Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6000/16.1T8STB.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O objetivo das escrituras de justificação é, apenas, documentar, para efeitos de registo, direitos reais adquiridos; como tal, delas não resulta o fracionamento dos prédios rústicos.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

O Exmo. Magistrado do Ministério Público intentou a presente ação declarativa, na forma de processo comum, contra JJ e mulher, MM, residentes na rua …, Pinhal Novo, pedindo anulação dos negócios constantes das escrituras de justificação, outorgadas, no dia 18 de setembro de 2013, no cartório notarial da licenciada Sandra Bolhão, em Palmela, referentes à aquisição, por usucapião, de duas parcelas de terreno, cada uma com a área de 3.778,50 m2, segmentos do prédio rústico, sito em Algeruz, freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção1, e outras duas, cada uma com a área de 11.894,24 m2, integrantes do prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 2 da secção AP, alegando factos que, em seu entender, conduzem à procedência do pedido, que foi julgado improcedente.


Inconformado com o decidido, apelou o Exmo. Magistrado do Ministério Público, com as seguintes conclusões:

- Ainda que se tenha verificado a usucapião, este instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédio rústicos, por ofensa da área de cultura mínima;

- Estas normas constituem a disposição legal em contraio, mencionada no artigo 1287º. do Código Civil;

- Os negócios jurídicos, titulados pelas escrituras juntas aos autos, são anuláveis, por ofensa ao disposto no artigo 1376º. do Código Civil.


Inexistem contra-alegações.


Face às conclusões antes referidas, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação da seguinte questão: saber se a usucapião prevalece ou não sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédio rústicos, por ofensa da área de cultura mínima.


Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação


A - Os factos


Na sentença impugnada, foram considerados os seguintes factos:


1 - No dia 18 de setembro de 2013, por escritura pública, celebrada no cartório notarial da licenciada Sandra Bolhão, em Palmela, os Réus JJ e mulher, MM, justificaram a posse de duas parcelas de terreno, cada uma com a área de 3.778,50 m2, compostas por vinha, ambas a destacar do prédio rústico composto por vinha e árvores de fruto, sito em Algeruz, freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção 1;


2 - No mesmo dia, por escritura pública celebrada no mesmo cartório, os Réus JJ e mulher, MM, justificaram a posse de duas parcelas de terreno, cada uma com á área de 11.894,24 m2, composta por vinha, ambas a destacar do prédio rústico, composto por terras de semeadura, pinhal, vinha e árvores de fruto, sito em Areias Gordas - Algeruz, freguesia e concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 2 da secção AP;


3 - Na década de 60, os donos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção 1, avós paternos do Réu JJ, dividiram-no em parcelas que doaram, verbalmente, a cada um dos filhos;


4 - Tendo entregue uma das parcelas ao filho Hermínio …, pai do Réu JJ, e outra ao filho José …;


5 - Mais tarde, nos anos 80, o Hermínio …comprou, também verbalmente, a parcela do irmão José …;


6 - Nessa altura, o pai do Réu JJ doou-lhe verbalmente ambas as parcelas (a que recebera dos pais e a que adquirira ao irmão);


7 - Tais parcelas correspondem às parcelas a destacar do prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção 1;


8 - Os Réus JJ e mulher, MM, assim como, antes deles, os pais do primeiro, cuidaram das parcelas, limpando-as, desmatando-as e, por vezes, cultivando-as;


9 - Os Réus JJ e mulher, MM, assim como, antes deles, os pais do primeiro, atuaram sempre à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de serem donos de cada uma das parcelas;


10 - O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 2 da secção AP, foi comprado pelos avós paternos do Réu JJ, por volta de 1950;


11- Na década de 60, doaram, de forma verbal, ao filho Herminio …, pai do Réu JJ, as parcelas a área de 11.894,24 m2, cada uma, e que, nessa altura, já se encontravam delimitadas por um caminho particular;


12- Mais tarde, nos anos 80, o pai do Réu JJ doou, verbalmente, as referidas parcelas;


13- Os Réus JJ e mulher, MM, assim como, antes deles, os pais do primeiro, cuidaram das parcelas, limpando-as, desmatando-as e tratando da respetiva manutenção, cultivando e colhendo os seus frutos;


14 - Os Réus JJ e mulher, MM, assim como, antes deles, os pais do primeiro, aturam sempre à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de serem donos de cada uma das parcelas.





B - O direito/doutrina/jurisprudência

- “Por razões de ordem económica que respeitam à exploração da terra”, não é possível fragmentar terrenos próprios para fins agrícolas, em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura[1];

-“Desde que os terrenos sejam contíguos e pertençam ao mesmo proprietário, o fracionamento é proibido, qualquer que seja a situação de facto, jurídica ou económica, de cada parcela. Há quebra de contiguidade, se entre os prédios houver uma parcela, por mais pequena que seja, de terreno alheio, ou se existir um caminho público. Mas não quebra a contiguidade um morro ou uma vala que pertençam ao mesmo proprietário, ainda que dificultem ou impossibilitem a comunicação entre os dois terrenos”[2];

- A unidade de cultura, na zona de Setúbal, foi fixada, em terreno de regadio, em 2,50 h e 0,50h, para, respetivamente, produção arvense ou hortícola, sendo de 7,50 h, em tereno de sequeiro[3];

- Era “(…) proibido, sob pena de nulidade, ainda que derivada de partilha judicial ou extrajudicial, a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de meio hectare[4];

- São nulos os atos de fracionamento contrários ao disposto no artigo 1376º. do Código Civil[5];

- O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição, mediante escritura de justificação notarial[6];

- A justificação consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referido as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, a que acresce, no caso de usucapião baseada em posse não titulada, as circunstâncias de facto que determinaram o seiu início, bem como as que consubstanciam e caraterizam a posse geradora de usucapião c

- Em regra, a publicidade registral tem em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário[7];

- “I- O fracionamento de um prédio rústico pressupõe, não apenas a sua divisão em duas ou mais parcelas, mas também a respetiva transferência para dois ou mais proprietários, ocorrendo aquando da pratica do ato translativo da propriedade. II - As escrituras de justificação, com a alegação da usucapião, destinadas ao estabelecimento do trato sucessivo, não configuram atos translativos da propriedade, assim não constituindo atos de fracionamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1379º., nº 1 do Código Civil” [8];

- “O fracionamento de prédio rústico não ocorre por via do ato declarativo titulado na escritura de justificação em que é invocada a usucapião; antes tem lugar por via da aquisição, aquando do início da posse, do direito ali declarado” [9];

- “O instituto jurídico da usucapião prevalece sobre normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima” [10];
- “ 1-As normas jurídicas previstas no direito administrativo relativas ao ordenamento do território, por defenderem o interesse público, proíbem fracionamentos e destaques ilegais, pelo que também proíbem necessariamente todos os meios adequados para o atingir. II - Se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto nos arts. 1376º. e 1379º. do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, da parcela de tereno de área inferior a superfície correspondente à unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a atual redação do art. 1379º. do C. Civil, na versão dada pela Lei nº 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com nulidade todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos arts. 1376º. e 1378.” [11]




C - Aplicação do direito aos factos


De acordo com a matéria de facto apurada - aceite pelas partes -, os avós paternos do Réu JJ, donos do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº … e inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção 1, “dividiram-no” em duas parcelas, cada uma com 3.787,50 m2, que doaram, na década de 60, verbalmente, a cada um dos dois filhos.


Está ainda provado que, atualmente, estas duas parcelas encontram-se na titularidade do mencionado demandado, em consequência de doação verbal do seu pai.


Relativamente ao prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 2 da secção AP, está, igualmente, provado que os mesmos avós paternos doaram, verbalmente, nas antes mencionadas circunstâncias de tempo, duas parcelas deste prédio, cada uma com a área de 11.894,24 m2, ao filho Herminio … que, por seu turno, as transmitiu ao demandado.


Em causa, pois, fracionamentos de prédios rústicos, ocorridos na década de 60.


Nesta altura, a unidade de cultura estava fixada, para todo o país, em 0,50 hectare.


Ora, do fracionamento do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº …, e inscrito na matriz, sob o artigo 2 da secção AP não resultou “novos prédios de menos de meio hectare”.


O mesmo, porém, já não aconteceu com o outro prédio rústico, a que aludem os autos. Contudo, coincidindo as referidas parcelas, em termos de superfície, com a do prédio mãe - o descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o nº … e inscrito na matriz, sob o artigo 19 da secção 1 -, e sendo ambas possuídas pelo Réu JJ, não ocorre qualquer dano para a economia.


Ou seja: inexiste fracionamento material deste prédio.


Acresce, por outro lado, que o objetivo dos recorridos JJ e mulher, MM, com a outorga das escrituras de justificação, em 2013, foi, apenas, documentar, para efeitos de registo, direitos reais por si adquiridos, em seu critério, “ nos anos 80”, na sequência dos fracionamentos antes citados.


Está prejudicada a questão de saber se a usucapião prevalece ou não sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédio rústicos, por ofensa da área de cultura mínima, razão pela qual dela não se conhece.


Não é, pois, de subscrever a pretensão do Exmo. Magistrado do M.P..


Em síntese[12]: o objetivo das escrituras de justificação é, apenas, documentar, para efeitos de registo, direitos reais adquiridos; como tal, delas não resulta o fracionamento dos prédios rústicos.





Decisão


Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter a sentença impugnada.


Sem custas.


******


Évora, 22 de março de 2018


Sílvio José Teixeira de Sousa


Maria da Graça Araújo (com voto de vencido)


Manuel António do Carmo Bargado (com declaração de voto)


Voto de vencido
Vencida quanto à decisão relativa às parcelas a destacar do prédio inscrito sob o artigo 19.
Nessa parte, julgaria a apelação procedente e revogaria a decisão recorrida, por considerar que o fracionamento, levado a cabo na década de 60, era, na altura ilegal, não podendo a usucapião conduzir a uma aquisição contrária à lei.
Maria da Graça Araújo

Declaração
Sem prejuízo de um estudo mais apurado sobre a questão de saber se a usucapião pode incidir sobre parcelas de terreno inferiores à unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art. 1376º, nº 1, do Código Civil, e mostrando desde já as maiores reservas quanto ao entendimento de que “o objetivo das escrituras de justificação é, apenas, documentar, para efeitos de registo, direitos reais adquiridos, delas não resultando o fracionamento dos prédios rústicos”, considero que a especificidade do caso concreto dá guarida à decisão proferida, se atentarmos que as duas parcelas em questão, que são contíguas e coincidem em termos de área com o prédio do qual se destacaram, pertencem desde os anos de 1980 aos réus ora recorridos, estando assim de certa maneira acautelada a utilização produtiva das parcelas e prédios rústicos que se pretende acautelar com a nulidade do fraccionamento.
Manuel Bargado


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[1] A Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código de Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 259 e Artigo 1376º., nº 1 do Código Civil,
[2] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, págs. 260 e 261 e artigo 1376º., nº 3 do Código Civil.
[3] Portaria nº 202/70 de 21 de abril.
[4] Artigo 107º. do Decreto nº 16.731, de 13 de abril de 1929.
[5] Artigo 1379º., nº 1 do Código Civil..
[6] Artigo 116º., nº 1 do Código do Registo Predial.
[7] Artigo 1º. do Código do Registo Predial.
[8] Acórdão da Relação de Évora de 25 de janeiro de 2018 (processo nº 7601/16.3 T8STB.E1), in www.dgsi.pt..
[9] Acórdão da Relação de Évora de 25 de janeiro de 2018 (processo nº 7651/16.0 T8STB.E1), in www.dgsi.pt..
[10] Acórdão da Relação de Évora de 8 de junho de 2017 (processo nº 1011/16.0 T8STB.E1), in www.dgsi.pt..
[11] Acórdão da Relação de Évora de 25 de maio de 2017 (processo nº 1214/16.7 T8STB.E1), in www.dgsi.pt..
[12] Artigo 663º., nº 7 do Código de Processo Civil.