Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
51/04.6TABJA.E2
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: NE BIS IN IDEM
FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO
FRAUDE FISCAL
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O princípio ne bis in idem não constitui obstáculo a que alguém possa ser julgado por factos naturalísticos total ou parcialmente coincidentes com aqueles pelos quais já tenha respondido no âmbito de outro processo, desde que os factos sejam subsumidos a um tipo criminal diverso, que se encontre numa relação de concurso efetivo para com aquele que motivou o primeiro processo.
II - A pedra de toque, que permite distinguir entre as relações de concurso efetivo e outras realidades, reside na não identidade dos bens jurídicos tutelados por cada uma das normas incriminadoras em confronto.
III - O bem jurídico tutelado pela norma que prevê e pune o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção reside, por um lado, na confiança à vida económica, e, por outro lado, na correta aplicação dos dinheiros públicos no domínio da economia. Diferentemente, aquilo que se pretende garantir, com a punição da fraude fiscal, é a efetiva arrecadação dos impostos por parte do erário público.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
Por acórdão do Tribunal Colectivo proferido no Processo Comum nº 51/04.6TABJA, que correu termos no Tribunal da Comarca de Beja, Instância Central, Secção Cível e Criminal, foi decidido:
Julgar a acusação procedente e, em consequência condenar:
A- O arguido FAPS, como co-autor material de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou de subvenção, previsto e punido pelos art. 36º, nº 1, alínea c), nº 2, nº 5, alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de três anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de três anos;
B- A arguida “UFCQ, Ldª”, pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsidio, previsto e punido pelos art. 36º, nº 1, alínea c), nº 2, nº 5, alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), perfazendo o total de € 2 000,00 (dois mil euros);
C- O arguido JFPL pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 36 nº 1, alínea c) e nº 2 e nº 5 a), como cúmplice na pena de um ano e seis meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano e seis meses;
D- O arguido JMRA pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 36 nº 1, alínea c) e nº 2 e nº 5 a), como cúmplice na pena de um ano e seis meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano e seis meses;
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, em consequência, condenam os arguidos FAPS e a arguida UFCQ, Ldª pagarem, solidariamente, ao assistente Instituto de Financiamento, Agricultura e Pescas a quantia de € 51 159,89, acrescido de juros de mora à taxa legal sobre o capital de € 32 697,45, desde 18 de Janeiro de 2007, até reembolso efectivo;
Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:
1) A arguida UFCQ, Ldª, com o número de identificação de pessoa colectiva (.....), tem sede no (....) e dedica-se ao fabrico e comércio de queijo;
2) À data da sua constituição, em 14 de Novembro de 1994, a arguida tinha como sócios gerentes o arguido FAPS e a esposa, MBPFS, obrigando-se com a assinatura de qualquer um deles;
3) Actualmente, são sócios da sociedade arguida JADB e JMCS;
4) Por sua vez, o arguido JFPL exerce a actividade de pedreiro, tendo o n.º de identificação fiscal (….), com domicílio fiscal na Rua (....), em Beja.
5) Em 1995, o arguido, JFPL, encontrava-se inscrito como empresário em nome individual, com o número de identificação fiscal de pessoa colectiva ou equiparada (….), para o exercício da actividade de “Instalações não especificadas – Pedreiro”, a que corresponde a Classificação de Actividade Económica (CAE) 45340;
6) Encontrava-se, além disso, abrangido pelo regime da contabilidade simplificada, estando dispensado de contratar técnico oficial de contas para a organizar e elaborar;
7) Por isso, a sua escrita comercial e contabilidade eram elaboradas pelo arguido JMA que, por sua vez, era genro do arguido FAPS;
8) Em 31 de Janeiro de 1995, a arguida UFCQ, Ldª candidatou-se, no Instituto de Fomento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP), de Beja, à obtenção de subsídios, ao abrigo da Medida 5, “Transformação e Comercialização de Produtos Agrícolas e Silvícolas, Acção 5.2 — Incentivos aos Produtos Tradicionais Regionais do Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal”, na componente de Criação ou Modernização de Unidades Produtivas;
9) Para o efeito, apresentou o Projecto nº. 1995-64-00-1106-0, que se traduzia na construção de uma fábrica de transformação e comercialização de queijo de ovelha e requeijão, sendo o valor total do investimento de 45 885 995$00 (€ 228 878,37), a aplicar no Lote n.º 5, do Parque Industrial, em Beja, onde a arguida tinha a sua sede;
10) O termo de responsabilidade do Projecto foi assinado pelo arguido FAPS;
11) Este arguido sabia que a empresa arguida só receberia o subsídio se apresentasse no IFADAP os documentos comprovativos das despesas com as obras que realizadas na sede da sociedade arguida;
12) Em execução desse propósito, o arguido FAPS solicitou ao arguido JMA, seu genro, e ao arguido JFPL que “arranjassem” facturas e recibos em nome da sociedade arguida UFCQ, Ldª naquele montante, de forma a viabilizar o pagamento do subsídio a que a empresa se candidatara;
13) Assim, em data concretamente não determinada e conforme haviam planeado, os arguidos FAPS e JMA encontraram-se com o arguido JFPL no Bairro de Nossa Senhora da Conceição, em Beja;
14) Ao tomar conhecimento do propósito de ficcionar as tais despesas, o arguido JFPL facultou desde logo ao arguido FAPS as facturas com os n.º 323 e 324 e os recibos com os n.º 94 e 95, relativos à sua actividade de construção civil;
15) Por sua vez, o arguido JMA, na presença e com o conhecimento dos outros dois, preencheu, pelo seu próprio punho, as duas facturas e os recibos correspondentes;
16) Assim, escreveu na factura n.º 323, no espaço reservado:
– à data: “24 de Março de 1997”,
– ao Exm(a) Sr(a): “UFCQ, Ldª”,
– à morada: “(....)”,
–ao número de contribuinte: “(.....)”,
– à designação: “Colocação do endoncamento rede de esgotos com grelhas sifonadas e betonagem do pavimento”,
–à importância: “4.385.000$00”,
– à soma: “4 385.000$00”,
– ao IVA: “17% - 745.450$00, e
– ao TOTAL: “5.130.450$00”;
17) Por seu turno, no recibo n.º 94, correspondente à factura n.º 323, escreveu “UFCQ, Ldª”, “(....)”, “(.....)”, “à N/ Factura n.º 323” e “5.130.450$00”;
18) Por sua vez, na factura n.º 324, o arguido JMA escreveu, no espaço reservado:
– à data: “31 de Março de 1997”,
– ao Exm(a) Sr(a): “UFCQ, Ldª”,
– à morada: “(….)”,
– ao número de contribuinte: “(.....)”,
– à designação: “Pilares interiores, elevação de paredes interiores, divisões rebocos e azulejos em toda a área, montagem de janelas e portões, fornecimento e montagem de tectos falsos”,
– importância: “5 700.000$00”,
– à soma: “5 700 000$00”,
– ao IVA: “17 % - 969 000$00”, e
– ao TOTAL: “6 669 000$00”;
19) Também preencheu, pelo seu próprio punho, o recibo n.º 95, correspondente à factura n.º 324, onde escreveu “UFCQ, Ldª.”, “(.....)”, “Beja”, “à N/Factura n.º 324” e “6.669.000$00”;
20) As duas facturas e os recibos correspondentes foram assinados pelo arguido JFPL que neles escreveu, com o seu próprio punho, no espaço reservado à assinatura “JFPL”;
21) Em 27 de Agosto de 1997, o arguido FAPS, enquanto sócio-gerente da arguida UFCQ, Ldª, solicitou em nome desta o primeiro pedido de pagamento de subsídio;
22) E juntou as mencionadas facturas e recibos como comprovativo das despesas efectuadas com a execução do referido Projecto;
23) Em 1 de Setembro de 1997, foi autorizado o pagamento;
24) Em 11 de Setembro de 1997, através de transferência bancária, foi creditada a quantia de 4 694 913$00 (€ 23 418,13) na conta com o NIB (....), do Banco Português de Investimentos, de que sociedade arguida UFCQ, Ldª era titular pelo IFADAP;
25) A sociedade arguida UFCQ, Ldª deu quitação do valor referido em 26 de Setembro de 1997;
26) No dia 7 de Abril de 1998, o arguido FAPS apresentou, em representação da sociedade arguida UFCQ, Ldª, um segundo pedido de pagamento de subsídio.
27) O pedido referido em 26) foi deferido em 12 de Junho de 1998;
28) Por isso, em 19 de Junho de 1998 por transferência bancária foi creditada na conta bancária referida a quantia de €1.860.337$00 (€9 279,32).
29) O arguido JFPL não realizou quaisquer obras na sede da sociedade arguida;
30) As obras referidas nas facturas foram efectivamente realizadas por pessoas, ou entidades, concretamente não determinadas;
31) Como contrapartida da colaboração que o arguido JFPL lhe prestou, o arguido FAPS assinou o cheque n.º 5190894304, referente à conta n.º 26573822011, de que arguida UFCQ, Ldª é titular, datado de 11 de Maio de 1997, no valor de 745 450$00, equivalente ao valor do IVA da factura n.º 323 que aquele JFPL teria de pagar;
32) Este cheque foi descontado pela esposa do arguido JFPL, que veio entretanto a falecer;
33) O arguido FAPS entregou ainda ao arguido JFPL 969 000$00 em numerário, correspondentes ao valor ao IVA da factura n.º 324, que este JFPL também teria de pagar;
34) Com esta actuação, o arguido FAPS pretendeu pagar o encargo fiscal que o arguido JFPL teria de suportar quando incluísse tais facturas na sua contabilidade;
35) O arguido FAPS agiu sempre em nome e no interesse da sociedade arguida UFCQ, Ldª;
36) Sabia que pedia e obtinha do IFADAP um subsídio no valor de 6 555 250$00 (€ 32 697,45), apresentando à entidade pagadora facturas e recibos, emitidos a seu pedido pelos arguidos JMA e JFPL, que criavam a aparência de terem sido realizadas obras na sede da empresa que geria, consciente de que a real concretização das obras constituía condição para o pagamento do subsídio;
37) Os arguidos JFPL e JMRA sabiam que preenchiam facturas e recibos descrevendo valores e operações inexistentes, a pedido do arguido FAPS, para que este os usasse junto do IFADAP e assim obtivesse um subsídio para a sociedade arguida que, então, geria;
38) Estavam conscientes dos valores envolvidos e tinham noção de que as operações ficcionadas nas facturas e nos recibos eram essenciais para que o IFADAP pagasse o subsídio, não se abstendo de prestar a sua colaboração e auxílio;
39) O arguido FAPS agiu com o propósito concretizado de obter vantagens pecuniárias para si e para a sociedade arguida UFCQ, Ldª;
40) Os arguidos JFPL e JMA actuaram com a intenção de auxiliar o arguido FAPS alcançar tais vantagens;
41) Os arguidos agiram livre, deliberada, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punível por lei;
42) É aposentado, auferindo uma pensão de € 400;
43) É casado;
44) Tem o 4.º ano de escolaridade;
45) No âmbito do processo comum singular n.º 2/99.8IDBJA, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja, o arguido FAPS foi condenado, por decisão transitada em julgado no dia 19.09.2005, pela prática, no dia 28.03.1998, de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea c) do Regime Jurídico das Infracções Tributárias, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 6;
46) O arguido JFPL encontra-se desempregado e aufere uma pensão de € 150 relativa ao falecimento da esposa;
47) Vive sozinho em casa própria;
48) Tem a 3.ª classe;
49) No âmbito do processo comum singular n.º 2/99.8IDBJA, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja, o arguido JFPL foi condenado, por decisão transitada em julgado no dia 19.09.2005, pela prática, no dia 28.03.1998, de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea c) do Regime Jurídico das Infracções Tributárias e um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 do Regime Jurídico das Infracções Tributárias na pena única de 280 dias de multa à taxa diária de €6;
50) O arguido JMA é contabilista, encontrando-se neste momento desempregado e auferindo um subsídio de € 230;
51) Vive em casa arrendada, pagando a quantia de € 50;
52) É casado, trabalhando a sua esposa numa sapataria;
53) Tem 2 filhos de 9 e 11 anos;
54) O arguido JMA não tem antecedentes criminais;
55) O IFADAP, no caso do pedido de subsídio, em causa nos autos, não pagava a factura apresentada, pagava uma percentagem sobre uma despesa efectuada.
56) O projecto em causa nos autos foi financiado a 65%.
57) O IFADAP procedeu ao pagamento da segunda fracção de prestação do subsídio, atribuído nos termos acima expostos, mediante a apresentação das facturas, em causa nos autos, bem como com base no parecer elaborado pelo técnico que vistoriou a obra, pela primeira vez, em 30 de Maio de 1995, tendo constatado que a mesma se encontrava num avançado estado de construção.
Do referido acórdão o arguido e demandado FAPS veio interpor recurso devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 - O arguido recorre do acórdão do Tribunal Judicial de Beja que o condenou na pena de um ano e seis meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano e seis meses e no pedido de indemnização cível, solidariamente com a arguida UFCQ, Ldª a pagarem, ao assistente Instituto de Financiamento, Agricultura e Pescas a quantia de € 51 159,89, acrescido de juros de mora à taxa legal sobre o capital de € 32 697,45.
2 - O que se submete à cognição desse Venerando Tribunal restringe-se a matéria de direito.
3 – O âmbito do recurso, é definido pelas conclusões que o recorrente retira da respectiva motivação, não obstante as questões de conhecimento oficioso, caso das cominadas com a nulidade e as previstas no art. 410º nº 2 do C.P.P. ex vi o art.412º nº1 do já citado diploma.
4 - O objecto do presente é apreciar, se a conduta do arguido é lesiva do específico bem jurídico protegido pela norma e se tem enquadramento nos elementos típicos do crime em apreço.
5 - Adiantamos que entendemos que não.
6 - O arguido foi condenado, por estes factos, no âmbito do processo n.º 2/99.8IDBJA, do 2.º Juízo deste mesmo Tribunal, por um crime de fraude fiscal devido à emissão das facturas que serviram para a obtenção do subsídio em causa nestes autos, facto dado como provado no acórdão recorrido.
7 - A condenação nestes moldes do recorrente é violadora do principio constitucional non bis in idem, ínsito no art.º 29.º, n.º 5 da Lei Fundamental.
8 - O facto relevante para o pagamento do subsídio era a feitura da obra, com a qual era atingido o objectivo – modernização da economia – da medida a que o arguido se candidatou.
9 - As facturas eram apresentadas em momento anterior, logo, sem elas o processo não seguiria, no entanto, sem as vistorias efectuadas à progressão da obra não havia pagamento.
10 - Obviamente que as facturas tinham importância, mas foram apresentadas muito antes do pagamento que só ocorria, reitera-se com a obra feita.
11 – A preexistência das facturas para o despoletar do processo não origina qualquer incompatibilidade com a matéria de facto dada como provada, no sentido de que também faziam falta para o pagamento.
12 – O crime em causa é contra a economia.
13 - A incriminação tem em vista a tutela do sistema económico.
14 - Na concessão do subsídio ou subvenção, considerando o conceito do art.º 21.º, em respeito pela finalidade.
15 - Na protecção do património público, no sentido de não aplicar os valores públicos a fins diferentes dos destinados.
16 - O bem jurídico protegido não foi afectado pela conduta do arguido.
17 - Seria necessária para que o bem jurídico protegido fosse afectado, a existência de nexo causal entre o erro da entidade decisora e a conduta do agente de maneira a que se pudesse dizer que foi o fornecimento de informações falsas que originou o erro da entidade que atribuiu o subsídio.
18 - Acórdão aludido (STJ, de 19.02.2003, colectânea de jurisprudência, I, pg 204 e 205), ainda um outro igualmente do STJ, 15.10.97, processo 97P1316, Relator Andrade Saraiva (JUSNET 7125/1997), no qual se refere que “a conduta do arguido deverá ser falsa na sua estrutura e nos seus objectivos, porquanto, através da actividade em si mesma desajustada à realidade, terá que visar destinar as quantias recebidas a fins inteiramente diversos dos declarados.”
19 - O fim visado pela atribuição do subsídio constante da “Medida 5 – Transformação e Comercialização de Produtos Agrícolas e Sílvicolas” foi atingido.
20 - Só ocorreria crime se tivesse “sido criada a aparência de ter realizado as obras” e não fossem realizadas.
21 - O arguido deve ser absolvido.
22 – Do crime, e do pedido cível por inexistência de qualquer lesão de interesses patrimoniais do assistente.
23 - Ao condenar o arguido quando o deveria ter absolvido, violou o Tribunal a quo os comandos ínsitos no n.º 5 do art.º 29.º da CRP, pois entende-se que a condenação se reporta aos mesmos factos pelos quais fora condenado no processo n.º 2/99.8IDBJA, 2.º Juízo, Tribunal de Beja.
24 – Igualmente violou o Tribunal a quo os art.ºs 36.º, n.º 1 c), n.º 2 e n.º 5 a), do DL 28/84, de 20/01.
TERMOS EM QUE,
Deve a decisão recorrida ser substituída por outra que absolva o arguido, quer do crime pelo qual foi condenado, quer do pedido cível.
O recurso interposto do acórdão foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.
O MP respondeu à motivação do recorrente, tendo, por sua vez, formulado as seguintes conclusões:
1.ª - A condenação nestes autos do recorrente FAPS não ofende o princípio non bis in idem acolhido no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
2.ª - A matéria de facto provada congrega todos os pressupostos típicos do crime de fraude na obtenção de subsídio ou prevenção p. e p. pelo artigo 36.º, n.º 1, al. c), n.º 2 e n.º 5, al. a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, pelo qual o recorrente foi condenado.
O Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP, IP), constituído assistente nos autos, também respondeu à motivação do recurso, firmando as seguintes conclusões:
1ª O Acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal a quo na sequência do decidido por esse Venerando Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 18/11/2008, que concedera provimento ao recurso interposto pelo IFAP IP do Acórdão do Tribunal a quo de 11/03/2008;
2ª Conforme se colhe dos autos, neles é Imputada aos arguidos a prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punido pelo artigo 36.°, n.° 1, al. c), n.° 2 e n.° 5, al. a) do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, conjugado com os artigos 26.° e 202.°, al. b), estes últimos do Código Penal;
3ª De acordo com a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido, não há dúvida alguma de que o arguido FAPS, aqui Recorrente, com a cooperação dos demais arguidos, forneceu ao Instituto informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos relevantes e determinantes para a concessão do subsídio ou subvenção, para o efeito tendo utilizado documentos falsos tendo em vista justificar o direito à subvenção ou subsídio;
4ª A verificação do crime em causa nos presentes autos exige que os beneficiários da subvenção ou subsídio tenham fornecido às entidades competentes informações inexactas ou incompletas relativas a factos relevantes e determinantes para a sua concessão, segundo um processo de execução vinculada, por fazer parte da própria descrição típica e ter o subsídio ou subvenção sido obtido por força do erro dolosamente criado (exactamente assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2004, Colectânea de Jurisprudência, II, pág. 235);
5ª No caso em presença, foi o fornecimento das informações falsas pelo arguido FAPS, aqui Recorrente, que induziu em erro a entidade que cabia decidir pela atribuição do subsídio ou subvenção;
6ª Por isso, afigura-se ao Instituto errada a conclusão do aqui Recorrente de que, no caso em presença, não houve lesão do bem jurídico protegido pela incriminação que lhes é imputado, não tendo praticado o crime, pelo que igualmente se afigura que A ideia errada de que o que importa é o resultado final alcançado, não deve merecer acolhimento;
7ª Por outro lado, também se afigura que, tratando-se de tutela de bens jurídicos distintos, não se vê em que medida é que a condenação a que o Recorrente se refere por prática de crime fiscal, prejudique ou obste à sua condenação pela prática de crime de fraude na obtenção e subsídio;
8ª Em tais circunstâncias, não se vê qual o erro ou o vício suscetível de poder ser imputado ao Tribunal a quo na prolação do Acórdão recorrido, no qual se afigura ter sido julgada correctamente a factualidade relevante bem como correctamente também se afigura ter sido aplicado o Direito;
Termos em que, por via da improcedência das Conclusões extraídas pelo Recorrente das suas Alegações, deve ser negado provimento ao recurso
A Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso interposto, pugnando pela sua improcedência.
Foi dado cumprimento ao disposto no nº 2 do art. 417º do CPP, não tendo qualquer dos sujeitos processuais exercido o direito de resposta.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II. Fundamentação
Nos recursos, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância do acórdão recorrido, expressa pelo arguido FAPS nas suas conclusões, versa apenas sobre matéria jurídica e centra-se na pretensão de absolvição do recorrente da acusação e do pedido de indemnização civil, com base num dos seguintes fundamentos:
a) Os factos provados não integram a tipicidade do crime de fraude na obtenção de subsídio ou de subvenção, p. e p. pelo art. 36º, nº 1, al. c), nº 2, nº 5, al. a), do DL nº 28/84, de 20/1; ou
b) A condenação violou o princípio constitucional «ne bis in idem», consagrado no nº 5 do art. 29º do CRP, porquanto o arguido foi anteriormente condenado pelos mesmos factos no processo nº 2/99.8IDBJA.
Relativamente ao primeiro dos fundamentos em que o recorrente faz assentar a sua pretensão, importa ter presentes os seguintes aspectos do processado dos autos:
1) Em 2/7/09, foi proferido pelo Tribunal Colectivo do então 1º Juízo do Tribunal Judicial de Beja acórdão que absolveu os arguidos «UFCQ, Ldª», FAPS, JFPL e JMRA, da acusação contra eles deduzida pelo MP, imputando-lhes a prática, os dois primeiros como autores materiais e os dois últimos como cúmplices, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou de subvenção, p. e p. pelo art. 36º, nº 1, al. c), nº 2, nº 5, al. a), do DL nº 28/84, de 20/1, bem como do pedido de indemnização civil contra eles formulado pelo assistente então com a designação de Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP) (fls. 1153 a 1172);
2) Do referido acórdão absolutório interpuseram recurso separadamente, para este Tribunal da Relação de Évora o MP e o assistente IFADAP (fls. 1179 a 1186 e 1187 a 1196);
3) Sobre os recursos interpostos recaiu acórdão desta Relação de 8/7/10, que lhes concedeu provimento e, consequentemente, revogou o acórdão recorrido e determinou a sua substituição por outro «que, em face da matéria de facto fixada, condene os arguidos UFCQ, Ldª e FAPS, como autores materiais de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelo artigo 36º, nº 1 alínea c), nº 2 e nº 5, alínea a) do Decreto-Lei nº 28/84 de 20 de Janeiro, conjugados com os artigos 26º e 202º, alínea b), estes últimos do Código Penal e os arguidos JFPL e JMRA, enquanto cúmplices da prática do mesmo crime», mais devendo «ser proferida condenação atinente ao pedido cível» (fls. 1238 a 1262);
4) O acórdão desta Relação de 8/7/10 não foi impugnado por via de recurso ou outra, tendo transitado em julgado;
5) O acórdão do Tribunal Colectivo agora sob recurso foi proferido em execução do decidido pelo desta Relação de 8/7/10.
Tendo incidido sobre dois recursos interpostos de um acórdão absolutório, na dupla vertente criminal e civil, o acórdão proferido por esta Relação em 8/7/10 conheceu de todas as questões que se prendiam com a culpabilidade dos arguidos, nas quais se inclui a aptidão dos factos provados para preencher o tipo de crime por que estes vêm acusados.
Uma vez formado um juízo afirmativo da culpabilidade dos arguidos, o Tribunal da Relação, no referido aresto de 8/7/10, não avançou para determinação da sanção, mas antes determinou a realização dessa operação jurídica, bom como da fixação do montante da indemnização civil, pela primeira instância, a fim de permitir aos arguidos o exercício do direito ao recurso sobre esta matéria.
Tal equivale a dizer que, com o trânsito em julgado do Acórdão de 8/7/10, a questão da aptidão dos factos provados para integrar o crime por que os arguidos vinham acusados encontra-se definitivamente resolvida no processo, de acordo com o princípio da exaustão do poder jurisdicional do Tribunal, consagrado no art. 613º nº 1 do actual CPC e extensivo ao processo penal por via do art. 4º do CPP.
Nesta ordem de ideias, não é lícito ao arguido FAPS reabrir a discussão dessa questão, no recurso que interpôs do acórdão que fixou a medida da pena e o valor da indemnização.
Como tal, a pretensão recursiva terá de improceder, quanto ao primeiro dos fundamentos invocados.
Resta ajuizar então se a condenação proferida contra o arguido recorrente, no acórdão recorrido, colide de alguma forma com o postulado constitucional «ne bis in idem», com referência à condenação por ele sofrida no Processo n.º 2/99.8IDBJA.
O invocado princípio constitucional encontra-se consagrado no nº 5 do art. 29º do CRP, nos seguintes termos:
Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Acerca da condenação sofrida pelo recorrente no processo nº 2/99.8IDBJA, sabemos apenas o que consta do ponto 45 da matéria de facto provada: que o arguido FAPS foi condenado nesses autos, por decisão transitada em julgado no dia 19/9/05, pela prática, no dia 28/3/98, de um crime de fraude fiscal p. e p. pelo art. 103º, n.º 1, al. c) do RJIT, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 6.
Não consta da factualidade julgada provada, na sentença recorrida, qualquer elemento relativo aos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº 2/99.8IDBJA e que motivaram a condenação então infligida ao ora recorrente.
Contudo, o conhecimento desses factos pode não ser indispensável para dirimir a questão jurídica que nos ocupa.
No parecer que emitiu sobre o mérito do recurso, parte do qual nos permitimos agora reproduzir, a Digna PGA em funções junto deste Tribunal tratou de forma aprofundada as implicações do princípio invocado (transcrição com diferente tipo de letra):
A lei fundamental ao referir-se ao duplo julgamento e ao mesmo crime carece, contudo, de interpretação, a qual, conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira em Constituição da República Portuguesa Anotada (1978), 21 e 55, deverá ter em especial atenção que os preceitos constitucionais não podem ser considerados isoladamente e interpretados a partir de si próprios, devendo assim considerar-se as conexões de sentido que se estabelecem entre os seus preceitos, bem como a "arquitectura sistemática" de cada divisão da Constituição.
Por outro lado, certo é também que a tarefa interpretativa dos preceitos constitucionais não prescinde igualmente de uma visão global dos ramos de direito em que se projectam, e que ao fim e ao cabo pretendem nortear.
A expressão "mesmo crime" não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, "mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado - e não tanto de um crime - que se quer evitar. O que o n.º 5 do art. 29.° da C.R.P. proíbe, é no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal" Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, pág 221, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira,
"Na base do instituto em questão, está, no fundo a própria dignidade da pessoa humana, base da soberania de um Estado Democrático em que o indivíduo é credor do respeito pelos seus direitos e liberdades fundamentais - art°s I ° e 2° da CRP. Ao impedir um segundo julgamento - portanto, as decisões judiciais, quer condenatórias quer absolutórias - pelo mesmo crime está a garantir-se, àquele que viveu a dramática experiência de um processo penal, que não possa mais, por aquele acontecimento, voltar a ser incomodado, assegurando-se, assim, ad futurum, a paz jurídica ao cidadão". Frederico Isasca, mesma obra, pág. 220 e ss.
E acrescenta ainda o referido autor que" o caso julgado se fundamenta, também num postulado axiológico, qual seja o da justiça da decisão do caso concreto. Parte-se do pressuposto de que a verdade apurada corresponde à verdade material na qual assenta a decisão jurídica que, uma vez transitada em julgado, se cristaliza como verdade absoluta.
Os limites do instituto do caso julgado estão condicionados pelo objecto do processo.
O objecto do processo é fixado pela acusação ou pelo despacho de pronúncia, sendo estes que, à partida, delimitam os poderes de cognição do tribunal-art. 1º, nº 1, al. f), 283.°, 303º, 308º, 358º, 359.°, 379.°, n.º 1, al. b); Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", Vol. I (1981), pag 145.
Mas o que se deve entender por objecto de um processo? O mesmo crime, sua qualificação jurídica? Os mesmos factos?
Tem de haver "identidade ou coincidência fundamental dos bens jurídicos - logo, dos tipos legais de crime.
Estaremos, em regra, "perante o mesmo crime quando os factos provados em julgamento, no seu relacionamento com os acusados, dão lugar a uma situação de concurso aparente ou de continuação criminosa, formando com eles uma unidade jurídico-normativo ( ... ); e bem assim nos casos em que se mantém firme a incriminação, embora com alteração de factos que lhe servem de apoio: alteração, entenda-se, não essencial, por forma que continuam passíveis do mesmo juízo de valoração social".
Mas já haverá uma diversidade de crimes "quando o material fáctico colhido em julgamento redunde numa situação de concurso efectivo, real ou ideal (...); e ainda quando, diferindo essencial ou estruturalmente do que serviu de suporte à acusação, transmite agora uma realidade diferente e impõe, em consequência, uma diferente avaliação social, sem prejuízo de manter-se eventualmente a sua qualificação jurídica". Robalo Cordeiro "o Novo Código Processo Penal" (1997), p. 304/5, sobre "A audiência de julgamento".
Vem-se entendendo na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores:
«O artigo 29°, n.º 5, da Constituição dispõe que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime".
Segundo J. J. GOMES CANOTlLHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3a edição, Coimbra, 1993, página 194), este preceito constitucional "proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime" [Sobre uma aplicação do principio ne bis in idem e a sua conjugação com o direito à revisão de sentenças condenatórias - n.º 6 do artigo 29° -, cf. o acórdão n.º 158 da Comissão Constitucional (publicado no Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979, página 68 a 71)].
Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a "prática do mesmo crime" ou perante um concurso efectivo de infracções, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra,).
É que, sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto, porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma acção delituosa. O que vale por dizer de uma mesma conduta naturalística.
Para decidir se existe um único crime ou um concurso efectivo de crimes, há que recorrer - recordam aqueles autores (ob. e loco cit.) - "aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais". Ac T Constitucional n° 102/99
«( ... ) o n° 5 do artigo 29° da Constituição, ao determinar que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", tem em vista não apenas o duplo julgamento mas ainda a dupla incriminação ou penalização (cf. GOMES CANOTILHOIVITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 33 ed., Coimbra, 1993, pág. 194).
Na sua vertente substantiva (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1997, pág. 305, nota 2), o princípio "ne bis in idem" proíbe a plúrima punição da mesma infracção. Este princípio não é, porém, incompatível com a valoração plural do mesmo facto ou da mesma acção.
A doutrina penalística portuguesa, na esteira de EDUARDO CORREIA (Unidade e pluralidade de infracções, passim, in A teoria do concurso em Direito Criminal, reimp., Coimbra, 1983) defendeu a aplicação do regime do concurso efectivo de crimes - com o inerente afastamento do chamado concurso aparente, ou concurso de normas -, que se traduz entre nós na realização de um cúmulo jurídico das respectivas penas (v. artigos 77° e 78° do Código Penal), quer ao chamado concurso real, quer ao denominado concurso ideal de crimes. O n° I do artigo 30° do Código Penal de 1982 veio justamente consagrar tal aplicação, mediante uma equiparação das duas modalidades de concurso de crimes. No último caso (concurso ideal), um único facto ou acção é multiplamente qualificado como crime, quer por força da violação simultânea de mais do que uma norma incriminadora (concurso ideal heterogéneo), quer por força da ofensa plural da mesma norma incriminadora (concurso ideal homogéneo).
É muito complexa a questão de saber quais os limites que constitucionalmente condicionam a possibilidade de tratar como concurso efectivo e não como mero concurso aparente determinado comportamento tipificado na lei penal. Mas não basta evidentemente invocar a punição plural de um facto ou acção unitários para se ter como demonstrada uma violação do n° 5 do artigo 29° da Constituição.
O apuramento de tal violação pressupõe que as normas em causa sancionem - de modo duplo ou múltiplo - substancialmente a mesma infracção.
A contrariedade ao princípio "ne bis in idem" depende assim da identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas. Ac T Constitucional n° 244/99
De acordo com o douto parecer que acabámos de transcrever, ao qual, pela sua justeza, nos permitimos aderir, o princípio «ne bis in idem» não constitui obstáculo a que alguém possa ser julgado por factos naturalísticos, total ou parcialmente coincidentes com aqueles, pelos quais já tenha respondido no âmbito de outro processo, desde que os factos sejam subsumidos a um tipo criminal diverso, que se encontre numa relação de concurso efectivo para com aquele que motivou o primeiro processo.
A pedra de toque, que permite distinguir entre as relações de concurso efectivo e outras realidades, reside na não identidade dos bens jurídicos tutelados por cada uma das normas incriminadoras em confronto.
O tipo criminal da fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, por cuja prática o arguido FAPS foi condenado nos presentes autos, é definido pelo nº 1 do art. 36º do DL nº 28/84 de 20/1, nos seguintes termos:
Quem obtiver subsídio ou subvenção:
a) Fornecendo às autoridades ou entidades competentes informações inexactas ou incompletas sobre si ou terceiros e relativas a factos importantes para a concessão do subsídio ou subvenção;
b) Omitindo, contra o disposto no regime legal da subvenção ou do subsídio, informações sobre factos importantes para a sua concessão;
c) Utilizando documento justificativo do direito à subvenção ou subsídio ou de factos importantes para a sua concessão, obtido através de informações inexactas ou incompletas;
será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 50 a 150 dias.
Por seu turno, o crime de fraude fiscal, pelo qual o arguido FAPS foi condenado no processo n.º 2/99.8IDBJA, é assim tipificado pelo nº 1 do art. 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT):
Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
Como pode verificar-se, o bem jurídico tutelado pela norma que prevê e pune o crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção reside, por um lado, na confiança à vida económica e, por outro lado, a correcta aplicação dos dinheiros públicos no domínio da economia.
Diferentemente, aquilo que se pretende garantir, com a punição da fraude fiscal, é a efectiva arrecadação dos impostos por parte do erário público.
É certo que estão em causa, em ambos os casos, dinheiros públicos, mas em momentos e perspectivas completamente diferentes: no momento da sua cobrança pelo Estado, quanto à fraude fiscal; no momento da sua aplicação no apoio à actividade económica, no que se refere à fraude na obtenção de subsídio ou subvenção.
Nesta conformidade, teremos de concluir pela inexistência de identidade entre os bens jurídicos tutelados por cada um dos tipos de crime em confronto, pelo que os dois se encontram numa relação de concurso efectivo.
Assim, mesmo na hipótese de a conduta naturalística pela qual o arguido FAPS responde no presente processo coincidir com aquela por que ele respondeu no âmbito do processo n.º 2/99.8IDBJA, a condenação contra ele proferida nestes autos não é ofensiva do princípio constitucional «ne bis in idem».
Por conseguinte, improcede também o segundo fundamento da pretensão recursiva e, com ele, o recurso na sua totalidade.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.

Évora 16-06-2015
(processado e revisto pelo relator)

Sérgio Bruno Póvoas Corvacho

João Manuel Monteiro Amaro