Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
89/98.0TBELV.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: ELEMENTO SUBJECTIVO
DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
DANO QUALIFICADO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A locução “bem saber o agente ser proibida dor lei a sua conduta”, não é facto que deva ser autonomamente narrado na acusação quando se está perante um crime do direito penal clássico, como sucede no caso concreto de dano provocado propositadamente em bens públicos (camisa da farda do soldado da GNR, veículo, mobiliário da GNR, cela) em uso pela autoridade policial no exercício das suas funções.

Em casos como o assinalado a consciência de o agente ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 89/98.0TBELV, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo Local Criminal de Elvas, foi submetido a julgamento o arguido (...). Constando do dispositivo da sentença, o seguinte:
1.1. Quanto à ação penal:
“Foi julgada totalmente improcedente a acusação do Ministério Público e, decidido absolver o arguido da prática de dois crimes de dano qualificado, previsto e punível pelos artigos 212.º e 213.º n.º 1 alínea c) do Código Penal, pelos quais veio acusado;”
1.2. Quanto à ação cível enxertada:
“Foi julgado totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público em representação do Estado Português e, em consequência, dele absolver o arguido/demandado do peticionado.”.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“Em conclusão:
1– Na douta sentença recorrida foram violadas normas substantivas e processuais, nomeadamente, os arts. 212º e 213º nº. 1, alínea c), ambos do CPenal e os arts. 119º; 120º; 311º nº. 3 e 283º nº. 3, alíneas a) a g), todos do CProcPenal.
2– Ficaram provados os elementos objetivos do tipo de crime de dano qualificado, pelos quais o arguido vinha acusado.
3– Mais ficou provado, no que respeita ao elemento subjetivo que o arguido praticou todas as condutas voluntária e conscientemente (…) com a intenção de destruir bens que sabia serem do Estado, e estarem destinados ao uso e utilidade públicos, sabendo que dessa forma causava prejuízos patrimoniais (cfr. 2.1.9 do elenco dos factos provados na douta sentença recorrida).
4– Da acusação não constava a expressão corrente na prática judiciária de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.
5– Por esse facto, e estribando-se no douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº. 1/2015 de 27 de janeiro, a Mma. Juiz a quo absolveu o arguido da prática dos crimes de que vinha acusado.
6– Entendemos que a expressão referida em 4 não é obrigatória, podendo ser substituída por outra que lhe seja equivalente.
7– Consideramos que a expressão transcrita na Conclusão 3 supra tem conteúdo equivalente ou, pelo menos, suficiente para que possa dar-se por provada a consciência da ilicitude.
8– Aliás, a falta dessa expressão numa acusação, não integra nenhuma das nulidades previstas nos arts. 119º e 120º do CProcPenal, nem é indicada como causa de rejeição da acusação por manifestamente infundada no artº. 311º nº. 3 do CProcPenal, nem tampouco consta dos requisitos da acusação a que se alude no artº. 283º nº. 3, alíneas a) a g) do CProcPenal.
9– Consideramos igualmente que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência acima referido não se debruça exatamente sobre a questão da consciência da ilicitude.
10– Aliás, tal entendimento foi também sufragado no douto Acórdão da Relação do Porto, de 26.04.2017, proferido no processo nº. 8473/16.3T9PRT.P1, no qual se sumariou que a Jurisprudência fixada constante do AFJ nº 1/2015, não abrange a consciência da ilicitude, como causa excluidora da culpa.
11– Acresce que, não é concebível que, face à relevância axiológica dos atos do arguido, cuja consciência está enraizada na vida em sociedade, o mesmo não soubesse que tais atos eram proibidos e punidos por Lei, quando agiu conscientemente e bem sabendo que com a sua conduta destruía bens alheios e causava prejuízos patrimoniais ao Estado, conforme ficou provado.
12– Pelo exposto, deverão V. Exas., Venerandos Desembargadores, revogar a douta sentença recorrida, proferindo Acórdão no qual se condene o arguido pelos crimes de que veio acusado. (…)”.


2.2. Das contra-alegações do arguido
O arguido defendeu o acerto da decisão recorrida quanto às questões suscitadas pelo MP.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer com o seguinte teor (transcrição)
“Subscrevemos o recurso e as alegações do Ministério Público em primeira instância com o seguinte aditamento.
A doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito. Conceitualização do dolo do tipo como conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do facto. Sendo o elemento volitivo, ligado ao elemento intelectual que serve para indicar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, numa palavra, uma culpa dolosa e a consequente possibilidade de o agente ser punido a título de dolo. Assim, no momento intelectual do dolo afirma-se a necessidade de que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (consciência psicológica, ou consciência intencional) das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo, visando que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito. O elemento volitivo supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma acção ou omissão, sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo. Consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece. É certo, não consta dos autos a expressão normalmente usada “sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei” (consciência da ilicitude),
A decisão sob escrutínio apela ao Acórdão Uniformizador de jurisprudência n.º1/2015.
Sem deixar de ponderar o mencionado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, atendendo à doutrina citada e tendo em conta, relativamente ao referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que o seu objecto consistiu na uniformização da jurisprudência a propósito da falta de alegação dos factos integradores do dolo e que da sua fundamentação decorre que esses factos são distintos dos relativos ao conhecimento da ilicitude [com efeito, no 6º parágrafo do ponto 10.2.3.1 da respectiva fundamentação, diz-se que a consciência da ilicitude se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Diz-se ainda que se não se tratar de um caso em que se possa afastar a censurabilidade do acto, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência. Alias, ali se escreve que a essa pressuposta exigência responde o acórdão do STJ de 07/10/92, (também referido na fundamentação em 9.2.1.) relativamente à questão colocada de inexistir qualquer referência, na matéria de facto, ao conhecimento que o arguido, autor de um crime de homicídio, teria ou não teria da proibição legal, considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta”. E mais adiante, nos parágrafos 1º e 2º do ponto 10.2.4, faz-se de novo uma distinção entre as questões da tipicidade e do conhecimento da proibição], entendemos que a jurisprudência fixada naquele acórdão não se aplica à omissão na acusação dos factos integradores do conhecimento da ilicitude, quando o relevo axiológico do crime em causa decorre da própria natureza do facto típico e, no caso, das circunstâncias da prática dos factos.
Assim, afigura-se-nos que a acusação contém todos os elementos objectivos e subjectivos para se considerar que os factos alegados constituem crime, o crime de dano agravado de coisa alheia propriedade do Estado ao serviço público como consta da acusação.
Embora em nosso entender, atentas as circunstâncias do crime e modo como foi sucessivamente praticado considerados que (…) existe apenas um crime de dano continuado e não a prática de dois ilícitos penais distintos.
Pelo exposto, a rejeição da acusação em relação ao crime em causa não pode prevalecer, e a sentença recorrida substituída por outra que condene o arguido, procedendo o recurso.”.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer consiste em saber se a não inserção na acusação da expressão “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” implica a omissão do elemento emocional do dolo com a consequente absolvição do arguido em julgamento.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª Instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“ [Da Acusação]
2.1.1. Na noite de 20-07-1997, por volta da meia noite, uma patrulha da GNR em serviço, no Posto de Campo Maior, constituída pelos soldados(…), quando patrulhava a zona da Av. Da Liberdade naquela vila, apercebeu-se que um veículo circulava em condições anómalas, tendo vindo a interceptalo junto a uma discoteca conhecida por “Estúdio Delta 2”;
2.1.2. Os agentes de autoridade abordaram então o individuo que era passageiro desse veículo. No momento de ser abordado, e sem que nada o fizesse prever, o arguido deu um pontapé ao soldado (…), ao mesmo tempo que, dirigindo-se a ambos os agentes, lhes chamou “filhos da puta” e “cabrões”;
2.1.3. Perante tal comportamento do arguido, os agentes da GNR conduziram-no ao posto;
2.1.4. Já nas instalações da GNR, e quando o soldado (…), que na altura se encontrava de plantão, se abeirou do arguido para o mandar calar e sentar, este lançou-lhe uma mão ao bolso da camisa, que aquele soldado na altura vestia e arrancou-lhe o bolso, e o crachá identificativo da GNR que o agente tinha colocado na aludida camisa;
2.1.5. Na mesma altura, o arguido começou a dar pontapés nos móveis do compartimento, tendo partido parcialmente um banco de madeira estilo antigo, em mogno;
2.1.6. Tendo então sido detido, o arguido foi conduzido numa viatura da GNR para o posto de Elvas, a fim de aguardar numa cela, até ser presente em Tribunal;
2.1.7. No trajecto até Elvas, e dentro do veículo, o arguido continuou a dar pontapés no banco do condutor, rompendo a napa protectora do assento;
2.1.8. Já no interior da cela nas instalações da GNR em Elvas, o arguido continuou a bater nas paredes, na porta, nos sanitários, nas camas, e em todos os objectos que existiam na cela;
2.1.9. O arguido praticou todas as condutas descritas voluntária e conscientemente, com intuito de ofender os agentes de autoridade, devidamente uniformizados, e que sabia no exercício de funções, quer corporalmente, quer na sua honra e consideração, não só como agentes de autoridade, mas também como Homens, e ainda com intenção de destruir bens que sabia serem de Estado, e estarem destinados a uso e utilidade públicos, sabendo que dessa forma causava prejuízos patrimoniais;
[Das condições económicas e sociais do arguido]
2.1.10. O arguido encontra-se de baixa médica, auferindo 395,00 Euros de pensão;
2.1.11. Vive com a mulher em casa arrendada à Junta Pública de Extremadura;
2.1.12. Tem a educação básica, no sistema educacional espanhol;
[Dos antecedentes criminais do arguido]
2.1.13. O arguido não possui antecedentes criminais.”


3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa nomeadamente que:
2.2. Factos Não Provados:
Discutida a causa resultaram não provados os seguintes factos:
[Da Acusação]
2.2.1. Que a reparação do banco de madeira estilo antigo, em mogno, referido na acusação tenha custado 90,00 Euros;
2.2.2. Que nas circunstâncias descritas em 2.1.7., o arguido tenha causado um prejuízo de 60,00 Euros;
2.2.3. Que nas circunstâncias descritas em 2.1.8., o arguido tenha causado um prejuízo de 68,41 Euros;
[Do Pedido de Indemnização Civil]
2.2.4. Ao romper as capas do estofo do banco do condutor, na viatura Fiat Tempra, de matrícula (…), o arguido causou um dano no valor de 60,00 Euros;
2.2.5. Ao partir o banco de madeira, em mogno, estilo antigo, que se encontrava no posto da GNR, o arguido causou danos cuja reparação custou 90,00 Euros;
2.2.6. Também na cela, o arguido danificou a respectiva porta, cuja reparação custou 15,00 Euros; sujou as paredes, tendo sido gasto em pinturas 17,50 Euros, partiu um tijolo de vidro, no valor de 4,81 Euros, e destruiu a tampa da sanita no montante de 13,22 Euros.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma:
“2.3.1. Meios de prova determinantes da convicção do Tribunal:
A convicção do Tribunal, para a fixação da matéria de facto dada como provada e como não provada, fundamentou-se na análise ponderada e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada conjugada e criticamente à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal.
Examinaram-se ainda, com minúcia, todos os documentos que o processo comporta, à luz do mesmo princípio invocado.
Relativamente às condições económicas e sociais, as mesmas baseiam-se nas declarações prestadas pelo arguido, que a esse propósito se revelaram credíveis.
No que respeita à ausência de antecedentes criminais do arguido foi relevante o certificado de registo criminal de fls. 384 a 385.
2.4. Análise crítica da prova e convicção:
O arguido pretendeu prestar declarações, tendo apresentado a sua versão do circunstancialismo descrito na acusação, relatando, em síntese, que na data a que se refere a acusação bebia muito e tomava muitas drogas, sendo que, nessa noite, se encontrava totalmente influenciado por tais substanciais. E que, mesmo fazendo um esforço, não se consegue recordar de quase nada daquilo que aconteceu nessa noite. Porém, confirmou que nessa noite se deslocou a Campo Maior, e lembra-se apenas de estar numa cela e de, nessas circunstâncias, ter dado pontapés no interior dessas instalações.
Tais declarações, em conjugação com os depoimentos prestados pelas testemunhas (…), todos eles agentes da GNR envolvidos no circunstancialismo descrito na acusação, de serviço nessa noite, bem como, com os documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente, do teor da participação, constante de fls. 4 e 5, foram fundamentais para a formação da convicção do Tribunal sobre a matéria que se deu como provada.
Nomeadamente, revelou-se fundamental o depoimento prestado pela testemunha (…), que, não obstante o decurso do tempo, ainda se recordava dos danos causados pelo arguido e da sua actuação descontrolada para com os agentes nessa noite.
No que respeita à factualidade subjectiva, não podemos deixar de referir que o dolo pertence à vida interior e afectiva de cada um, sendo, por isso, matéria de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Ainda assim, decorre da demais matéria objectiva apurada, conjugada com as regras da experiência comum, que alguém que actua da forma como se deu como demonstrado que actuou o arguido, não poderá ter deixado de actuar voluntária e conscientemente, com intuito de ofender os agentes de autoridade, devidamente uniformizados, e que sabia no exercício de funções, quer corporalmente, quer na sua honra e consideração, não só como agentes de autoridade, mas também como Homens, e ainda com intenção de destruir bens que sabia serem de Estado, e estarem destinados a uso e utilidade públicos, sabendo que dessa forma causava prejuízos patrimoniais.
Face aos fundamentos que se acabam de expor, concluímos que os mesmos sustentam a convicção absolutamente segura da dinâmica factual que se teve por provada.
Resulta, assim, do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não directamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, que o arguido praticou os factos de que vem incurso, nos termos em que resultaram provados.
*
Relativamente aos factos que foram considerados não provados, inclusive no que respeita à matéria do Pedido de Indemnização Civil, tais factos foram assim considerados por não ter resultado produzida qualquer prova que evidenciasse a veracidade dos mesmos.”.

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma:
“3.1 ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:
Estabelecido o quadro factual, importa agora efectuar o respectivo enquadramento jurídico, sendo certo que o arguido vem acusado pela prática, em autoria material, de dois crimes de dano qualificado, previsto e punível pelos artigos 212.º e 213.º n.º 1 alínea c) do Código Penal, pelo que, importa apurar se se mostram preenchidos os respectivos elementos típicos.
*
3.1.1 Do crime de dano qualificado:
Preceitua o artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
A incriminação do dano protege a propriedade (alheia) contra agressões que atingem, directamente, a existência ou a integridade do estado da coisa (cfr. Manuel da Costa Andrade, em “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 206 e 207).
Com a incriminação contida no normativo legal em apreço, o legislador propõe-se tutelar a propriedade, incluindo, o conceito penal de “propriedade”, o poder de facto sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma.
Por que assim é ofendido no crime de dano é a pessoa proprietária, possuidora ou detentora legítima da coisa (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 27.04.2011, proferido no processo 456/08.3GAMMV e disponível em www.dgsi.pt: “No crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição”).
No que concerne ao tipo objectivo do ilícito penal em questão, dir-se-á que o mesmo se desdobra em várias modalidades: “destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia”.
A destruição da coisa consiste na aniquilação definitiva da integridade física da mesma, com inutilização total da sua funcionalidade, isto é, da função que lhe é cometida pelo seu proprietário, possuidor ou detentor legítimo.
A destruição é, com efeito, a forma mais intensa e drástica de cometimento da infracção. “Determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância” (cfr. ob. cit., pág. 221).
Por sua vez, a danificação consiste numa afectação da integridade física da coisa, com modificação da sua substância ou diminuição da sua funcionalidade, abrangendo, por isso, “os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição” (cfr. ob. cit., pág. 222).
Na modalidade de acção consubstanciada em “desfigurar” inclui-se o atentado à integridade física da coisa que altera a sua imagem externa.
Finalmente, no que tange à modalidade de “tornar não utilizável”, “esta modalidade de conduta abrange as acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função” (cfr. ob. cit., pág. 223).
O objecto da acção é uma coisa corpórea alheia, podendo esta ser móvel ou imóvel.
Trata-se de um crime de dano, porquanto a consumação exige um efectivo dano do referido bem jurídico, e de resultado ou material, na medida em que é elemento típico a produção de um determinado evento distinto espácio-temporalmente da acção. Por outro lado, configura-se como um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito.
Com efeito, para a consumação deste tipo de ilícito, impõe-se, tão só, que se verifique uma das descritas acções típicas, acompanhadas do inerente resultado: destruição, danificação, desfiguração ou inutilização, dispensando-se, pois, o apuramento do concreto valor do prejuízo causado com a acção do agente. Contudo, exige-se que a acção de destruição, danificação, desfiguração ou inutilização seja minimamente significativa, pois que, sendo o enquadramento penal a ultima ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceitos incriminadores, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo “de minimus non curat praetor”.
No que respeita à qualificação deste ilícito típico, o artigo 213.º n.º 1 alínea c) do Código Penal estabelece que “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:
(…)
c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou
serviços públicos;
(…) é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.” *
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, o artigo 212.º, e bem assim a qualificação do artigo 213.º, ambos do Código Penal exigem o dolo, em qualquer das suas modalidades: directo, necessário ou eventual (artigo 14.º do Código Penal).
*
Ora, no caso em apreço, cumpre, desde logo, salientar que, não obstante, ter resultado demonstrada toda a factualidade que se deu como provada, não resultou demonstrado o elemento do dolo da culpa, denominado de elemento emocional (ou consciência da ilicitude) deste tipo de ilícito, uma vez que, não consta do teor da acusação pública deduzida que o arguido tivesse agido bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e legalmente puníveis. Assim sendo, e em consequência, uma vez que, tal facto não pode ser integrado em julgamento, conforme resulta do teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Uniformizador da Jurisprudência, n.º 1/2015 (de acordo com o qual, entendemos que se extrai que, os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, têm necessariamente de ser alegados na acusação), tal factualidade, por inexistir no teor da acusação, não pôde ser dada como provada.
A propósito da falta de todos ou de algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-05-2019, no âmbito do processo n.º 267/16.2T9PMS.C1, acessível em www.dgsi.pt, cujo entendimento se acompanha e no qual se refere que “I – A acusação deve descrever, pela narração dos respectivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo.
II - O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, sejam descritivos sejam normativos.
O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objectivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.
(…)
A circunstância de o arguido saber que essa conduta era punida por lei, releva para consciência da ilicitude.
IV- Faltando todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada.”
Acrescenta ainda o acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, de 07-032018, no âmbito do processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt, que “A falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo, não pode ser integrada no julgamento nem por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP, nem sequer através do mecanismo do art. 359.º, do mesmo Código, devendo o Juiz atalhar o vício antes de chegar àquela fase.”.
Salientando inclusive que a falta ou a não narração de factos que integram os elementos do dolo de um determinado ilícito criminal é fundamento de rejeição da acusação, por manifestamente infundada.
Pelo que, concluímos que a acusação deduzida nos presentes autos deveria ter sido rejeitada com este fundamento, pois não existe no teor da acusação qualquer referência à consciência da ilicitude, enquanto elemento emocional do dolo (consciência da ilicitude).
Nestes termos, e acompanhando o incontestável entendimento doutrinal e jurisprudencial exposto, nada mais resta ao Tribunal do que absolver o arguido pela prática dos ilícitos que lhe vêm imputados.
Em face do exposto, impõe-se absolver o arguido pela prática de dois crimes de dano qualificado, previsto e punível pelos artigos 212.º e 213.º n.º 1 alínea c) do Código Penal, pelos quais veio acusado.
***
IV. DA ACÇÃO CÍVEL ENXERTADA:
De acordo com o disposto no artigo 129.º do Código Penal “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”, isto é, de acordo com o previsto nos artigos 483.º e seguintes, e nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.
Para que exista responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.º n.º 1 do Código Civil, é necessário que ocorra um facto voluntário, ilícito, culposo, do qual resultem danos (patrimoniais e/ou não patrimoniais), e que exista um nexo de causalidade entre o facto e os danos, de acordo com a teoria da causalidade adequada, prevista no artigo 563.º do Código Civil.
Perante o preenchimento de todos estes pressupostos cumulativos é gerada a obrigação de indemnizar.
*
Volvendo ao caso em apreciação, de acordo com a factualidade que se deu como demonstrada, não resultam demonstrados os pressupostos cumulativos, pelo que, cumpre concluir pela inexistência do dever de indemnizar, impondo-se a improcedência do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante civil Estado Português contra o arguido/demandado civil. “.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
Apreciemos, então, a questão suscitada e já assinalada em II., ponto 2. deste Acórdão.
Na decisão recorrida considerou-se que a acusação continha factos suficientes que permitiam imputar de forma objetiva a prática de dois crimes de dano qualificado ao arguido. O Tribunal a quo, todavia, concluiu pela absolvição do arguido, por não constar da acusação a expressão “o agente atuou sabendo que a sua conduta era proibida por lei”.
Destacou o Tribunal a quo que faltando este elemento caracterizador do dolo na narração da acusação os restantes factos nela descritos não constituíam crime, sendo insuscetíveis de serem integrados em julgamento por via dos artigos 358.º ou 359.º do CPP. Fundamentou o decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 1/2015[1].
O citado AUJ do STJ debruça-se sobre dois Acórdãos que decidiram de maneira oposta a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação e onde o crime em causa era o de injúria.
A questão analisada pelo apontado Aresto do STJ traduziu-se em saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, nomeadamente o dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao artigo 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos) integrar os elementos em falta.
Salientou-se no AUJ 1/2015 tratar-se tal questão de um dos problemas mais complexos, controversos e basilares do processo penal.
O AUJ 1/2015 descreveu a jurisprudência publicada sobre as consequências da falta do elemento subjetivo do dolo em crimes como os de injúria, dano, violência doméstica, difamação e denúncia caluniosa. Num dos Acórdãos[2] ali referenciado, a propósito de um crime de injúria, é referido não constar da acusação a menção “ao conhecimento de a conduta ser proibida” (embora dela constasse a alusão à arguida ter agido com manifesta intenção de atingir a ofendida na sua honra e consideração), tendo-se nele concluído não ser possível na audiência de julgamento, por recurso ao artigo 358.º do CPP, integrar os elementos respeitantes ao tipo subjetivo do ilícito.
Ainda num outro Acórdão da Relação do Porto de 16.6.2012[3], referenciado pelo AUJ 1/2015, relativo ao crime de dano, foi considerada a necessidade de, no requerimento para abertura de instrução, constarem os factos constitutivos do tipo subjetivo, enquanto integrante do tipo de culpa, sendo esse elemento necessário para a punibilidade. Nele se considerou a correção da decisão proferida pelo JIC que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por total omissão de elementos referentes à consciência de ilicitude.
Depois de no AUJ 1/2015 ser analisada a doutrina e a jurisprudência sobre o tema, designadamente os Acórdãos atrás referenciados, o STJ tomou posição sobre o conflito jurisprudencial salientando que de entre os elementos do tipo subjetivo de ilícito estão os relacionados com o dolo ou a negligência.
No concernente ao dolo este é definido legalmente no artigo 14.º do CP, sendo que, de acordo com a doutrina tradicional[4], o dolo é composto por um elemento intelectual e um volitivo ou emocional. Já para a corrente mais recente[5] o dolo desdobrar-se-ia em três elementos: o intelectual, o volitivo e o emocional.
O AUJ 1/2015 optando por aderir a esta última corrente concluiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código Processo Penal”.
Assim, o dolo, na tese acolhida pelo AUJ 1/2015, será constituído pelos elementos:
- Intelectual ou cognoscitivo correspondente ao agente conhecer, saber, prever ou representar as circunstâncias dos elementos do tipo objetivo (tipo de ilícito);
- Volitivo ou intelectual com o significado de o agente querer, ter a vontade ou o propósito de realizar o facto típico (tipo de ilícito);
- Emocional correspondente ao agente conhecer o desvalor da sua conduta contra o direito (tipo de culpa).
Estes elementos do dolo terão de constar da acusação sob pena de essa factualidade não poder ser integrada em julgamento, conduzindo essa falta de narração à absolvição do arguido.
O AUJ 1/2015, todavia, salienta que quanto ao dolo emocional essa descrição nem sempre carece de constar na acusação, indicando os casos dos crimes de homicídio, ofensas corporais, furto, injúrias. Dando como exemplo concreto o do Acórdão do STJ de 7.10.1992 relativo a um crime de homicídio onde, embora não constasse qualquer referência na matéria de facto ao conhecimento que o arguido teria ou não da proibição legal, foi considerado que “tendo o arguido agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de desconhecer o desvalor da sua conduta”.
No AUJ 1/2015 conclui-se depois que apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo.
Revertendo ao caso em apreciação neste recurso onde está em causa a prática de crime de dano qualificado, atentemos à matéria dada como provada:
O arguido “lançou-lhe uma mão ao bolso da camisa, que aquele soldado na altura vestia e arrancou-lhe o bolso, e o crachá identificativo da GNR que o agente tinha colocado na aludida camisa; (…) Já nas instalações da GNR (…) o arguido começou a dar pontapés nos móveis do compartimento, tendo partido parcialmente um banco de madeira estilo antigo, em mogno; (…) o arguido foi conduzido numa viatura da GNR (…) No trajecto até Elvas, e dentro do veículo, o arguido continuou a dar pontapés no banco do condutor, rompendo a napa protectora do assento; (…) Já no interior da cela nas instalações da GNR em Elvas, o arguido continuou a bater nas paredes, na porta, nos sanitários, nas camas, e em todos os objectos que existiam na cela; (…) O arguido praticou todas as condutas descritas voluntária e conscientemente, (…) com intenção de destruir bens que sabia serem de Estado e estarem destinados a uso e utilidade públicos, sabendo que dessa forma causava prejuízos patrimoniais”.
Da fórmula utilizada na acusação resulta ter o arguido a intenção (querer) voluntária e consciente de destruir bens de utilidade pública (camisa da farda, banco de madeira das instalações da GNR; banco do veículo da GNR; cela) sabendo que com essa conduta causava prejuízos ao Estado.
A acusação é, sem dúvida, completamente omissa em relação ao elemento emocional do dolo, embora dela constem claramente os elementos intelectual e volitivo.
A locução “bem saber o agente ser proibida dor lei a sua conduta”, não é todavia facto que deva ser autonomamente narrado na acusação quando se está perante um crime do direito penal clássico[7], como sucede no caso concreto de dano provocado propositadamente em bens públicos (camisa da farda do soldado da GNR, veículo, mobiliário da GNR, cela) em uso pela autoridade policial no exercício das suas funções. Em casos como o assinalado a consciência de o agente ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo).[8]
Os bens públicos danificados, além do mais, utilizados pela autoridade policial, encontram-se protegidos por lei e essa proteção está suficientemente solidificada na consciência da comunidade. Qualquer homem médio que danifique propositadamente bens móveis pertencentes a terceiro sabe que pratica um crime de dano. Se os bens danificados pertencerem ao Estado e destinarem-se ao uso e utilidade pública, para além do mais pela autoridade policial, não pode o agente ignorar que a sua atuação será punida criminalmente de forma mais intensa.
A omissão da fórmula estereotipada da acusação “atuou conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não pode justificar a absolvição do arguido, porquanto essa fórmula alicerça-se, neste tipo de crime (dano qualificado), apenas na experiência da vida e da normalidade.
A decisão recorrida fez uma errada interpretação do Acórdão de Uniformização da Jurisprudência 1/2015, até porque nele os Acórdãos em oposição não se cingiam apenas à omissão narrativa do elemento emocional do dolo. Na verdade, no “Acórdão recorrido” da acusação não constava para além do dolo emocional o elemento subjetivo do dolo intelectual e no “Acórdão fundamento” da acusação não constavam para além do dolo emocional os elementos intelectual e volitivo.
A este propósito, também, não se pode deixar de assinalar que o Acórdão da Relação do Porto de 26.4.2017[9], convocado pelo MP nas suas alegações de recurso para fundamentar a revogação da decisão da 1.ª instância, não corresponde exatamente à situação em análise neste recurso, pois ali o elemento emocional constava da acusação particular, embora o enunciado linguístico não fosse o habitualmente utilizado[10]. Aliás o Acórdão desta Relação de Évora de 6.2.2018 relatado por António Latas, parece ser o único, com data posterior à publicação do Acórdão Uniformizador 1/2015, que se debruça sobre situação similar à do presente recurso.
Assim, e em síntese, tratando-se o dano qualificado de um crime do direito penal clássico não tinha de constar da acusação, nem de ser alegado ou provado, no caso concreto, que o arguido “bem sabia que a sua conduta era proibida por lei”, pois a consciência da proibição legal decorreu do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo)[11].
Chegados a este ponto cumpre retirar as consequências da conclusão alcançada, deixando, em todo o caso assinalado que, o crime de injúria pelo qual o arguido vinha acusado foi extinto por amnistia em 24.6.1999 e os crimes de ofensa à integridade física e de dano simples foram declarados prescritos por despacho de 5 de novembro de 2020, tendo o procedimento criminal prosseguido apenas pela prática de dois crimes de dano qualificado.
O dano é qualificado por ter atingido bens destinados ao uso e utilidade públicos (artigo 213.º, n.º 1, alínea c) do CP). Tendo, todavia, o Tribunal a quo conduzido aos factos não provados o valor dos bens danificados (cf. ponto II. 3.1.2. deste Acórdão), fica esta instância impedida de considerar a qualificativa, em virtude da remissão efetuada pelo n.º 3 do artigo 213.º para o artigo 204.º, n.º 3 do CP. É que não há lugar à qualificação se a coisa for de diminuto valor e desconhecendo-se o concreto valor dos bens danificados fica-se sem saber se os mesmos são ou não de valor diminuto.
É verdade que na motivação da matéria de facto o Tribunal a quo refere que “Relativamente aos factos que foram considerados não provados, inclusive no que respeita à matéria do Pedido de Indemnização Civil, tais factos foram assim considerados por não ter resultado produzida qualquer prova que evidenciasse a veracidade dos mesmos.”. O Tribunal recorrido diz também, ter apreciado com minúcia todos os documentos que o processo comporta. Assim, embora da leitura do processo constem dois documentos emitidos pela GNR, datados de 21.7.1997 e 22.7.1997 (fls. 6 e 13), onde são descritos os valores dos prejuízos causados na cela (tampa de sanita 2.650 €; um tijolo em vidro 20x20 965$00; reparação da porta em ferro da prisão 6.600 $00; pintura da prisão 3.500$00), no banco (18.000$00) e nos estofos da viatura (12.000$00) e na camisa do soldado da GNR (4.000$00), esse erro de julgamento (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP), por não ter sido suscitado pelo MP em sede de recurso, não pode ser apreciado por esta instância, pois não é de conhecimento oficioso. Por fim como da leitura do texto da decisão por si só (a falha não advém do teor decisão, mas do confronto desta com a leitura dos documentos constantes de fls. 6 e 13) não resulta qualquer contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova, não estamos perante o vício do artigo 410.º, n.º 2 do CPP, que seria de conhecimento oficioso.
Estando esta instância impedida de alterar a matéria de facto, pelas razões apontadas, apesar de provados os danos provocados, não estando apurado o valor do prejuízo causado, restará subsumir a materialidade apurada ao crime de dano simples, que por força do decurso do tempo se encontra prescrito desde 20.1.2010 (cf. artigos 118.º, n.º 1 alínea c) e 119.º, n.º 1, 120.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3 e 121.º, n.º 3 do CP; ver também neste sentido o despacho de fls. 388), com a consequente extinção da responsabilidade criminal do arguido.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Julga-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, embora por fundamento distinto em virtude da verificação da extinção da responsabilidade criminal por prescrição.
2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas signatárias.
Évora, 26 de outubro de 2021.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
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[1] Publicado no DR 1.ª série, n.º 18 de 27 de janeiro de 2015.

[2] Do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.10.2004, proferido no processo n.º 1245/04-1.

[3] Proferido no processo 414/09.PAMAI-B.P1.

[4] É a este propósito indicado Eduardo Correia como o defensor da tese tradicional.

[5] Como defensor da tese mais recente é indicado Figueiredo Dias.

[6] Sublinhado nosso.

[7] Cf. Acórdão da RE de 6.2.2018, proferido no Processo 54/16.8T9CBA.E1, relatado por António Latas e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtre.

[8] O Desembargador António Latas, no Acórdão da RE de 6.2.2018, refere que a locução “consciência da ilicitude” só assume autonomia quando se discute a falta de consciência da ilicitude, enquanto causa de exclusão da culpa (artigo 17.º do CP). No AUJ 1/2015 (P. 593) afirma-se que “o conhecimento da proibição não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” e será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo ilícito criminal”.

[9] Proferido no processo 8473/16.3T9PRT.P1, relatado por Manuel Soares e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtrp.

[10] Estava em causa o crime de burla e ao invés da expressão “sabendo que a sua conduta era proibida por lei” constava na acusação “O denunciado julga-se superior aos ditames legais tentando ludibriar o sistema legal”.

[11] Cf. neste sentido Ac. RE de 6.2.2018, relatado por António Latas.