Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
430/16.6T8STR.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- Sempre que, na análise de uma questão, se faça a opção por uma solução entre duas ou mais possíveis, cuja fundamentação exclua necessária e logicamente qualquer outra solução, a não-menção expressa a esta última não consubstancia uma verdadeira e própria omissão de pronúncia (relativamente à apreciação dessa outra opção), mas antes uma mera consequência implícita da opção diversa acolhida.
II- O CIRE [artº 239º, nº 3, al. b), subalínea i)], ao adoptar como padrão de referência o «salário mínimo nacional» – que está legalmente definido por reporte a uma «retribuição mínima mensal garantida», conforme se expressa o Decreto-Lei nº 254-A/2015, de 31/12 (que fixou o respectivo valor, a partir de 1/1/2016, em 530,00) – sugere claramente que se trata de um valor mensal, e, logo, apenas fixável em 12 prestações anuais, excluindo assim quaisquer outras verbas. E estão nessa situação os subsídios de férias e de Natal, que, sendo rendimento, não são retribuição directa do trabalho.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na Secção de Comércio da Instância Central, em que se apresentou à insolvência AA, a qual foi entretanto declarada insolvente, foi por esta formulado, na própria petição inicial de apresentação, pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do regime previsto nos artos 235º a 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3. Para tanto alegou preencher todas as condições previstas no citado diploma para beneficiar desse regime, indicando viver sozinha, auferir um rendimento mensal médio de 534,07 € líquidos, ter despesas médicas e medicamentosas regulares por motivos de saúde, e identificando despesas mensais quantificadas em cerca de 600,00 € e um passivo superior a 12.000,00 €.

Elaborado relatório pelo Administrador de Insolvência, em 12/4/2016 (cfr. fls. 90-94), mencionou este ter a requerente um rendimento mensal líquido de 558,60 €, proveniente do seu salário como assistente operacional no Agrupamento de Escolas nº 1, um agregado familiar que integra apenas a requerente, sem que esta tenha qualquer outra fonte de rendimento, despesas mensais fixas de 220,00 € (renda de casa de 175,00 € e despesas de saúde de 45,00 €), para além das despesas correntes necessárias à sua sobrevivência, e um passivo de créditos no total de 14.711,00 €. Conclui propondo, como montante do rendimento indisponível fixado em benefício da requerente, quantia equivalente a 1,15 salários mínimos nacionais (o que, atento esse valor de referência se situar actualmente em 530,00 €, determinaria um montante correspondente a 609,50 €)

Sobre esse pedido de exoneração do passivo restante pronunciou-se o tribunal de 1ª instância (por decisão inserta na acta de fls. 100-107), em termos de considerar verificados os pressupostos legais do seu deferimento, pelo que se determinou, no dispositivo dessa decisão, designadamente o seguinte:

«– Constitui rendimento disponível do devedor, a entregar ao AI, todo e qualquer montante recebido que, mensalmente, seja superior a 1 salário mínimo nacional, atentos os critérios previstos no art. 239º, nº 3, alínea b), considerando que o agregado familiar é composto exclusivamente pela mesma, não são apresentadas despesas extraordinárias comparativamente às do homem médio comum, e a jurisprudência dos Tribunais superiores que tem sido seguida por esta Secção de Comércio, conjugada com a escala de Oxford da OCDE.»

É apenas em relação ao montante do rendimento indisponível fixado em benefício do requerente (i.e., 1 salário mínimo nacional), que vem interposto pela insolvente o presente recurso de apelação, cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«1. Dada a natureza do processo de insolvência, tendo inexistido impugnação específica dos credores em relação aos factos e documentos invocados na PI, no que concerne, em particular, ao que diz respeito ao pedido de exoneração do passivo restante, a matéria deve considerar-se como assente;

2. Neste contexto, todos os factos invocados pela Recorrente, em particular os respeitantes ao seu vencimento e despesas, devem ser considerados como assentes para efeitos de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante;

3. De igual modo, a não impugnação do conteúdo dos documentos 7 a 25 leva à constatação da veracidade dos factos aí invocados;

4. Por outro lado, a Meritíssima Juíza a quo não teve em consideração os custos invocados pela Recorrente, que ascendem a € 629,00 e que são superiores ao seu rendimento, tendo a mesma que recorrer a ajuda financeira da família;

5. A Meritíssima Juíza a quo também não tomou em consideração que a Recorrente sofre de trombocitémia essencial e bronquite crónica, o que leva a uma despesa regular de saúde, porque é mensal;

6. A forma sumária como foi determinado o montante na decisão em recurso por falta de indicação dos fundamentos correctos, traduz-se em violação do dever de fundamentação legalmente imposto;

7. A fixação da escala de Oxford, ao contrário da escala de equivalência utilizada pelo Eurostat, penalizou a Recorrente, na medida em que não teve em conta parâmetros de harmonização de rendimentos de acordo com a realidade do nosso país em comparação com outros da União Europeia;

8. Por isso, a fixação de um SMN, como sustento minimamente digno para o devedor, afigura-se inaceitável, dado que a decisão foi tomada com base na escala de Oxford da OCDE, o que se considera penalizador para os indivíduos, uma vez que não tem em conta os parâmetros da escala de equivalência utilizada pelo Eurostat;

9. Na decisão recorrida confunde-se sustento minimamente digno com mínimo de sobrevivência, violando o princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1o, 2o, 13°, 59°, n° 2, alínea a), e 63°, n°s 1 e 3, da CRP;

10. Não tendo a decisão recorrida respeitado o conceito constitucional de "dignidade da pessoa humana", plasmado no artigo 1o da CRP, na medida em que não foram salvaguardadas as condições económicas de vida capazes de assegurar liberdade e bem-estar da Recorrente;

11. A Meritíssima Juíza a quo deveria ter equacionado o direito ao salário da Recorrente, que se afirma como um direito fundamental de qualquer trabalhador, de natureza análoga à dos direitos liberdades e garantias, salário esse que, no seu limite mínimo, satisfaça as necessidades decorrentes da alimentação, preservação da saúde, e habitação do trabalhador e do seu agregado familiar, intrinsecamente correlacionadas com a dignidade da pessoa humana, e os interesses dos credores, conforme é entendimento jurisprudencial, o que no entender do Recorrente não foi efectuado pelos motivos apresentados neste recurso;

12. Verifica-se, assim, que, com a posição assumida, a Meritíssima Juíza a quo violou os princípios constitucionais referidos nas alegações, colocando a Recorrente numa situação de fragilidade económico-financeira que se repercute na sua vida social, pondo em causa a sua sobrevivência e a sua dignidade enquanto ser humano;

13. Considera-se que existe violação do dever de fundamentação, ínsito no artigo 154°, n° 1, e 607°, n° 4, do CPC, quanto à atribuição de um salário mínimo nacional, que de acordo com o art° 615°, n° 1, al. b), do CPC, gera a nulidade da sentença.

14. A fixação do rendimento necessário para o sustendo em um salário mínimo e meio afigura-se correcta, devendo, a decisão ser alterada nesse sentido, com salvaguarda do disposto no artigo 239°, n° 3, al. b), do CIRE;

15. Caso se entenda de modo diferente, deve, no mínimo, ser fixado de rendimento mínimo necessário para o sustento do Recorrente, 1,5 salários mínimos, como defendido, aliás, pelo Administrador da Insolvência, acrescido de 50% de subsídio de férias e de Natal;

16. Inexistiu pronúncia em relação à questão dos 50% do subsídio de férias e de Natal, motivo pelo qual se devem considerar os mesmos excluídos da cessão, como a Recorrente solicitou na PI, e sob pena de violação dos princípios básicos e constitucionais;

17. Mostram-se violados os preceitos contidos nos artigos 324° do CC, 238° e 239° do CIRE, artigo 615° do CPC e artigos 1o, 13°, 59° e 63° da CRP, pelo que a douta decisão deve ser revogada no sentido apontado.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do apelante resulta que a matéria a decidir se resume a aferir do acerto da decisão recorrida, dos pontos de vista da verificação da ocorrência de nulidades de sentença enquadráveis no artº 615º, nº 1, als. b) e d), 1ª parte, do NCPC (por alegadas falta de fundamentação, por insuficiente explicitação dos argumentos fundantes da fixação do rendimento indisponível, e omissão de pronúncia, por não apreciação do pedido da requerente de exclusão dos subsídios de férias e de Natal do âmbito da cessão de rendimento disponível) e, subsidiariamente, da justeza da decisão recorrida quanto ao valor do rendimento indisponível fixado em benefício da requerente (ou, dito de outro modo, do montante de rendimento excluído da cessão de rendimento disponível determinada ao abrigo do artº 239º do CIRE, e decorrente da procedência do pedido de exoneração do passivo restante) – ou seja, neste ponto, trata-se de apreciar se esse montante mensal foi adequadamente fixado em «1 salário mínimo nacional» ou se o mesmo deverá ser mais elevado (até ao limite peticionado pelo requerente de 1,5 salários mínimos nacionais, ou seja, 795,00 €, acrescido de 50% dos subsídios de férias e de Natal), em atenção à situação pessoal e económica da recorrente.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. Comece-se por apreciar, atenta a sua precedência lógica, as nulidades da sentença, por alegadas falta de fundamentação e omissão de pronúncia, suscitadas pela apelante.

Sobre essa nulidade por falta de fundamentação, dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, que «o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Em relação à omissão de pronúncia, refira-se que o conceito se refere a questões, como resulta expressamente da lei. E «questões» são todos os pedidos, causas de pedir e excepções de que se deva conhecer (assim, LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 704): não inclui considerações, argumentos ou razões produzidos pelas partes (neste sentido, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 143).

Apreciemos a decisão em apreço, à luz da descrita caracterização conceptual das nulidades arguidas.

a) Quanto à nulidade por falta de fundamentação, é óbvio que não ocorre uma absoluta omissão de motivação, sendo evidente a apresentação de uma perceptível argumentação, de que a recorrente pode discordar, mas que foi produzida – pelo que estará arredada tal nulidade.

Com efeito, e ainda que de forma sucinta, explicitou o tribunal recorrido as razões da fixação do rendimento indisponível no valor que a recorrente também contesta: não ter a requerente pessoas a cargo, não ter senão as despesas correntes e necessárias à sua sobrevivência, ter em atenção parâmetros definidos pela jurisprudência dominante e pela designada “escala de Oxford da OCDE”. E a apelante contra-argumenta contra todas essas razões, confirmando pela sua própria alegação que a decisão recorrida se mostra devidamente fundamentada.

b) Quanto à nulidade por omissão de pronúncia, deve ter-se por certo o seguinte: sempre que, na análise de uma questão, se faça a opção por uma solução entre duas ou mais possíveis, cuja fundamentação exclua necessária e logicamente qualquer outra solução, a não-menção expressa a esta última não consubstancia uma verdadeira e própria omissão de pronúncia (relativamente à apreciação dessa outra opção), mas antes uma mera consequência implícita da opção diversa acolhida.

No caso presente, formulou a apelante perante a 1ª instância a pretensão de ser excluída da cessão de rendimento disponível (e, ao invés, incluída no rendimento indisponível fixado em benefício da requerente) uma parte dos subsídios de férias e de Natal. Ora, o tribunal a quo ao fixar um valor mensal de rendimento indisponível estava necessariamente a excluir desse montante os subsídios de férias e de Natal, que assim integrarão o rendimento a ceder ao fiduciário.

Aliás, o próprio preceito do CIRE (artº 239º, nº 3, al. b), subalínea i)), ao adoptar como padrão de referência o «salário mínimo nacional» – que está legalmente definido por reporte a uma «retribuição mínima mensal garantida», conforme se expressa o Decreto-Lei nº 254-A/2015, de 31/12 (que fixou o respectivo valor, a partir de 1/1/2016, em 530,00) – sugere claramente que se trata de um valor mensal, e, logo, apenas fixável em 12 prestações anuais, excluindo assim quaisquer outras verbas. E estão nessa situação os subsídios de férias e de Natal, que, sendo rendimento, não são conceptualmente retribuição directa do trabalho.

Neste conspecto, o tribunal a quo apenas tinha de se pronunciar sobre o valor mensal adequado ao sustento minimamente digno da requerente – o que dispensava uma pronúncia expressa sobre subsídios de férias e de Natal, que sempre estarão fora daquele conceito.

Neste sentido se tem pronunciado alguma jurisprudência, de que se destaca o Ac. RE de 15/1/2015 (Proc. 352/14.5TBABT.E1, in www.dgsi.pt). Aí se discutia também uma arguição de nulidade por omissão de pronúncia, reportada igualmente a uma pretensa não apreciação do pedido de exoneração do passivo restante quanto à exclusão de subsídios de férias e de Natal – e concluiu-se pela improcedência da arguida nulidade, discorrendo do seguinte modo: «Todavia, o facto de o valor dos referidos subsídios dever ser destinado também ao sustento do apelante e do seu agregado familiar (para além do valor dos rendimentos correspondentes a um salário mínimo e meio), nos termos e para os efeitos do disposto no art. 239º, nº 3, al. b)-i) do CIRE não constitui propriamente uma questão mas sim um mero argumento relativo à questão de se saber qual o valor dos rendimentos do devedor, que, destinado ao seu sustento, devia ser excluído do rendimento disponível. E isto porque, não estando em causa uma relação laboral, não faz sentido que se deva tomar posição específica e de forma autónoma sobre a exclusão dos subsídios de férias de Natal. O que está em causa, para efeitos da disposição supra citada, é saber qual o valor de que o devedor regularmente (mensalmente) precisa para o seu “sustento minimente digno”.»

Na mesma linha, podemos citar o Ac. RG de 14/2/2013 (Proc. 3267/12.8TBGMR-C.G1, idem). Discutindo, já num plano substantivo, a inclusão (ou não) dos subsídios de férias e de Natal no rendimento a disponibilizar ao fiduciário, argumenta-se nesse aresto: «(…) aquilo a que [o requerente apelante] tem direito é, nos termos do supra citado art. 239º do CIRE, apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno (…). Os subsídios em causa não são necessários para o sustento minimamente condigno do Apelante, pelo que têm que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.» Para melhor explicitar quais esses fins da insolvência neste contexto, acrescenta-se: «(…) sendo embora a exoneração do passivo uma medida de proteção do devedor insolvente, é necessário ter presente que a exoneração não pode ser vista como uma espécie de expediente para a pessoa insolvente se eximir pura e simplesmente ao pagamento das suas dívidas. Pelo contrário, trata-se de um meio tendente a conciliar a possibilidade do insolvente se ver liberto das dívidas remanescentes ao fim de cinco anos com o direito dos credores a serem ressarcidos dentro desse prazo à custa do rendimento do devedor. Assim, não pode deixar de se entender que o insolvente tem de adequar o seu modus vivendi ao estado de insolvência a que está sujeito. E não é este estado de insolvência que tem de se adequar ao modus vivendi que o insolvente entenda adotar. Como resulta precípuo do espírito da lei (supra citada norma legal), o insolvente está apoditicamente adstrito a limitar as suas despesas e encargos àquilo que lhe proporcione um sustento (aqui considerado, bem entendido, em sentido lato, de modo a abranger também a habitação, despesas de saúde e outras necessidades essenciais) apenas minimamente digno, na medida em que só pode legitimamente contar que seja excluído do seu rendimento disponível para os fins da insolvência, o que, precisamente, for razoavelmente necessário a um sustento minimamente digno. O insolvente não pode querer ter a mesma disponibilidade de recursos (entenda-se, ter os mesmos gastos, os mesmos encargos, os mesmos desfrutes) que teria se acaso o seu rendimento não estivesse a ser direcionado para os fins da insolvência.» E conclui-se: «(…) os direitos constitucionais do ora Apelante enquanto trabalhador não estão a ser ilegitimamente afetados pela circunstância da lei mandar consignar aos fins da insolvência tudo aquilo que exceda o necessário ao seu sustento minimamente digno».

Por merecerem a nossa adesão as precedentes considerações, resta-nos, pois, sustentar como não ocorrente a arguida omissão de pronúncia, já que os subsídios em referência não teriam de ser sequer levados em conta na fixação do valor mensal de rendimento indisponível fixado em benefício da requerente – e ainda que se tomasse posição sobre essa hipotética inclusão, sempre os fins da insolvência e os fundamentos do instituto da exoneração do passivo restante se lhe oporiam.

Nesta conformidade, devem improceder as arguidas nulidades de sentença, cumprindo agora passar a apreciar a substância da impugnação ínsita no presente recurso.

2. Estando assentes os elementos de facto descritos no relatório, cabe, pois, com base neles, aferir do acerto do segmento decisório sob recurso.

O regime da exoneração do passivo restante, e em particular a criação da figura da cessão de rendimento disponível, procura estabelecer um equilíbrio, certamente difícil, entre as chamadas função interna do património (relativa ao sustento do devedor) e função externa do património (respeitante à garantia geral dos credores) – sobre estes conceitos, cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2013, pp. 905-906. Cabe ao tribunal definir, em cada caso, o que se deve entender por sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, de forma a encontrar uma solução que ainda acautele satisfatoriamente o interesse dos credores sem afectar essas condições mínimas de sobrevivência digna.

No caso dos autos, esse equilíbrio foi encontrado pelo tribunal a quo através da reserva, em benefício da insolvente de quantia correspondente a «1 salário mínimo nacional» (que já vimos corresponder actualmente a 530,00 €).

Trata-se agora, então, de saber se esse montante assegura o sustento minimamente digno da insolvente que o CIRE pretende acautelar, como entendeu o tribunal recorrido – ou se, para cumprir essa função, esse valor deve ser aumentado (e em que medida).

Estamos seguramente a lidar com valores muito baixos, que se situam próximo de um limiar de sobrevivência. Porém, também não se pode olvidar que a insolvente tem um passivo global de 14.711,00 € e que os credores não têm de suportar desrazoavelmente o incumprimento dos devedores. Ora, no confronto dos interesses em presença, afigura-se-nos que o montante fixado é razoavelmente equilibrado e equitativo, tendo o tribunal de 1ª instância decidido com acerto e ponderação.

Com efeito, refira-se, desde logo, haver uma óbvia impossibilidade na consideração do valor pretendido pela insolvente (795,00 €), porquanto superaria o seu próprio rendimento actual (558,60 €) – o que não permitiria salvaguardar minimamente a posição dos credores. O rendimento protegido sempre terá de se situar abaixo desse valor de 558,60 €, mas sem poder ser inferior ao valor do salário mínimo nacional (530,00 €) – que se entende constituir um limite mínimo inultrapassável, por ser reconhecido no nosso sistema legal como o mais baixo valor compatível com um limiar mínimo da sobrevivência, como decorre da consagração da sua impenhorabilidade, nos termos do artº 738º, nº 3, do NCPC. Está assim em causa um diminuto diferencial de apenas 28,60 €.

Em tese, o valor do diferencial entre o rendimento protegido a favor do insolvente e o rendimento a ceder ao fiduciário em benefício dos credores não pode ser tão insignificante, a ponto de tornar quase virtualmente irrecuperáveis para os credores os valores em dívida, sendo certo que a amplitude desse diferencial deve também expressar uma adequada censurabilidade da menor prudência na gestão da vida económica pregressa do devedor e constituir um factor de maior responsabilização futura na referida gestão.

No caso presente, o referido diferencial de 28,60 €, pela sua quase insignificância, dificilmente cumprirá aqueles desideratos – mas, ao mesmo tempo, e precisamente por ser tão diminuto, também não é tolerável que seja ainda mais reduzido em prejuízo dos credores, já que o instituto da exoneração do passivo restante não pode servir para libertar o devedor da totalidade das suas dívidas, tendo ainda de cumprir, mesmo que não plenamente, aquela função compensatória para os credores (como, aliás, se reconhecia no supra citado Ac. RG de de 14/2/2013).

Tendo ainda em atenção os dados referenciados quanto à situação de vida da requerente (em particular, no que tange à sua condição pessoal e ao padrão das suas despesas regulares), cremos que o tribunal a quo fez a ponderação mais ajustada possível dos diversos interesses em confronto.

Nessa base, aceita-se como adequada a fixação do rendimento protegido da requerente em valor correspondente a «1 salário mínimo nacional» mensal (ou seja, no valor actual de 530,00 €). E isto sem que nessa fixação seja de atender a subsídios de férias e de Natal, sobre os quais, pela sua diversidade em relação à natureza mensal do rendimento indisponível arbitrado em benefício da requerente, não haveria sequer que emitir pronúncia, como se sustentou supra – e, ainda que algum juízo tivesse de ser feito, seria no sentido da sua exclusão do aludido rendimento protegido, pelas razões supra mencionadas (a que aqui damos a nossa concordância).

3. Não se vislumbra, pois, razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: o tribunal a quo não violou as disposições legais mencionadas nas conclusões das alegações de recurso, pelo que não merece censura a decisão recorrida, assim improcedendo integralmente o recurso em apreço.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela massa insolvente (artos 304º e 303º, este com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, ambos do CIRE), sem prejuízo do já decretado encerramento da insolvência por insuficiência da massa para satisfação das custas e demais dívidas, ao abrigo do artº 232º do CIRE.


Évora, 06/10/2016


Mário António Mendes Serrano


Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes


Mário João Canelas Brás