Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
31/08.2TAEVR.E1
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
CRIME DE TRÁFICO DE INFLUÊNCIA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
INDÍCIOS SUFICIENTES
Data do Acordão: 04/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário:
1. Mostra-se suficientemente fundamentado o despacho de não pronúncia que faz discernimento dos factos julgados suficientemente indiciados, expondo as razões de facto e de direito que conduziram a tal juízo.

2. Sem embargo, é questionável a metodologia que entrelaça considerandos de facto com questões de direito, beneficiando em clareza o procedimento que trata tais questões em separado.

3. O bem jurídico protegido pela norma inscrita no artigo 335.º do Código Penal (tráfico de influência) é a autonomia intencional do Estado.

4. A consumação de tal crime dá-se com o acordo entre traficante e comprador, sendo irrelevante que a influência venha ou não a ser exercida.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os Juízes na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. No âmbito do Inquérito n.º 31/08.2TAEVR do Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora o Ministério Público acusou, para julgamento em processo comum com a intervenção do Tribunal singular, os arguidos J e V, melhor identificados nos autos, imputando ao primeiro a prática, como autor material, de um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo artigo 335.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e ao segundo a prática, como autor material, de um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo artigo 335.º, n.º 2, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do Código Penal.

2. Inconformados com a acusação, ambos os arguidos requereram a instrução, pugnando pela sua não pronúncia.

3. Admitidos os requerimentos para abertura de instrução e realizadas as diligências instrutórias teve lugar, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, o debate instrutório, tendo vindo a ser proferida [em 18.05.2009] decisão instrutória que culminou com despacho de não pronúncia relativamente aos dois arguidos [cf. fls. 1573 a 1584].

4. Inconformado com, o assim, decidido recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.ª O Ministério Público, como questão prévia e cautelar à apreciação do presente Recurso por Vªs Excelências, vem desde já suscitar a inconstitucionalidade da interpretação que tem sido objecto o n.º 5 do art. 425.º do Cód. Proc. Penal se e quando interpretado no sentido de que a expressão “acórdãos absolutórios” aí constante abrange a decisão confirmatória do despacho de não pronúncia.
2.ª Tal invocação tem em consideração o disposto na al. d) do n.º 1 do art. 400.º do Cód. Proc. Penal, porquanto “não é admissível recurso … de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância” e, a interposição de recurso restrito à questão da (in) constitucionalidade (da norma do n.º 5 do art. 425.º do Cód. Proc. Penal), não será admissível se a questão não tiver sido previamente suscitada no processo.
3.ª Este preceito “viola o direito de participação do ofendido no processo penal e o direito do assistente de acesso aos tribunais e, nomeadamente, aos tribunais de recurso e ainda o princípio da igualdade na sua vertente da igualdade de armas” e “o disposto nos arts. 2.º, 13.º, 20.º n.º 1 e 32º n.º 7” da Constituição da República Portuguesa (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in: Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pág. 1166).
4.ª O despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve conter, ainda que de forma sintética, todos os factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária recolhida, o que no caso dos autos manifestamente não se verifica;
5.ª A exigência de fundamentação das decisões dos tribunais foi erigida em princípio geral extensivo a todos os ramos do direito e, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa, aludidas no n.º 1 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa;
6.ª O dever de fundamentação das decisões judiciais que não se limitem a regular os termos do processo, é uma exigência da necessidade de credibilização dos actos decisórios, impedindo que estes assentem em critérios puramente discricionários;
7.ª A fundamentação dos actos para além de dever ser expressa, clara e coerente deverá ser suficiente, pois é a partir dela que é possível a sindicância da legalidade do acto, bem como o convencimento dos interessados e dos cidadãos em geral, da sua correcção e justiça e, por outro lado, é um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de auto – disciplina;
8.ª Ao negligenciar este dever o Mmº Juiz “a quo” não cumpriu o ónus de fundamentação a que estava adstrito, pois que se impunha o dever de resolver todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação e exceptuadas aquelas cuja decisão estivesse prejudicada pela solução dada a outras;
9.ª O despacho de não pronúncia é, assim, nulo, por ausência de fundamentação de facto, nos termos do art. 308º nº 2 do Cód. Proc. Penal, com referência ao art. 283º nº 3 al. b) do mesmo Código;
10.ª A falta de fundamentação do despacho recorrido – que encerra em si uma verdadeira decisão -, não pode deixar de ter um tratamento idêntico ao processualmente previsto para as sentenças, nomeadamente, o regime do art. 668º nº 3 do Cód. Proc. Civil; por isso, na mesma lógica, o Código de Processo Penal no art. 379º, à semelhança do previsto, no art. 668º do Cód. Proc. Civil, previu a nulidade da sentença quando haja falta de fundamentação ou omissão de pronúncia;
11.ª Tal como na sentença, detectada a falta de fundamentação ou omissão de pronúncia em actos decisórios, a nulidade deve ser arguida ou conhecida em recurso sendo lícito ao tribunal supri-la (cfr. Art. 379.º n.º 2 do Cód. Proc. Penal);
12.ª Uma interpretação que obrigasse o tribunal de recurso a acatar uma decisão omissa sobre aspectos essenciais da questão e não permitisse à parte o recurso directo dessa omissão, implicaria a supressão do direito ao recurso e o constrangimento drástico do acesso ao direito do recorrente, em violação do disposto no art. 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa;
13.ª Da prova produzida nos autos podemos concluir que se encontram reunidos os indícios suficientes do tipo de crime de tráfico de influência p. e p. pelo art. 335.º nº 1 al. a) do Cód. Penal, quanto ao arguido J e, p. e p. pelo art. 335.º nº 2, conjugado com a al. a) do nº 1 do Cód. Penal, relativamente ao arguido V;
14.ª Devendo a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que pronuncie os arguidos nos exactos termos constantes da acusação, remetendo-se os autos para julgamento;
15.ª O douto despacho recorrido violou o disposto nos arts. 308.º nº 2, 283º nº 3 al. b), 374.º nº 2, 379º nº 2 e 410º n.º 2 al. a), todos do Cód. Proc. Penal e o art. 335.º nºs 1 al. a) e 2 do Cód. Penal.
Vossas Excelências Senhores Juízes Desembargadores com o mais sábio e douto entendimento, apreciarão e decidirão, como for de JUSTIÇA.

5. Ao recurso responderam os recorridos J e V, formulando as seguintes conclusões:

O recorrido Júlio de J:

A) A acusação pública revela evidentes e constantes fragilidades, uma vez que se preocupou bem mais com considerandos vagos e conclusivos, do que com o suporte factual que eventualmente os pudesse sustentar, o que não deixa de ser estranho após tão longa e aturada investigação por parte do órgão de polícia criminal competente.
B) Compete ao Mº Pº, enquanto titular da acção penal, carrear para os autos os factos indiciários necessários e suficientes, que a serem provados, preenchem o tipo legal de crime de que os arguidos vinham acusados;
C) Ao contrário do defendido em sede de recurso pelo Mº Pº, o Mmº Juiz a quo não só cumpriu o ónus de fundamentação a que está adstrito, como resolveu todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação exceptuadas, obviamente aquelas cuja decisão esteja ou fosse prejudicada pela solução dada a outras, como perante a imperfeição ou lacunas graves do libelo acusatório e termos de factos, indícios probatórios consistentes, elementos típicos do crime de tráfico de influência em qualquer das suas variantes, tentou, até ao limite, perceber e integrar o raciocínio expendido pela acusação;
D) E mais, sempre fundamentou as opções que tomou ao longo do seu despacho de não pronúncia, de uma forma lógica e coerente, perante as provas constantes dos autos e os elementos típicos do crime em causa;
E) Pelo que, salvo devido respeito e melhor opinião, a decisão proferida não violou o disposto nos artigos 308º, nº 2, 283º, nº 3 alínea b), 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 2 e 410.º, nº 2 alínea a) todos do CPP e o artigo 335º nºs 1 alínea a) e n.º 2 do CP;
F) Em todo o caso, cumpre referir que, caso dúvidas ponderosas houvesse acerca da prática, pelos arguidos, do crime que lhes foi imputado na acusação, sempre tais dúvidas teriam de resolver-se favoravelmente aos visados, aos quais não cumpre comprovar, com certeza certa, na fase de instrução, a falta de veracidade da factualidade vertida na acusação.
G) Com efeito, o despacho de pronúncia, para além de determinar os precisos termos da acusação, com interesse para fixar o âmbito da sentença e determinar o objecto do processo, delimitando, consequentemente, os poderes cognitivos e decisórios do tribunal, é uma garantia para o próprio arguido de não ser julgado, em processo penal, senão quando haja motivo sério para tal, como dispõe o n.º 1 do artigo 308.º do CPP.
H) Deste princípio resulta que ninguém deve ser submetido a julgamento, evitando-se, assim, ser sujeito a inquietações e despesas inúteis, sempre que não se verifique a necessária mobilização probatória, ainda que em termos indiciários, susceptível de convencer o tribunal da efectiva verificação dos factos imputados ao arguido, sendo que quaisquer dúvidas que possam suscitar-se quanto ao real decurso dos acontecimentos não podem agravar a posição daquele, assim pondo em prática o princípio in dubio pro reo, que deve estar presente não só na fase de julgamento, mas também na fase de instrução.
I) Temos de ter sempre presente, como princípio orientador e de autodisciplina, a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas ou desproporcionadas na esfera dos seus direitos, especialmente aqueles que entre nós revestem dignidade constitucional, como é o caso da liberdade – artigo 27º da CRP.
J) A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que a possibilidade razoável de condenação a que a lei alude – artigo 283.º, n.º 2 ex vi artigo 308.º, n.º 2 ambos do CPP – é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Acórdão da Relação do Porto, de 20 de Outubro de 1993, CJ, XVIII, IV, 261);
L) O negócio de compra e venda celebrado entre os arguidos já se encontrava alinhavado quando o arguido V comentou que estava interessado em apresentar proposta ao concurso público lançado pela CM Abrantes, pelo que não houve qualquer relação entre uma coisa e outra;
M) O júri do concurso apreciou e decidiu o concurso em causa, de acordo com os critérios de adjudicação plasmados no artigo 15º do programa de concurso, sem qualquer tipo de influência e ou condicionamento, quer directo – por parte dos arguidos – quer indirecto – por parte de algum membro da vereação, estes últimos por sugestão ou tentativa de condicionamento por parte do arguido Júlio Bento;
N) Assim, e no caso em apreço, e depois de tudo o que se escreveu, cremos que a decisão proferida pelo Mmº Juiz a quo não merece qualquer censura, devendo, pois, a decisão proferida ser mantida.

O recorrido V:

1. O despacho recorrido não violou o disposto nos arts. 308.º n.º 2, 283.º al. b), 374º n.º 2, 379º n.º 2, 410º n.º 2 al. a) do CPP e 335.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do CP;
2. Inexiste motivo para suscitar, no caso dos autos, a inconstitucionalidade da interpretação do art. 425.º n.º 5 do CPP em conjugação com o art. 400.º n.º 1 al. d) do mesmo diploma legal;
3. Nenhum desses preceitos viola o princípio da participação do ofendido no processo penal e da igualdade de armas.
4. Não se mostra violado o disposto nos arts. 2º, 13º, 20º n.º 1, 32º n.º 7, da CRP:
5. A decisão proferida não se enquadra directamente no disposto no art. 308º do CPP, mas sim no contido no art. 307º do mesmo diploma legal;
6. O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo explicitou de forma clara, objectiva, precisa e fundamentada, todos os motivos pelos quais optou pela não pronúncia;
7. No caso concreto verifica-se que a acusação originária sofre de patologias que impedem que, com os factos referenciados, o arguido possa ser condenado pelo crime de que vem acusado, como o Meritíssimo Juiz bem explicitou na decisão;
8. Por isso, nem se pode colocar a questão da referenciação dos factos porque tal não impõe o regime legal;
9. Efectivamente, se o Juiz entender que o processo não deve prosseguir para julgamento, nada o obriga a fazer a narração exaustiva dos factos;
10. Além disso, foram apreciados na decisão um conjunto de factos constantes da acusação e merecedores de censura por parte do Juiz do Tribunal a quo;
11. Por outro lado, o art. 308º n.º 2, quando se reporta ao despacho de não pronúncia, é claro no sentido de não ser obrigatório dar cumprimento ao disposto no art. 283º n.º 2 e 4 do CPP;
12. A existir qualquer realidade, o que se admite como mera hipótese, deveria ter sido invocada no momento oportuno;
13. Se, por mera hipótese de raciocínio, se entender que a factualidade terá que ser mencionada, tal implicaria, tão só, a correcção do despacho de não pronúncia, por parte do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, descrevendo de forma concisa os factos que lhe permitiram concluir pela não pronúncia, por via do que consta no art. 380º n.º 3 do CPP;
14. A decisão não merece qualquer censura, pois o recorrido não praticou factos e inexistem nos autos, elementos que possam concluir que se encontram reunidos os indícios suficientes do tipo de crime de que vem acusado, faltando a possibilidade razoável de, em julgamento, lhe vir a ser aplicada uma pena.

6. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

7. Na Relação, a Ilustre Procuradora – Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a posição do Digno Recorrente.

8. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, mantiveram os recorridos, no essencial, a posição já anteriormente assumida.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 412º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo licito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR I – A Série, de 28.12.1995].
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal ad quem tem de apreciar – [cf. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões” – [cf. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, pág. 335].

No caso sub judice, as questões suscitadas pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar traduzem-se em saber se:
a) Ocorre nulidade da decisão instrutória/despacho de não pronúncia;
b) Se verificam indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes, pelos quais foi deduzida acusação pública.

A questão prévia colocada pelo Ilustre recorrente, qual seja a da inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 425.º do CPP, “se e quando interpretado no sentido de que a expressão “acórdãos absolutórios” aí constante abrange a decisão confirmatória do despacho de não pronúncia”, só relevaria se este Tribunal, no caso em apreço, encarasse a possibilidade de proceder de acordo com a citada norma, o que não sucede, mostrando-se, assim, prejudicada a sua apreciação.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor da decisão recorrida:

O Tribunal é competente.
O processo é o próprio e está isento de nulidades.
As partes encontram-se dotadas de capacidade e legitimidade.
Não há excepções ou quaisquer questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.
Nos presentes autos, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu despacho de acusação contra os arguidos J e V, imputando ao primeiro a prática de um crime de tráfico de influência, p. e p. pelo art.º 335º, 1, a) C. Penal, e ao segundo a prática também de um crime de tráfico de influência, mas p. e p. pelo art.º 335.º, 2 do mesmo diploma.
Em súmula, segundo a acusação pública, os arguidos negociaram a compra e venda de uma moradia pertencente a J e, no decurso das negociações, V deu conhecimento ao primeiro que estava interessado em concorrer a um concurso público lançado pela C.M. Abrantes, que tinha por objecto a prestação de serviços de enriquecimento curricular para o 1.º ciclo do ensino básico. O arguido J ofereceu-se então para ajudar a elaborar a proposta, com o argumento de que estava habituado a participar em concursos públicos como administrador da “SA”, tendo ambos percebido que a apresentação de uma proposta por parte da empresa a que V (“L.da) facilitaria os termos do negócio da venda da moradia e a troca de favores entre ambos para futuro, com vantagens imediatas ou vindouras para os dois.
Assim, em concretização de tal propósito, o arguido J aproveitou os seus conhecimentos como ex – vereador da C.M. Abrantes e contactou várias pessoas dos quadros municipais, entre as quais membros do júri de avaliação das propostas a concurso (em particular a presidente do júri, M), procurando influenciar a decisão final a favor do arguido V, o que este aceitou no intuito de obter vantagem patrimonial.
Sucedeu, porém, que, por razões alheias aos arguidos, a “L.da” não obteve vencimento em nenhum dos itens a concurso, pelo que aqueles não obtiveram as vantagens a que se propunham com o plano delineado.

A fls. 1421 e ss., o arguido J requereu a abertura de instrução, alegando, em síntese, que:

- o negócio de compra e venda celebrado entre os arguidos já se encontrava alinhavado quando o arguido V comentou que estava interessado em apresentar proposta ao concurso público lançado pela C. M. Abrantes, pelo que não houve qualquer relação de uma coisa com a outra;
- a sua colaboração na apresentação da proposta por parte do arguido V cingiu-se ao apoio na organização formal da mesma, visto que o concorrente não conhecia as exigências a cumprir e tem algumas dificuldades no domínio da língua portuguesa;
- para tal, J contactou as responsáveis da C.M. Abrantes unicamente com o propósito de se inteirar sobre as condições do concurso público;
- todas as testemunhas inquiridas declararam que não se sentiram influenciadas por si;
- não foi o arguido quem informou V em primeira mão sobre o resultado do concurso;
- a “Lda” não apresentou qualquer reclamação ao resultado do concurso, o que demonstra que não contava com nenhum apoio de relevo para a decisão final.

Concluiu pugnando pela sua não pronúncia.
Solicitou que lhe fossem tomadas declarações e arrolou testemunhas.

O arguido V requereu também a abertura de instrução (fls. 1443 e ss.), invocando em sua defesa, além do mais, o seguinte:

- apenas conheceu o arguido J devido ao negócio de compra e venda da moradia que realizaram;
- nunca pediu qualquer favor a J, ou lhe prometeu algo em troca, para que aquele intercedesse a seu favor junto da C.M. Abrantes, de modo a vencer o concurso em que participou;
- apenas aceitou a ajuda prestada por aquele arguido na organização formal da candidatura, pois não sabia bem como fazê-lo e tem algumas dificuldades no domínio da língua portuguesa;
- não conhece nenhum membro da C.M. Abrantes e nada sabe sobre pressões exercidas sobre membros da autarquia;
- não houve qualquer relação entre a apresentação da candidatura e o negócio celebrado com J;
- não foi J quem o informou do resultado do concurso, mas sim a própria C.M. Abrantes através de fax.

Solicitou que lhe fossem tomadas declarações, arrolou testemunhas e juntou prova documental (fls. 1463 a 1522 e 1568).

Foi proferido despacho que recebeu o requerimento de abertura de instrução e determinou a tomada de declarações aos arguidos e a inquirição de testemunhas – cfr. Despacho de fls. 1529 – 1530.

Foram tomadas declarações aos arguidos e realizadas as inquirições deferidas por despacho de fls. 1529 – 1530 – cfr. acta de fls. 1558 – 1559, 1560 a 1562 e 1563 a 1565.
Após, foi realizado o debate instrutório – cfr. acta de fls. 1571 – 1572.

Cumpre apreciar e decidir.
Em conformidade com o que dispõe o n.º 1 do art.º 286º do CPP, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
Para tal, é necessário apreciar, de modo crítico, a prova já produzida na anterior fase processual e a resultante dos actos instrutórios levados a cabo (quando realizados), de molde a aferir-se da suficiência, ou não, de indícios conducentes à pretensão do requerente de abertura de instrução – art.º 308º, 1 CPP.
Em sede instrutória importa apreciar os indícios suficientes de que possa resultar a possibilidade razoável de vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – art.º 283º, 2 CPP. Importa, para tanto, apreciar a prova recolhida, vista num carácter global, ao nível dos indícios.
Indícios suficientes vêm sendo entendidos, de forma mais ou menos pacífica na jurisprudência, como aqueles elementos de facto trazidos ao processo, que, livremente, analisados e apreciados, criam a convicção no sentido de, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído.
Assim, os indícios devem ser reputados de suficientes quando, das diligências efectuadas durante o inquérito e instrução, resultarem suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e que é o arguido o seu agente.
Em conformidade, os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.

Assim, importa discorrer sobre os elementos probatórios recolhidos durante a fase de inquérito e de instrução, de molde a aferir se os mesmos têm a virtualidade de contrariar a decisão tomada pelo Digno Magistrado do Ministério Público aquando do despacho de encerramento de inquérito.
Para tal, cumpre antes de mais analisar os elementos integradores do tipo legal de crime pelo qual os arguidos estão acusados.
Dispõe assim o art.º 335º do C. Penal:
“1 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública, é punido:
a) Com pena de prisão de 6 meses a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, se o fim for o de obter uma qualquer decisão ilícita favorável;
b) Com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, se o fim for o de obter uma qualquer decisão lícita favorável.
2 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial às pessoas referidas no número anterior para os fins previstos na alínea a) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Segundo a acusação, o arguido J abusou da sua influência junto da C. M. Abrantes, fruto dos vários anos que ali prestou serviço como vereador, para procurar beneficiar o arguido V no âmbito do concurso público, lançado por aquela entidade, em que aquele participou, tendo o concorrente aceite tal favor, sendo que, com a descrita actuação, J sabia que solicitava e aceitava, para si e junto de V, vantagens com expressão pecuniária e a sua promessa e este último tinha consciência de que dava e prometia a J vantagens com expressão pecuniária, para que o mesmo utilizasse em seu benefício a referida influência.
Apreciando a matéria dos autos, deve dizer-se, desde logo, que são evidentes as fragilidades da acusação.
Na verdade, no que tange ao cerne da questão – actividade concertada entre os arguidos no intuito de V obter vencimento no concurso público em que participou e, daí, ambos os arguidos beneficiarem patrimonialmente -, o libelo acusatório queda-se por considerandos vagos e conclusivos, sem suporte factual que os concretize convenientemente e que permitisse ao tribunal aferir das reais motivações dos arguidos para terem agido da forma que a acusação lhes imputa.
Com efeito, refere a acusação pública (art.º 17º) que “os arguidos (…) perceberam que a apresentação de uma proposta por parte da “L.da” ao concurso (…) facilitaria os termos do negócio da venda de casa e a troca de favores entre ambos para futuro, todos beneficiando de vantagens, imediatas ou vindouras”.
Facilitaria os termos do negócio de compra e venda? Porquê?
A acusação não diz, mas tentemos perceber.
Mostra-se documentado nos autos que os arguidos celebraram a escritura de compra e venda da moradia pertencente a J em 17 de Agosto de 2007, momento em que este recebeu por inteiro o preço da venda de € 140.000, mediante empréstimo bancário contraído por V do BPI (cfr. documento de fls. 1362 e ss.).
Ora, o concurso público foi lançado em 6 de Julho de 2007 (fls. 1463 – 1464 e 1568), como data limite de inscrição de 4 de Setembro seguinte (fls. 1568), a “L.da” apresentou a sua proposta no último dia (fls. 1478) e a decisão do concurso ocorreu em 25 do mesmo mês. Assim sendo, se a negociação da compra e venda da moradia já estava avançada (tanto que se concretizou em 17 de Agosto), se ainda faltavam algumas semanas para o terminus do prazo de candidatura, sem qualquer garantia de que a proposta daquele arguido sairia vencedora (podendo muitos outros interessados entrar no concurso), e se o preço da moradia seria (como foi) integralmente pago em data anterior à decisão do concurso, não se percebe a que título pode concluir-se que a apresentação de uma proposta por parte da firma do arguido V facilitaria os termos do aludido negócio de compra e venda.
Da leitura das transcrições das intercepções telefónicas (fls. 1219 a 1233) e do teor de todos os depoimentos prestados no inquérito e na instrução também não se pode concluir – bem pelo contrário – que houvesse alguma vantagem para a conclusão do referido negócio com a apresentação da dita candidatura, sendo que ambos os arguidos rejeitam qualquer ligação de uma coisa com a outra.
Diz igualmente a acusação pública que a candidatura da “Lda” facilitaria a troca de favores entre os arguidos, ambos beneficiando de vantagens, imediatas ou vindouras.
Quais favores ou vantagens? O Ministério Público não diz.
E não será fácil perceber.
No imediato, já se viu que nenhuma vantagem haveria para a conclusão do negócio de compra e venda, pois a decisão do júri do concurso seria necessariamente muito posterior à celebração da escritura pública (considerando o prazo limite de apresentação de candidaturas).
E para o futuro também não se vislumbra que os arguidos obtivessem vantagens da participação do concurso, pois J integra a administração de uma sociedade (“SA”) cujo objecto é a gestão e exploração de infra – estruturas ao nível do ambiente e saneamento básico (cfr. texto do acto societário de fls. 48) e V é professor integrado na actividade da “Lda”, dedicada à formação de línguas e informática (cfr. escritura de constituição de sociedade de fls. 1313 a 1315), não se antevendo, por isso, relações profissionais entre áreas de actividade tão díspares, tanto mais que as pessoas em causa não se conheciam até ao momento em que começaram a negociar a compra e venda da sobredita moradia (como explicado pela testemunha D, que apresentou os arguidos).
Consequentemente, também não se lobriga, nem a acusação esclarece, quais as “vantagens com expressão pecuniária” que o arguido V dava e prometia ao arguido J (art.º 35º da acusação), pois a única pessoa que podia beneficiar financeiramente com a apresentação da candidatura era o próprio candidato, mas só e apenas na hipótese de a mesma sair vencedora.
A peça acusatória expõe de igual forma (mesmo art.º 35º) que o arguido V tinha consciência de que as sobreditas “vantagens com expressão pecuniária” tinham por objectivo que o arguido J utilizasse a sua influência junto da vereadora com o pelouro da Educação, levando-a a orientar a decisão a proferir no âmbito do concurso. Ora, a vereadora em causa, I, esclareceu que não conhecia sequer aquele arguido (fls. 1291 a 1294), decorrendo do depoimento deste na fase de inquérito (ainda como testemunha – fls. 1295 a 1297) e das suas declarações em instrução que não conhecia qualquer pessoa da C. M. Abrantes, pelo que não será plausível fazer a sobredita imputação ao arguido V.
No que tange à conduta do arguido J em utilizar os seus conhecimentos como ex – vereador para influenciar a decisão da vereadora I, é de salientar que aquele, efectivamente, abordou a sobredita dirigente autárquica, solicitando-lhe que visse “se podia fazer alguma coisa em relação à firma de um amigo seu”, “pelo menos aí o inglês” (um dos itens do concurso era o ensino da língua inglesa), “poderia ser vocês a adjudicar uma coisa a uns, outra a outros” (cfr. depoimento de fls. 1291 a 1294 e transcrição de intercepções telefónicas de fls. 1229 a 1232 – em que J relata a V a aludida conversa). Porém, I não tinha qualquer influência na decisão do concurso (como a mesma explicou no depoimento de fls. 1291 a 1294), pelo que não colhe a asserção a que chegou a acusação pública de que os arguidos procuraram levar aquela vereadora “a orientar, de forma contrária aos seus deveres e à lei, a decisão a proferir pela Câmara”.
Importa destacar, neste passo, que o bem jurídico protegido com a incriminação do tráfico de influência é a autonomia intencional do Estado, procurando-se evitar que o agente, “contra a entrega ou promessa de uma vantagem, abuse da sua influência junto de um decisor público, de forma a obter dele uma decisão ilegal, criando assim o perigo de que a influência abusiva venha a ser exercida e, consequentemente, de que o decisor venha a colocar os seus poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público”, como explica Pedro Caeiro.
Assim, atendendo-se à densidade específica do perigo prevenido pelo tipo legal de crime em apreço, impõe-se que o constrangimento provocado pelo agente (in casu, o arguido J) tenha um nexo com a situação profissional do decisor, sendo de excluir, por tipicamente irrelevantes, quaisquer pressões exercidas sobre alguém de quem não depende a prática do acto que se pretende influenciar.
Ora, a vereadora I, responsável pelo pelouro da Educação, não tinha qualquer intervenção directa na deliberação sobre as várias propostas a concurso, pelo que a abordagem que lhe foi feita pelo arguido J não pode considerar-se como sendo de molde a pôr em causa o interesse público, por não interceder entre o agente e o seu interlocutor (que não era decisor) o nexo de causalidade exigido pelo tipo legal de crime de tráfico de influência.
Quanto aos membros do júri, foram arroladas como testemunhas nestes autos a presidente M e a vogal P (jurista da C.M. Abrantes), ambas asseverando que não sofreram qualquer tentativa de “aliciamento” ou de condicionamento da decisão final por parte de algum dos arguidos, sendo que M foi clara em referir que o único contacto que teve com o arguido J foi por via telefónica e que aquele pretendia apenas inteirar-se dos trâmites do concurso público, ao que a mesma acedeu, nada lhe tendo sido pedido no sentido de condicionar a sua decisão.
E, relativamente a demais membros da edilidade abrantina, deve dizer-se que as testemunhas A, MC, MR (todos ouvidos na fase de inquérito – fls. 1275 a 1280 e 1288 a 1290) e AN (inquirida em instrução) foram unânimes em esclarecer que nenhuma pressão sentiram por parte do arguido J para condicionar a decisão do concurso.
Temos, assim, que, dos elementos integradores do tipo legal de crime pelo qual os arguidos vêm acusados, não existem indícios suficientes (ou sequer factos suficientes na acusação) no que tange aos requisitos da vantagem patrimonial para o arguido que alegadamente abusou da sua influência, da qualidade da pessoa a quem tal influência foi dirigida e da vantagem patrimonial prometida ou concedida pelo agente interessado no acto (in casu, o arguido V) ao agente influente na decisão (na situação em apreço, o arguido J).
Por outro lado, a acusação não concretiza em que medida seria ilícita a hipotética actuação da vereadora I, pois, como a firma “Lda” era efectivamente parte do concurso em causa, as “diligências” que aquela efectuasse só seriam ilícitas se daí decorresse uma violação da legalidade, v. g. a não observância das normas que regem aqueles concretos procedimentos decisórios, de molde a privilegiar a proposta do arguido V. Ora, da leitura da acusação, não se percebe se uma eventual vitória da “Lda” no concurso público seria ou não uma decisão ilícita do júri.
Daqui resulta uma consequência relevante, qual seja a de que a concessão de vantagem ou a sua promessa para a prática de acto lícito não é punível (em relação à pessoa que dá ou promete a vantagem), como decorre claramente da interpretação a contrario sensu do art.º 335º, 2 C. Penal, conjugada com o princípio da legalidade estatuído no art.º 1º do mesmo diploma, o que sempre implicaria a não incriminação do arguido V.
Do que antecede, impõe-se concluir que não se mostram perfectibilizados, em termos de indícios probatórios consistentes, os elementos típicos do crime de tráfico de influência em qualquer das variantes imputadas aos arguidos, pelo que os mesmos terão de ser não pronunciados pelo ilícito em apreço.
Em todo o caso, cumpre referir que, caso houvesse dúvidas ponderosas acerca da prática, pelos arguidos, do crime que lhes foi imputado na acusação, sempre tais dúvidas teriam de resolver-se favoravelmente aos visados, aos quais não cumpre comprovar, com certeza certa, na fase da instrução, a falta de veracidade da factualidade vertida no libelo acusatório, contrariamente ao defendido pelo Digno Magistrado do Ministério Público no debate instrutório, aquando da formulação das suas conclusões.
Com efeito, o despacho de pronúncia, além de determinar os precisos termos da acusação, com interesse para fixar o âmbito da sentença e determinar o objecto do processo, delimitando, consequentemente, os poderes cognitivos e decisórios do tribunal (cfr. art.ºs 309º, 1 e 379º, b), ambos do CPP), é uma garantia para o próprio arguido de não ser julgado, em processo penal, senão quando haja motivo sério para tal, como dispõe o art.º 308º, 1 CPP.
Deste princípio resulta que ninguém deve ser submetido a julgamento, evitando ser-se sujeito a inquietações e despesas inúteis, sempre que não se verifique a necessária mobilização probatória, ainda que em termos indiciários, susceptível de convencer o tribunal da efectiva verificação dos factos imputados ao arguido, sendo que quaisquer dúvidas que possam suscitar-se quanto ao real decurso dos acontecimentos não podem agravar a posição daquele, assim pondo em prática o princípio in dubio pro reo, que deve estar presente não só na fase do julgamento, mas também já na fase de instrução.
É que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não for mesmo, em certos casos, um vexame.
Por isso, no juízo de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da liberdade – cfr. art.º 27º CRP.
A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que a “possibilidade razoável” de condenação a que a lei alude – art.º 283º, 2, ex vi art.º 308º, 2 ambos do CPP – é uma possibilidade mais positiva que negativa; “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou os indícios são suficientes quando haja “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Diante do indicado critério decorrente do art.º 283º, 2 do CPP, respeitando os princípios supra apontados, o juiz, no final da instrução, tem de efectuar um juízo de prognose em torno da repetição da prova em sede de julgamento, colocando-se a seguinte questão: caso a prova constante dos autos seja repetida em julgamento existirá uma possibilidade razoável de condenação?
No caso em análise, como decorre de tudo quanto já se expendeu, tem-se por certo que a resposta a esse juízo de prognose é, necessária e imediatamente, negativa.
Tanto basta para que se imponha a prolação de despacho de não pronúncia.

Nestes termos, e ao abrigo do disposto no art.º 308º, 1 CPP, decide-se:
a) não pronunciar os arguidos J e V pelo crime de tráfico de influência de que vinham acusados;
b) determinar o oportuno arquivamento dos autos.


3. Apreciando

Da nulidade da decisão instrutória/despacho de não pronúncia

A fundamentar o referido vício invoca o recorrente, no essencial, que “o despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve conter, ainda que de forma sintética, todos os factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou da insuficiência da prova indiciária recolhida, o que no caso dos autos manifestamente não se verifica”; “A fundamentação dos actos para além de dever ser expressa, clara e coerente deverá ser suficiente, pois é a partir dela que é possível a sindicância da legalidade do acto, bem como o convencimento dos interessados e dos cidadãos em geral, da sua correcção e justiça (…)” para concluir “Ao negligenciar este dever o Mmº Juiz “a quo” não cumpriu o ónus de fundamentação a que estava adstrito (…)”, o que redundaria na nulidade do despacho de não pronúncia, por ausência de fundamentação de facto nos termos do art.º 308º, nº 2 do CPP com referência ao art. 283.º, n.º 3 al. b) do mesmo diploma legal, passível de ser arguida ou conhecida em recurso [artigo 379.º, n.º 2 do CPP].

Vejamos, então, as normas jurídicas pertinentes à questão colocada, para de seguida nos debruçarmos sobre a decisão recorrida com vista a apurar da sua adequação à lei.

Dispõe o artigo 308.º do CPP:

“1 – Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2 – É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.
3 – (…)”.

E, nos termos do n.º 3, al. b) do artigo 283.º do mesmo diploma legal “A acusação contém, sob pena de nulidade: A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.

Uma das características das decisões judiciais com dignidade constitucional consiste, precisamente, na necessária fundamentação – [cf. artigo 205.º da CRP].
A propósito de tal dever escrevem Jorge de Miranda e Rui de Medeiros “A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objectivo – pacificação social, legitimidade e auto – autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjectivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.
(…)
O conteúdo essencial do dever de fundamentação analisa-se na comunicação das razões que justificam a decisão. Todavia, como já foi afirmado pelo Tribunal Constitucional, as exigências de fundamentação não são iguais relativamente a todo o tipo de decisões judiciais (Acórdão n.º 680/98). Desde logo, o conteúdo da fundamentação é condicionado pelo objecto de cada tipo de decisão. Assim, por exemplo, a fundamentação de um despacho de pronúncia não requer a exposição de motivos relevantes para a condenação, mas tão só a exposição dos indícios bastantes para a realização do julgamento.
(…) pode dizer-se que a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara e coerente e suficiente.
a) Antes de mais, a fundamentação há-de ser expressa (…)
b) A fundamentação deve, além disso, ser clara e coerente. Os motivos apresentados pelo órgão decisor não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos que tornam o raciocínio que lhes está subjacente em algo imprestável para a inteligibilidade da decisão (…)
c) Por fim a fundamentação há-de ser suficiente (…), dela devem constar os motivos, de facto e de direito, que justificam o sentido da decisão, de modo a que o seu destinatário a possa compreender e, sobretudo, apreciá-la criticamente.” – [cf. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 71 e ss.].
Também Germano Marques da Silva, reportando-se à imposição da fundamentação dos actos, escreve “permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.” – [cf. Curso de Processo Penal, III, pág. 294].

O dever genérico de fundamentação dos actos decisórios expresso no artigo 97.º, n.º 5 do CPP, encontra particular explicitação e desenvolvimento no artigo 374.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, o que se compreende dada a natureza da peça processual a que se reporta.
Retomando o caso dos autos, o que se impõe indagar é se a decisão recorrida – despacho de não pronúncia - cumpriu o dever de fundamentação legalmente imposto.
No que concerne ao grau de fundamentação exigível para o despacho de não pronúncia, não obstante as divergências que tem surgido na jurisprudência, perfilhamos a posição de que devendo, naturalmente, respeitar o dever geral de fundamentação “comum a todos os actos judiciais que não sejam de mero expediente – art. 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa – não tem de ser na sua estrutura uma espécie de sósia ou clone da sentença (…)” – [cf. acórdão do STJ, de 20.02.2002, proc. n.º 4250/01].
Tal como defendido no acórdão do TRC de 14.06.2006, proferido no proc. n.º 823/06, “pensamos não ser configurável ou ser estabelecido um paralelo entre o dever de fundamentação exigível para uma sentença e para um despacho de não pronúncia. Enquanto que com a primeira das decisões o tribunal realiza o acto jurisdicional de maior relevância processual endoprocessual, no despacho de não pronúncia o tribunal limita-se a confirmar a falta de indícios ou a carência dos pressupostos de punibilidade de um caso cuja averiguação não alçou à condição de facto ilícito – típico ou para o qual não logrou o estatuto de caso criminalmente relevante”.
Consideramos, pois, que no despacho de não pronúncia têm de resultar esclarecidos [designadamente, por referência à acusação] os factos que não estão suficientemente indiciados, bem como as razões de facto e de direito [enunciadas de forma expressa, clara, coerente e suficiente] que conduziram ao entendimento de não se encontrarem reunidos “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” – [cf. artigo 308.º, n.º 1 do CPP], assim, se dando cabal cumprimento [com as necessárias adaptações] ao disposto no artigo 283.º, n.º 3 do CPP para cuja disciplina remete o n.º 2 do artigo 308.º do mesmo diploma, garantindo, em última análise, a segurança jurídica do arguido.
Ora, uma leitura atenta do despacho recorrido permite, sem margem para qualquer dúvida razoável, identificar quais os factos que o tribunal a quo não teve por suficientemente indiciados e, bem assim, os fundamentos que suportaram tal juízo.
Sem pretendermos reproduzir [de novo] o que ali ficou consignado, transcrevemos a seguinte passagem que, no quadro de análise [de facto e de direito] em que surge inserida [cf. o teor do despacho recorrido, supra transcrito], é elucidativa do que vimos de afirmar “Temos, assim, que, dos elementos integradores do tipo legal de crime pelo qual os arguidos vêm acusados, não existem indícios suficientes (ou sequer factos suficientes na acusação) no que tange aos requisitos da vantagem patrimonial para o arguido que alegadamente abusou da influência, da qualidade da pessoa a quem tal influência foi dirigida e da vantagem patrimonial prometida ou concedida pelo agente interessado no acto (in casu, o arguido V) ao agente influente na decisão (na situação em apreço, o arguido J)”.
É certo que formalmente talvez se possa questionar a metodologia seguida, na medida em que o despacho recorrido vai entrelaçando considerandos de facto com questões de direito, resultando, naturalmente, mais claro o procedimento que trata tais questões em separado. Contudo, podendo não reflectir a melhor prática judiciária, crê-se que ninguém, com fundamento, pode perante o teor do mesmo ficar na dúvida [razoável] sobre o que não foi tido por suficientemente indiciado e porquê.
Concluímos, assim, por da leitura integral do despacho de não pronúncia resultarem perceptíveis e, logo identificáveis quais os factos considerados não suficientemente indiciados, bem como, os fundamentos de facto e de direito que determinaram tal juízo, razão pela qual se entende que o despacho recorrido cumpre o dever de fundamentação, constitucionalmente exigido para as decisões judiciais, sendo certo que a posição que defende a aplicação de idêntico grau de fundamentação, exigível na sentença, para o despacho de não pronúncia, com todo o respeito, não nos parece a mais acertada, desde logo em função da diferente natureza das decisões em causa.
Não se mostram, pois, violados os artigos 309.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b), 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, al. a) todos do CPP, improcedendo, em consequência, a invocada nulidade.

Da suficiência de indícios

Foram os arguidos acusados pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de influência, p. e p. 335.º, n.º 1, al. a) do C. Penal [J] e p. e p. pelo artigo 335.º, n.º 2, com referência à al. a) do n.º 1 do mesmo diploma [V].
Realizada a instrução, requerida por ambos os arguidos, veio a ser proferido o despacho de não pronúncia supra transcrito, ali se concluindo por não se mostrarem verificados, em termos de indícios probatórios, consistentes, os elementos típicos do crime de tráfico de influência em qualquer das suas variantes.
Divergindo do sentido da decisão, defende o Ilustre recorrente existirem, no caso, indícios suficientes da prática por ambos os arguidos dos crimes que lhes foram imputados na acusação pública, pugnando, assim, pela revogação da decisão recorrida, a qual deveria ser substituída por outra que, pronunciando os arguidos, remetesse os autos para julgamento.

Sobre o crime em referência escreve Paulo Pinto de Albuquerque o “crime de tráfico de influência, em qualquer das suas modalidades, é um crime de perigo abstracto (quanto ao bem jurídico) e de mera actividade (quanto ao objecto da acção). A incriminação visa atingir os comportamentos prévios ao acto de corrupção, antecipando a tutela penal para o acto do negócio sobre o poder de influenciar o decisor.
(…)
“O tipo objectivo do crime previsto no n.º 1 consiste na solicitação ou aceitação, para o traficante de influência ou para terceiro, de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da influência, real ou suposta, sobre uma entidade pública (…).
O tipo objectivo do crime previsto no n.º 2 consiste na dádiva ou promessa de dádiva de vantagem patrimonial ou não patrimonial, pelo comprador de influência ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação.
(…)
A influência do traficante sobre a entidade pública pode ser real ou suposta (…). Ela pode resultar de qualquer tipo de ascendente do traficante de influência sobre o decisor, seja de natureza familiar, profissional, creditícia, religiosa, afectiva ou de outra natureza (…).
O acordo sobre o tráfico de influência com vantagem patrimonial ou não patrimonial ou promessa de vantagem para o traficante de influência deve preceder a decisão da entidade pública. Portanto, ficam fora do âmbito do tipo as condutas de tráfico “desinteressado” de influência, isto é, tráfico de influência sem vantagem (patrimonial ou não patrimonial) nem promessa de vantagem para o traficante. Também ficam fora do âmbito típico as condutas de atribuição de uma vantagem ao traficante de influência depois da decisão tomada, se não tiver existido acordo prévio nesse sentido entre o traficante e o comprador da influência (…).
A “entidade pública” é qualquer pessoa física ou colectiva, que exerça funções estaduais (políticas, governativas, administrativas, empresariais ou jurisdicionais), incluindo as funções atribuídas por concessão (…).
O crime consuma-se com a solicitação ou aceitação da vantagem pelo traficante de influência, sendo irrelevante se o traficante de influência efectivamente vem a exercer a sua influência junto do decisor (…).
Do lado do comprador da influência, o crime consuma-se com a dádiva ou promessa de dádiva da vantagem patrimonial ou não patrimonial pelo comprador da influência.” – [cf. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, págs. 810, 811].

Parece, pois, não restar qualquer dúvida de que o bem jurídico protegido pela incriminação é a autonomia intencional do Estado. Com efeito, “pode afirmar-se que, em certos casos (…), a disponibilidade do agente para, contra a entrega ou promessa de uma vantagem, abusar da sua influência junto de um decisor público, de forma a obter dele uma decisão ilegal [fala-se hoje em decisão ilícita favorável e em decisão ilícita desfavorável], cria um perigo abstracto de que a influência abusiva venha a ser exercida e, consequentemente, de que o decisor venha a colocar os seus poderes funcionais ao serviço de interesses diversos do interesse público” – [cf. Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense, III, pág. 277].

E pode concluir-se que o tipo se preenche quando “o agente celebra o negócio, oferecendo em troca da vantagem recebida ou prometida a possibilidade de se aproveitar de circunstâncias que lhe proporcionam uma situação de superioridade sobre o decisor público e que são de molde a constranger este último a tomar a decisão ilegal [hoje também a legal, nos termos da alínea b) do n.º 1] pretendida” – [cf. Pedro Caeiro, ob. cit., pág. 280, 281].
A consumação do crime dá-se, assim, com o acordo entre traficante e comprador, sendo irrelevante que a influência não venha a ser exercida.
Concluindo, o que está em causa no n.º 1 é a circunstância de alguém solicitar ou aceitar vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública, sendo que “é por este abuso (ou melhor: para a prática deste abuso) que o influente (traficante – vendedor) leva o seu preço (a pronto ou apenas prometido e à conta do interessado)”, mas como “só se vende porquanto alguém compra (…), através do n.º 2 (…) aquele que, “por si ou por interposta pessoa (…), der ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial às pessoas referidas no número anterior para os fins previstos na alínea a)…” encontra-se agora também sujeito às penas da lei” – [cf. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris Editora, pág. 824].

Perante os contornos do tipo legal em referência, nas modalidades previstas nos nºs 1 e 2, vejamos, então, a tese da acusação.
Como bem sintetiza a decisão recorrida “segundo a acusação pública, os arguidos negociaram a compra e venda de uma moradia pertencente a J e, no decurso das negociações, V deu conhecimento ao primeiro que estava interessado em concorrer a um concurso público lançado pela C.M. Abrantes, que tinha por objecto a prestação de serviços de enriquecimento curricular para o 1.º ciclo do ensino básico. O arguido J ofereceu-se então para ajudar a elaborar a proposta, com o argumento de que estava habituado a participar em concursos públicos como administrador da “SA”, tendo ambos percebido que a apresentação de uma proposta por parte da empresa a que V pertence (“L.da”) facilitaria os termos do negócio da venda da moradia e a troca de favores entre ambos para futuro, com vantagens imediatas ou vindouras para os dois.
Assim, em concretização de tal propósito, o arguido J aproveitou os seus conhecimentos como ex – vereador da C.M. Abrantes e contactou várias pessoas dos quadros municipais, entre as quais membros do júri de avaliação das propostas a concurso (em particular a presidente do júri, M), procurando influenciar a decisão final a favor do arguido V, o que este aceitou no intuito de obter vantagem patrimonial.
Sucedeu, porém, que, por razões alheias aos arguidos, a “L.da” não obteve vencimento em nenhum dos itens a concurso, pelo que aqueles não obtiveram as vantagens a que se propunham com o plano delineado”.

A primeira, mas decisiva, objecção aos termos da acusação reside na falta de concretização factual que, como muito bem realça a decisão recorrida, permita suportar a asserção de que “Os arguidos (…) perceberam que a apresentação de uma proposta por parte da “L.da” ao concurso n.º 61/2007 facilitaria os termos do negócio da venda da casa e a troca de favores entre ambos para futuro, todos beneficiando de vantagens, imediatas ou vindouras” – [cf. ponto 17.º].
Por um lado, não se percebe – e a acusação não esclarece – o motivo pelo qual o negócio da compra e venda da moradia sairia facilitado pela apresentação da dita proposta e, por outro, menos se entende – a não ser num quadro de pura conjectura, de presunção não consentida - a afirmação de que a mesma facilitaria a troca de favores entre ambos para futuro, bem como de que todos viriam a beneficiar de vantagens imediatas ou vindouras.
Com todo o respeito, estas últimas afirmações – sem o mínimo de concretização, designadamente por referência a elementos que permitissem descortinar factores reforçados de conexão, de ordem vária, entre os arguidos - traduzem-se num acto de fé, naturalmente não consentido, face aos princípios do acusatório, da vinculação temática e do direito de defesa dos arguidos.

E quanto ao negócio de compra e venda da moradia? Sairia facilitado porquê? Verificou-se alguma circunstância, por ex. de dificuldade de escoamento de mercado, ou vantajosa a nível de preço, que permita induzir tal facilidade? Ou a simples concretização de um negócio de compra e venda de um imóvel, por si só, já é susceptível de configurar a tal vantagem, patrimonial ou não patrimonial, indispensável à configuração do tipo de ilícito previsto no artigo 335.º do C. Penal?
Tem toda a pertinência e por isso se transcreve, o que a esse propósito refere a decisão recorrida “Mostra-se documentado nos autos que os arguidos celebraram a escritura de compra e venda da moradia pertencente a J em 17 de Agosto de 2007, momento em que este recebeu por inteiro o preço da venda de € 140.000, mediante empréstimo bancário contraído por V junto do BPI (cfr. documento de fls. 1362 e ss.).
Ora, o concurso público foi lançado em 6 de Julho de 2007 (fls. 1463 – 1464 e 1568), como data limite de inscrição de 4 de Setembro seguinte (fls. 1568), a “L.da” apresentou a sua proposta no último dia (fls. 1478) e a decisão do concurso ocorreu em 25 do mesmo mês. Assim sendo, se a negociação da compra e venda da moradia já estava avançada (tanto que se concretizou em 17 de Agosto), se ainda faltavam algumas semanas para o terminus do prazo de candidatura, sem qualquer garantia de que a proposta daquele arguido sairia vencedora (podendo muitos outros interessados entrar no concurso), e se o preço da moradia seria (como foi) integralmente pago em data anterior à decisão do concurso, não se percebe a que título pode concluir-se que a apresentação de uma proposta por parte da firma do arguido V facilitaria os termos do aludido negócio de compra e venda.
Da leitura das transcrições das intercepções telefónicas (fls. 1219 a 1233) e do teor de todos os depoimentos prestados no inquérito e na instrução também não se pode concluir – bem pelo contrário – que houvesse alguma vantagem para a conclusão do referido negócio com a apresentação da dita candidatura, sendo que ambos os arguidos rejeitam qualquer ligação de uma coisa com a outra.”
Convém, ainda, relembrar que nos termos da acusação o início da negociação, entre os arguidos, de compra e venda da moradia, remonta a Abril de 2007 [ponto 4.º].
E se não existem elementos [desde logo na acusação] que permitam afirmar, ainda que em termos indiciários, a verificação de tal vantagem patrimonial ou não patrimonial [o que não exclui que a mesma não tenha efectivamente ocorrido], menos existem no sentido de que o arguido J tenha solicitado ou aceitado vantagem de tal natureza, ou a sua promessa para abusar da sua influência junto da entidade pública em causa e, bem assim, que o arguido V tenha dado ou prometido vantagem patrimonial ou não patrimonial ao arguido J com tal finalidade.

Na verdade, o Ilustre recorrente nada de novo invoca que possa fazer inflectir este estado de coisas, nem seria espectável que o fizesse pois mal se compreenderia que, de posse de elementos probatórios que permitissem a concretização do que em termos conclusivos vem dito na acusação, não o tivesse feito no momento próprio, ou seja naquela peça processual.
O que se detecta na motivação do recurso é a afirmação, enfatizada, de que está em causa um crime de perigo abstracto, o que sendo correcto significa que o crime se consuma independentemente de o traficante de influência vir, efectivamente, a exercer a sua influência junto do decisor, mas não dispensa, naturalmente, que o acordo sobre o tráfico de influência seja precedido da solicitação ou aceitação de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial ou da sua promessa [n.º 1] ou da dádiva ou promessa de uma vantagem de tal natureza [n.º2], como “preço” do abuso. Dito de outro modo, o que releva é o acordo sobre o tráfico de influência com vantagem patrimonial ou não patrimonial.
Ora, no caso em apreço não é possível extrair dos factos invocados na acusação, indícios suficientes que permitam afirmar, ainda que em termos indiciários [suficientemente indiciados], a existência de uma vantagem [patrimonial ou não patrimonial] e menos ainda que permitam estabelecer a relação, que o Ilustre recorrente pretende ver, entre “a apresentação de uma proposta por parte da “Lda” ao concurso n.º 61/2007” e os termos do negócio de compra e venda da moradia, alegadamente facilitados, por aquela, por um lado e, por outro, com “a troca de favores entre ambos para futuro, todos beneficiando de vantagens, imediatas ou vindouras”, sequer com as alegadas [e diga-se, em abono da verdade, fortemente indiciadas] diligências realizadas pelo primeiro arguido [J] junto das entidades públicas, designadamente da Vereadora com o pelouro da Educação, Cultura e Acção Social, com o objectivo de levá-la a orientar de forma contrária aos seus deveres e à Lei, a decisão a proferir pela C.M. de Abrantes no citado concurso público, em benefício da sociedade “Lda”.
É que existe uma diferença considerável entre o que se julga que possa ter acontecido e o que se deve ter por indícios suficientes para o efeito do disposto no artigo 308.º, n.º 1 do CPP.
Com efeito, os indícios apenas podem ser considerados suficientes quando dos mesmos resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança. Possibilidade, essa, que exige ou pressupõe a formação de uma convicção de forte probabilidade de futura condenação, pois que da interpretação normativa do inciso indícios suficientes não se pode arredar a imposição constitucional decorrente do princípio da presunção de inocência que vigora transversalmente no processo penal, ou seja em todas as suas fases – [cf. artigo 32.º da CRP].

Posto isto, na falência de indícios suficientes de que o arguido J tenha solicitado ou aceitado vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa para abusar da sua influência junto da entidade pública em causa e/ou de que o arguido V tenha dado ou prometido vantagem de tal natureza ao arguido J para o sobredito fim, elemento essencial à configuração do tipo de crime em referência, torna-se despiciendo, por inútil, prosseguir quanto à avaliação sobre a indiciação dos demais factos descritos na acusação, considerados insuficientemente indiciados no despacho de não pronúncia.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão de não pronúncia dos arguidos J e V.

Sem tributação.

Évora, 27 de Abril de 2010 – Maria José Nogueira (relatora) - João Manuel Amaro (adjunto)