Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
234/11.2TBVNO.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
PODERES DO JUIZ
CONFISSÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O art. 516.º, n.º 4, do Código de Processo Civil não restringe apenas ao momento posterior às instâncias dos mandatários das partes, o exercício pelo juiz do poder de solicitar os esclarecimentos e realizar as perguntas que considere convenientes para o apuramento da verdade.
2. A falta de redução a escrito do depoimento de parte confessório só constituiria nulidade caso tivesse influência no exame e na decisão da causa, o que não sucede quando este é integralmente gravado.
3. A falta de assentada constitui mera irregularidade processual ou, quando muito, nulidade secundária, e só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade e no prazo assinalado no art. 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. O art. 516.º, n.º 4, do Código de Processo Civil não restringe apenas ao momento posterior às instâncias dos mandatários das partes, o exercício pelo juiz do poder de solicitar os esclarecimentos e realizar as perguntas que considere convenientes para o apuramento da verdade.
2. Estando consagrada no art. 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil a regra da gravação da audiência final, pode considerar-se a assentada do depoimento de parte como uma actuação prolixa e redundante, para além de complexizar e atrasar a tramitação processual.
3. A falta de redução a escrito do depoimento de parte confessório só constituiria nulidade caso tivesse influência no exame e na decisão da causa, o que não sucede quando este é integralmente gravado.
4. A falta de assentada constitui mera irregularidade processual ou, quando muito, nulidade secundária, e só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade e no prazo assinalado no art. 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
5. Sobre as partes recai agora o ónus de controlarem e sindicarem a existência e qualidade da gravação, devendo arguir perante a primeira instância qualquer deficiência da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao de 2 dias a contar do respectivo acto, sob pena do vício se considerar sanado.
6. A omissão ou deficiência da gravação passou a ser um problema a ser sanado ao nível da primeira instância (que assim tem a possibilidade de, em tempo útil, adoptar os procedimentos adequados à reparação da deficiência, se necessário repetindo os actos afectados).
7. A posse precária ou em nome alheio, perdure por muito ou por pouco tempo (etiam per mille anos), mantém essa natureza enquanto não ocorrer inversão do título da posse, nos termos prescritos pelo art. 1265.º do Código Civil, só começando a correr a partir desse momento o prazo necessário à aquisição por usucapião.

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Na Instância Local de Ourém, em acção proposta por (…) e (…), contra (…) e (…), após julgamento foi proferida sentença condenando os RR. no seguinte:
1) A reconhecerem que a A. (…) é a titular do direito de propriedade sobre um prédio rústico, sito em (…), freguesia de (…), concelho de Ourém, composto por terreno com oliveiras, pinheiros e mato, com a área de 1.585 m2, confrontando a Norte com herdeiros de (…), do Sul com (…), do Nascente com estrada, e do Poente com (…), inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º (…), da freguesia de (…), que se encontra assinalado a cor amarela na planta junta a fs. 18.
2) Em procederem à restituição à A. (…) deste prédio referido supra em 1), descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº (…), da freguesia de (…), designadamente de uma parcela com a área de 1.000 m2, que se encontra identificada no ponto 8) dos factos dados como provados, deixando tal imóvel livre e desimpedido, nomeadamente removendo, a expensas suas, quaisquer plantações agrícolas que se encontram aí colocadas.
3) A respeitarem esse direito de propriedade da A. sobre aquele prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº (…), da freguesia de (…), e a absterem-se de qualquer acto que perturbe ou contenda com tal direito, designadamente de colocarem no mesmo quaisquer plantações ou culturas.
Por outro lado, foi julgada improcedente a reconvenção, sendo os AA. absolvidos dos pedidos reconvencionais deduzidos pelos RR., em que estes pediam, por seu turno, a declaração de nulidade da doação efectuada pela escritura de 18.12.2006, com cancelamento do respectivo registo, e de condenação a reconhecerem que os RR. são os proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº (…), da freguesia de (…).

Inconformados, os RR. recorrem e apresentam as seguintes conclusões:
a) Apesar do disposto nos artº 602/1 e 150, ambos CPC, o julgamento, sem prejuízo do respeito devido, deve ser um acto livre;
b) Tal não ocorre, se as pessoas se sentem receosas, confusas e até algum temor;
c) Tendo sido requerido depoimento de parte e declarações de parte, deve realizar-se assentada, no sentido de ter ou não ocorrido confissão;
d) Nada constando a tal respeito, não pode o Tribunal servir-se de tal meio de prova, estando violado o artº 466 CPC.
e) Tal omissão configura nulidade, com influência da decisão da causa.
f) Não constando integralmente a gravação dos depoimentos prestados em julgamento, ocorre nulidade, por violação do artº 155 CPC.
g) Constando dos autos todos os meios de prova, quer por ter ocorrido gravação, quer por ser junta a transcrição, pode a relação reapreciar a prova, o que se requer, nos termos do artº 640 CPC.
h) Devendo a matéria de facto ser alterada, no sentido de dar como “não provado” os nºs 1 a 3 dos temas da prova e como “provado” os nº 4 e 5 dos temas de prova.
i) Tendo a justificante e doadora identificado, em planta topográfica, o prédio a justificar e doar, não pode na petição indicá-lo em diferente local;
j) Tendo a A. especificado, em planta topográfica junta ao pedido de licenciamento camarário, o local onde vai construir e tendo junto certidão predial desse prédio, não pode o Tribunal dar como provado que o mesmo inclui, também, o prédio reivindicado na p. i.;
l) Pois trata-se de prédios distintos, autónomos e não anexados;
m) Se toda a instrução é efectuada no pressuposto de que a parcela em causa nos autos faz parte daquele outro prédio onde a A. edificou, ocorre erro de julgamento;
n) Se os RR. amanham, cultiva, colhem os frutos, plantam árvores, constroem aqueduto, em determinada parcela de terreno, actos estes que praticam desde 1977 até aos dias de hoje, de forma contínua, pública, ininterrupta e na convicção de que se trata de coisa sua, por lhes ter sido doada verbalmente, adquirem o direito de propriedade sobre tal parcela por usucapião;
o) Ocorreu incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artº 1251 do C.C.

Na resposta, os AA. sustentam a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

É a seguinte a matéria de facto que se considera provada:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º (…), da freguesia de (…), um prédio rústico, sito em (…), freguesia de (…), concelho de Ourém, composto por terreno com oliveiras, pinheiros e mato, com a área de 1.585 m2, confrontando a Norte com herdeiros de (…), do Sul com (…), do Nascente com estrada, e do Poente com (…), inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo (…), sobre o qual existe uma inscrição de aquisição do direito de propriedade a favor da A. (…), no estado civil de solteira, por doação dos chamados (…) e (…), realizada através da apresentação n.º (…), de 25-01-2007.
2. Por escritura de justificação e doação outorgada em 18 de Dezembro de 2006, a fls. 104, do livro 90-L, do Cartório Notarial do Dr. José Alberto Sá Marques de Carvalho, (…), em representação dos chamados (…) e (…), declarou que os seus representados eram os donos e legítimos possuidores do prédio referido em 1), que o mesmo tinha vindo à posse dos chamados por doação verbal feita por (…) e mulher (…), em 1980, que haviam adquirido tal prédio através da usucapião, e ainda que os chamados doavam tal imóvel à A., que interveio na escritura no estado civil de solteira, e que aceitou a doação.
3. O prédio referido em 1) encontra-se assinalado a cor amarela na planta junta a fs. 18, a cor laranja na planta junta a fs. 70 e ainda no levantamento topográfico junto a fs. 201.[1]
4. O chamado (…) é tio materno da A., e filho de (…), que também usava e era conhecido por (…) e de (…), que são avós maternos da A. (…).
5. No ano de 1980, os referidos (…) e (…) transmitiram verbalmente ao chamado (…) a ocupação e a utilização do prédio referido em 1).
6. Desde há mais de 50 anos, primeiro os referidos (…) e (…), até à data referida em 5), e depois os chamados (…) e (…), até à data da celebração da escritura referida em 2), amanharam o prédio referido 1), produziram e colheram em tal imóvel vários produtos agrícolas, roçaram o mato, e exploraram as oliveiras e os pinheiros, por si e por intermédio de pessoas ao seu serviço, ininterruptamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, com a convicção de serem os exclusivos donos desse prédio.
7. Os chamados (…) e (…) são emigrantes na Austrália, por intermédio de um seu cunhado de nome (…), pagaram a quem lhes limpasse o terreno de mato e ervas e a quem podasse as oliveiras, e davam as azeitonas das oliveiras ao referido (…), que as apanhava das oliveiras.
8. Na sequência de pedido que lhes foi formulado pelos mesmos, os chamados (…) e (…) autorizaram os RR. a amanhar, a semear e a colher os frutos de uma parcela de terreno do prédio referido em 1) com a área de 1.000 m2.
9. A A. (…) enviou ao R. (…) a carta registada com aviso de recepção, e este recebeu-a, datada de 9 de Janeiro de 2009, cuja cópia se encontra junta a fs. 27, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual consta designadamente, que: “Venho por este meio e mais uma vez, notificá-lo para se abster de amanhar o terreno referido em epígrafe, que me foi doado pelos meus tios (…) e (…), e para o deixar livre e devoluto, no prazo máximo de 10 dias a contar da recepção desta carta. Conforme tive oportunidade de lhe dizer, verbalmente, não quero que continue a amanhar o meu terreno…O senhor bem sabe que os meus tios lho deixaram amanhar, a seu pedido, e apenas porque estão no estrangeiro”.
10. Os RR. têm couves plantadas na parcela de terreno referida em 8) e nabos e aveia semeados na mesma.
11. A tia da Ré (…) transmitiu verbalmente e gratuitamente a titularidade sobre uma parcela de terreno aos RR., onde eles construíram a sua casa de habitação no ano de 1976.
12. Há cerca de 15 anos, os RR. construíram um muro em tijolo, com cerca de 40/50 centímetros de altura na estrema a norte do prédio referido em 11), na parte em que confronta com o prédio referido em 1), ao longo de toda essa estrema.
13. Até há cerca de 3 anos, o prédio referido em 1) encontrava-se demarcado, do lado Sul e em relação ao prédio referido em 11), com 3 marcos, que se encontram assinalados na planta junta a fs. 18.

FUNDAMENTAÇÃO
1.ª Questão: Da nulidade do julgamento por avocação do interrogatório pelo juiz:
Os RR. argumentam que o juiz a quo avocou o interrogatório das testemunhas, em violação ao disposto no art. 516.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, e como tal terá dado azo a “uma certa intimidação, susceptível de desassossegar quem depõe” (sic). Argumentam, ainda, que o interrogatório preliminar de algumas das testemunhas dos AA. foi diverso do efectuado a duas das testemunhas dos RR..
Pois bem, o art. 516.º, n.º 5, do Código de Processo Civil confere ao juiz o poder de avocar o interrogatório quando tal se mostrar necessário para assegurar a tranquilidade da testemunha e pôr termo a instâncias inconvenientes. No caso, em momento algum do julgamento o juiz exerceu esse poder, que implica retirar ao mandatário da parte o direito de interrogar directamente a testemunha – como é patente na gravação, aos mandatários de ambas as partes foi sempre permitida a efectivação das instâncias que melhor entenderam, e quando o quiseram fazer.
O que resulta da gravação é o exercício pelo juiz a quo de um outro poder, este conferido pelo n.º 4 do dito art. 516.º, solicitando os esclarecimentos e realizando as perguntas que considerou convenientes para o apuramento da verdade. A lei não estipula qual o momento em que o juiz exerce essa faculdade, não a restringindo apenas ao momento posterior às instâncias dos mandatários das partes, tanto mais que a necessidade de obter esclarecimentos pode surgir em qualquer momento do interrogatório.
No caso, o juiz a quo exerceu efectivamente esse poder, de forma empenhada e determinada a apurar a verdade dos factos, e aos mandatários foi sempre conferida a oportunidade de realizarem as respectivas instâncias, pelo que não se vislumbra qualquer fundamento de nulidade, que a parte nem sequer arguiu no acto, como o deveria ter feito, acaso tivesse fundamento para tal, nos termos do art. 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
E quanto ao modo de realização do interrogatório preliminar às testemunhas, para além de não ter sido arguida no acto qualquer nulidade, da gravação é patente que o juiz a quo efectiva as questões de identificação, de relação com as partes e de interesse na causa, que lhe são impostas pelo art. 513.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pelo que esta linha de argumentação dos RR. também se revela infundada.

2.ª Questão: Da falta de redução a escrito dos depoimentos de parte:
Ambos os RR. prestaram depoimento de parte na audiência de julgamento, a requerimento dos AA., sendo esse acto integralmente gravado. Dado que na acta não foi efectuada qualquer redução a escrito de tais depoimentos, os RR. argumentam – mas apenas nas alegações do recurso interposto da sentença – ter sido praticada nulidade com influência na decisão da causa.
O art. 463.º, n.º 1, do Código de Processo Civil continua a impor a redução a escrito (assentada) do depoimento de parte na sua vertente confessória, tal como já resultava do art. 563.º, n.º 1, do anterior Código. Porém, estando consagrada no art. 155.º, n.º 1, do Código de Processo Civil a regra da gravação da audiência final, pode considerar-se a assentada do depoimento de parte como uma actuação prolixa e redundante, para além de complexizar e atrasar a tramitação processual[2].
Na verdade, a gravação do depoimento de parte é seguramente mais eficaz e fidedigna que a assentada para revelar o alcance probatório do depoimento e permitir a sua sindicância pelo tribunal de recurso. Sendo a assentada uma redução a escrito do depoimento, nunca terá a pureza do depoimento original e devidamente gravado, pois sempre se perderá algum pormenor no processo de mediação entre o depoimento oral e a sua redacção escrita. Mesmo que a redacção escrita do depoimento seja uma reprodução exacta, palavra por palavra, do discurso oral, jamais conseguirá reproduzir as entoações, as hesitações e todos os demais pormenores que enriquecem esta forma de expressão.
De todo o modo, a lei apenas exige a redução a escrito do depoimento de parte, nas precisas circunstâncias previstas no art. 463.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: quando houver confissão do depoente ou quando este narrar factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória. Logo, por exclusão de partes, não se procederá à redução a escrito dos depoimentos de parte não confessórios, sendo assim este livremente apreciado pelo tribunal.
Acresce que a falta de redução a escrito do depoimento de parte confessório, constituindo a omissão de acto prescrito por lei, só constituiria nulidade caso tivesse influência no exame e na decisão da causa – art. 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. No caso, estando integralmente gravados os depoimentos de parte prestados pelos RR., não se vislumbra que tenha ocorrido prejuízo no exame e na decisão da causa – nem estes se dão ao cuidado de explicar, de forma consistente, em que medida tal prejuízo teria ocorrido.
Finalmente, estando em causa mera irregularidade processual ou, quando muito, uma nulidade secundária[3], só poderia ser invocada pelo interessado na observância da formalidade, devendo a sua arguição ser realizada perante o tribunal recorrido e no prazo assinalado no art. 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Ora, este meio de prova foi requerido pelos AA. – cfr. o seu requerimento de prova de 28.10.2015 – pelo que, caso tivesse ocorrido confissão no decurso do depoimento de parte dos RR., apenas aos primeiros assistia o direito de arguir a nulidade por omissão da assentada – art. 197.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – e, uma vez que ambos os mandatários se encontravam presentes na audiência onde esse meio de prova foi prestado, tal arguição deveria ser efectuada no próprio acto e enquanto este não terminasse.
Concluindo-se, pois, que a omissão na redução a escrito dos depoimentos de parte dos RR., constituindo mera irregularidade, não teve influência no exame e decisão da causa, e que apenas podia ser arguida perante o tribunal recorrido pela parte interessada na observância dessa formalidade (neste caso, apenas pelos AA.), e apenas no decurso da audiência de julgamento onde os mesmos foram prestados, não assiste legitimidade aos RR. para invocar, em sede de alegações de recurso, a nulidade do julgamento por omissão dessa formalidade.
Utilizando o brocardo “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, jamais seriam as alegações do recurso interposto da sentença final o local apropriado para a arguição da falta de assentada, pelo que, mesmo que os RR. tivessem legitimidade para o efeito – e não a têm – sempre estariam a destempo, pelo que também por aqui improcede a sua linha de argumentação.

3.ª Questão: Da deficiência na gravação do depoimento:
Argumentam os RR. que ocorre nulidade da gravação do julgamento, uma vez que só parcialmente se encontra gravado o depoimento da testemunha … (faltará a parte inicial).
Conferindo o respectivo registo fonográfico, este tem a duração de 8m24s, quando da acta resulta que o mesmo teve uma duração de cerca de 10 minutos (iniciou-se às 11.10hs. e terminou às 11.20hs.). Analisando o dito registo, não está gravado o interrogatório preliminar do juiz, iniciando-se a gravação quando a testemunha responde à primeira pergunta, acerca da situação do prédio em discussão nos autos – sito na Rua Nossa Senhora do Amparo, na (…), freguesia da (…). E ouve-se depois a pergunta seguinte que é colocada à testemunha, com a seguinte formulação: “O prédio da D. (…) pertencia a quem, antes de pertencer a ela?”
Para além de se adiantar, desde já, que a falta de gravação do interrogatório preliminar não tem influência na decisão da causa – nem os recorrentes cuidam de o fundamentar – também a deficiência da gravação deixou de poder ser arguida em sede de alegações do recurso interposto da sentença final, pois o art. 155.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil dispõe agora que a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, e que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.
Significa isto que passou a recair sobre as partes o ónus de controlarem e sindicarem a existência e qualidade da gravação, devendo arguir perante a primeira instância qualquer deficiência da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao de 2 dias a contar do respectivo acto, sob pena do vício se considerar sanado. Deste modo, a omissão ou deficiência da gravação passou a ser um problema a ser sanado ao nível da primeira instância (que assim tem a possibilidade de, em tempo útil, adoptar os procedimentos adequados à reparação da deficiência, se necessário repetindo os actos afectados), deixando de poder ser arguido perante o Tribunal da Relação, ainda que se peça o reexame das provas produzidas em primeira instância, nem podendo este conhecer do vício oficiosamente[4].
Assim, para além de não se vislumbrar que a falta de gravação do interrogatório preliminar da testemunha (…), e da primeira pergunta que lhe foi colocada, tenha qualquer influência no exame e decisão da causa, também é extemporânea a sua invocação em sede de alegações de recurso da sentença, pelo que improcede esta linha de argumentação dos recorrentes.

4.ª Questão: Da impugnação da matéria de facto:
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º, n.º 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[5].
Por outro lado, o art. 662.º do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Estando reunidos os critérios exigidos pelo art. 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, vejamos a impugnação da matéria de facto realizada pelos RR., os quais pretendem, a este nível, que se considerem não provados os factos supra descritos sob os n.ºs 3, 6, 7 (última parte), 12 e 13, e ainda que se considere provada a seguinte matéria (que a primeira instância declarou como não provada):
· “o prédio referido em 1) encontra-se assinalado a cor de laranja na planta junta a fs. 70, e a cor verde na planta junta a fs. 76;
· (…) e (…), bisavós da A. (…) e avós da Ré (…), foram donos de um conjunto predial, no sítio e limite da (…), com os limites que se encontram assinalados a cor amarela na planta junta a fs. 107;
· o referido conjunto predial foi dividido entre os filhos daqueles (…) e (…), de nome: (…), (…), (…) e (…);
· por óbito do referido (…) a titularidade dos prédios que se encontravam assinalados a cor verde na planta junta como doc. 19 da contestação, foi transmitida para os RR.;
· desde 1976, os RR. lavram, amanham, cultivam, colhem os frutos, nomeadamente, couves, favas, batatas, colhem azeitona, podam as oliveiras, cortam as silvas e o mato, nos prédios assinalados à cor verde, na planta junta como doc. 19 da contestação;
· os RR. construíram o aqueduto de acesso, desde a estrada até à parcela de terreno referida em 8);
· foram os RR., e antes destes o referido (…) e a mulher (…), pais da Ré (…), que, desde há mais de 60 anos, de forma contínua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, lavraram, cavaram, amanharam, por si ou por pessoas por si contratadas, semearam, colheram os frutos, sobre os prédios que se encontram assinalados à cor verde na planta junta como doc. 19, da contestação”.
Desde já se adianta que, analisada a prova recolhida nos autos, com audição integral dos depoimentos prestados, não se encontra razão para divergir da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto, com ressalva da referência ao prédio assinalado a laranja na planta de fs. 70, que é coincidente com o assinalado a amarelo na planta de fs. 18 e o levantamento topográfico de fs. 201.
Sem preocupação de ser exaustivo – a sentença recorrida já teve a oportunidade de analisar pormenorizadamente a prova recolhida, de forma absolutamente coerente e bem fundamentada – apontaremos que os próprios RR. não impugnam os factos elencados sob os n.ºs 5 e 8, ou seja, que no ano de 1980, o (…) e a (…) transmitiram verbalmente ao chamado (…) a ocupação e a utilização do prédio referido em 1, e que na sequência de pedido que lhes foi formulado pelos RR., os chamados (…) e (…) autorizaram-nos a amanhar, a semear e a colher os frutos de uma parcela de terreno do dito prédio, com a área de 1.000 m2.
Aponta-se ainda que, no seu depoimento, prestado antecipadamente, o interveniente (…), confirmou não apenas que o R. (…) passou a amanhar o terreno, pelo menos a partir de 1980, após lhe ter pedido autorização para o efeito, como mais tarde também lhe pediu autorização para construir o muro, com cerca de 40/50 cms. de altura, na estrema entre o terreno onde tem a sua casa e o identificado no ponto 1 da matéria de facto. Se estes factos já indiciam que o terreno identificado nos autos não havia sido transmitido aos RR. e que estes só o amanhavam por terem pedido autorização para o efeito ao (…), não agindo assim com a convicção de serem os seus donos, também se realça a circunstância do R. marido ter procurado comprar o terreno ao dito (…), sabendo assim que o mesmo não lhe pertencia.
Acrescenta-se ainda que o muro identificado no ponto 12 da matéria de facto foi construído pela testemunha (…), o qual revelou que o R. marido só o construiu após ter obtido autorização do (…) e procurado o (…), que actuava como procurador do primeiro (emigrado na Austrália), para com este definir a estrema entre os prédios de ambos. Acresce ainda que o (…), por conta (…), seu cunhado, continuou a apanhar a azeitona nas oliveiras existentes no terreno dos autos, tendo os RR. apenas passado apanhado a azeitona a partir de 2015 (como foi revelado pela testemunha …, viúva do referido …).
Quanto aos depoimentos de parte prestados pelos RR., não tendo sido confessórios, o tribunal recorrido tinha a faculdade de os apreciar livremente, e certo é que não houve um único testemunho imparcial que confirmasse a versão que trouxeram aos autos – as testemunhas (…), (…), (…) e (…) pouco mais sabiam, senão que viam os RR. a cultivar parte desse terreno, embora desconhecessem a que título o faziam. E quanto à testemunha (…), filho dos RR., se é certo que tem o dever de solidariedade para com os seus pais, tal facto condicionou de forma relevante a isenção do seu depoimento – e daí que não surpreenda que tenha procurado confirmar a versão apresentada pelos seus pais, mas com algumas divergências essenciais (nomeadamente quanto à área do terreno e ao modo como este terá passado a integrar o património dos seus pais, por doação dos avós maternos, quando o R. marido referiu que o foi por doação dos sogros e de uma tia da Ré mulher). Finalmente, quanto ao muro identificado no ponto 12, o filho dos RR. tentou apresentar a versão de que o mesmo foi edificado para mera protecção da casa contra a entrada de lixos, quando em bom rigor a pessoa que o construiu – a testemunha (…) – revelou que o mesmo foi edificado pelo R. marido para estabelecer a estrema entre o prédio onde tinha a sua casa e aquele que está em discussão, sendo a linha de demarcação estabelecida na presença e com o acordo da pessoa que em Portugal actuava como procurador do dono do terreno, o já referido (…).
Eis porque acompanhamos a sentença recorrida quanto à decisão da matéria de facto, com ressalva do ponto 3 da matéria de facto, pois o prédio assinalado a laranja na planta de fs. 70 é coincidente com o assinalado a amarelo na planta de fs. 18 e o constante do levantamento topográfico de fs. 201.
Deste modo, a impugnação da matéria de facto procede apenas quanto ao ponto 3, que passa a ter a seguinte redacção: “O prédio referido em 1) encontra-se assinalado a cor amarela na planta junta a fs. 18, a cor laranja na planta junta a fs. 70 e ainda no levantamento topográfico junto a fs. 201.”

5.ª Questão: Da propriedade dos AA. em relação ao prédio identificado nos autos:
O recurso quanto à questão jurídica substantiva assentava essencialmente na alteração da matéria de facto, na qual os recorrentes decaíram, com ressalva de um mero pormenor, que não tem qualquer influência no aspecto jurídico da causa.
De todo o modo, observar-se-á o seguinte.
A circunstância dos RR. virem amanhando, semeando e colhendo frutos em parte do terreno referido no ponto 1 da matéria de facto, não é bastante para lhes conferir animus possidendi, pois apenas os fizeram mediante autorização do chamado (…), o que remete para uma simples detenção, prevista no art. 1253.º, al. b), do Código Civil.
Note-se que a posse precária ou em nome alheio, perdure por muito ou por pouco tempo (etiam per mille anos), mantém essa natureza enquanto não ocorrer inversão do título da posse, nos termos prescritos pelo art. 1265.º do Código Civil, só começando a correr a partir desse momento o prazo necessário à aquisição por usucapião[6].
Ocorre que os RR. nem sequer alegaram tal inversão do título de posse, enquanto os AA. demonstraram o exercício da posse, por si e pelos seus antepossuidores, desde há mais de 50 anos, e tanto basta para lhes ser reconhecido o direito de propriedade a que se arrogaram mos autos, pelo que o recurso não merece provimento.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos RR..
Évora, 9 de Março de 2017
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
__________________________________________________
[1] A redacção deste ponto foi parcialmente modificada, com adição da referência à planta junta a fs. 70, conforme alteração da matéria de facto adiante fundamentada.
[2] Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação de Coimbra de 10.11.2009, proferido no Proc. 126/07.0TBPNH.C1, e da Relação de Guimarães de 15.09.2014, proferido no Proc. 1190/12.5TBGMR.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 10.11.2009, supra citado, e também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.06.2011, proferido no Proc. 3222/05.4TBVCT.S2 e igualmente publicado no mesmo endereço na Internet.
[4] Neste sentido, vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.10.2014 (Proc. 250/09.4TNLSB.L1-7) e de 19.05.2016 (Proc. 941/08.7TBMFR-H.L1-2); do Tribunal da Relação do Porto de 13.02.2014 (Proc. 142046/08.3YIPRT.P1), de 11.03.2014 (Proc. 501/10.2TBOAZ.P1) e de 17.12.2014 (Proc. 927/12.7TVPRT.P1); do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.07.2014 (Proc. 64/13.7T6AVR-A.C1); e do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.09.2014 (Proc. 4464/12.1TBGMR.G1), todos disponíveis na mesma base de dados.
[5] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[6] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2007, no Proc. 07A3050, com o seguinte sumário: «III – Dure por muito ou pouco tempo, a posse precária, em nome alheio ou simples detenção, perdura indefinidamente com essa natureza, enquanto não houver inversão do título da posse, nos termos do art. 1265.º do Código Civil. IV – Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse. V – Mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.» Cfr., igualmente, os Acórdãos do Supremo de 03.03.2005, no Proc. 04B4796, e de 20.03.2014, no Proc. 3325/07.0TJVNF.P1S2, também publicados em www.dgsi.pt