alheou-se superiormente do decidido no Acórdão quanto ao regime de prova, seguiu a sua vida como se nada fosse, como se tivesse sido absolvido e não tivesse que prestar satisfações ao Tribunal ou à DGRSP.
4. Ao não comparecer quando por inúmeras vezes foi regulamente notificado, mantendo-se incontactável e inviabilizando a elaboração de plano de reinserção social, o arguido incumpriu de modo grosseiro e culposo os deveres de colaboração a que estava sujeito.
5. Se se entendesse o contrário, premiar-se-ia um condenado que se mantém incontactável, ou melhor, em fuga às instâncias judiciais.
6. Foram designadas duas datas para audição presencial, com notificação postal e mandados de detenção, sendo que o arguido ainda foi notificado da promoção do M.P. para a morada do TIR.
7. Nunca compareceu, nada disse, nada requereu, nada esclareceu, mantendo sempre um silêncio processual cartusiano.
8. Estão, pois, asseguradas todas as garantias de defesa e o direito ao contraditório pleno e presencial.
9. E nada obsta à definição das vicissitudes da pena:
a) ou revogando a suspensão da execução da pena (como expressamente pretende o Ministério Público), (i.) por incumprimento grosseiro dos deveres do regime de prova (ii.) e condenação em prisão efectiva por prática de crime doloso durante o período de suspensão, tudo incutindo a falência do juízo de prognose favorável;
b) ou extinguindo a pena (como certamente pretenderia o arguido, não fosse estar em fuga às instâncias judiciais), caso o Tribunal considere que ainda se encontra incólume o juízo de prognose favorável.
10. Não poderá é o Tribunal deixar de tomar posição sobre as vicissitudes da pena.
Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente, substituindo-se a recusa de tomada de posição do Tribunal a quo, consubstanciada no despacho de fls. 934, por outro que decida as vicissitudes da pena, ou determinando a revogação da suspensão (como pretendemos), ou declarando a extinção da pena (com o que discordamos).
Justiça.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto.
Procedeu-se a exame preliminar.
Cumpridos os vistos legais, foi realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:
- Impugnação do despacho proferido para tomar posição sobre as vicissitudes da pena, ou determinando a revogação da suspensão, ou declarando a extinção da pena.

2 - Apreciando e decidindo:

Do despacho recorrido, resulta:
“Salvo o devido respeito, resulta da leitura dos autos que o arguido não foi notificado pessoalmente do teor do nosso despacho “retro” exarado.
Sendo que, visando tal despacho possibilitar o contraditório, em face do anúncio de uma hipotética possibilidade de lhe ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão em que obteve condenação, cremos (ao que julgamos saber, com a unanimidade da jurisprudência) que a antedita notificação não poderá deixar de ser pessoal.
Desse modo, indeferindo-se a D. promoção que antecede, pelas estritas razões ora referidas, e caso a Digna Procuradora da República a tanto se não oponha, solicitará ao OPC da localidade da residência do arguido, que proceda à notificação pessoal do mesmo, desde já se determinando (caso tal notificação não venha a ser obtida), que proceda a pesquisa nas bases de dados disponíveis sobre o paradeiro do arguido, acrescendo a solicitação às operadoras móveis, de informação sobre a existência de número telefónico pertença do arguido, a que corresponda uma morada (e na afirmativa, o envio desses dados)”.

De igual forma do despacho proferido nos termos do disposto no artigo 414º, nº 4, do Código de Processo Penal, resulta:
Nos termos e para os efeitos previstos pelo artigo 414º/4 do Código de Processo Penal, sustenta-se a decisão recorrida.
Com efeito, se não se tem por insuficiente a mera notificação postal, para a morada do arguido conhecida nos autos, em actos que não tenham o gravame que emerge da conversão da pena de prisão suspensa em pena de prisão efectiva, a notificação nos mesmos moldes para esta última (entenda-se, no caso dos autos, quanto ao contraditório prévio à sua conversão), não assegura adequadamente os direitos liberdades e garantias dos arguidos.
Efectivamente, temos para nós, que só a notificação pessoal os pode assegurar, porquanto desconhece o tribunal as razões pelas quais se frustrou a notificação postal, que podem ser plúrimas, e até, não imputáveis ao arguido.
Por isso, continuamos convictos de que na presente situação, só a notificação pessoal assegura pela sua totalidade, aqueles segmentos constitucionalmente protegidos”.

Apreciando:
A obrigação de audição pessoal do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão mostra-se estabelecida para todos os casos de revogação da suspensão de execução da pena, é uma questão jurisprudencialmente controversa, existindo decisões sustentando a afirmativa e a negativa.
Incontroversa é a existência do direito de audição do condenado previamente à decisão de revogação da suspensão da execução da pena, desde logo considerando o disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, que prevê o direito do arguido, em especial e em qualquer fase do processo, de “ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete”, onde se inclui, obviamente, a citada decisão, por significar a supressão da sua liberdade.

Resulta do artigo 495º, nº 2, do Código de Processo Penal, a obrigatoriedade da presença do condenado no tribunal, para, perante o juiz e com a presença concomitante do técnico que tem como funções apoiar e fiscalizar aqueles, poder explicar as circunstâncias que levaram ao incumprimento das condições de suspensão.
Para se afirmar a tese da obrigatoriedade de audição presencial do condenado previamente à decisão de revogação da suspensão de execução da pena, tal necessidade emerge da necessidade de garantir um efectivo direito de defesa, sendo que a solução que impõe que o condenado se pronuncie pessoalmente na presença do juiz, e não por meio de alegação escrita (do defensor ou até mesmo do próprio), traduz um especial acautelamento do contraditório.
O tribunal constitucional decidiu recentemente, no seu Acórdão nº 491/2021, “Julgar inconstitucional a norma interpretativamente extraída do artigo 495.º, n.º 2, e do artigo 119.º, ambos do Código de Processo Penal, que permite a revogação da suspensão da pena de prisão não sujeita a condições ou acompanhada de regime de prova, com dispensa de audição presencial do arguido/condenado e sem que lhe tenha sido previamente dada a oportunidade de sobre a mesma se pronunciar, por esta preterição redundar em mera irregularidade.”.
Assim, impõe-se sempre tentar ouvir pessoalmente o arguido para se aferir da violação culposa das condições a que a suspensão da execução da pena foi subordinada.
Tal como no despacho recorrido, deverão ser salvaguardadas e esgotadas todas as possibilidades de notificação pessoal do arguido para se pronunciar sobre a eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão a que se mostra condenado e, só após tal, se poderá tomar posição sobre as vicissitudes da pena, ou determinando a revogação da suspensão, ou declarando a extinção da pena.
Por tudo o exposto e sem necessidade de outros considerandos, improcede o recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas, pela qualidade do recorrente, artigo 522º, do Código de Processo Penal.


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter o despacho recorrido na sua integralidade.

Sem custas, pela qualidade do recorrente, artigo 522º, do Código de Processo Penal.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 09-11-2021

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(Fernando Paiva Gomes M. Pina)
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(Beatriz Marques Borges)