Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
668/16.6GASSB.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Conduzir um veículo na via pública com vestígios (mais ou menos elevados) de substâncias estupefacientes no sangue, apurados nos termos regulamentares, não é suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo de ilícito, tornando-se também necessário que aquela circunstância seja impeditiva do exercício da condução em segurança.
II. Ao contrário do que sucede com a Taxa de Álcool no Sangue, o exame toxicológico relativo às substâncias estupefacientes serve apenas para indicar a presença vestígios de substâncias no sangue do examinado. Cabendo ao juiz, adicionalmente, aferir se o condutor não estava em condições de fazer uma condução segura.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO

a. No 2.º Juízo (1) Local de Sesimbra do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular de GJ, nascido a …, solteiro, residente …, a quem fora imputada a prática, como autor, dos seguintes ilícitos penais:

- um crime de homicídio por negligência, previsto no artigo 137.º, § 1.º do Código Penal (CP) e de uma contraordenação, prevista no artigo 35.º, § 1.º e 2.º, do Código da Estrada;

- um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º CP;

- e um crime de condução de veículo sob a influência de produtos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º, § 2.º CP.

Não foram deduzidos pedidos de indemnização civil.

O arguido apresentou contestação negando a prática do crime de condução de veículo sob a influência de produtos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, e quanto ao mais oferecendo o merecimento dos autos. A mais disso, requereu audição de peritos e arrolou testemunhas.

A final o tribunal proferiu sentença, na qual condenou o arguido pela prática, como autor, de:

- um crime de homicídio por negligência, previsto no artigo 137.º, § 1.ºdo Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão e na pena de 1 ano de pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (artigo 69.º/1-a) CP);

- um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no artigo 148.º, § 1.º CP, na pena de 6 meses de prisão e na pena de 10 meses de pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (artigo 69.º/1-a) CP)

- um crime de condução de veículo sob a influência de produtos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º, § 2.º do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de 5€.

Operado o cúmulo jurídico das referidas penas, condenou-o na pena única de 1 ano e 10 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período; e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 anos.

b) Inconformado com a decisão recorreu o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«I No que concerne à condenação do arguido pela prática do crime de condução de veículo sob a influência de produtos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas p. e p. pelos art.º 292.º do Código Penal, a mesma assentou na analise toxicológica por amostra de sangue, recolhida no Hospital Distrital de … da qual resultou um resultado “Positivo” para 09- Tetrahidrocanabiol (THC) – vulgarmente designado por Cannabis - numa concentração de 0,7 ng/mL (cfr. análise toxicológica a fls 48 dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido ara todos os devidos e legais efeitos).

II O arguido negou ter consumido estupefacientes no referido dia e nenhuma outra prova, nomeadamente exame clínico, foi realizada que permita sustentar que este se encontraria sob o efeito de substâncias estupefacientes;

III E o próprio relatório toxicológico (junto a fls 310 a 312 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido ara todos os devidos e legais efeitos), que refere que “O nível ou intensidade das alterações provocadas ao indivíduo em concreto pelo THC ou qualquer outra substância não são possíveis de avaliar sem um exame clínico no momento da colheita, uma vez que existem variáveis que determinam que, para as mesmas concentrações sanguíneas as alterações cognitivas e psicomotoras que afetam a capacidade para conduzir possam ser diferentes entre indivíduos”.

IV E, “Face ao exposto, não existindo um exame clínico sobre as alterações psicofisiológicas do condutor em concreto e tendo por base estudos publicados sobre os efeitos do THC, não se pode excluir em absoluto que apesar do baixo valor detetado de THC (0,7ng/mL) este possa constituir um risco de acidente e de impairment;

V dizer-se que “não se pode excluir em absoluto” que algo aconteça nem sequer equivale a dizer que eì provável que tenha acontecido e eì substancialmente diferente de dizer que aconteceu! Tanto mais que eì o próprio relatório toxicológico que reconhece que a quantidade de THC detectada, (0,7ng/mL) eì “baixa”!

VI O tipo do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas não se satisfaz com a mera deteção de substâncias estupefacientes em análise toxicológica. Pressupõe tambeìm, aleìm da detecção do estupefaciente, que seja verificado, em concreto, que naquelas circunstâncias de tempo e de lugar o agente não estava em condições para conduzir em segurança.

VII Sempre teria de se demonstrar, em concreto, que a concentração de HTC detetada na amostra de sangue do arguido, aliás muito baixa teve efeitos perturbadores da sua aptidão física, mental ou psicológica para o exercício da condução.

VIII A verificação da contraordenação muito grave de condução sob a influência de substâncias psicotrópicas basta-se com a realização de uma análise toxicológica com resultado igual ou superior a um dos descriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007 , ou seja, no caso dos canabinóides, 50 ng/mL

IX O que nos permite afirmar, por um lado, que o estado prescindiu de censurar, enquanto ilícito de mera ordenação social, a condução com concentrações de produtos estupefacientes inferiores àquele indicado valor de 50ng/mL para o caso dos canabinóides.

X Resulta pois evidente que a conduta do aqui arguido – a condução com uma concentração de canabinóides de 0,7ng/mL - nunca poderia ser censurado a título de contraordenação pois, caso fosse sujeito a um teste de rastreio, o arguido teria obtido um resultado negativo para a existência de produtos estupefacientes, dado que a concentração detetada de 0,7ng/mL eì muitíssimo inferior aos 50ng/mL.

XI Sendo o Direito Penal uma ultima ratio, de forma alguma pode ser criminosa uma conduta que nem sequer teria dignidade para ser censurada como ilícito de mera ordenação social.

XII No sentido invocado entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 09.04.2004 que refere no seu sumário: (…) a demonstração de “não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de ... produtos ... perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica” passa pela realização de uma “prova pericial” consistente em “exame meìdico” de avaliação do estado do condutor pelos aspetos discriminados no Ponto 25 da Secção III e Anexo VII da Portaria 902-B/2007.

(…) Assim, não há possibilidade de demonstração do crime de “condução sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas” no processo em que se realizou o “exame de confirmação” seguinte a «exame de rastreio», que eì possível efetuar, nem de demonstração da contraordenação muito grave “condução sob a influência de substâncias psicotrópicas”, no processo em que se realizou “exame de confirmação” seguinte a “exame de rastreio”, com resultados inferiores a um dos discriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007.

E o Ac. do TRE de 07-01-2016, disponível em www.dgsi.pt que concluiu que: “Não se considera como exercendo a condução sob influência de substâncias psicotrópicas aquele que, sem ser submetido a preìvio exame de rastreio, revelou no exame realizado uma concentração estimada de THC de 22ng/ml”

XIII Resulta pois de todo o exposto que, ao condenar o arguido pela prática do crime de condução sob o efeito de estupefacientes a sentença sob recurso violou o disposto pelos art.º 292.º do Código Penal bem como o Ponto 25 da Secção III e Anexo VII da Portaria 902-B/2007.

Pelo que deverá ser nesta parte revogada e substituýìda por outro que determine a absolvição do arguido pela prática de tal crime.

XIV No que concerne à medida da pena, apenas se dirá que a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução se apresenta como manifestamente excessiva, desproporcional e desnecessária.

XV O arguido eì muito jovem, está inserido social e familiarmente, e demonstrou claramente ter interiorizado a gravidade das consequências da sua conduta e sofreu e sofrerá para sempre o peso de ter determinado a perda de uma vida.

XVI Conforme aliás foi pugnado pela Digníssima Magistrada do Ministeìrio Público em sede de audiência de julgamento, a censura bastar-se-ia com a condenação em pena de multa, a qual, atento o facto de não ter rendimentos, sempre deveria ser convertida em trabalho a favor da comunidade, o que expressamente se requer.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de condução sob o efeito de estupefacientes e substituída por outra que determine a sua absolvição;

No que concerne aos demais crimes por ser manifestamente desproporcional e excessiva, deverá ainda ser revogada a condenação em pena de prisão, ainda que suspensa e ser o arguido condenado nem pena de multa, substituída por trabalho a favor da comunidade.»

c. Recebido o recurso a ele respondeu o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância, manifestando a sua completa concordância com a decisão recorrida, apesar de não corresponder totalmente à posição anteriormente sustentada pelo Ministério, mais assinalando que os argumentos do arguido em nada abalam a solidez daquela.

d. Neste Tribunal Superior o Ministério Público pronunciou-se, no essencial, no sentido já sustentado na resposta do magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, acrescentando que a sentença recorrida assenta na livre a apreciação da prova produzida em julgamento, não comprometendo a visão apresentada pelo recorrente neste aspeto, o juízo efetuado.

e. No exercício do contraditório o recorrente manifestou o seu desacordo com o parecer do Ministério Público, por o recurso não se cingir ao julgamento de um aspeto da questão, mas aos aspetos de direitos que alegou.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respetiva motivação – artigos 403.º, § 1.º, e 412.º, § 1.º CPP. E, nessa sequência, as questões suscitadas pelo são as seguintes:

i) Erro de julgamento de direito por se não verificar o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;

ii) ii) Erro de julgamento de direito relativamente à escolha das penas (principais) e da pena única de substituição.

2. No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:

«1. No dia 12 de dezembro de 2016, cerca das 23 horas, na Estrada Nacional n.º …, em aproximação ao km …, na zona da …, concelho de …, PVl conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca …, modelo …, de cor … e de matrícula …, propriedade de seu pai FV, no sentido de marcha … – …, a velocidade não concretamente apurada, mas seguramente a velocidade não inferior a 60 km/hora, transportando como passageiro no banco frontal direito da referida viatura RS, fazendo ambos uso do cinto de segurança.

2. No mesmo dia, hora e via, em aproximação também ao km … da Estrada Nacional n.º …, mas a circular no sentido de marcha … – …, o arguido GJ conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca …, modelo …, de cor … e de matrícula …, propriedade de seu pai AJ, a velocidade não concretamente apurada, transportando como passageiro no banco frontal direito do veículo o seu irmão RJ, fazendo ambos uso do cinto de segurança.

3. O arguido GJ conduzia a aludida viatura automóvel, nas aludidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, encontrando-se sob a influência de estupefacientes, designadamente, de canábis, apresentando uma taxa de 10ng/mL de sangue de 11-Nor-9-carboxi-D9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) e uma taxa de 0,7ng/mL de sangue de D9-tetrahidrocanabinol (THC), conforme resulta do relatório toxicológico de fls. 48 dos autos.

4. A referida Estrada Nacional n.º … era uma estrada com piso betuminoso em regular estado de conservação, com 7,20 metros de largura, duas vias de trânsito, de sentidos opostos, separados por linha longitudinal descontinua (marca M2) de cor branca, sendo os sentidos delimitados por linhas guia também de cor branca, todas bem visíveis, seguidas de bermas em mau estado de conservação, em asfalto, com cerca de dois metros de largura cada, e seguidas de terrenos baldios.

5. À hora acima referida era de noite e a via em causa não possuía qualquer iluminação pública.

6. Não obstante, as condições atmosféricas eram boas, não existindo quaisquer intempéries que diminuíssem ou dificultassem a visibilidade.

7. A velocidade máxima permitida no local era de 90 Km/hora.

8. Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar acima referidas, o arguido GJ, ao finalizar a curva à esquerda que existia na aludida estrada nacional antes do Km 16,100, deparou-se com um veículo automóvel ligeiro de passageiros que circulava à sua frente e no mesmo sentido em que o arguido seguia.

9. Em seguida, o arguido GJ iniciou a manobra de ultrapassagem ao aludido veículo automóvel, tendo, para o efeito, imprimido maior velocidade à viatura que conduzia e direcionado tal viatura para a faixa de trânsito de sentido contrário.

10. O arguido GJ, ao ter iniciado tal manobra de ultrapassagem, não se certificou que a poderia fazer em segurança para os restantes utentes da via e, designadamente, não se certificou que não circulavam veículos automóveis em sentido contrário.

11. Quando o veículo conduzido pelo arguido GJ se encontrava lado a lado com o veículo que o arguido pretendia ultrapassar, o arguido apercebeu-se então da presença do veículo da marca …, modelo …, de cor … e de matrícula …, a circular em sentido oposto, conduzido por PV e onde seguia, como passageiro, RS.

12. Nesse momento, o arguido, percebendo que não iria concluir a manobra de ultrapassagem em segurança, como manobra a fim de evitar a colisão entre os veículos, desviou a sua viatura automóvel para a sua esquerda.

13. Por seu turno, PV, ao aperceber-se que o veículo conduzido pelo arguido não iria conseguir efetuar a ultrapassagem em segurança, como manobra a fim de evitar a colisão entre os veículos, acionou os mecanismos de travagem do veículo que conduzia, ao mesmo tempo que desviou o veículo ligeiramente para a sua direita, percorrendo uma distância de cerca de 21 metros em travagem.

14. Contudo, nenhuma das manobras atrás referidas foi suficiente para evitar a colisão entre o veículo de matrícula … e o veículo de matrícula ….

15. Assim, nas aludidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, ao atingir-se o Km … da Estrada Nacional n.º …, o veículo de matrícula …, conduzido pelo arguido GJ, foi embater no veículo conduzido por PV, de matrícula …, tendo tal colisão ocorrido em cima da linha guia separadora da via de trânsito direita e da berma, atento o sentido de marcha … – ….

16. Esse embate, que se deu por culpa exclusiva do arguido GJ, traduziu-se na colisão da parte frontal direita do veículo de matrícula … na zona frontal direita do veículo de matrícula ….

17. À data dos factos o arguido GJ era titular de carta de condução havia cerca de oito meses e apenas conduzia o veículo propriedade do seu pai aos fins de semana.

18. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido e do embate acima descrito, o ofendido RS sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 27 a 31 (que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais) e, designadamente, sofreu fraturas nos 6.º e 7.º arcos costais anteriores, 7.º, 8.º, 9.º e 10.º arcos costais médios, com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes, laceração traumática do hemidiafragma esquerdo, com 15mm de comprimento com infiltração hemorrágica vizinha, laceração traumática da face anterior do fígado e laceração traumática do baço, junto ao hilo

19. Lesões estas que determinaram a morte de RS, ainda no local onde os factos ocorreram.

20. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido e do embate acima descrito, o ofendido PV sofreu politraumatismos, designadamente fratura na face com perda de seis dentes, fratura da cabeça do fémur direito e luxação posterior da anca direita, lesões estas que foram causa direta e necessária de 596 dias de doença para o ofendido PV, sendo 180 dias com incapacidade para o trabalho em geral e 596 dias de incapacidade para o trabalho profissional.

21. O arguido GJ tinha capacidade para realizar uma condução em condições de segurança e estava obrigado a realizá-la para que não colocasse em risco os demais veículos e utentes da via.

22. Ao iniciar e realizar a manobra de ultrapassagem acima descrita, o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz na realização da condução do veículo automóvel e, designadamente, não se certificou, previamente, que podia efetuar tal manobra em segurança e sem criar perigo para os restantes utilizadores da via e, sobretudo, para os veículos e pessoas que circulavam em sentido contrário ao seu, sendo certo que o arguido podia e devia ter tomado tais medidas preventivas.

23. Podia e devia, igualmente, o arguido prever que, em consequência da sua condução inconsiderada, ocorresse o resultado efetivamente verificado.

24. A colisão acima descrita e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de o arguido, na ocasião, conduzir de forma desatenta e com falta de cuidado, cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, em desrespeito pelas regras elementares de circulação rodoviária, nomeadamente invadindo a faixa de rodagem contrária sem atentar na presença de condutores naquela, além de se encontrar com os reflexos diminuídos por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de estupefacientes, designadamente canabis.

25. Sabia, ainda, o arguido que a condução de veículos na via pública, encontrando-se influenciado por 26. estupefacientes, se traduzia num aumento de perigo para si e para os demais utentes da via, e, não obstante isso, decidiu conduzir nessas circunstâncias, o que logrou.

27. O arguido GJ atuou de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram punidas pela lei penal e o arguido tinha capacidade para se determinar segundo esse conhecimento.

Mais se apurou que:

28. No dia 12 de dezembro de 2016, o arguido tinha estado a celebrar num jantar, em família, o aniversário da sua avó, e foi incumbido pelo pai de a levar a casa.

29. Pelo que, no dia, hora e local referidos, acompanhado do seu irmão, vinha de deixar a avó em casa desta, e dirigia-se à sua própria residência.

30. Ao longo da sua ainda jovem vida, o arguido tem demonstrado ser um jovem solidário e com intensa consciência social.

31. Tem colaborado como voluntário nas campanhas de recolha de alimentos do Banco Alimentar uma a duas vezes por ano.

32. Já por várias vezes fez voluntariado no centro de dia …, em ….

33. E trabalhou em já várias feìrias de verão num restaurante.

34. Apesar de na data do acidente ter a carta de condução há ainda pouco tempo, era considerado pelos seus familiares, amigos e instrutora de condução como um condutor cuidadoso e diligente.

35. É considerado pelos seus familiares e amigos como um rapaz responsável, bem formado e eì estimado e querido por todos quantos o conhecem.

36. Meses antes dos factos aqui em discussão o arguido havia tido um acidente em que se despistou contra um muro e do qual resultaram queimaduras provocadas pelo cinto de segurança para uma passageira que consigo transportava e danos materiais no veículo que conduzia.

37. O arguido terminou o estágio na empresa … encontrando-se à procura de emprego.

38. O arguido habita em casa arrendada pela qual paga € 350 mensais.

39. O arguido tem a ajuda financeira dos pais, sendo que o pai se encontra empregado e mãe desempregada.

40. O arguido não tem filhos

41. O arguido tem como habilitações literárias a Licenciatura em ….

42. O arguido não tem antecedentes criminais.»

3. E a motivação para essa decisão apresenta-se nos seguintes termos:

«A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma. Nos termos do disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.

Refere o Professor Figueiredo Dias (in “Lições Coligidas de Direito Processual Penal”, edição de 1988/1989, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.141) que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo».

Assim, a motivação do tribunal no que respeita à matéria fáctica considerada provada e não provada assentou na análise conjugada dos elementos de prova produzidos nos autos e em sede de audiência de julgamento conjugada e criticamente analisada segundo as regras da experiência comum e juízos de normalidade.

Concretizando:

O arguido explicou que no dia dos factos tinha estado com a família num jantar de comemoração do aniversário da avó, que teve lugar em …. Nessa sequência foi levar a avó a sua casa de … e regressou para casa dos seus pais, sita em …, conduzindo o veículo identificado na acusação e acompanhado pelo seu irmão, que seguia no lugar do pendura. Numa reta sem iluminação da Estrada Nacional seguia a cerca de 80 /90 Km, antes da meia noite, quando decidiu efetuar a ultrapassagem a um grande carro amarelo que seguia à sua frente. Quando já está a efetuar a ultrapassagem vê duas luzes pequenas a vir na sua direção e tem a perceção de que estas ainda estão afastadas mas rapidamente se aproximam e dá-se o embate. O arguido não consegue explicar se efetuou um mau cálculo de tempo para efetuar a ultrapassagem, se o outro veículo seguia a uma velocidade excessiva e se conduzia apenas com os faróis mínimos ligados ou se o carro que estava a ser ultrapassado não abrandou a velocidade ou até acelerou. Afirma que não sofreu danos físicos mas o seu irmão sofreu. Declarou que havia consumido cannabis dois dias antes do acidente efetuando consumos esporádicos deste tipo de estupefaciente. Disse ainda que à data do acidente tinha a carta há menos de 1 ano e que conduzia esporadicamente. Antes desde acidente teve em outro em que numa descida embateu contra um muro, sendo que, no veículo seguiam duas amigas, tendo uma delas ficado com uma queimadura do cinto de segurança e o carro ido para a sucata pois já era antigo e o arranjo era de montante elevado. Acrescentou que, após os factos, não contactou com os pais da vítima mortal do acidente porque os seus pais lhe pediram para não o fazer, tendo os seus avós contactado com estes, até porque já os conheciam antes do ocorrido. Relatou que após o acidente esteve 4 meses fechado em casa perturbado pelo sucedido, sendo que, o seu irmão até hoje não fala sobre o acidente, e que chegou a ser ameaçado de morte por pessoas que pensa serem amigas da vítima.

AS, assistente, disse que o filho RS, vítima mortal do acidente, tinha há data dos factos 27 anos de idade, não tinha carta de condução nem conduzia. Afirma que nunca o arguido ou alguém da sua família contactou consigo.

LM, Sargento da GNR, a exercer funções no NICAVE de … à data dos factos, que elaborou o relatório final de fls. 212 a 223, confirmou no essencial o seu teor tendo explicado de modo sereno e circunstanciado o modo como formulou as suas conclusões.

NT, militar da GNR, que acorreu ao local dos factos pouco depois da ocorrência dos mesmos, depôs quando ao estado e iluminação da via pública, e confirmou o teor do auto de notícia de fls. 4 e 5 dos autos, o que fez de modo claro.

PV, condutor à data dos factos do veículo marca …, modelo …, de cor … e de matrícula … disse que seguia acompanhado por RS quando vê o veículo do arguido a fazer uma ultrapassagem (de quatro veículos) a uma velocidade entre 80 a 100 Km/hora. Afirma que seguia a cerca de 40 ou 60 Km/hora e que levava os médios acessos pois era de noite e no local não existe iluminação. Diz que viu o arguido a entrar em despiste, pareceu-lhe que este não tinha mão no carro, talvez por falta de experiência, a testemunha ainda travou e guinou o veículo mas não conseguiu evitar o embate. Confessa ser consumidor de heroína e cocaína mas que nesse dia não tinha consumido qualquer substância. Prestou depoimento pouco claro, frágil, o qual apenas se mostrou consistente na parte em que depôs quanto às lesões que para si decorreram da colisão.

RJ, irmão do arguido, no uso da prerrogativa que a lei lhe confere remeteu-se ao silêncio.

Positivamente considerados foram ainda: o auto de notícia de fls. 4 e 5; participação de acidente de fls. 6 a 9 e 93 a 96; guia de entrega de cadáver de fls. 10 e 12; ficha CODU de fls. 11 e 13; relatório de autópsia médico-legal de fls. 27 a 31; aditamento de fls. 45 e 46; relatório químico-toxicológico de fls. 48 a 51; relatório químico-toxicológico de fls. 53 e 54; auto de exame e avaliação de veículos de fls. 89 a 91; documentos de fls. 103 a 105; auto de apreensão de documentos de fls. 106; documentos de fls. 128 a 141; croquis de fls. 143 e 210; relatório fotográfico de fls. 145 a 166; relatório final de fls. 212 a 223; relatório de exame médico-legal de fls. 242 a 245; documentos clínicos de fls. 265 a 292, 294 a 309 e 351 a 358; parecer de fls. 310 a 312; parecer de fls. 313 e 314; relatório de exame médico-legal de fls. 331 a 333; relatório de exame médico-legal de fls. 343 a 346; relatório de exame médico-legal de fls. 363 a 366; e, relatório de exame médico-legal de fls. 375 a 378.

Atenta a prova produzida, por inferência e atendendo às regras da experiência comum, num processo lógico e racional, o Tribunal ficou convencido de que o arguido agiu consciente da reprovabilidade da sua conduta, que representou e quis praticar.

Relevaram ainda as declarações prestadas pelo arguido no que diz respeito às suas condições pessoais e socioeconómicas, bem como, os depoimentos prestados pelas testemunhas abonatórias DS, chefe dos escuteiros, que conhece o arguido desde os seus 14 anos, MJ, avó do arguido, VF, amigo do pai do arguido há 40 anos, que conhece o arguido desde que nasceu, JR, que conhece o arguido desde os seu 17 anos e MA, instrutora de condução, que conhece o arguido desde os seus 18 anos, os quais se reputaram de suficiente credibilidade.

No que respeita à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao certificado de registo criminal junto aos autos com a ref.ª ele. nº 92245446.»

4. Apreciando.

4.1 (In)verificação o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas

Refere o recorrente, no essencial, que a conclusão do tribunal recorrido, no sentido de que nas circunstâncias de tempo e lugar do acidente de viação em referência, ele conduzia sob influência de estupefacientes, se firma no exame toxicológico realizado a amostra de sangue, ali registando uma concentração de canábis de 0,7 ng/mL.

Entende que o nível ou intensidade das alterações provocadas ao indivíduo em concreto pelo THC ou qualquer outra substância não são possíveis de avaliar sem um exame clínico no momento da colheita, uma vez que existem variáveis que determinam que, para as mesmas concentrações sanguíneas as alterações cognitivas e psicomotoras que afetam a capacidade para conduzir possam ser diferentes entre indivíduos.

A mais disso o valor de concentração de canábis apurado no exame é inferior ao legalmente fixado.

E, finalmente, alega que o tipo legal do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas exige, além da deteção de substância estupefaciente, que seja verificado, em concreto, que nas circunstâncias concretas da condução de veículo o agente não estava em condições para conduzir em segurança.

O Ministério Público secunda integralmente a posição assumida neste temário pelo tribunal a quo.

Diz-se na sentença:

«(…) Encontramo-nos, pois, perante um crime de perigo abstrato (caracterizado pelo facto de subjacente à conduta do agente estar uma determinada perigosidade que justifica por si só a sua punibilidade jurídico-penal) e de mera atividade (já que, para o preenchimento do respetivo tipo, não se mostra necessário que, em concreto, se tenha consumado o ataque ao bem jurídico protegido).

Não obstante, tem sido entendimento de alguma jurisprudência que, embora a presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, permita desde logo concluir que este se encontra sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas para se verificar o tipo em causa é ainda necessário que, devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução – neste sentido veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.04.2011 e o Acórdão da Relação do Porto de 07.09.2011, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Segundo tal entendimento, a presença de substâncias estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo apenas permitem concluir que o condutor se encontram sobre a influência, sendo contudo, necessário aferir se tal influência é perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica do condutor e se não lhe permite realizar a condução em segurança, para o que, seria imprescindível, à falta de outros elementos probatórios, a realização do exame médico a que alude o modelo do anexo VII da Portaria 902-B/2007 de 13 de Abril.

Divergimos desta posição.

Desde logo, consideramos que a referência a “não estando em condições de o fazer em segurança” não configura um elemento essencial para a descrição factual do tipo de crime, mas sim, uma decorrência da conduta do arguido passível isso sim de prova em contrário. Acresce que, a prova da falta de condições para exercer a atividade de condução em segurança, bem pode resultar das regras da lógica e senso comum, conjugadas com as regras da experiência e aqueles que são os conhecimentos (comuns) dos efeitos do produto estupefaciente nas funções sensoriais do corpo humano.

Quanto ao exame a que alude o modelo do anexo VII da Portaria 902-B/2007 de 13 de Abril, sempre se dirá que: resulta do disposto no artigo 12º, nº 5 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (aprovado pela Lei nº 18/2007 de 17 de maio) que “só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação”.

A Portaria nº 902-B/2007 no Capitulo II regulamenta a avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas, sendo que resulta do artigo 23º deste diploma que, o exame de confirmação considera-se positivo sempre que revele a presença de qualquer substância psicotrópica prevista no quadro 1 do anexo V, ou qualquer outra com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança.

Os canabinoides, são substâncias compreendidas no referido quadro 1 do anexo V.

Determina o artigo 13º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas que:

“1 - Quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste, deve este ser submetido a exame médico para avaliação do estado de influenciação por substâncias psicotrópicas.”

Prevê por sua vez o 25º da Portaria nº 902-B/2007 que, “no exame médico destinado a avaliar o estado de influenciado por substâncias psicotrópicas referido no n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas deve ser observado o seguinte:

(…)

O exame médico a realizar nos termos do anexo VII à Portaria nº 902-B/2007 apresenta-se pois como alternativa ao exame sanguíneo, que por impossibilidade prática não foi possível realizar, admitindo-se assim uma equiparação ao exame sanguíneo de confirmação, atento a maior segurança e credibilidade que um teste sanguíneo permite.

Isso mesmo resulta do nº 3 do artigo 13º da Lei nº 18/2007 que, referindo-se ao exame previsto no nº 1 do mesmo preceito e por conseguinte no artigo 26º da Portaria nº 902-B/2007 determina que “a presença de sintomas de influência por qualquer das substâncias previstas no n.º 1 do artigo 8.º, ou qualquer outra substância psicotrópica que possa influenciar negativamente a capacidade para a condução, atestada pelo médico que realiza o exame, é equiparada para todos os efeitos legais à obtenção de resultado positivo no exame de sangue”.

Em suma, e em face da factualidade provada, não se pode negar que a presença de canábis na quantidade dada como provada - 0,7 ng/mL de sangue de D9-tetrahidrocanabinol (THC) - porque perturbadora das perceções sensoriais exerce inevitavelmente uma influência nefasta no ato de condução não permitindo ao condutor a atenção e tempo de reação de um condutor num estado considerado “normal”.

Acresce que, amostra de sangue analisada foi recolhida às 1.50 h do dia 13.12.2016 ou seja, quase três horas após o embate o que permite concluir, atentas as regras da experiência comum que, as concentrações de psicotrópicos eram mais elevadas e, por conseguinte, mais suscetíveis de diminuir as aptidões naturais do arguido na hora em que se deu o embate.

Quanto ao elemento subjetivo, o preenchimento do tipo legal tanto poderá ter lugar a título doloso como negligente.

Há crime doloso quando o agente, tendo consciência do estado em que se encontra, mesmo assim persiste em conduzir o veículo.

Há crime negligente sempre que o agente destarte ter consumido estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica, parte do princípio de que está ainda assim em condições de conduzir em segurança.

No caso “sub judice”, ficou provado, que o arguido, tinha consumido substâncias estupefacientes.

Visto que o arguido conduziu voluntariamente o veículo em via pública, bem sabendo que o fazia sob a influência de substâncias estupefacientes, agiu com dolo – artigo 14º, do Código Penal.

A conduta do arguido é ilícita, porquanto, para além de violar as sobreditas disposições legais, ofendeu o interesse penalmente tutelado da segurança rodoviária. Não se verifica qualquer causa de exclusão da culpa.

O arguido agiu livre e deliberadamente, quando podia e devia agir de outro modo e tinha plena consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

Pois bem. Comecemos por caracterizar o ilícito. O crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º, § 2.º CP, constitui dogmaticamente um crime de perigo abstrato-concreto (2), contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que coloquem em perigo os bens jurídicos protegidos, que são: a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de elevado valor.

Os seus elementos constitutivos são, do lado objetivo: a condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada; sob influência de substâncias estupefacientes, que impeçam o exercício da condução em segurança; e da banda subjetiva são o dolo (em qualquer das suas modalidades) ou a negligência.

Temos por indubitável que as substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou análogas atuam sobre o cérebro e podem afetar a perceção, a cognição, a atenção, o equilíbrio, a coordenação e outras faculdades necessárias a uma condução segura. É nesta linha e justamente a propósito da influência do consumo de drogas na segurança da condução rodoviária, que nos diz o SICAD (3), que os canabinóides (cujo princípio ativo é o THC - tetrahidrocanabinol) afetam as áreas do cérebro que controlam os movimentos do corpo, o equilíbrio, a coordenação, a memória e o discernimento, assim como as emoções sensações e os sentimentos. A lei preceitua com inteira clareza que a verificação da influência de estupefacientes, em termos de comprometer o exercício da condução, se faz de modo diverso da que está legalmente estabelecida para a condução sob influência do álcool (artigo 292.º, § 1.º CP). Neste caso a lei fixa uma dada taxa de álcool no sangue (TAS), que é de 1,2 g/l, com base na qual infere, objetivamente, a influência dessa substância no comprometimento das capacidades motoras e intelectuais exigidas para uma condução segura.

Mas não o faz do mesmo modo relativamente às substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou produtos de efeito análogo. Não apenas no Código Penal, mas também no Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio). Veja-se o modo diferenciado de proceder relativamente à pesquisa da TAS (artigos 1.º a 7.º) e das substâncias estupefacientes ou psicotrópicas (artigos 8.º a 13.º).

E não o faz por boas razões: trata-se de substâncias com características muito diversas.

A ciência demonstra que a taxa de álcool do sangue, após algumas horas contadas da sua ingestão, decresce e logo se desvanece. O que significa que o resultado do exame técnico apura a TAS e com ela se demonstra a medida de influenciado pelo álcool, que se for igual ou superior a 1,20 g/l, não se mostra necessário demonstrar qualquer outro requisito objetivo para se considerar consumado o ilícito.

Já relativamente à deteção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas no sangue de uma pessoa, a lei não fixa nenhum valor a partir do qual considera ser crime. Antes exige, adicionalmente à deteção de uma das substâncias previstas, que essa circunstância impeça o exercício da condução em segurança.

E mais uma vez por boas razões. É que contrariamente ao que sucede com o álcool, com as substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, os seus efeitos após o consumo durando apenas algumas horas, a sua presença no organismo mantém-se por vários dias, sendo detetável no sangue durante largo período de tempo (no concernente à canábis - cujo princípio ativo é o THC, tetrahidrocanabinol - pode mesmo exceder 20 dias.

Diz justamente a este propósito o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, que «a quantidade de THC no sangue ou na saliva não está tão fortemente relacionada com a diminuição da capacidade de condução quanto a TAS está associada à diminuição da capacidade de condução devido ao efeito do álcool.» (4)

Conforme dispõe o § 5.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/207, de 17 de maio), «só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação» (exame ao sangue).

Mas o exame médico, previsto no artigo 13.º da Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, referido pelo recorrente, só é imperativo se após repetidas tentativas de colheita de sangue, não se lograr retirar ao examinando uma amostra em quantidade suficiente para a realização do teste, conforme resulta desse mesmo preceito.

Estabelece depois a Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de agosto, a regulamentação do tipo de material a utilizar na determinação quer da TAS, quer da presença de substâncias psicotrópicas no sangue. E ali se refere, a propósito destes estupefacientes, que se «considera que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas (…) capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor em segurança» (artigo 23.º)

Mas, como é bom de ver, esta norma regulamentar deve de ser interpretada restritivamente, não apenas pelas razões já aduzidas, relativamente aos efeitos das substâncias cuja duração é de apenas algumas horas, mas estas serem detetáveis em exames ao sangue durante vários dias; mas sobretudo porque, ao contrário do preceituado no § 1.º do artigo 292.º CP (relativamente à condução sob influência do álcool), no § 2.º, onde se descreve o ilícito de condução sob influência de substância estupefaciente, contém-se um elemento adicional: «não estando [o condutor] em condições de o fazer em segurança.»

Donde, contrariamente ao que sucede com a Taxa de Álcool no Sangue, o exame toxicológico relativo às substâncias estupefacientes não pode servir para mais do que aquilo a que a lei expressamente o destina: indicar a presença dessas substâncias no sangue do examinado (rectior a presença de vestígios dessas substâncias no sangue). Mas só ao juiz caberá, adicionalmente, aferir se o condutor não estava em condições de fazer uma condução segura (5).

E é nesta mesma linha que se inscreve a nota constante da al. e) do Parecer técnico integrado no relatório de exame toxicológico (a fls. 310/312 dos autos - em papel), a qual tem o seguinte teor:

«O nível ou intensidade das alterações provocadas ao individuo em concreto pelo THC ou qualquer outra substância não são possíveis de avaliar sem um exame clínico no momento da colheita, uma vez que existem variáveis que determinam que para as mesmas concentrações sanguíneas as alterações cognitivas e psicomotoras que afetam a capacidade para conduzir possam ser diferentes entre indivíduos. Por esta razão, no âmbito da Segurança Rodoviária, tratando-se de substância com efeitos sobre a capacidade para conduzir, os valores limite descritos na literatura e adotados em diversos países, baseiam-se em estudos científicos que confirmam um aumento do risco de acidente e/ou impairment associado aos condutores que revelam a presença de compostos ativos no sangue.»

Para tanto avaliar, o juiz deverá servir-se e ponderar os sinais percecionados ou colhidos no local e momento próprios (se o condutor cambaleava, se tinha as pupilas dilatadas, a respiração afogueada, se dava sinais de algum tipo de descontrolo, se vinha fazendo uma condução bizarra, grosseiramente imprudente, etc.). E só quando conclui positivamente poderá julgar o mesmo provado, sendo que tal facto já deverá constar da acusação, atenta a estrutura acusatória do processo penal, que postula que é a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) que define e delimita o objeto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objeto, não podendo o Tribunal promovê-lo para além dos limites daquela, nem condenar para além desses limites.

Em suma: contrariamente ao que se considerou na sentença recorrida conduzir um veículo na via pública com vestígios (mais ou menos elevados) de substâncias estupefacientes no sangue, apurados nos termos regulamentares, não é suficiente para o preenchimento do elemento objetivo do tipo de ilícito, pois torna-se necessário que aquela circunstância seja impeditiva do exercício da condução em segurança. Sendo este segmento fáctico integrador do referido elemento objetivo constitutivo do tipo de ilícito.

Tendo ficado apenas provado que o arguido conduzia sob influência de substâncias estupefacientes, rectior, tendo ficado provado que o arguido no momento da condução do veículo … de matrícula …, na noite de 12/12/2016, registava uma concentração de tetrahidrocanabinol no sangue de 0,7ng/mL (6), não se verifica a prática do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º, § 1.º do Código Penal.

Para tanto seria necessário ter-se alegado, e depois provado em julgamento (com base nos referidos sinais), que essa circunstância era impeditiva de o condutor realizar uma condução segura.

E, como assim, restará concluir pela absolvição do arguido/recorrente relativamente à prática deste ilícito.

4.2 Escolha das penas e da pena única de substituição

Considera o recorrente que a pena única de prisão é excessiva e desnecessária, ainda que suspensa na sua execução, devendo ser substituída por multa e, uma vez que o arguido não tem rendimentos, substituída por trabalho a favor da comunidade. E, assim, porquanto, o arguido eì muito jovem, está inserido social e familiarmente, e demonstrou ter interiorizado a gravidade das consequências da sua conduta, tendo sofrido e sofrerá para sempre o peso de ter determinado a perda de uma vida.

Por sua vez o Ministério Público, que havia assumido anteriormente posição conforme à que o recorrente ora sustenta, entende que em face dos fundamentos da sentença, que considera mais ajustados, conclui que a pena única aplicada não deverá ser alterada. A sentença recorrida, neste conspecto, diz o seguinte: «(…) uma vez que as finalidades da punição são exclusivamente preventivas, só deverá recusar o Tribunal a aplicação da pena alternativa quando tal opção seja de modo a comprometer a preservação da paz jurídica comunitária, ou quando se revele desde logo inconveniente para a viabilidade e sucesso de um projeto, necessário, de ressocialização (7).

Tal critério expressa uma das ideias fundamentais subjacentes ao sistema punitivo do Código Penal: uma reação contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reações penais (8).

A escolha da pena depende, pois, unicamente de considerações de prevenção geral e, sobretudo, de prevenção especial. A culpa relevará posteriormente para efeitos da medida da pena. (9)

Com efeito, em termos de exigências de prevenção geral, há que atentar estar-se perante tipos de crime que tem bastante incidência no território nacional, pelo que há que revalidar, perante a sociedade, a urgência e a premência de se adotarem posturas de comportamento estradal mais prudentes e com respeito pelas regras estabelecidas. Os crimes estradais provocam sentimentos de insegurança na circulação rodoviária, aliados às consequências, muitas vezes gravosas, para condutores e respetivos passageiros. Desta forma, reforça-se também o sentimento de segurança da própria comunidade em como as ofensas aos bens jurídicos vida e integridade física serão devidamente sancionadas. Urge, pois, quando se esteja ante a iminência de proferir uma condenação em sede de ações como as deste tipo, equacionar as repercussões da mesma na comunidade em que o arguido se insere, procurando, deste modo, sublinhar a importância de se combater comportamentos estradais de desrespeito pelas regras existentes e sentimentos de impunidade quando os mesmos sejam praticados.

Por outro lado, dever-se-á ponderar, quanto o arguido, quais as exigências de prevenção especial que se verificam.

A este propósito, cumpre sublinhar que o arguido está inserido familiar e social, ainda que não profissionalmente inserido, sendo além disso, primário, tendo demonstrado em tribunal uma postura que evidencia uma consciencialização relativamente aos atos praticados.

Todavia, as circunstâncias concretas do acidente, apontam para que os crimes tenham sido cometidos com um elevado grau de ilicitude.

Com efeito, o arguido conduziu um veículo automóvel com desrespeito pelas regras de direito estradal aplicáveis ao lugar onde circulava, quando podia e deveria ter adotado uma condução de cariz mais defensivo, por forma a obviar a produção de factos como os descritos em sede de acusação.

Assim, atento o exposto, entende este tribunal que, nos termos do artigo 70º do Código Penal, se deverá optar pela aplicação de penas privativas da liberdade.»

Importará anotar que com a menção no artigo 40.º, § 1.º CP à proteção de bens jurídicos, tem o legislador em vista a prevenção geral, essencialmente na sua vertente positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida (10). A prevenção geral fixa o limite mínimo exigido para tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma que foi violada (sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime).

Por outro lado, no desiderato legal da reintegração do agente na sociedade visou o legislador vincar a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar, segundo refere Jorge de Figueiredo Dias (11), a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, e da intimidação a nível individual. Para Fernanda Palma «a proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa –, incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. A reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela proteção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.» (12) Entendemos que nenhuma circunstância relativa às condições pessoais do arguido, por melhores que sejam, apaga a gravidade dos ilícitos praticados, a qual traz impregnadas elevadas exigências de prevenção geral, que condicionam a substituição da pena prevista na lei a título principal (pena de prisão) por pena pecuniária (artigo 45.º CP) ou por pena de trabalho a favor da comunidade (artigo 58.º CP). Sendo que a substituição da pena de prisão por qualquer destas depende sempre de pressupostos de natureza preventiva, incluindo a prevenção geral. Os critérios utilizados e as circunstâncias objeto de ponderação pela Mm.a Juíza do Tribunal a quo para justificar a não mobilização de qualquer outra pena de substituição, mostram-se irrepreensíveis. Por nada haver a censurar-lhes e, deveras, nem a acrescentar-lhes, soçobrará o recurso nesta parte.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, na parcial procedência do recurso, decidimos:

a)Revogar a condenação e absolver o arguido/recorrente GB da prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º, § 2.º do Código Penal.

b) Manter, no demais, a douta sentença recorrida.

c) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario)

Évora, 22 de fevereiro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Crime de perigo porque a realização do tipo não depende de efetiva lesão, bastando-se com a mera colocação em perigo do bem jurídico protegido. De perigo abstrato-concreto, porque «o perigo abstrato não é só critério interpretativo e de aplicação, mas deve também ser momento referencial da culpa.» Assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2019, GestLegal, pp. 361.

3 https://www.sicad.pt/PT/Cidadao/Tu-alinhas/ComportamentosAditivos/ReducaoDeRiscos/Paginas/detalhe.aspx?itemId=1&lista=ReducaoDeRiscos&bkUrl=/BK/Cidadao/Tu-alinhas/ComportamentosAditivos

4 «Canábis e condução, perguntas e respostas para a elaboração de políticas», Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, maio de 2018, pp. 10.

5 Neste sentido já se tem pronunciado a jurisprudência, p. ex.: acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 24mai2016, proc. 20/12.2PTBJA.E1, Des. Sérgio Corvacho; do mesmo Tribunal da Relação, acórdão de 11out2020, Des. Renato Barroso; do Tribunal da Relação do Porto, de 20fev2019, proc. 540/17.2GBILH.P1, Des. António Luís Carvalhão.

6 O dado «11-Nor-9carboxi-D9-tetrahidrocanabinol THC-COOH», também constante do exame toxicológico e referido nos factos provados, refere-se ao metabolito Ä9-THC-COOH, que sendo um marcador para deteção de canábis, apenas pode ser utilizado como indicador de consumo dessa substância, nada predizendo quanto ao estado de «influenciado». Não servindo igualmente para a caracterização temporal em relação ao momento do consumo. Cfr. Estudo de Francisco Corte-Real e Helena Teixeira, disponível: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/7505?mode=full

7 Anabela Rodrigues, em anotação ao Ac. do STJ de 21/05/90, in RPCC, 2, 1991, pg.243.

8 Robalo Cordeiro, “Escolha e Medida da Pena”, in Jornadas de Direito Criminal, p. 238

9 Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pág. 331 ss.

10 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, 2009, Coimbra Editora, 2.ª Reimp., pp. 72 e 73.

11 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pp. 243/244.

12 Maria Fernanda Palma, Direito Penal – Conceito Material de Crime, Princípios e Fundamentos, 2019 AAFDL, pp. 59.