Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5078/15.0T8LLE-B.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: OBRIGAÇÃO CARTULAR
AUTONOMIA
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Por virtude da autonomia da obrigação cartular face à obrigação subjacente, aquela permanecerá independentemente das vicissitudes e alterações da obrigação causal.
2 - E a autonomia da obrigação cartular impede que os acordos homologados em planos de insolvência ou de revitalização impliquem a consequente alteração daquela obrigação cartular anteriormente constituída e não cumprida.
Decisão Texto Integral: P. 5078/15.0T8LLE-B.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…), por apenso à execução contra si interposta pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL., veio deduzir embargos de executado alegando na sua petição diversa factualidade tendente a demonstrar, nomeadamente, a prescrição da livrança apresentada pela exequente, a falta de exequibilidade/exigibilidade do referido título executivo e ainda a violação do pacto de preenchimento da referida livrança.
A exequente foi notificada para contestar, o que veio a fazer, opondo-se a todos os fundamentos dos embargos deduzidos pelo executado.
Foi realizada a audiência prévia, na qual foi tentada a conciliação das partes, que se revelou não ser possível, tendo o M.mo Juiz “a quo” informado o embargante e a embargada, ao abrigo do disposto no art. 595º, nº 1, alínea b), do C.P.C., de que o processo continha todos os elementos necessários à prolação da decisão de mérito.
Assim sendo, foi proferido saneador sentença, no qual os presentes embargos de executado foram julgados totalmente improcedentes.

Inconformado com tal decisão dela apelou o embargante / executado, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
a) No respeitante à matéria de facto deve ser aditado um novo ponto à mesma, correspondente aos valores constantes da conta corrente junta aos Autos pela ora Recorrida;
b) Com efeito analisando os documentos juntos pela ora Recorrida esta continuou após a declaração de insolvência da avalizada em violação à disposição do artigo 116º do CIRE a debitar valores na conta corrente, pelo que deve se aditado nos termos das disposições dos artigos 639.º e 662.º do C.P.C um novo ponto da matéria assente:
- “Nos termos da conta corrente apresentada pela ora Exequente apresenta um valor de € 5.954,64, sendo a importância de € 3.632,16 de despesas ocorridas até à data da declaração de insolvência da Avalizada e a importância de € 2.322,48 correspondem a débitos posteriores à data de declaração de insolvência”.
c) Quanto à data de vencimento da livrança, a mesma deveria conter a data de declaração de insolvência da avalizada ou seja o passado dia 2.10.2011, porquanto a obrigação em causa, nos termos do disposto no artigo 91.º e 116.º, todos do CIRE, venceu na data de declaração de insolvência;
d) A data aposta pela ora Recorrida ou seja o passado dia 10.12.2014, não corresponde a nenhuma data respeitante a qualquer evento, pelo que esta obrigação venceu no passado dia 10.02.2011, pelo que prescreveu no passado dia 9.02.2014, sendo a data aposto uma mera invenção da ora Recorrida;
e) Mais, mesmo caso tal se não considere, o ora Recorrente não poderá ser responsabilizado por valores debitados após a declaração de insolvência da Avalizada, uma vez que a conta corrente em causa encerrou nos termos do artigo 116.º do CIRE;
f) Pelo que deve ser revogada a decisão ora Recorrida aditando-se um ponto novo à matéria de facto assente, e declarar-se prescrita a obrigação titulada pela livrança;
g) Caso assim não se entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se concede, deve ser reduzida o valor de condenação ao montante das despesas suportadas pela Avalizada até à sua declaração de insolvência pois a partir dessa data 10.02.2011, a conta corrente encerrou por força da disposição doa Artigo 116.º do CIRE;
h) Fazendo-se assim a devida e acostumada justiça do Venerando Tribunal da Relação de Évora.
Pela embargada/exequente não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo embargante, aqui apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser aditado um novo facto à factualidade dada como provada;
2º) Saber se se verifica a excepção da prescrição quanto à livrança junta na execução a que estes autos estão apensos;
3º) Em caso negativo, saber se houve violação, por parte da embargada/exequente, do pacto de preenchimento da livrança dada à execução (uma vez que o valor constante da mesma não corresponde ao valor em dívida).

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo” e que, de imediato, passamos a transcrever:
1 - A Exequente interpôs a acção executiva com o valor de 5.954,64 €, dando à execução uma livrança, com o teor do título junto ao requerimento executivo e cujo teor se dá por reproduzido na íntegra. 2 - Tal livrança encontra-se subscrita no seu verso pelo Embargante, sob a inscrição “bom por aval ao subscritor”.
3 - Esta livrança foi subscrita em branco e entregue pela subscritora (…) – Sociedade Imobiliária, Lda. e pelos Executados à Exequente para garantia de pagamento de qualquer valor que o referido Banco pagasse ao Instituto da Segurança Social, IP, no âmbito do acordo de garantia prestada nº (…), de 20.01.2000.
4 - Através desse acordo, e por solicitação da (…) – Sociedade Imobiliária, Lda., a Exequente declarou prestar garantia bancária automática à referida entidade, até ao limite máximo de 9.531.861$00.
5 - A 20.01.2000, a sociedade (…) – Sociedade Imobiliária, Lda. e os Executados declararam que a livrança entregue em branco à Exequente, subscrita pela referida sociedade e avalizada pelos Executados, se destinava a garantir o acordo de garantia bancária supra referido, e que autorizavam a Exequente “a preenchê-la, fixando-lhe a data, o vencimento, que poderá ser à vista, quando e como entenderem, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas, sempre que deixemos de cumprir qualquer das obrigações emergentes deste contrato”.
6 - Tal garantia bancária foi devolvida à Exequente, pelo referido Instituto, a 10.12.2013.
7 - Entre 20.01.2000 e 10.12.2013, a referida garantia bancária gerou despesas e encargos no valor de € 5.954,64.
8 - A sociedade (…) – Sociedade Imobiliária, Lda. foi declarada insolvente a 10.02.2011.
9 - A Exequente remeteu aos Executados as cartas datadas de 10.12.2014, documentos juntos com a contestação aos embargos de executado e cujo teor se dá por reproduzido na íntegra.
10 - A acção executiva foi interposta a 19.12.2015.
11 - O Embargante foi citado a 02.05.2016.

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pelo embargante – saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser aditado um novo facto à factualidade dada como provada - haverá que referir a tal propósito que, tendo por base o documento nº1 junto pela embargada/exequente com a sua contestação (conta corrente da sociedade insolvente), pretende o recorrente que seja aditada à factualidade apurada nestes autos o seguinte facto:
- Nos termos da conta corrente da insolvente, apresentada pela exequente, esta tem um valor de € 5.954,64, sendo a importância de € 3.632,16, de despesas ocorridas até à data da declaração de insolvência da avalizada e a importância de € 2.322,48, correspondem a débitos posteriores à data de declaração de insolvência.
Todavia, desde já adiantamos que o aditamento do facto acima referido é, de todo em todo, despiciendo para a apreciação e análise das restantes questões jurídicas suscitadas pelo executado, ora apelante, no presente recurso, pelo que – face às razões e fundamentos que, de seguida, iremos explanar no presente aresto – entendemos manter integralmente, nos seus precisos termos, a factualidade apurada no tribunal “a quo” (sendo certo que ao tribunal está vedada a realização de actos inúteis no processo – cfr. art.131º do C.P.C).
Assim, a este respeito, sempre se dirá que, vencida que esteja a obrigação da sociedade insolvente, o credor, ora embargado, tem o direito de acionar a respectiva garantia, ou seja, a realizar o preenchimento do título cambiário (livrança) que foi subscrito pelo avalista, ora apelante, não sendo, por isso, relevante a data em que ocorreram aquelas despesas.
Com efeito, o avalista (“in casu”, o recorrente) não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão-somente ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (livrança).
Por virtude da autonomia da obrigação cartular face à obrigação subjacente, aquela permanecerá, independentemente das vicissitudes e alterações da obrigação causal.
É, por isso, entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência que o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo o do pagamento – cfr., neste sentido, Vaz Serra, R.L.J., Ano 113º, pág.186, nota 2 e, a título meramente exemplificativo, o Ac. do STJ de 19/6/2006, in CJSTJ, Ano 2º, pág.118.
Ora, é precisamente em resultado desta autonomia da obrigação do avalista que melhor se compreende o que decorre do nº 4 do art. 217º do CIRE que expressamente estabelece: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.
Deste modo, consagrou o legislador, no citado preceito legal, o entendimento de que o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário, sem prejuízo, evidentemente, do regime geral das relações entre os co-obrigados e garantes e estes com o devedor – cfr., neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Vol. II, págs.130/131.
É certo que, formalmente, o plano de insolvência e o plano de recuperação, aprovado no âmbito de um processo especial de revitalização, são realidades jurídicas distintas.
Mas, como é afirmado no Ac. da R.C. de 27/6/2017, disponível in www.dgsi.pt, na prática, a diferenciação entre essas duas realidades decorre apenas da circunstância de se inserirem em processos distintos (processo de insolvência ou processo de revitalização), sendo que, no primeiro caso, o plano incide sobre um devedor já declarado insolvente, incidindo, no segundo caso, sobre um devedor que está em situação de insolvência meramente iminente.
No que concerne ao conteúdo e objectivos, tais processos são semelhantes, visando essencialmente a adopção de um conjunto de providências que se destinam a satisfazer os direitos dos credores pela forma que se entenda necessária para permitir a efectiva recuperação e viabilidade económica do devedor.
O plano de recuperação ou o plano de insolvência é, por conseguinte, constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade em recuperação ou insolvente, não sendo razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são alvo do processo de recuperação ou de insolvência, não se encontrando, assim, impossibilitados de cumprir as obrigações cartulares livremente assumidas, precisamente face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.
É, portanto, e como acima ficou dito, a autonomia do aval relativamente à relação subjacente, que justifica que o aval não seja afectado pelas vicissitudes da relação subjacente, mais concretamente pela nova conformação do crédito decorrente da aprovação e homologação do plano de recuperação ou de insolvência.
A autonomia da obrigação cartular impede que os acordos homologados em planos de insolvência ou em processos de revitalização impliquem a consequente alteração daquela obrigação cartular anteriormente constituída e incumprida.
Assim, a doutrina da autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se perfeitamente com o estipulado no já referido art. 217º, nº 4, do CIRE, sendo que a aprovação e homologação de plano de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e o que aí se faça constar quanto ao cumprimento das suas obrigações/débitos, não é invocável pelo respectivo avalista/recorrente, contra quem o Banco portador da livrança instaurou acção executiva.
No mesmo sentido, veja-se ainda o Ac. do STJ de 26/2/2013, disponível in www.dgsi.pt, no qual é afirmado que “a aprovação do plano de insolvência da sociedade subscritora da livrança (…), onde passou a existir uma moratória para o cumprimento das suas obrigações, quanto ao pagamento dos seus débitos, não é invocável pelos respectivos avalistas, (…), contra quem o Banco portador da mesma livrança instaurou a (…) execução para obter o seu pagamento”. E fundamentou esta conclusão afirmando que “o plano de insolvência é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade insolvente”, já que “ao votar a favor do plano, o credor fá-lo apenas por se tratar de medidas aplicáveis a uma sociedade que está numa particular situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações para com os credores” e “não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram” [no mesmo sentido, quanto aos efeitos da homologação do plano de insolvência relativamente à obrigação do avalista, decidiram os Acórdãos desta Relação do Porto de 12/09/2013, proc. 2021/11.9TBVCD-A.P1, disponível in www.dgsi.pt e da Relação de Coimbra de 01/07/2014, proc. 1355/13.2TBLRA-A.C1, disponível in www.dgsi.pt; neste último proclamou-se, designadamente, que “sendo o plano de insolvência constituído por um conjunto de medidas que só visa a sociedade insolvente, regulando os termos e condições em que os débitos dele constantes irão ser pagos e não sendo as obrigações dos condevedores do insolvente ou dos terceiros garantes, afectadas por aquele plano – art. 217º, nº 4, do CIRE – o facto do credor não poder exigir à insolvente o pagamento do seu crédito, para além dos termos aí acordados, não é impeditivo de poder exigir a totalidade do crédito nos termos em que o podia fazer anteriormente a esse plano aos avalistas da insolvente”, até porque “aplicando-se o plano de insolvência somente à sociedade insolvente que está impossibilitada de cumprir as suas obrigações nada impede que o credor accione os avalistas com vista ao cumprimento da obrigação que assumiram em consequência do aval prestado”].
Deste modo, resulta claro que a circunstância de a sociedade subscritora da livrança ser, posteriormente, declarada insolvente, não contende com a regularidade e validade do acto anteriormente praticado pelos seus legais representantes, que subscreveram a livrança em seu nome. A subscrição da livrança por conta e em nome da sociedade, a par da celebração de acordo quanto ao modo de preenchimento da mesma livrança, despoleta, nesse momento, a obrigação cambiária, sendo certo que a validade e regularidade do acto de subscrição do título de crédito não resultam afectadas pelo facto de, posteriormente, a sociedade subscritora ser declarada insolvente. Certo é que, por referência à data da subscrição da livrança pela sociedade, ao momento em que emerge a obrigação cambiária, inexiste a invocação de qualquer circunstância que ponha em causa a validade e regularidade do referido acto.
Surge, assim, inequívoco que a aprovação e homologação, no competente processo, do plano de insolvência não produz quaisquer efeitos na obrigação do avalista, o qual continua obrigado ao pagamento da dívida cartular, nos precisos termos em que se vinculou quando apôs o seu aval no título de crédito.
Deste modo, haverá que concluir que não tem qualquer interesse para os autos saber se as despesas que a exequente suportou com a garantia bancária, tituladas pela livrança em causa, ocorreram antes ou depois da declaração de insolvência da sociedade avalizada.

Apreciando agora a segunda questão levantada pelo executado, ora apelante – saber se se verifica a excepção da prescrição quanto à livrança junta no processo principal – importa referir a tal propósito que a execução a que estes autos estão apensos é fundada num título de crédito, “in casu” uma livrança, que foi subscrita em branco e entregue pela subscritora (…) – Sociedade Imobiliária, Lda. e pelos executados à exequente, para garantia de pagamento de qualquer valor que o referido Banco pagasse ao Instituto da Segurança Social, IP., no âmbito do acordo de garantia prestada nº (…), de 20/1/2000, sendo que tal livrança encontra-se subscrita no seu verso pelo aqui embargante, sob a inscrição “bom por aval ao subscritor”, tendo sido devidamente preenchida e completada pela exequente, com base no pacto de preenchimento, também subscrito pelo aqui embargante/executado, ao qual se alude no ponto 5. dos factos provados.
O recorrente sufraga o entendimento de que a data do vencimento da livrança é aquela em que a sociedade (…) foi declarada insolvente – 10/2/2011 – pelo que, ao abrigo do disposto no art. 70º da LULL (aplicável ex vi do art. 77º do mesmo diploma), a mesma já se encontra prescrita desde 10/2/2014, ou seja em data anterior à instauração da execução a que estes autos estão apensos.
Antes de mais importa ter presente que cada negócio cartular tem subjacente um negócio que o explica, que o justifica, que lhe constitui a causa, e que se designa negócio subjacente.
Quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente, é comum afirmar que a sua relação é imediata; quando aqueles não estão ligados por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. As relações imediatas, na livrança, são as relações existentes entre obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva. As relações mediatas são as que se suscitam entre obrigados cambiários que não se encontram ligados por qualquer relação subjacente ou convenção executiva.
Dispõe o art. 17º da LULL que “as pessoas accionadas em virtude de uma letra (livrança) não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador (subscritor) ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra (livrança), tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”. Ou seja, e excluindo a parte final do preceito (que para o caso não releva), ao portador que se apresente a cobrar a livrança não podem ser opostas excepções fundadas nas relações extra-cartulares vigentes entre outras pessoas que não o próprio portador e a pessoa a quem ele pede o pagamento da livrança. O que significa que o demandado só pode opor ao portador excepções fundadas em relações extra-cartulares que tenha com o próprio portador.
Ora, é certo que, no caso em apreço, estamos no domínio das relações imediatas, mas isso não significa que a livrança deixe de valer como tal. Uma livrança constitui, por si, título executivo (como decorrência das características próprias dos títulos de crédito, como são as livranças – literalidade, autonomia e abstracção) e dispensa o seu portador de invocar a relação jurídica subjacente, ainda que o seu portador seja parte nessa relação.
Claro que, ao estar-se no domínio das relações imediatas, isso permite ao subscritor da livrança invocar, perante o portador, as excepções causais, isto é, fundadas nas suas relações pessoais.
Porém, no caso presente, também ficou assente (cfr. ponto 5. dos factos provados) que houve uma subscrição válida, e conforme ao convencionado, da livrança, pois consta expressamente do referido pacto de preenchimento que a exequente estava devidamente autorizada a preenchê-la, fixando-lhe, nomeadamente, a data e o seu vencimento, pelo que, nesse contexto, foi-lhe aposta uma data de vencimento – 22/12/2014 – sendo certo que o prazo de prescrição iniciou a sua contagem a partir da referida data, a qual corresponde ao momento do incumprimento definitivo do contrato, tal como foi entendido pela exequente e autorizado pelo aqui executado / embargante. E, sabendo-se que o prazo de prescrição das livranças é de 3 anos (cfr. citado art. 70º da LULL, ex vi do art. 77º do mesmo diploma), é manifesto que esse prazo – que iniciou a sua contagem a partir da data de vencimento da livrança, o que, como vimos, no caso, ocorreu a 22/12/2014 – não estava ainda decorrido (a contar da data do respectivo vencimento) quando a presente execução foi instaurada, ainda no ano de 2015.
Nestes termos forçoso é concluir que a livrança em causa pode continuar a ser feita valer contra o executado, ora apelante, improcedendo também a invocada excepção de prescrição, tal como já tinha sido o entendimento do tribunal “a quo”.

Finalmente, analisando a terceira questão suscitada pelo recorrente – saber se houve violação, por parte da embargada / exequente, do pacto de preenchimento da livrança dada à execução (uma vez que o valor constante da mesma não corresponde ao valor em dívida) – haverá que dizer a tal respeito que a livrança em causa foi entregue ao exequente em branco, apenas dela constando a assinatura dos subscritores e dos avalistas, nomeadamente do aqui embargante.
Está-se, assim, no domínio da livrança em branco, que é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no art. 75º da LULL, mas contém, pelo menos, a assinatura do subscritor.
A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato e porque, em princípio, ninguém entrega um título dessa natureza para se fazer dele um uso livre ou indiscriminado, tal entrega é acompanhada da atribuição de poderes para esse preenchimento, ou seja, do chamado acordo ou pacto de preenchimento.
Tal acordo pode ser expresso, quando as partes estipularem certos termos concretos, ou tácito, por estar implícito nas cláusulas do negócio determinante da emissão do título, o qual deverá depois ser preenchido em conformidade com esses termos ou cláusulas, sob pena de preenchimento abusivo.
Acresce que o ónus da prova desse preenchimento abusivo cabe ao obrigado cambiário, como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito – cfr. artigo 342º, nº 2, do Código Civil.
Isto está previsto no art. 10º da LULL, aplicável à livrança por força do disposto no art. 77º, para o domínio das chamadas relações mediatas, e em termos limitados, decorrentes dos princípios da literalidade e abstracção, mas, nas relações imediatas, como entre os sujeitos da relação fundamental que esteve na origem da subscrição do título, é livremente oponível a inobservância do acordo de preenchimento, por ficar a obrigação cambiária sujeita ao regime geral das obrigações, ou seja, às excepções fundadas nas relações pessoais entre aqueles sujeitos.
Assim, neste último domínio, o tomador da livrança pode exercer, em princípio, contra o subscritor e avalistas os direitos correspondentes ao título cambiário, tal como está preenchido e com força própria de título executivo e a esse subscritor cabe o ónus da prova do preenchimento abusivo, devendo alegar, para o efeito, as cláusulas do negócio fundamental ou os termos do pacto do preenchimento.
Em suma, quem entrega uma letra ou uma livrança em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo e, no caso de execução, essa prova tem de ser feita nos embargos de executado, cuja petição se destina à impugnação dos requisitos do título executivo, em termos idênticos aos da posição assumida pelo contestante em processo comum de declaração – cfr. art. 731º do C.P.C.
Conforme se considerou no Ac. do STJ de 13/4/2011, disponível in www.dgsi.pt, o pacto de preenchimento é um contrato formado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário no que respeita aos elementos que habilitam a formar o título executivo, estabelecendo os requisitos que tornam exigível a obrigação cambiária. O preenchimento deve respeitar aquele pacto… já que a sua observância é o quid que confere força executiva ao título, mormente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade.
Ora, é entendimento pacífico na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que é sobre o obrigado cambiário que incide o ónus de alegação e prova do preenchimento abusivo da letra/livrança, atento o disposto no art. 342º, nº 2, do Cód. Civil – cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 8/10/2009 e de 30/9/2010, o Ac. da R.P. de 3/4/2014, o Ac. da R.L de 2/3/2010 e os Acs. da R.E. de 24/4/2014 e de 10/3/2016, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Por outro lado, importa ainda ter presente que o incumprimento daquilo que foi acordado quanto ao modo de preenchimento do título pode ser invocado no domínio das relações imediatas.
E, encontrando-se a livrança no domínio das relações imediatas (na posse do portador principal), o avalista tem legitimidade para excepcionar o preenchimento abusivo, caso tenha subscrito também o acordo de preenchimento. Porém, se tal não ocorrer, isto é, se os avalistas não tiverem subscrito tal acordo, não se apresentam como sujeitos materiais da relação contratual (relação subjacente), pelo que, neste último caso, não podem apor ao portador da livrança a excepção de preenchimento abusivo.
Ora, no caso em apreço, tratando-se o exequente/embargado do portador inicial e tendo o avalista, aqui embargante, subscrito o pacto de preenchimento, forçoso é concluir que a livrança em causa nestes autos encontra-se no domínio das relações imediatas. Por conseguinte, assiste ao avalista, ora apelante, o direito a confrontar o exequente com o alegado incumprimento do pacto de preenchimento da livrança em branco.
Sustenta o embargante, aqui apelante, que o incumprimento do acordo resulta de a livrança não ter sido preenchida quando a sociedade subscritora foi declarada insolvente.
Todavia, do teor do pacto de preenchimento a que se alude no ponto 5 dos factos provados resulta claro que, em 20/1/2000, a sociedade (…) – Sociedade Imobiliária, Lda. e os executados (entre os quais o aqui recorrente) declararam que a livrança entregue em branco à exequente, subscrita pela referida sociedade e avalizada pelos executados, se destinava a garantir o acordo de garantia bancária supra referido, e que autorizavam a exequente a preenchê-la, fixando-lhe a data, o vencimento, que poderá ser à vista, quando e como entenderem, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas.
Ora, a livrança em causa não titula o accionamento da garantia bancária, mas sim as despesas e encargos gerados pela vigência da referida garantia durante mais de 12 anos, no montante global de € 5.954,64, sendo certo que, face ao teor do pacto acima referido, a satisfação, por parte da exequente, desses encargos e despesas permitia-lhe, indubitavelmente, o preenchimento e apresentação da livrança a pagamento nos termos em que o fez, inexistindo, por isso - ao contrário do sustentado pelo embargante, ora apelante - qualquer abuso no seu preenchimento.
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões, entendemos que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, irrelevam, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pela embargante, aqui apelante, sendo de julgar improcedente o recurso.

***

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- Constando expressamente do pacto de preenchimento da livrança em causa que a exequente estava devidamente autorizada a preenchê-la, fixando-lhe, nomeadamente, a data e o seu vencimento, e, nesse contexto, apôs-lhe a data de vencimento (22/12/2014), é inquestionável que o prazo de prescrição de 3 anos só iniciou a sua contagem a partir da referida data (cfr. citado art. 70º da LULL, ex vi do art. 77º do mesmo diploma), pelo que tal prazo não estava ainda decorrido quando a presente execução foi instaurada, ainda no ano de 2015.
- Do teor do pacto de preenchimento a que se alude no ponto 5. dos factos provados resulta claro que a exequente estava devidamente autorizada a preencher a livrança, em causa, fixando-lhe a data, o vencimento, que podia ser à vista, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas.
- A referida livrança não titula o accionamento da garantia bancária, mas sim as despesas e encargos gerados pela vigência da dita garantia durante mais de 12 anos, no montante global de € 5.954,64, sendo certo que, face ao teor do pacto acima referido, a satisfação pela exequente, desses encargos e despesas, permitia-lhe, indubitavelmente, o preenchimento e apresentação da livrança a pagamento nos termos em que o fez, inexistindo, por isso, qualquer abuso no seu preenchimento.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pelo embargante, aqui apelante e, em consequência, confirma-se integralmente a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pelo embargante, ora apelante.
Évora, 14 de Março de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).