Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1097/16.7T8FAR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
POSSE DE ESTADO
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não existe identidade de sujeitos, na perspetiva da exceção de caso julgado, entre a posição de autor, do M.P., numa ação oficiosa de investigação de paternidade, intentada ao abrigo do artigo 1865.º, n.º 5, do CCiv e a intentada pelo filho numa ação facultativa de investigação da paternidade.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1097/16.7T8FAR.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…), solteira, maior, residente no Bairro Camarário da (…), Edifício (…), lt 9, bloco 2, r/c dtº, Vila Real de Santo António, instaurou contra (…), viúvo, residente no sítio da (…), Manta Rota, Vila Nova de Cancela, ação de investigação da paternidade.

Alegou, em resumo, que (…), sua mãe, manteve uma relação de namoro com (…), entre o início de Agosto de 1983 até finais de Janeiro de 1984, período durante o qual a sua mãe engravidou, gravidez que terminou com o seu nascimento em 10/9/1984.

Apenas a sua maternidade se mostra estabelecida, mas o seu pai é o referido (…), com quem manteve contatos nos primeiros anos de vida, contatos que vieram a ser restabelecidos após a A. perfazer 18 anos, altura em que este passou a considerar e a tratar a A. como sua filha.

O (…) faleceu em 3/1/2016, sem descendentes, tendo-lhe sobrevivido o seu pai, ora R.

Concluiu pedindo que se declare e reconheça que o falecido (…) é o seu pai biológico.

Contestou o R. argumentando, em síntese, que já correu termos uma ação de investigação da paternidade da A., intentada pelo Ministério Público contra o referido (…) a qual, depois de produzidas as provas, foi julgada improcedente e que a A. nunca foi tratada pelo falecido como sua filha, nem pela sua família, designadamente o ora R., que em nenhum momento contatou com a A..
Concluiu pela improcedência da ação.
Respondeu a A. defendendo que inexiste identidade de sujeitos e de causa de pedir entre a presente ação e a ação de investigação de paternidade instaurada pelo Ministério Público, assim, concluindo pela improcedência da exceção do caso julgado suscitada pelo R..

2. Findos os articulados foi proferido decisão que absolveu o R. da instância por procedência da exceção dilatória do caso julgado.

3. O recurso.
A A. recorre desta decisão exarando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“1ª- Ressalvada novamente melhor opinião, na presente ação de investigação de paternidade não se verificam os pressupostos da exceção dilatória do caso julgado relativamente à mencionada ação de investigação nº 103/85;
2ª- Desde logo, por serem diferentes as identidades tanto dos demandantes como as dos demandados em ambas as ações;

3ª- Com efeito, a referida ação nº 103/85 foi interposta pelo Ministério Público no exercício da competência própria de averiguação oficiosa da paternidade ao abrigo do disposto nos artºs 1864º e 1865º, nº 5, do CC, enquanto que a presente ação foi intentada pela Autora em conformidade com o artº 1869º do CC;

4ª- Assim como muito diferentes são os interesses pessoais (jurídicos, morais, familiares e patrimoniais) de cada um dos demandados em ambos os litígios;

5ª- Por outro lado, na citada ação nº 103/85 a causa de pedir invocada limitou-se à filiação biológica resultante da procriação e na presente ação, além deste fundamento, foram também alegados factos integradores das presunções de tratamento como filha por parte do pretenso Pai (posse de estado) e de concubinato consagradas nas alíneas a) e c) do artº 1871º do CC – não se verificando a identidade da causa de pedir destas ações;

6ª- Do mesmo modo, existem diferenças relevantes nos outros pressupostos do caso julgado, uma vez que na presente ação foi formulado o pedido de exumação do cadáver do pretenso pai, e consequente análise científico-laboratorial do respetivo ADN;

7ª- E isto porque – como vem sendo reconhecido superiormente pela nossa Jurisprudência – os direitos de identidade pessoal e de investigação da paternidade são imprescritíveis e devem prevalecer sobre todos os direitos do pretenso progenitor, mesmo após o falecimento deste; em consequência,

8ª- Ao declarar a procedência da exceção dilatória do caso julgado, com a consequente absolvição do Réu da instância, a Meritíssima “A Quo” – ressalvados os devidos respeitos – fez interpretação menos correta do disposto nos artºs 577º, al. i), 581º e 278º, nº 1, al. e), todos do CPC;

9ª- Nestes termos e nos mais que doutamente serão supridos, deverá conceder-se provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida, como é de sã Justiça.

Não houve lugar a resposta.
Admitidos os recursos e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir se a presente ação constitui repetição da ação de investigação de paternidade instaurada pelo Ministério Público contra (…).

III. Fundamentação.
1. Factos.
Embora não os haja discriminado, a decisão recorrida fundamentou-se nos seguintes factos que se mostram provados por documento:
a) A A. nasceu em 10/9/1984 e encontra-se registada como filha de (…).
b) Com o nº 103/85, correu termos no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, uma ação de investigação de paternidade intentada pelo Ministério Público contra (…).
c) A referida ação, que veio a ser julgada improcedente, tinha como pedido a declaração que a menor (…) é filha de (…), com fundamento na manutenção de relações sexuais da mãe da A. em exclusividade com o R. nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da A., no âmbito duma relação de namoro que estabeleceram entre o início de Dezembro de 1983 e até Fevereiro de 1984.

2. Direito.
2.1. Se ocorre a exceção do caso julgado.
Por haver julgado verificada a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, entre a presente ação e ação de investigação de paternidade nº 103/85 que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, a decisão recorrida concluiu pela procedência da exceção do caso julgado e absolveu o R. do pedido.
A A. diverge deste juízo, na consideração que esta tripla identidade não se verifica em nenhuma das suas dimensões; os sujeitos não são os mesmos em ambas as ações, a causa de pedir é diferente porque na presente ação são alegados factos constitutivos da posse de estado enquanto na ação nº 103/85 apenas foram alegados factos atributivos da paternidade biológica e o pedido também não é coincidente porque na presente ação, para além o pedido de declaração da paternidade da A., presente na ação nº 103/85, foi formulado o pedido de exumação do cadáver do pretenso pai, e consequente análise científico-laboratorial do respetivo ADN.
A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa (artº 580º, nº 1, do CPC) e a causa repete-se quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artº 581º, nº 1, do CPC); a identidade de sujeitos ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (ibidem nº 2), a identidade de pedido evidencia-se quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (ibidem nº 3) e a identidade da causa de pedir surge quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (ibidem nº 4).
As partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica quando “são portadoras do mesmo interesse substancial. O que conta, pois, para o efeito da identidade jurídica é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial, e não a sua posição quanto à relação jurídica processual.”[1] “E sê-lo-ão, fundamentalmente, quando os litigantes no novo processo forem as próprias pessoas que pleitearam no outro, ou sucessores delas (entre vivos ou mortis causa), na relação controvertida: herdeiros, legatários, donatários, compradores, cessionários. As partes no novo processo serão pois idênticas às do anterior quando sejam pessoas que na relação ventilada ocupem a mesma posição que, ao tempo, estas ocupavam. ”[2]
À luz destes considerandos concluiu-se, sem esforço, pela identidade dos sujeitos passivos em ambas as ações; o R. na presente ação, pai do pretenso pai da A., é demandado enquanto sucessor deste, como permite e impõe o artº 1819º, nº 1, aplicável ex vi do artº 1873º, ambos do Código Civil, ou seja, ocupa na relação ventilada a mesma posição que, ao tempo da ação 103/85, ocupou o seu falecido filho, sendo por isso idêntica a posição de ambos quanto à relação jurídica substancial configurada nos autos.
A dificuldade não está, pois, na identidade de sujeitos passivos da ação, mas na ajuizada identidade dos sujeitos ativos; a primeira ação de investigação de paternidade foi instaurada pelo MºPº, na sequência de averiguação oficiosa de paternidade, ou seja, depois do tribunal concluir pela existência de provas seguras da paternidade (artº 1865º, nº 5, do Código Civil) e a presente ação é instaurada pela pretensa filha, ora A.
A decisão recorrida resolveu esta questão afirmando que “há identidade de sujeitos, pois que na referida ação nº 103/85 o Ministério Público interveio em representação da então menor (…), autora na presente ação”.
Juízo cuja validade (substancial) não dispensa a demonstração que na ação nº 103/85 o Ministério Público interveio em representação da então menor (…) e não cremos poder convergir neste ponto.
O funcionário do registo civil tem o dever de enviar ao tribunal certidão integral do registo de nascimento de menor sempre que este seja omisso quanto à paternidade a fim de se averiguar oficiosamente a identidade do pai (artº 1864º do CC)
A instrução do processo incumbe ao MºPº e concluindo-se pela existência de provas seguras da paternidade e, assim, pela viabilidade da ação de investigação, incumbe ao Mº Pº intentar a respetiva ação (artºs 1864º e 1865º, do CC, artºs 202º a 207º da OTM, à data em vigor e vigentes artºs 60º a 64º da Lei n.º 141/2015, de 8/9).
Nas ações oficiosas o Mº Pº representa o Estado (…). O Estado é o autor da ação. O seu interesse é supra-individual (…) O Estado atua em interesse próprio, empenhado como está em estabelecer a filiação que corresponda à verdade biológica e não tanto à filiação jurídica, ou à vontade de alguém. Interesse que pode coincidir, ou não, com os interesses, designadamente sucessórios, do filho, ou de outros sucessores que, só por si, não tomariam sequer a iniciativa da ação”[3].
A ação nº 103/85 tem esta natureza, ou seja, foi oficiosamente proposta pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artº 1865º, nº 5, do CC, depois de, em averiguação oficiosa, se haver concluído pela existência de provas seguras da paternidade da A.; a atuação do Ministério Público, motivada pelo interesse público da filiação, revestiu-se de carácter oficioso e fez uso de um dever imposto pelo Estado.
Representando o Ministério Público, na ação nº 103/85, o Estado e sendo a presente ação proposta pela A. não se pode, a nosso ver, concluir, como se concluiu (sem demonstração) na decisão recorrida, que na referida ação o Ministério Público representou a A.; autor na ação 103/85 foi o Estado e não a ora A..
Por ausência de identidade de sujeitos a presente ação não constitui, a nosso ver, repetição da ação de investigação de paternidade que correu termos com o nº 103/85, o que bastaria para obstar à procedência do caso julgado.
Neste sentido e incindindo sobre uma situação de contornos porventura menos evidentes, ajuizou-se no Ac. STJ de 03-05-2000: “não existe identidade de sujeitos, na perspetiva da exceção de caso julgado, entre a posição de autor, do M.P., numa ação oficiosa de investigação de paternidade, intentada ao abrigo do artigo 1865º, n.º 5, do CCiv, e aquela outra em que o M.P. intervêm em representação do menor, numa ação facultativa de investigação da paternidade, ao abrigo do poder-dever estatutário consignado na alínea c), do n.º 1, do artigo 5º, do Estatuto do M.P.”[4]

Ainda assim, a improcedência da ação oficiosa não obsta a que seja intentada nova ação de investigação de paternidade, ainda que fundada nos mesmos factos (artºs 1813º e 1868º, do CC).
Regime que constitui uma clara derrogação da força vinculativa do caso julgado material e cuja ratio visa “(…) evitar que o eventual insucesso da ação de investigação oficiosa, dominada pelo interesse público da descoberta da real maternidade ou paternidade da criança e, por isso, nem sempre proposta no momento mais oportuno e nas melhores condições de sucesso, possa acabar por prejudicar o direito tradicional de o próprio registando ou registado promover a investigação da sua paternidade ou maternidade nas melhores condições de prova e de tempo”.[5]
No mesmo sentido, Guilherme de Oliveira, “o legislador deve ter pretendido que a recente averiguação oficiosa, inspirada pelo interesse público da filiação, não diminuísse o tradicional direito do investigante particular, empenhado na constituição do estado jurídico de filho; e deve ter receado que este relevantíssimo direito pudesse ser comprometido por uma ação oficiosa descuidada, improcedente e preclusiva.”[6]
Em conclusão, (i) não existe identidade de sujeitos, na perspetiva da exceção de caso julgado, entre a posição de autor, do M.P., numa ação oficiosa de investigação de paternidade, intentada ao abrigo do artigo 1865.º, n.º 5, do CCiv e a intentada pelo filho numa ação facultativa de investigação da paternidade e (ii) a ação oficiosa de investigação da paternidade intentada, sem êxito, pelo Ministério Público, ao abrigo da mesma disposição legal, não preclude o direito do filho de intentar nova ação de investigação de paternidade, ainda que fundada nos mesmos factos.
Por ser esta a situação posta nos autos, procede o recurso, com a revogação da decisão recorrida e o consequente prosseguimento dos autos.

2.2. Custas.

Porque vencido no recurso, incumbe ao R. pagar as custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).


IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto na procedência do recurso, em revogar a sentença recorrida.
Custas, nesta instância, pelo R., sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficia.
Évora, 23/11/2017
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
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[1] A. Reis, CPC, anotado, 1950, vol. 3º, pág. 101.
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 310
[3] Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, 1985, pág. 195.
[4] Disponível em www.dgsi.pt.
[5] Pires Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 1995, vol. V, págs. 71 e 72.
[6] Estabelecimento da Filiação, 1979, pág. 35.