Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1377/18.7T8STB-A.E1
Relator: MARIA DA GRAÇA ARAÚJO
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
HIPOTECA VOLUNTÁRIA
MÚTUO BANCÁRIO LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
VENCIMENTO IMEDIATO DAS PRESTAÇÕES
INTERPELAÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
FORMA DE PROCESSO
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Uma escritura pública de compra e venda e mútuo, garantido por hipoteca, por via da qual se constituiu uma obrigação de que os mutuários se confessaram devedores, constitui título executivo válido e suficiente na execução para pagamento da quantia em dívida por força do incumprimento daquela obrigação.
II – Tendo os mutuários deixado de pagar as prestações mensais acordadas para liquidação do empréstimo, constituíram-se na esfera jurídica do mutuante vários direitos.
III – Um deles é o de considerar vencida antecipadamente a totalidade da dívida de capital.
IV – O exercício desse direito traduz-se na interpelação do devedor para pagar tal dívida, pelo que a faculdade conferida pelo artigo 781º do cód. Civ. não funciona automaticamente.
V – Mas, porque o vencimento dessa dívida só depende de interpelação, a dívida considera-se exigível nos termos do artigo 713º do Cód. Proc. Civ..
VI – Quando tal dívida ainda não se venceu por falta de interpelação extrajudicial, o credor tem de lançar mão da forma ordinária da execução para pagamento de quantia certa, considerando-se, então, que a citação equivale à interpelação.
VII – Se, ao invés, o credor opta pela forma sumária, a ausência de interpelação extrajudicial prévia à instauração da execução tem como consequência a extinção da acção executiva. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Por apenso à execução sumária que H… S.A. instaurou contra E… e M… – para deles haver a quantia de 33.756,14€ de capital, 3.852,31€ de juros de vencidos e juros vincendos, titulada por escritura pública – veio esta deduzir embargos de executado.
Alegou, em síntese – e na parte que revela para o objecto deste recurso – que: a obrigação exequenda está prescrita, por terem decorrido mais de cinco anos entre a alegada data do incumprimento e a citação e sendo que não houve suspensão ou interrupção do prazo de prescrição; a exequente não juntou documento comprovativo de que tivesse comunicado a eventual mora e/ou incumprimento definitivo e/ou resolução do contrato, o que deveria ter feito nos termos do artigo 724º do Cód. Proc. Civ.; por isso, o agente de execução devia ter recusado o requerimento executivo ou suscitado a intervenção do juiz; este deveria ter indeferido liminarmente o requerimento por manifesta falta ou insuficiência do título ou convidado o exequente suprir as irregularidades.
A embargante concluiu pela procedência dos embargos, julgando-se prescrita a obrigação ou, subsidiariamente, não provado o crédito exequendo.
A exequente contestou, dizendo, em resumo e na parte que ora interessa considerar, que: com o incumprimento dos devedores, toda a dívida se venceu imediatamente, passando a ser-lhe aplicável o prazo de prescrição de 20 anos; o título executivo é a escritura que incorpora a obrigação dos devedores.
Concluiu pela improcedência dos embargos.
O tribunal convidou a exequente a esclarecer se enviara carta a reclamar o pagamento de todos os valores devidos, vencidos e vincendos, e, na afirmativa, para juntar aos autos a carta ou cartas em causa, bem como os comprovativos do seu envio.
Na sequência da notificação do referido despacho, a exequente juntou aos autos duas cartas dirigidas à embargante e datadas de 24.8.09 e 30.9.09.
A embargante pronunciou-se pela irrelevância dessas cartas por anteriores ao alegado vencimento da dívida.
Na audiência prévia, foi fixado o valor da causa, proferido despacho saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, julgando os embargos procedentes, declarou extinta a execução relativamente à embargante.

A exequente/embargada interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
a) O Tribunal a quo cometeu um claro erro de julgamento e apreciação da prova, ao considerar os embargos procedentes;
b) Para o efeito, o Tribunal conclui pela extinção do processo e a consequente procedência dos embargos, porque considera que deveria ter existido interpelação para pagamento, prévia à instauração da execução, não sendo aplicável o artigo 805.º Código Civil, não tendo justificado a não aplicação deste artigo;
c) A sentença de que se recorre deve ser substituída por outra, que considere os embargos improcedentes;
d) A Cláusula 10 do referido documento complementar refere: «A CEMG reserva-se o direito de resolver o contrato considerando o crédito imediatamente vencido se o imóvel hipotecado for alienado, arrendado ou de qualquer forma cedido ou onerado sem o seu consentimento escrito, se lhe for dado fim diverso do estipulado e, ainda, no caso de falta de cumprimento pela parte devedora de qualquer das obrigações assumidas neste contrato.» e que esta obrigação é exigível, nos termos do 805.º n.º 1 do Código Civil;
e) Com a citação após penhora, a Executada considera-se interpelada para efectuar o pagamento;
f) Nesse sentido preceitua o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/05/2012, processo n.º 7169/10.4TBALM-A.L1—7, relator Graça Amaral e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-06-2012, processo n.º 10987/05.1TDLSB.L1.S1, relator Rodrigues da Costa;
g) A jurisprudência maioritária preceitua que a interpelação considera-se efectuada com a citação do executado, sobrecoçando o alegado pelo tribunal a quo;
h) A interpretação do Tribunal a quo, além de errada, extravasa as competências do mesmo, já que no fim das contas não se limita a interpretar um preceito legal, mas sim a rejeitá-lo sem qualquer fundamento legal;
i) Ainda que se admitisse a falta de interpelação, o que se faz por mero dever de patrocínio, sempre se diria que a citação valeria como tal, desencadeando então o vencimento antecipado das prestações vincendas, nos termos do artigo 610.º 2 b) do CPC, aplicando-se este artigo;
j) Por todo o supra exposto, é forçoso concluir que não assiste qualquer razão ao entendimento do douto Tribunal.

A executada/embargante não apresentou contra-alegações.
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A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. A ação executiva baseia-se em escritura pública de compra, venda e empréstimo, celebrada em 22.03.2001, nos termos da qual o executado, de um lado, por si e na qualidade de procurador da embargante, e a CEMG, através do seu representante, por outro lado, declararam que a segunda emprestava aos executados a quantia de € 139.663,41 (Esc. 28.000.000$00), quantia de que os executados se declararam devedores, para aquisição das frações autónomas “A” e “G” do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º … da freguesia do Sado, omisso na matriz, mas tendo sido requerida a sua inscrição (foi, entretanto, inscrito sob o artigo …), consignando-se que o empréstimo se regeria quer pelas cláusulas constantes da escritura, quer pelas cláusulas constantes do documento complementar, e prevendo-se que o empréstimo seria amortizado em 360 prestações mensais de capital e juros, vencendo-se a primeira no dia 22 do mês seguinte ao da celebração da escritura e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes.
2. Para garantia do pagamento do capital, juros e despesas, o executado, por si e enquanto procurador da embargante, declarou constituir a favor do exequente uma hipoteca sobre as frações autónomas referidas no ponto anterior.
3. Na escritura referida em 1., o segundo outorgante (executado) foi identificado da seguinte forma:
“(…) intervém por si e na qualidade de procurador de sua mulher, com a qual, segundo declarou, é casado sob o regime da comunhão de adquiridos, com ele habitualmente residente, M…, natural da Checoslováquia, com o número fiscal de contribuinte …, no uso dos poderes que lhe foram conferidos na procuração, que arquivo”.
4. A cláusula 10ª, 1. do documento complementar da escritura tem a seguinte redação:
“Cláusula 10ª
(Direito de resolução)
1. A CEMG reserva-se o direito de resolver o contrato considerando o crédito imediatamente vencido se o imóvel hipotecado for alienado, arrendado ou de qualquer forma cedido ou onerado sem o seu consentimento escrito, se lhe for dado fim diverso do estipulado e, ainda, nos casos de falta de cumprimento pela PARTE DEVEDORA de qualquer das obrigações assumidas neste contrato.
(…)”.
5. Relativamente à fração “A”, a hipoteca referida em 2. foi inscrita no registo predial sob a AP. 33 de 2001/10/10.
6. Os executados deixaram de pagar as prestações devidas a partir de 22.08.2010.
7. A execução apensa deu entrada em juízo no dia 22.02.2018.
8. A penhora da fração “A” referida em 1. foi inscrita no registo predial através da Ap. 3755 de 2018/05/10.
9. A embargante foi citada para os termos da execução no dia 17.10.2018.
10. No requerimento executivo alega-se, além do mais, o seguinte:
“I - QUESTÃO PRÉVIA - DA LEGITIMIDADE DA EXEQUENTE
Por Contrato de Venda de Créditos, assinado em 30 de dezembro de 2016, a CAIXA … vendeu o(s) crédito(s) que detinha sobre o(s) Executado(s) e todas as garantias acessórias a ele(s) inerentes, à M…, S.A., conforme Documento n.º 1 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
É parte integrante do mencionado contrato o Anexo 1 (carteira de créditos), no qual se encontra a identificação da globalidade dos créditos cedidos. Contudo, em virtude do elevado número de créditos cedidos, é opção da ora Exequente não juntar aos presentes autos, no que ao ANEXO 1 se refere, o documento completo uma vez que o mesmo ultrapassa os 10MB suportados pela plataforma CITIUS e, não obstante as diversas tentativas de digitalização, o mesmo não se apresenta legível, e que, salvo melhor entendimento, também não traria qualquer mais-valia para o julgamento da presente causa. Deste modo, o Anexo 1, integrado do Documento nº 1, seguirá apenas com a página onde se encontra(m) mencionado(s) o(s) crédito(s) ora cedido(s).
No âmbito do mencionado contrato, a CAIXA …, desde logo, autorizou a M…, S.A. a ceder a sua posição contratual à H… SA (Cessionária Autorizada).
Posteriormente, em 24 de Fevereiro de 2017, por Notificação da Cessão da Posição Contratual, a H… SA adquiriu plenamente os direitos e ficou vinculada às correspondentes obrigações assumidas pela M…, no Contrato referido em 1. supra, conforme Documento n.º 2 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
A referida cessão incluiu a transmissão de todas as garantias e direitos acessórios dos créditos, designadamente das hipotecas constituídas sobre o imóvel infra descrito.
A Exequente procedeu já ao registo de transmissão da hipoteca a seu favor junto do SIR - Lisboa, conforme AP. 1088 de 2017-10-12, constante da certidão do registo predial que ora se junta como Documento n.º 3 e se dá por integralmente reproduzida.
O que faz com que, presentemente, a Exequente seja a actual titular do crédito exequendo.
II – DOS FACTOS
No dia 22 de Março de 2001, no exercício da sua actividade creditícia, a "Caixa …, celebrou com o Executado E…, com o NIF …, um contrato de mútuo com hipoteca, no montante de 28.000.000$00 (vinte e oito milhões de escudos), contravalor de €139.663,41 (cento e trinta e nove mil, seiscentos e sessenta e três euros e quarenta e um cêntimos), por escritura pública, conforme resulta da cópia que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, como Documento n.º 4.
O referido mútuo encontra-se garantido por hipoteca constituída sobre a fracção “A”, correspondente à Garagem na Cave, com o n…., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta do Meio, …, freguesia do Sado, do Concelho de Setúbal, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º … da aludida freguesia, e inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º … da Freguesia do Sado.
A hipoteca acima mencionada encontra-se registada através da AP. 33 de 2001-10-10, até ao montante máximo 36.763.048$00 (trinta e seis milhões, setecentos e sessenta e três mil e quarenta e oito escudos), contravalor de €183.373,31 (cento e oitenta e três mil, trezentos e setenta e três euros e trinta e um cêntimo), conforme documento n.º 3 junto.
No contrato de mútuo em causa, ficou convencionado que o pagamento do mútuo seria efectuado em 30 (trinta) anos, através do pagamento de 360 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira um mês após a data da escritura e as restantes em igual dia dos meses seguintes, conforme documento complementar ao contrato de doc. 4.
Sucede que, apesar de instado para o respectivo pagamento, o Executado faltou ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao Banco mutuante, não tendo pago as prestações que se venceram a partir de 22-08-2010.
O pagamento não se presume e a falta de pagamento de qualquer das prestações implica o vencimento de toda a dívida - Cfr. Artigos 781º e 817º do Código Civil.”.
11. Acha-se inscrita no registo predial, a favor da exequente, através da Ap. 1088 de 2017/10/12, por cessão, a transmissão do crédito da CEMG, garantido por hipoteca.

A 1ª instância considerou não se terem provado outros factos relevantes, nomeadamente, que a exequente enviou cartas para a embargante a reclamar o pagamento da totalidade da dívida.
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I - A primeira questão a tratar respeita à validade do título executivo.
Com efeito, a sentença considerou que a exequente não dispunha de título executivo válido por, à data da instauração da execução, não se mostrar que a executada havia sido interpelada para pagar a totalidade da dívida, vencida nos termos do nº 1 da cláusula 10ª do documento complementar da escritura pública de compra e venda e mútuo.

Não há dúvidas de que o título executivo subjacente a esta execução é um documento exarado por notário, por via do qual se constituiu a obrigação de os ora executados pagarem à ora exequente, em determinadas condições também convencionadas, a quantia por ela então emprestada, e da qual aqueles se confessaram devedores (ponto 1. da matéria de facto). Ou seja, o documento dado à execução encontra típico aconchego na alínea b) do nº 1 do artigo 703º do Cód. Proc. Civ..
Seja o título executivo apelidado de condição geral da execução (Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, Coimbra, 11ª edição:27), pressuposto formal da execução (Castro Mendes, Acção Executiva, AAFDL, Lisboa, 1980:8) ou pressuposto processual específico da acção executiva (Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do código de processo civil de 2013, Gestlegal, Coimbra, 7ª edição:39/44), o que é facto é que sem título não pode lançar-se mão desse tipo de acção (artigo 703º nº 1 do Cód. Proc. Civ.). É que o título representa, precisamente, o elevado grau de probabilidade da existência de uma obrigação, que permite dispensar a prévia acção declarativa.

Mas se o título se traduz no invólucro de uma dada obrigação, o que verdadeiramente se executa é a obrigação que naquele se contém (Ac. STJ de 19-02-2009, http://www.dgsi.pt, Proc. nº 07B4427). E é essa obrigação – não o título - que tem de revestir certas características de exequibilidade, como, nomeadamente, a exigibilidade (artigo 713º do Cód. Proc. Civ.).

No caso em análise, a exequente apresentou um título executivo, com todas as características e formalidades legalmente exigidas, que lhe possibilitava a instauração de acção executiva. Não há, consequentemente, falta, invalidade ou insuficiência de título executivo, a demandar sindicância judicial.

II – A segunda questão a resolver prende-se com a exigibilidade da obrigação exequenda, que a sentença considerou não se verificar.

A) Se é certo que o título executivo é indispensável para a instauração da acção executiva, assim assegurando o direito de acção do credor, já não pode afirmar-se que o título garanta em absoluto a existência do crédito (Amâncio Ferreira, obra citada:24/25) e/ou a sua exequibilidade (artigo 713º do Cód. Proc. Civ.).
A via executiva não está, porém, vedada nos casos em que o título executivo não revela, por si só, a exequibilidade da obrigação. Com efeito, a lei assegura, nesses casos, a possibilidade de o exequente demonstrar e/ou conseguir, no início do processo, que a obrigação exequenda é – ou se torne - certa, líquida e exigível (artigo 713º a 716º do Cód. Proc. Civ.).

Ater-nos-emos, por agora, ao requisito de exequibilidade da obrigação conceptualmente identificado como exigibilidade.
“A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art. 777-1 CC, de simples interpelação ao devedor” (Lebre de Freitas, obra citada:100).
“ O conceito de exigibilidade não se confunde com o de vencimento”: “a obrigação pura cujo devedor não tenha sido ainda interpelado não está vencida e, no entanto, é exigível (art. 777-1 CC)” – Lebre de Freitas, obra citada:101.

B) Sustenta a apelante que, em face do nº 1 da cláusula 10ª do documento complementar à escritura e perante o facto de os devedores terem deixado de pagar as prestações acordadas em 22.8.10, nessa data se venceu a obrigação de pagamento de toda a dívida. E, assim, tratando-se de uma obrigação com prazo certo, não se mostrava necessária a interpelação (artigo 805º nº 2-a) do Cód. Civ.).
Mas sem razão.

Começaremos por dizer que a citada cláusula prevê consequências para um conjunto de situações, de que destacamos o incumprimento pelo devedor de qualquer das obrigações assumidas no contrato.
Quer pela epígrafe da cláusula 10ª, quer pela expressão “o direito de resolver o contrato”, seríamos tentados a considerar que era esse instituto jurídico que se teria pretendido consagrar. Todavia, logo após a referida expressão, a redacção imprimida (através da utilização do gerúndio) aponta para a concretização do efeito dessa resolução, a saber, o vencimento imediato do crédito.
É certo que a falta de pagamento de prestações que tenham sido acordadas com vista à liquidação de uma dada obrigação pode vir a redundar na resolução do contrato (artigo 808º do Cód. Civ.) ou no vencimento antecipado das subsequentes prestações (artigo 781º do Cód. Civ.). Trata-se, porém, de realidades antagónicas: na primeira, o contrato é destruído e o credor tem direito a uma indemnização pelo incumprimento, ou seja, pelo interesse contratual positivo (artigos 432º a 434º, 801º e 798º do Cód. Civ.); na segunda, o contrato continua em vigor, embora modificado no que ao prazo de pagamento das prestações respeita, mantendo o credor direito ao cumprimento do contrato, assim modificado.
Resulta, assim, do exposto que a primeira parte do nº 1 da cláusula 10ª envolve uma contradição jurídica dificilmente ultrapassável.
Mas mesmo que assim não fosse, temos por evidente que aí não se prevê o vencimento automático, ou seja, independente de qualquer conduta do credor. Em primeiro lugar, porque automático não significa o mesmo que imediato; em segundo lugar, porque a expressão “reserva-se o direito” quer, precisamente, dizer que, adquirido o direito por força do incumprimento do devedor, o credor pode exercê-lo, mas não fica a tal vinculado. E tanto assim é que, ao abrigo do disposto na cláusula 6ª do documento complementar, o credor pode recuperar os seus créditos, com juros remuneratórios acrescidos de uma sobretaxa a título de cláusula penal, em face da mesma situação de incumprimento por banda do devedor.

Resta dizer que o Ac. STJ de 21.6.12 (http://www.dgsi.pt, Proc. nº 10987/05.1TDLSB.L1.S1), citado pela apelante em abono da sua tese, só por enorme lapso pode ter sido invocado, já que se refere ao vencimento de dívida originada por não entrega das contribuições devidas à segurança social.

C) Assente que o nº 1 da cláusula 10ª não permite ter por vencida a obrigação exequenda, será possível chegar a solução diversa através do artigo 781º do Cód. Civ., preceito, aliás, invocado pela exequente no requerimento inicial?
Não.

Pode considerar-se pacífico na jurisprudência e na doutrina (com a voz discordante de Galvão Teles) que a prerrogativa concedida pelo artigo 781º do Cód. Civ. não opera automaticamente, correspondendo antes a uma faculdade concedida ao credor – cfr. Ac. STJ de 25.10.18 (http://www.dgsi.pt, Proc. nº 13426/07.0TBVNG-B.P1.S1), onde se cita numerosa doutrina e jurisprudência.
Perante a falta de pagamento de uma prestação, o credor pode seguir um de três caminhos (Ac. STJ de 12.7.18, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 10180/15.5T8CBRT-A.C1.S1):
- reclamar o pagamento das prestações vencidas e não pagas até ao termo do contrato;
- reclamar o pagamento das prestações vencidas e não pagas até ao momento em que provoca o vencimento antecipado das restantes prestações, reclamando, também, a totalidade da dívida de capital que, nessa altura, ainda subsista;
- resolver o contrato, reclamando uma indemnização pelo não cumprimento.
Ou seja, a falta de pagamento de uma prestação leva à constituição de três direitos alternativos na esfera jurídica do credor. Este escolherá, então, a via que melhor se adequa aos seus interesses. Mas, porque de uma opção se trata, fica arredado qualquer automatismo, impondo-se que, caso pretenda seguir a segunda ou a terceira vias (a primeira não representa qualquer alteração do programa contratual), o credor o faça saber ao devedor, o mesmo é dizer, o credor exerça efectivamente um dos direitos que, em alternativa, a lei pôs à sua disposição.
O exercício do direito traduz-se, in casu, na reclamação de cumprimento antecipado feita pelo credor ao devedor, isto é, na interpelação. E só nessa altura é possível ter-se por vencida a obrigação.

D) Decorre do exposto que a obrigação exequenda, embora não vencida, vence-se com a interpelação, pelo que é exigível.

III – A terceira questão a analisar é a de saber se, indemonstrada a interpelação extrajudicial, a citação da executada para a execução deve valer como interpelação para pagamento da obrigação exequenda, de acordo com o nº 1 do artigo 805º do Cód. Civ., como a apelante invoca a título subsidiário.

A) A questão que ora nos ocupa só vem sendo suscitada nas execuções que se não iniciam pela citação do executado, já que nas outras parece-nos pacífico que a citação vale como interpelação, seja por aplicação do nº 1 do artigo 805º do Cód. Civ. (a título exemplificativo: Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, Coimbra, 4ª edição:179/180; Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, Lisboa, 2020:233 e 235; Ac. STJ de 12.7.18, já citado), seja por aplicação da alínea b) do nº 2 do artigo 610º do Cód. Proc. Civ. (a título exemplificativo, Lebre de Freitas, obra citada:111; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020:41; Ac. STJ de 17.1.06, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 05A3869).

B) Com fundamento na factualidade aduzida no requerimento executivo (ponto 10. da matéria de facto), a exequente instaurou execução para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumário, juntando apenas o título executivo.
Uma vez que a exequente considerava já vencida – automaticamente - a dívida exequenda, a escolha da forma de processo sumário constituía corolário processual daquela posição. Não podia/pode, por isso, falar-se em erro na forma de processo (artigo 193º do Cód. Proc. Civ.).
O agente de execução poderia/deveria ter suscitado a intervenção do juiz nos termos do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 855º do Cód. Proc. Civ., por se lhe afigurar faltar o documento comprovativo da interpelação dos executados e/ou duvidar da aplicação da forma sumária. E, se assim o tivesse feito, impunha-se a prolação de despacho de aperfeiçoamento, em que o juiz convidaria a exequente a juntar o documento comprovativo da interpelação dos executados, sob pena de indeferimento (artigo 726º nº 4 e 5 do Cód. Proc. Civ.).
Diferentemente, porém, a execução avançou com a penhora de uma das fracções hipotecadas e subsequente citação dos executados (artigos 855º nº 3 e 856º do mesmo diploma).
E só em sede de embargos de executado, a questão da falta de interpelação vem a ser suscitada.

A execução baseada em título extrajudicial de obrigação pecuniária, garantida por hipoteca, só segue a forma sumária se estiver vencida à data do requerimento inicial (artigo 550º nº 2-c) do Cód. Proc. Civ.); se o vencimento ainda não tiver ocorrido, a execução terá de assumir a forma ordinária - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, obra citada:282.
Ora, como acima concluímos, a obrigação exequenda, ainda que exigível, não estava vencida na altura em que a execução foi instaurada.
Ainda que não tivessem sido deduzidos embargos de executado, poderia o juiz ter convidado a exequente a juntar o documento comprovativo da interpelação dos executados, nos termos do artigo 734º do Cód. Proc. Civ.. E, se ela o não fizesse, a execução extinguir-se-ia.
Porém, a embargante opôs-se à execução, acusando, nomeadamente, a ausência de interpelação prévia. Após a contestação, a embargada/exequente foi expressamente notificada comprovar ter efectuado a interpelação, o que, como resulta da matéria de facto não provada, não conseguiu.
Ora, a consequência deste insucesso probatório não pode deixar de coincidir com aquela que teria resultado de uma inicial intervenção do juiz suscitada pelo agente de execução ou de uma intervenção oficiosa mais tardia nos moldes que acima expusemos, a saber, a extinção da execução.

C) Em face do que precede, a citação dos executados não pode, in casu, valer como interpelação.
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Por todo o exposto, acordamos em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, mantemos a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Évora, 24 de Setembro de 2020
Maria da Graça Araújo

Manuel Bargado

Albertina Pedroso