Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
25/13.6GBPTM.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: PREVENÇÃO CRIMINAL
RECOLHA INFORMAL DE INDÍCIOS
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário:
1. O direito do arguido ao silêncio e à não autoincriminação visa que este não seja compelido a colaborar com a justiça criminal contra a sua vontade, ou que o faça sem plena consciência das consequências processuais que dessas declarações advêm, quando se encontre perante as instâncias formais de controlo, no âmbito de um processo penal, mas não impede que o arguido profira de motu próprio declarações sobre matéria processualmente relevante antes de ser constituído arguido ou de dever sê-lo, face ao disposto nos arts 58º e 59º, do CPP.

2. Nada obsta a que, para formar a sua convicção, o tribunal de julgamento tome em conta o depoimento de OPC sobre a abordagem que fizeram ao arguido durante ação de prevenção e manutenção da ordem pública que levavam a cabo, incluindo a narração de que no decurso daquela ação o arguido assumiu perante eles ser o detentor do produto estupefaciente que na mesma ocasião lhes entregou, antes de estes militares terem procedido à apreensão daquele mesmo produto, bem como à detenção e constituição de arguido do ora recorrente.
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. - Nos presentes autos que correm termos na secção de competência genérica (J1) da Instância Local de Lagos da Comarca de Faro, foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal singular, A., nascido a 4/8/1990, em Lisboa, residente em Santo António dos Cavaleiros, Loures, a quem imputara a prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º alínea a), por referência ao artigo 21.º, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

2. – Após audiência de discussão e julgamento, o tribunal singular decidiu:

« a) Condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, anexa ao citado Decreto-Lei n.º 15/93, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada por igual período, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e n.º 5, do Código Penal, suspensão esta acompanhada por um regime de prova que assente num plano a elaborar pela DGRS (artigos 50.º n.º 2, 53.º e 54.º do Código Penal);

c) Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido e ordenar a sua destruição, após o trânsito em julgado da presente sentença (cfr. artigos 35.º, n.º 2 e 62.º, n.ºs 5 e 6 do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro).

d) Declarar perdidos a favor do Estado os demais objectos apreendidos nos autos e determino, após trânsito, a sua destruição – cfr. artigos 35.º, n.º 1 e 39.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.»

3. – Inconformado, veio o arguido recorrer daquela sentença, extraindo da sua Motivação as Conclusões que a seguir se transcrevem:

«CONCLUSÕES:

1. O Tribunal recorrido deu início à audiência sem que tivesse fundamentado a desnecessidade da presença do arguido e, bem assim, tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

2.Nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da CRP o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso. Por outro lado, o julgamento está sujeito ao princípio do contraditório.

3. A lei ordinária confere conteúdo a esses princípios no que diz respeito à obrigatoriedade da presença do Arguido em julgamento. Com efeito, nos termos do artigo 332.º, n.º 1, do CPP, que tem como epigrafe “presença do arguido”, estabelece que “é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 334.º.”

4. Nos termos do artigo 333.º, n.º 1, do CPP, a audiência só pode ser adiada se o tribunal considerar que é indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido no início da audiência. E não sendo adiada a audiência, como foi o caso, deve o tribunal tomar as diligências legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

5. Seguimos nesta matéria o douto arresto do Tribunal da Relação de Évora, de 21-10-2010 (www.dgsi.pt) que decidiu que “muito embora se tenha considerado como não essencial a presença do arguido desde o início da audiência, não foram tomadas quaisquer medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência nem justificada, de algum modo, a sua omissão”.

6. Por imperativo de consciência e honestidade intelectual não ignoramos o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 08/03/2012 (www.dgsi.pt) que a este propósito foi proferido, sendo que no essencial, decidiu o seguinte:

“Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.” sublinhado e destacado nosso

7. Todavia, entendemos que o referido acórdão do STJ não só não afasta a pretensão do aqui Recorrente, como, aliás, reforça os seus argumentos, como procuraremos, sucintamente, enunciar.

8. Assim, cotejando o despacho do tribunal refletido na ata de 15/09/2015 - Atenta a posição do Digno Magistrado do MºPº e da defensora Oficiosa, determina-se o prosseguimento da audiência.” - verifica-se que, na realidade, não tomou qualquer posição relativamente à circunstância de considerar que a presença do arguido não é necessária para a descoberta da verdade.”

9. A verdade é que o Tribunal recorrido não aderiu à posição do MP, nem fundamentou o despacho nos termos exigidos pelo artigo 333.º, n.º 1, do CPP, em linha, de resto, com a orientação dada pelo acórdão de fixação de jurisprudência.

10. Ou seja, ao Tribunal recorrido exigia-se que o despacho que determinou o prosseguimento da audiência sem a presença do arguido estivesse ancorado num juízo – do próprio tribunal – donde resultasse que a presença do arguido não era necessária para a descoberta da verdade, tal como expressamente resulta do artigo 333.º do CPP e do referido acórdão de fixação de jurisprudência do STJ.

11. Na verdade, o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ faz depender a desnecessidade de tomar medidas para assegurar a presença do arguido no juízo feito pelo tribunal, segundo o qual a presença do arguido não é necessária para a descoberta da verdade material.

12. No caso dos autos, não foi, manifestamente, realizado o referido juízo na medida em que não se encontra vertido nas atas de 15/09/2015 e na ata de 22/09/2015 e, por conseguinte, seria necessário tomar as medidas legalmente admissíveis para obter a comparência do Recorrente em audiência.

13. De resto, se o referido juízo fosse efetivamente feito, o tribunal recorrido teria tomado medidas para tentar a comparência do arguido, tendo considerado indispensável para a descoberta da verdade e qualificação dos factos o depoimento do arguido (que aliás, depôs perante o MP no dia seguinte à operação), essencialmente, em razão dos seguintes fatores: (i) a quantidade global de canábis apreendida é compatível com os padrões e limites de consumo “legalmente admissíveis” para 4 (quatro) pessoas, (ii) declarações formais do arguido no processo perante oficial de justiça com poderes delegados do Ministério Público indicavam que o produto apreendido destinava-se ao consumo dos 4 (quatro) ocupantes do veiculo, (iii) operação policial de fiscalização enquadrava-se no festival MEO sudoeste comummente associado ao consumo de estupefacientes (facto, aliás, confirmado pelo agente BG, como se pode constatar em sede de impugnação da matéria de facto), (iv) apenas uma pequena quantidade de canábis – abaixo do limite legal – foi efetivamente encontrada na posse do Recorrente, sendo que a restante estava localizada por baixo no banco da frente do passageiro, onde estava sentada outra pessoa, (v) os 4 (quatro) ocupantes da viatura eram amigos e jovens, sendo por isso compatível com o padrão de consumo partilhado (facto, aliás, confirmado pelo agente BG, como se pode constatar em sede de impugnação da matéria de facto).

14. Em face do que antecede, salvo o devido respeito, é óbvio que não seria dispensável a presença do arguido na ótica da descoberta da verdade material - a defesa ainda acredita que é isso que se persegue nos tribunais criminais portugueses - para, querendo, esclarecer qual era a finalidade do produto estupefaciente apreendido, uma vez que dos autos e do decorrer da primeira sessão resultava com alguma razoável probabilidade que a canábis apreendida era para consumo dos 4 (quatro) ocupantes da viatura.

15. O artigo 119.º, al. c), do CPP, dispõe que “a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”, constituiu uma nulidade insanável.

16. Salvo o devido respeito é o caso objecto do recurso, pois que realizou-se o julgamento do arguido - do qual saiu condenado - na sua ausência, apesar de estar notificado da data da audiência e a esta ter faltado, sendo, todavia, obrigatória a sua presença.

17. Com efeito, em face ausência na ata de 15/09/2015 e 22/09/2015 de juízo feito pelo tribunal, segundo o qual a presença do arguido não é necessária para a descoberta da verdade material, apenas depois de demonstrada a ineficácia do concreto uso de todas as possibilidades legais de obter a comparência do arguido é que fica legitimada a realização integral da audiência na sua absoluta ausência.

18. De resto, foi assim que se decidiu no Acórdão do STJ de 02.05.2007 proferido no processo 07P1018 e disponível em www.dgsi.pt e no mesmo sentido, vide Acórdão do STJ de 24.10.2007 proferido no Processo 07P3486 e também disponível em www.dgsi.pt.

19. Em face do exposto, requer-se a V. Exas. se dignem a anular o julgamento e a sentença subsequente, ordenando a realização de nova audiência.

20. O Recorrente pretende um segundo julgamento da matéria de facto, que seguidamente se impugna especificadamente e em cumprimento do artigo 412.º, n.º 3, do CPP.

21. Consigna-se, desde já, que a impugnação da matéria de facto não tem por base a opinião do Recorrente. Ou seja, não se visa censurar a livre convicção do Tribunal “a quo”, mas sim a circunstância de os elementos de prova de que o Douto Tribunal se socorreu para formar a sua convicção não poderem ser valorados ou apontarem em sentido inverso do decidido.

22. Impugnam-se os seguintes pontos da matéria dada como assente: O ponto 2.(b), 2.(c) e 4 dos factos provados. Ressalva-se que não se impugna o ponto 2(a) na medida em que foi a única quantidade de Canabis que estava efetivamente na posse do arguido e que o Recorrente detinha.

23. O que está em causa, em suma, é a circunstância do Tribunal recorrido ter-se socorrido de conversas informais entre o Recorrente e os Agentes que efetuaram a operação STOP para dar como provado que a totalidade do produto estupefaciente apreendido no interior da viatura pertencia ao Recorrente e ter ignorado o teor do auto de notícia de fls. 3 e 4 e declarações (admissíveis) das duas únicas testemunhas donde decorre que os agentes que efetuaram a operação de fiscalização verificaram que se encontravam mais 3 pessoas além do Recorrente no interior da viatura.

24. As declarações informais prestadas pelo Recorrente assumiram inegável e determinante significado, na perspetiva do tribunal recorrido, para dar como provado a detenção pelo mesmo da quantidade total de produto estupefaciente apreendido, tal como resulta inequívoco da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto que “ no que diz respeito à detenção pelo arguido, referiram os militares da GNR que o mesmo imediatamente assumiu que era o condutor do veículo em que o produto estupefaciente se encontrava e que o mesmo lhe pertencia, pelo que, atribuindo-se – como se atribuiu – credibilidade aos depoimentos dos mencionados militares da GNR, não obstante o veículo conduzido pelo arguido fosse tripulado por mais pessoas, não pode deixar de se considerar provada a detenção pelo próprio arguido do produto estupefaciente, já que o mesmo assim o referiu aos militares da GNR (…). - Sublinhado e destacado nosso –

25. As conversas informais surgiram na sequência da apreensão de produto estupefaciente no interior do veículo, sendo que, parte reduzida do mesmo estava na posse física do Recorrente.

26. Ora, o Artigo 59.º, do CPP, nos seus números 1 e 2, consagra o direito a ser constituído arguido a pessoa que não é arguido, sempre que surgir a suspeita de crime por ela constituído, a fim de proceder à comunicação consagrada no número 2 do artigo 58.º, do CPP, para que o arguido fique assim inteirado da sua qualidade de arguido e do seu estatuto, nomeadamente, direitos e deveres.

27. No caso dos autos, a admissão de conversas informais após a apreensão de cannabis no interior do veículo que era conduzido pelo Recorrente e antes da sua constituição de arguido, defrauda o estatuto de arguido, e viola o princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo, pois através da informalidade mencionada, que não podia ser sindicada ou controlada em julgamento em qualquer vertente, por falta de suporte documental, subverte todo o estatuto do arguido desenhado pelo legislador do Código de Processo Penal.

28. Neste sentido, o acórdão da Relação de Évora de 13/10/2004 e o acórdão da Relação de Coimbra de 19/03/2013.

29. Com efeito, as declarações dos agentes da GNR referentes a factos que presenciaram diretamente serão admissíveis, mas já não o serão na parte em que apelam às declarações do Recorrente (então apenas visado) para preencher espaços omissos e, neste caso, dar como provado a detenção por parte do arguido da totalidade do produto estupefaciente apreendido.

30. As seguintes passagens das declarações das duas testemunhas, quando conjugados com a impossibilidade de valorar as declarações informais do Recorrente e com o teor do auto de notícia a fls. 3 e 4, impõem claramente decisão diversa da recorrida.

1.ª Testemunha: BG
Faixa com identificação 20150915161604_3404656_2870874 (2:56 a 3:47)
Defensora Oficiosa: Sr. Guarda queria só perguntar, na altura, quando fizeram esta auto operação stop, quem é que mais ia no veículo?
Testemunha: iam mais passageiros no veículo.
Defensora Oficiosa: Não se lembra quantos, não?
Testemunha: Mais 3 julgo eu.
Defensora Oficiosa: portanto ao todo iriam 4 amigos.
Testemunha: sim, supostamente, supostamente.
Defensora Oficiosa: Olhe, na altura havia algum evento para vocês estarem a fazer ali um auto stop?
Testemunha: Sim, o evento do Sudoeste.
Defensora Oficiosa: Do Sudoeste, pronto. É costume haver assim algum consumo de droga nesses eventos não é? É prática do seu conhecimento?
Testemunha: É prática do consumo e pelo conhecimento da gente também há venda mas prontos é mais [palavra incompreensível] do consumo.
Defensora Oficiosa: Lembra-se se o A. lhe disse o que é que ele fazia e se era consumidor?
Testemunha: Ele na altura disse que andava na universidade e que consumia estupefacientes.

2.ª Testemunha: VR
Faixa com identificação 20150915160920_3404656_2870874
(4:00 a 4:08)
Defensora Oficiosa: Sr. V, há bocado disse que fez este auto stop no âmbito do Sudoeste.
Testemunha: Exactamente.
Defensora Oficiosa: Pronto, portanto…
Testemunha: É uma operação que desenvolvem todos os anos.
(4:00 a 4:36)
Defensora Oficiosa: Já agora, os amigos que iam com ele eram mais ou menos todos da mesma idade? Tudo…
Testemunha: Sim.
Defensora Oficiosa: Tudo. Portanto, eram jovens…?
Testemunha: Sim. Eram pessoas, tudo jovens.
Defensora Oficiosa: Tudo jovens. Tinham assim… apercebeu-se que eram estudantes? Não conseguiu aperceber-se…não… mas eram jovens…
Testemunha: Eram jovens.

31.Assim, das passagens concretamente identificadas das testemunhas e do teor do auto de noticia resulta que:

• A operação policial de fiscalização enquadrava-se no festival MEO sudoeste comummente associado ao consumo de estupefacientes;
• No interior da viatura conduzida pelo Recorrente encontravam-se 4 pessoas, entre as quais o Recorrente;
• As quantidades de produto estupefaciente descritas nos pontos 2(b) e 2(c) não foram encontradas na posse do Recorrente, mas sim por baixo do banco do passageiro da frente onde se encontrava sentado outra pessoa;
• Apenas uma pequena quantidade de canábis – abaixo do limite legal – foi efetivamente encontrada na posse do Recorrente,
• Os 4 (quatro) ocupantes da viatura eram amigos e jovens, sendo por isso compatível com o padrão de consumo partilhado.

32. Em face do exposto, a proibição de valoração das declarações informais, os concretos segmentos do depoimento das testemunhas indicados e o teor do auto de noticia, impõem decisão diversa da recorrida, devendo ser julgados como não provados os pontos 2(b), 2(c) e 4 dos factos provados da douta sentença, determinando a absolvição do Recorrente.

33. Ora, julgando-se apenas como provado a detenção, pelo Recorrente, de 2,07 gramas de Canabis (vide ponto 2.(a) dos factos provados), resulta igualmente que tal quantidade não excede a necessária para o seu consumo durante dez dias, devendo, por isso, ser absolvido do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.

34. Finalmente, qualquer interpretação dos artigos 58.º e 59.º do CPP no sentido de ser permitida a valoração de conversas informais entre um visado de um crime de tráfico de estupefacientes e agentes da OPC é materialmente inconstitucional por violação do princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo ínsito no artigo 32.º, n.º1 e 6, da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se suscita.

35.Por mero dever de patrocínio, no caso das anterior pretensões do recorrente não merecerem provimento, ainda assim, sempre se dirá que a pena é excessiva e que o tribunal recorrido não podia ter usado como circunstância agravante para determinação da medida da pena a falta injustificada do Recorrente ao julgamento, uma vez que esse facto não decorre da factualidade dada como provada.

36. Neste sentido pronunciou-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 11/03/2015 (vide www.dgsi.pt) referindo que “só a factualidade dada como provada pode ser tida em consideração, como circunstâncias agravantes e atenuantes da responsabilidade criminal do arguido”.

37. Acresce que, a lei atribui uma consequência à falta injustificada do Recorrente a qual se traduz na aplicação de uma sanção pecuniária, que, aliás, foi determinada pelo tribunal recorrido.

38. Acresce ainda que perante o desvalor da ação e do resultado e todo o quadro de circunstâncias dado como provado na douta sentença recorrida, entendemos que o arguido agiu com culpa abaixo do limiar médio, não sendo assinaláveis ou acentuadas as exigências de prevenção geral para afirmação da eficácia da norma penal violada.

39. Em face do exposto, deve o arguido ser condenado a uma pena única de prisão de 1 ano – mínimo considerando a moldura penal aplicável – suspensa na sua execução por igual período e sem sujeição a qualquer regime de prova.

Disposições legais violadas:
• Artigo 72.º do Código Penal;
• Artigo 25.º e 40.º da Lei 15/93, de 22.1;
• Artigos 58.º, 59.º, 332.º e 333.º, do Código de Processo Penal;
• Artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e demais de Direito deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência:

(i) Ser anulado o julgamento e a sentença subsequente, ordenando-se a realização de nova audiência, ou;

(ii) Ser o Recorrente absolvido, ou;

(iii) Ser o Recorrente condenado a uma pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução por igual período e sem sujeição a qualquer regime de prova. »

4. – Notificado para o efeito, o MP apresentou resposta ao recurso pugnando pela sua improcedência.

5.- Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer fundamentado no mesmo sentido, depois de apreciar todas as questões que integram o objeto do recurso.

6. – Notificado daquele parecer, veio o arguido contrapor os seus argumentos àquele parecer, concluindo como na motivação de recurso.

7. – A decisão recorrida (transcrição parcial):
«SENTENÇA
I – RELATÓRIO
O Ministério Público deduziu a acusação (fls. 49 e ss.), para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, contra:

A., filho de … e de…, nascido a 4/8/1990, em Lisboa, portador do Cartão de Cidadão n.º ----, residente na Avenida …,Santo António dos Cavaleiros, Loures.
Imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º alínea a), por referência ao artigo 21.º, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

O arguido não apresentou contestação.

Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.

II – FACTOS PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:

1. No dia 7 de Agosto de 2013, cerca das 21h15, o arguido conduzia o veículo de marca Citroen, modelo ZX, com a matrícula ----GJ, pela Estrada Nacional 120, em Odeceixe, Aljezur.

2. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido detinha no interior do veículo:

a. 2,07 (duas vírgula zero sete) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, as quais se encontravam acondicionadas no interior de uma lata de Coca-Cola Zero, com a respetiva tampa colocada no topo da lata, a qual tinha sido previamente cortada e que se consegue retirar e voltar a colocar;

b. dentro de um frasco de vidro de doce de figo, o qual estava colocado debaixo do banco da frente do passageiro:

i. 5,655 (cinco vírgula seiscentas e cinquenta e cinco) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico hermético;

ii. 0,985 (zero vírgula novecentas e oitenta e cinco) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico hermético; e

c. 19,180 (dezanove vírgula cento e oitenta) gramas de Canabis – resina, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico de cor preta, debaixo do banco da frente do passageiro;

3. As quantidades apreendidas ao arguido correspondem a 36 (trinta e seis) doses diárias de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, e 59 (cinquenta e nove) doses diárias de Canabis – resina.

4. O arguido conhecia a natureza e características das substâncias que detinha e que transportava, bem sabendo que não estava autorizado a detê-las ou transportá-las, no entanto quis detê-las e transportá-las, o que efetivamente conseguiu.

5. O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

6. O arguido não tem antecedentes criminais.

III – FACTOS NÃO PROVADOS
Nenhum facto com relevância para a decisão da causa ficou por provar.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
O Tribunal tomou em consideração todas as provas produzidas em audiência de julgamento, analisadas e conjugadas criticamente à luz das regras da experiência comum e valoradas segundo o critério da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal).

A convicção do Tribunal é sempre formada, para além dos dados objectivos obtidos através dos documentos ou outras provas produzidas de carácter técnico/científico, também por declarações e depoimentos em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das suas lacunas, contradições, imparcialidades, coincidências, coerências e quaisquer mais inverosimilhanças que transpareçam em audiência de julgamento. Dito de outra forma, o Tribunal estriba-se na análise de forma livre, crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, de acordo com o preceituado no artigo 127.º do CPP.

Contudo, livre apreciação da prova não significa uma apreciação arbitrária porquanto tem como pressupostos valorativos, o respeito pelos critérios de experiência comum e do homem médio-

Assim, o Tribunal formou a sua convicção sobre o objecto dos presentes autos com base nos vários meios de prova produzidos e analisados em audiência de julgamento.

Consistindo a motivação dos factos da sentença na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal – artigo 374.º, n.º 2 do CPP – mostra-se necessário, para além de enunciar os meios de prova, explicitar o processo de formação da convicção do julgador.

Antes de mais, atentou, o tribunal, no teor do auto de notícia de fls. 3, no auto de apreensão de fls. 5 e ss., dos testes rápidos identa de fls. 6 e 7, do relatório técnico de inspecção judiciária de fls. 25 e ss. e respectivo relatório fotográfico que o acompanha, a fls 29 e ss., e do relatório de exame pericial 38 e 39 e seu aditamento de fls. 46, os quais se revelaram essenciais para a prova dos factos constantes da acusação pública.

A prova de tais factos decorre, ainda, dos depoimentos prestados pelas testemunhas VR e BG, os militares da GNR que procederam à apreensão em causa nestes autos, ocorrida no âmbito de uma acção de fiscalização de trânsito, os quais confirmaram, de forma segura, serena, coerente e totalmente isenta, a factualidade enunciada nos aludidos pontos da acusação pública.

O arguido, devidamente notificado, faltou injustificadamente à audiência de julgamento, pelo que em nada contribuiu para a descoberta e esclarecimento da verdade.

No que respeita à detenção pelo arguido, referiram os militares da GNR que o mesmo imediatamente assumiu que era o condutor do veículo em que o produto estupefaciente se encontrava e que o mesmo lhe pertencia, pelo que, atribuindo-se – como se atribuiu - credibilidade aos depoimentos dos mencionados militares da GNR, não obstante o veículo conduzido pelo arguido fosse tripulado por mais pessoas, não pode deixar de se considerar provada a detenção pelo próprio arguido do produto estupefaciente, já que o mesmo assim o referiu aos militares da GNR ao que acresce o facto de uma parte desse mesmo produto estupefaciente ter sido encontrado numa bolsa que o arguido trazia à cintura e outra parte debaixo de um dos bancos do veículo conduzido pelo arguido.

A ausência de antecedentes criminais do arguido ficou demonstrada com base na análise do seu certificado de registo criminal, junto aos autos a fls. 96.

V – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Enquadramento jurídico-penal

1.1. Do crime de tráfico de menor gravidade

Ao arguido é imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, infracção prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, ex vi, artigo 13.º, 14.º, n.º 1, alínea a) e artigo 26.º do Código Penal.

De harmonia com o disposto no artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, “se, nos casos previstos nos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.

Já o artigo 21.º, do mesmo diploma legal, refere-se ao crime de tráfico e outras actividades ilícitas, dispondo no seu n.º 1 que quem, sem para tal estar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Este artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, descreve o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes.

Com efeito, são elementos objectivos do tipo fundamental:
- a prática de qualquer uma das condutas mencionadas na norma legal (modalidades da acção);

- a falta de autorização para a prática dessa mesma conduta;

- que a substância sobre a qual incidiu a conduta esteja prevista nas tabelas que fazem parte integrante do diploma.

No artigo 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, prevêem-se e punem-se aqueles casos em que, mostrando-se preenchido o tipo base ou fundamental, se verifica uma considerável diminuição da ilicitude dos factos, equivalente a uma diminuição da gravidade do crime.

O consideravelmente menor grau de ilicitude decorre, principalmente, dos seguintes factores: meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade e/ou quantidade das drogas traficadas.

Os bens jurídicos protegidos com a incriminação do tráfico de estupefacientes são a “protecção da saúde individual e a liberdade individual do consumidor, no plano do interesse particular da sua prática. Já no aspecto público, o tráfico de estupefacientes repercute-se na economia do Estado, na medida em que propicia economias paralelas, representando um negócio temível e comunitariamente repugnante, fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor, e com particular afectação das camadas mais jovens do tecido social e na maior parte dos casos, a desgraça total do seu agregado familiar, censurável em alto grau no plano ético-jurídico, pelos custos sociais a que conduz, relacionados com o absentismo laboral, contracção de doenças transmissíveis e destruição progressiva da pessoa humana.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.12.2010, proferido no processo n.º 59/07.0PEBRG.S2, disponível in www.dgsi.pt.

O crime em apreço assume a natureza de crime de perigo, bastando-se a lei, nas condutas que descreve, com a aptidão que revelam para constituir um perigo para o bem jurídico protegido com a incriminação.

Deverá, ainda, ter-se em consideração a Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que, na tabela anexa, estabelece os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Na sua vertente subjectiva tanto o ilícito previsto no artigo 21.º como o previsto no artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, exigem o dolo em qualquer das suas modalidades (cfr. artigos 13.º e 14.º do Código Penal).

Ora, no caso vertente, resultou provado que o arguido detinha, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas o arguido detinha no veículo por si conduzido

a. 2,07 (duas vírgula zero sete) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, as quais se encontravam acondicionadas no interior de uma lata de Coca-Cola Zero, com a respetiva tampa colocada no topo da lata, a qual tinha sido previamente cortada e que se consegue retirar e voltar a colocar;

b. dentro de um frasco de vidro de doce de figo, o qual estava colocado debaixo do banco da frente do passageiro:

i. 5,655 (cinco vírgula seiscentas e cinquenta e cinco) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico hermético;

ii. 0,985 (zero vírgula novecentas e oitenta e cinco) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico hermético; e

c. 19,180 (dezanove vírgula cento e oitenta) gramas de Canabis – resina, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico de cor preta, debaixo do banco da frente do passageiro;

Mais se provou, com base no exame pericial realizado que as quantidades apreendidas ao arguido correspondem a 36 (trinta e seis) doses diárias de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, e 59 (cinquenta e nove) doses diárias de Canabis – resina.

Assim, no que respeita às modalidades da acção, mostra-se verificado que o arguido detinha ilicitamente o aludido produto estupefaciente.

A substância canabis (folhas, sumidades e resina) integra a Tabela I-C, anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sendo que a quantidade apreendida nos presentes autos, ultrapassa largamente o limite quantitativo máximo para a dose média individual diária estabelecido no mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, a que se refere o artigo 9.º do mesmo diploma.

Apurou-se, ainda, que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, querendo ter na sua posse o referido produto, conhecendo as suas características e não possuindo qualquer permissão legal para o efeito, bem sabendo que tal comportamento era proibido e punido por lei.

Em face dos factos provados não restam dúvidas que a conduta do arguido integra os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Todavia, atenta a natureza do produto estupefaciente em causa, bem como a circunstância de não se ter apurado qualquer venda, não se alcança que a conduta do arguido revele a ilicitude ínsita no artigo 21.º do referido diploma legal, pelo que deverá subsumir-se a respectiva conduta ao tipo de ilícito de tráfico de menor gravidade (cfr. artigo 25.º, alínea a), por referência ao artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro).

Resta referir que, atenta a quantidade do produto estupefaciente apreendido e o disposto no n.º 3 do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, fica, desde logo, afastada a subsunção da factualidade apurada à previsão legal contida no artigo 26.º, n.º 1 do mesmo diploma.

Em conclusão, integrando os respectivos elementos objectivos e subjectivos e não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, cometeu o arguido, em autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal.

1.2. Determinação da pena
Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa (artigo 40.º do CP). Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação.

No que respeita ao critério da escolha da pena, estabelece o artigo 70.º do Código Penal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada as finalidades da punição.

Por outro lado, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto, etc..

Nos termos do disposto no artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade é punido, em abstracto, com pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos.

Assim, estabelecida a moldura penal abstracta aplicável ao caso vertente, cabe agora determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido.

Terá de se considerar, antes de mais, como circunstância que releva em desfavor do arguido, as muito elevadas exigências de prevenção geral, atenta a elevada incidência deste tipo de crimes e a importância do bem jurídico que lhe está subjacente, que demandam uma maior necessidade de sancionamento com vista ao restabelecimento da confiança na norma violada. Na verdade, o tráfico de estupefacientes é um “cancro” da nossa sociedade contemporânea, sendo causa de verdadeiras desgraças sociais e familiares e, sobretudo, “pai” de um leque alargado de outros tipos de criminalidade que lhe estão associados.

Depondo também contra o arguido, haverá, ainda, que considerar o elevado grau de culpa com que actuou, situando-se, a mesma, no mais elevado nível do dolo – o dolo directo.

Pesando, ainda, contra o arguido, será valorada a sua atitude posterior aos factos, nomeadamente, a sua falta injustificada à audiência de julgamento.

No que respeita ao grau da ilicitude, para além do que já é valorado pelo tipo legal de crime e respectiva moldura abstracta, o mesmo revela-se médio, atendendo, por um lado, à quantidade de produto estupefaciente que o arguido tinha na sua posse e, por outro, à respectiva natureza, e ainda ao facto de não se ter apurado qualquer venda concretamente realizada pelo arguido.

Em favor do arguido, há que considerar a ausência de antecedentes criminais.

Tudo ponderado, julgo adequado aplicar ao arguido A., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, anexa ao citado Decreto-Lei n.º 15/93, uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

1.3. Da suspensão da execução da pena
Aplicada, ao arguido, uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, impõe-se, neste momento, a apreciação da verificação dos pressupostos da suspensão da execução dessa pena.

Dispõe o n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” As finalidades da punição são, como se determina no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Assim, quando o tribunal aplica uma pena de prisão não superior a cinco anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido. Este juízo de prognose não tem de assentar necessariamente numa certeza; basta que haja uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição, e consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido (cfr. Acórdão do STJ, de 08.07.1998, in CJ STJ 1998, tomo II, pág. 251). Todavia, há um limite inultrapassável que o tribunal deve respeitar na consideração sobre o comportamento futuro do arguido: a defesa do ordenamento jurídico.

Como escreve Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 344, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da pena de prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por essas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”

O critério primordial que preside à escolha desta pena de substituição assenta em finalidades, exclusivamente, preventivas e não de compensação da culpa, com prevalência para as considerações de prevenção especial de socialização relativamente às quais a prevenção geral funciona como limite para a sua actuação.

A finalidade essencial é, assim, a ressocialização do agente na vertente de prevenção da reincidência cujas probabilidades de êxito são aferidas no momento da decisão, em função dos indicadores previstos no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

De modo que, importa fazer um juízo de prognose acerca do comportamento futuro do arguido, no sentido de se suspender a execução da pena de prisão aplicada, caso esse juízo seja favorável, ou seja, caso seja possível prever que o arguido, no futuro, não voltará a praticar crimes e que ficará assegurada a protecção dos valores ou bens jurídicos subjacentes à norma incriminadora violada.

Em primeiro lugar, verifica-se que ao arguido foi aplicada uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pelo que o pressuposto formal da suspensão está observado.

Por outro lado, perante a factualidade apurada – considerando, designadamente, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais –, entendemos que as exigências de prevenção especial não impõem, ainda, no presente caso, a execução efectiva da pena de prisão aplicada ao arguido.

Assim, acredita o tribunal que, considerando a personalidade do arguido, as circunstâncias concretas da sua actuação e a ausência de antecedentes criminais, poderá concluir-se, com o grau de certeza que se exige no juízo de prognose realizado – uma expectativa fundada –, que a simples censura dos factos cometidos e a ameaça da prisão realizam, no caso vertente, as exigências de prevenção especial, mostrando-se provável a ressocialização do arguido em liberdade.

Do ponto de vista da prevenção geral, entende-se que à suspensão da execução da pena de prisão não se opõem considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Pelo exposto, determina-se, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e n.º 5, do Código Penal, a suspensão da execução da pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, aplicada ao arguido A., durante igual período.

Para além disso, por se entender que ajudará ao desenvolvimento do seu sentido de responsabilidade, a suspensão da execução da pena de prisão será acompanhada por um regime de prova que assente num plano a elaborar pela DGRS (artigos 50.º n.º 2, 53.º e 54.º do Código Penal).

2. Do destino dos objectos apreendidos
Determina o artigo 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”, sendo as plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV declaradas sempre perdidas a favor do Estado (n.º 2).

O artigo 62.º, n.º 6, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro determina, ainda, que “proferida decisão definitiva, o tribunal ordena a destruição da amostra guardada em cofre, o que se fará com observância do disposto no número anterior, sendo remetida cópia do auto respectivo.”.

Por sua vez, estabelece o artigo 39.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que os objectos ou instrumentos declarados perdidos a favor do Estado, que pela sua natureza ou características, possam vir a ser utilizados na prática de outras infracções, não são alienados, devendo ser destruídos no caso de não oferecerem interesse criminalístico, científico ou didáctico.

Assim sendo, declara-se perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido e ordena-se a sua destruição, após o trânsito em julgado da presente sentença (cfr. artigos 35.º, n.º 2 e 62.º, n.ºs 5 e 6 do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro).

Mais se declaram perdidos a favor do Estado, os demais objectos apreendidos, por estarem destinados a servir para a prática do crime de tráfico de estupefacientes, determinando-se, após trânsito, a sua destruição – cfr. artigos 35.º, n.º 1 e 39.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

3. Das custas
As custas criminais do processo ficam a cargo do arguido condenado, de harmonia com o disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal, e nos artigos 8.º, n.º 5 e tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais.

VI – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido A., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, anexa ao citado Decreto-Lei n.º 15/93, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada por igual período, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 1 e n.º 5, do Código Penal, suspensão esta acompanhada por um regime de prova que assente num plano a elaborar pela DGRS (artigos 50.º n.º 2, 53.º e 54.º do Código Penal);

c) Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido e ordenar a sua destruição, após o trânsito em julgado da presente sentença (cfr. artigos 35.º, n.º 2 e 62.º, n.ºs 5 e 6 do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro).

d) Declarar perdidos a favor do Estado os demais objectos apreendidos nos autos e determino, após trânsito, a sua destruição – cfr. artigos 35.º, n.º 1 e 39.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.»

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.

Na medida em que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, como é pacificamente entendido, cumpre apreciar no caso sub judice as seguintes questões, suscitadas pelo recorrente:

- Nulidade insanável do julgamento, nos termos dos artigos 333º e 119º c), do CPP, com fundamento em ausência do arguido a julgamento sem que o tribunal a quo tivesse decidido ser desnecessária a presença do arguido e, consequentemente, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a sua presença em audiência;

- Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412º nºs 3 e 4, do CPP, relativamente aos pontos nºs 2 b) e c) e 4 da factualidade provada;

- Erro de direito na determinação da medida concreta da pena e nos termos da suspensão da pena decidida, por considerar excessiva a pena única de 1 ano e 6 meses de prisão e ser suficiente e adequada a suspensão da pena sem regime de prova.

2. – DECIDINDO
2.1. – A invocada nulidade do julgamento.

Alega o arguido a este respeito, que a Audiência de julgamento teve início sem que o tribunal recorrido tivesse fundamentado a desnecessidade da presença do arguido e, em todo o caso, sem que tivesse tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

Sucede, porém, que a ata da audiência de julgamento contraria ambos os pressupostos de facto da invocada nulidade.

2.1.1. Por um lado, resulta de fls 97, 165 e 166, que na sequência de promoção do MP (a que a defesa não deduziu oposição) para que se desse início à audiência, por se encontrar o arguido notificado e não ser indispensável a sua presença, o tribunal recorrido proferiu despacho em que, com base na posição do MP e da defensora oficiosa, considerou não ser indispensável a presença do arguido.

Assim, os autos desmentem a afirmação do recorrente, pois o tribunal recorrido decidiu dar início à audiência por despacho fundamentado de forma adequada à simplicidade da questão face ao regime consagrado no art. 333º do CPP que, em rigor, apenas exigirá fundamentação eventualmente mais desenvolvida (nomeadamente em face da oposição de algum dos outros sujeitos processuais) quando, afastando-se da regra geral claramente expressa no nº1 do citado art. 333º, o tribunal entenda adiar a audiência por considerar indispensável (note-se) a presença do arguido.

2.1.2. Como aludido, o tribunal a quo decidiu por despacho dar início à audiência por considerar não ser indispensável a presença do arguido, fundamentação que sempre resultava inequivocamente implícita na formulação mais curta constante da versão inicial da ata de fls 97, por se remeter para a sintética promoção do MP que mencionava expressamente o disposto no art 333º nº1 do CPP e não ser indispensável a presença do arguido.

Por outro lado, o recorrente entende, face aos termos do AFJ 9/2012 de 8 de março, que o tribunal de julgamento deverá dar inicio ao julgamento sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, apenas se considerar que a presença do arguido nãonecessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do artigo 333º do CPP, pelo que não tendo emitido este último juízo não podia iniciar a audiência sem fazer diligências para obter a comparência do arguido.

Ora, uma vez que, como vimos, o tribunal recorrido decidiu efetivamente não ser a presença do arguido necessária para a descoberta da verdade, contrariamente ao alegado pelo recorrente, mostravam-se preenchidos os pressupostos de que o AFJ fazia depender a dispensa de realização diligências prévias, pelo falecem totalmente os pressupostos da nulidade de julgamento tal como invocada pelo recorrente, que, assim, se julga improcedente, sem outras considerações.

2.2. Improcedendo a nulidade arguida, impõe-se conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412º nº3 do CPP.

O recorrente põe em causa ter o tribunal a quo julgado provados os pontos descritos sob os nºs 2 b) e c) e 4 da factualidade provada que, em conjunto, integram os elementos objetivos e subjetivos do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, anexa ao citado Decreto-Lei n.º 15/93.

O teor daqueles pontos de facto, lembremo-lo, é o seguinte:

“- 2. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido detinha no interior do veículo:
a. (…)

b. dentro de um frasco de vidro de doce de figo, o qual estava colocado debaixo do banco da frente do passageiro:

i. 5,655 (cinco vírgula seiscentas e cinquenta e cinco) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico hermético;

ii. 0,985 (zero vírgula novecentas e oitenta e cinco) gramas de Canabis – folhas e sumidades floridas ou frutificadas, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico hermético; e

c. 19,180 (dezanove vírgula cento e oitenta) gramas de Canabis – resina, que se encontravam acondicionadas no interior de um saco de plástico de cor preta, debaixo do banco da frente do passageiro;
3. (…)

4. O arguido conhecia a natureza e características das substâncias que detinha e que transportava, bem sabendo que não estava autorizado a detê-las ou transportá-las, no entanto quis detê-las e transportá-las, o que efetivamente conseguiu.”.

Alega que em face das declarações das testemunhas BG e VR, militares da GNR, e do auto de notícia de fls 3 e 4, o tribunal a quo apenas julgou provado que era o arguido quem detinha todo o produto estupefaciente apreendido (Cannabis), conforme consta do nº2 dos factos provados, por terem aquelas testemunhas narrado em audiência que [o arguido] imediatamente assumiu perante elas que era o condutor do veículo em que o produto estupefaciente se encontrava e que o mesmo lhe pertencia.

Assim, no entender do arguido e recorrente, o tribunal recorrido socorreu-se de conversas informais entre o recorrente e os agentes que efetuaram a operação Stop para dar como provado que a totalidade do produto estupefaciente apreendido no interior da viatura pertencia e era detida pelo recorrente, tendo ignorado o teor do auto de notícia de fls 3 e 4 donde decorre que os agentes que efetuaram a operação de fiscalização verificaram que se encontravam mais 3 pessoas além do recorrente no interior da viatura.

Alega ainda que as referidas conversas informais surgiram na sequência da apreensão de produto estupefaciente no interior do veículo, sem que o recorrente tivesse sido constituído arguido, por sobre ele recair a suspeita da prática de crime, nos termos do art. 59º nºs 1 e 2 do CPP, com as consequentes comunicações a que se reporta o art. 58º nº2 do CPP, de modo que ficasse inteirado da sua qualidade de arguido e do seu estatuto.

O arguido alega, por último, que a admissão de conversas informais após a apreensão de canábis no interior do veículo por ele conduzido e antes da sua constituição como arguido, defrauda o seu estatuto de arguido e viola o princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo, pois através da informalidade mencionada, que não podia ser sindicada ou controlada em julgamento em qualquer vertente, por falta de suporte documental, subverte todo o estatuto do arguido desenhado pelo legislador do CPP.

Conclui que as declarações dos agentes da GNR referentes a factos que presenciaram diretamente serão admissíveis, mas já não o serão na parte em que apelam às declarações do recorrente (então apenas visado) para preencher espaços omissos e, neste caso, dar como provado a detenção por parte do arguido da totalidade do produto estupefaciente.

Vejamos.

a) Antes de mais, resulta do auto de notícia de fls 3 e 4 e das declarações das testemunhas BG e VR - que não foram postos em causa por quaisquer outros elementos de prova -, que o recorrente afirmou àqueles militares da GNR que tinha consigo produto estupefaciente logo que, no âmbito da operação de fiscalização de trânsito que aqueles levavam a cabo, lhe foi perguntado se transportavam algo de ilícito, nomeadamente armas ou estupefacientes, e que foi o arguido quem, espontaneamente, entregou o produto estupefaciente apreendido por aqueles mesmos militares da GNR, conforme auto de notícia de fls 3 e 4 e Auto de apreensão de fls 5. Primeiro entregou-lhes 3,3 gr de liamba de uma bolsa que trazia à cintura. Posteriormente, debaixo do banco do passageiro, retirou também uma pequena bolsa …8,8 gramas de liamba, aproximadamente, e 19 gramas de haxixe” – cfr declarações em audiência da testemunha VR. Não há qualquer referência nos autos a qualquer busca ao automóvel ou revista ao arguido ou a qualquer das outras três pessoas que seguiam no veículo e nenhuma das pessoas ouvidas em audiência se lhe referiu.

Assim, para a correta caraterização do espécimen processual que integra o objeto do recurso, deve precisar-se que o arguido não disse aos militares da GNR ter consigo produto estupefaciente na sequência da apreensão do produto estupefaciente que se encontrava no interior do veículo, contrariamente ao alegado pelo recorrente. Pelo contrário, em resposta à pergunta genérica que os militares da GNR lhe fizeram no âmbito da operação de fiscalização que levavam a cabo, o arguido começou por afirmar transportar consigo estupefacientes, ao mesmo tempo que lhes entregou, logo após, o produto estupefaciente que tinha consigo e que se encontrava no interior do veículo, o qual foi posteriormente formalmente apreendido, conforme auto de fls 5, e só então o arguido foi detido e constituído arguido, conforme Auto de Notícia de fls 3 e 4.

b). Posto isto, é altura de tecer algumas considerações sobre a questão jurídica a que alude o recorrente e que, efetivamente, é suscitadas pelo presente recurso.

Na verdade, o depoimento dos OPC sobre afirmações, validamente escutadas, ou conversas informais mantidas com o arguido, não é questão nova, suscitando posicionamentos na doutrina e jurisprudência entre nós pelo menos desde a década de noventa do século passado, e abrange um conjunto diversificado de situações processuais que Carlos Adérito, agrupa, no essencial, em três campos distintos:

- i.) Os casos que respeitam às afirmações percecionadas pelo OPC, enquanto cidadão comum, em momentos da vida quotidiana (porventura, sem saber do crime cometido ou em preparação e sem suspeita prévia do seu “interlocutor”);

- ii.) Aqueles casos que, no extremo oposto, correspondem às afirmações proferidas por ocasião ou por causa de actos processuais de recolha de declarações (maxime, à saída, no decurso ou antes do interrogatório)” e

- iii..) Aqueles casos, de índole intermédia, relativos a conversas (indicações de localização de produto do crime ou de outros suspeitos, explicações do facto, etc.) tidas com os membros de um OPC no decurso de certos actos processuais de ordem material ou de investigação “no terreno” (buscas, vigilâncias, resgate de sequestrados, socorro às vitimas, etc.), bem como em acções de prevenção e manutenção da ordem pública e são aqueles confrontados com a ocorrência de um crime, em flagrante ou não.

Neste terceiro campo, podem distinguir-se ainda as hipóteses em que as palavras autoincriminatórias são proferidas por arguido constituído aquando da prática de atos processuais diversos da recolha de declarações, no decurso de processo já formalmente iniciado (v.g revistas e buscas), dos casos em que não foi ainda constituído arguido nem se verifica nenhuma das situações que impõem tal constituição, nos termos dos arts 58º e 59º do CPP, maxime se as palavras são proferidas quando os OPC são confrontados com a prática de um crime, nomeadamente durante ações de prevenção e manutenção da ordem pública, verifique-se ou não flagrante delito, distinção esta cuja relevância foi destacada no Ac STJ de 15.02.2007, rel. Maia Gonçalves, conforme melhor veremos.

O caso dos autos enquadra-se neste último tipo de situações – palavras proferidas numa situação de flagrante delito antes de ter lugar ou ser legalmente imposta a constituição de arguido -, pois os militares da GNR que realizavam ação de prevenção do crime e manutenção da ordem próximo do festival musical referido em audiência, acabaram confrontados com a situação de flagrante delito documentada nos autos através do correspondente auto de notícia e detenção e auto de apreensão, durante a qual o arguido afirmou que o produto estupefaciente que entregava aos OPC lhe pertencia.

c) Ora, relativamente a esta situação – independentemente da solução a dar às demais destacadas pela doutrina e jurisprudência, acompanhamos, no essencial, o entendimento do acórdão seminal do STJ de 15.02.2007, rel. Maia Gonçalves, posteriormente seguido em outros acórdãos do STJ e das Relações que se indicam na dissertação de mestrado de Filipa Romano, As conversas informais extraprocessuais como meio de prova em processo penal, que pode consultar-se em http://run.unl.pt/bitstream/10362/15179/1/Romano 2015.pdf, citado no desenvolvido parecer do senhor P-G Adjunto nesta Relação, estudo aquele que elenca e analisa com razoável detalhe e proficiência as diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais que têm vindo a suceder-se no tempo a propósito desta temática.

Naquele acórdão do STJ de 15.02.2007 e nos que se lhe seguiram, distingue-se - tanto a propósito do art. 356º nº7, como do art. 129º do CPP (depoimento indireto), ambos do CPP - as chamadas “conversas informais”, ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, dos casos de prestação de informações pelos arguidos aos OPC aquando da recolha de indícios de uma infração de que a autoridade policial acaba de ter notícia, e que esta recolhe nos termos do artigo 249º do CPP, por força do qual compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” .

Conforme resulta daquele acórdão do STJ, com a proibição das chamadas “conversas informais” a lei processual pretende evitar que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas, enquanto na perceção e narração de informações colhidas pelos OPC no âmbito das suas competências cautelares de polícia, o que está em causa é a recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto, pelo que as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito e ainda que provenham de eventual suspeito essas informações não são declarações em sentido processual, desde logo porque nestes casos não há ainda processo nem arguido.

Seguimos este entendimento na parte que releva para a decisão do caso sub judice, pelas razões ora referidas e que se encontram expostas naquele acórdão do STJ, que apela a distinções conformes com a realidade processual e social em que se inserem casos como o presente.

Na verdade, o direito do arguido ao silêncio e à não autoincriminação visa que este não seja compelido a colaborar com a justiça criminal contra a sua vontade, ou que o faça sem plena consciência das consequências processuais que dessas declarações advêm quando se encontre perante as instâncias formais de controlo, no âmbito de um processo penal, mas não impede que o arguido profira de motu próprio declarações sobre matéria processualmente relevante antes de ser constituído arguido ou de dever sê-lo, face ao disposto nos arts 58º e 59º, do CPP (no que aqui importa) e, eventualmente, noutras situações que aqui não analisamos por não relevarem para a decisão do caso sub judice.

No caso presente não está em causa depoimento de OPC sobre declarações prestadas pelo arguido que o art. 356º nº7 proíba, nem tão pouco depoimento indireto prestado à revelia do art. 129º do CPP, desde logo porque as palavras do ora arguido são indissociáveis da conduta narrada pelas testemunhas em audiência que, na sua globalidade, integram a materialidade do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual vem condenado.

Assim, nada obsta a que, para formar a sua convicção, o tribunal de julgamento tomasse em conta o depoimento das testemunhas BG e VR sobre a abordagem que fizeram ao ora arguido durante a ação de prevenção e manutenção da ordem pública que levavam a cabo, incluindo a narração de que no decurso daquela ação o arguido assumiu perante eles ser o detentor do produto estupefaciente que na mesma ocasião lhes entregou, antes de estes militares terem procedido à apreensão daquele mesmo produto, bem como à detenção e constituição de arguido do ora recorrente.

Nas suas conclusões do recurso, o arguido refere conclusivamente que qualquer interpretação dos artigos 58.º e 59.º do CPP no sentido de ser permitida a valoração de conversas informais entre um visado de um crime de tráfico de estupefacientes e agentes da OPC é materialmente inconstitucional por violação do princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo ínsito no artigo 32.º, n.º1 e 6, da Constituição da República Portuguesa. O recorrente não fundamenta, porém, esta sua afirmação nem vemos fundamento jurídico-constitucional que a sustente, tanto mais que resulta dos autos (fls 3 a 5, 8 e 9), que o arguido foi constituído como tal logo que teve lugar a apreensão do produto estupefaciente e a sua detenção em flagrante delito, como impõe o art. 58º do CPP, e que foi em momento anterior a qualquer daqueles atos que o arguido proferiu, de motu próprio, as palavras autoincriminatórias em causa.

Concluímos, pois, pela total improcedência da impugnação da decisão proferida na parte em que julgou provados os factos descritos sob os nºs 2b), 2c) e 4, da factualidade provada que, assim, se mantém integralmente.

2.3. Posto isto, cumpre decidir se a pena concreta de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, deve ser reduzida para medida não superior a 1 ano, suspensa na sua execução, sem sujeição a regime de prova, como pretende o arguido.

Este alega, no essencial, que o tribunal a quo considerou relevante para a determinação da pena que o arguido tenha faltado injustificadamente à audiência de julgamento sem fundamento legal, e que agiu com culpa abaixo do limiar médio, não sendo assinaláveis ou acentuadas as exigências prevenção geral para afirmação da eficácia da norma penal violada.

É manifesta a razão do arguido e recorrente quanto à irrelevância da sua falta à audiência na determinação da pena. A falta do arguido à audiência não se encontra de modo algum abrangido pela referência da al. e) do nº2 do artigo 71º à conduta anterior e posterior ao crime, pois apenas se inclui naquela alínea o comportamento relevante do ponto de vista da culpa e, sobretudo, da prevenção, conforme genericamente afirmado no nº1 daquele artigo 71º, não se vendo em que medida a falta do arguido à audiência influiria na apreciação do facto ou nas necessidades de prevenção geral e especial que constituem as finalidades das penas.

Como diz F. Dias (Direito Penal Português, 1993 p. 255), embora o comportamento processual do arguido deva ser amplamente valorado a seu favor, como é o caso de ter contribuído de forma importante para a descoberta da verdade, de ter confessado os factos ou, acrescentamos, de revelar efetivo e relevante arrependimento, deve recusar-se “… em via de princípio uma valoração contra o arguido do seu comportamento processual, dada a situação de pressão física e (ou) espiritual a que ele, em regra, está submetido. Só assim não deverá ser quando o seu comportamento for iniludivelmente de imputar à intenção de prejudicar o decurso normal do processo.”

Entendemos, porém, não assistir razão ao arguido ao pretender a redução da medida da pena para o limite mínimo da moldura legal (1 ano). Por um lado a redução pretendida, representando um terço da pena aplicada, é manifestamente desproporcional face ao peso que a circunstância ilegalmente considerada pelo tribunal a quo poderá ter tido no cômputo da pena. Por outro, as circunstâncias relativas ao facto, maxime a qualidade e quantidade do produto estupefaciente detido pelo arguido, foram já determinantes para o preenchimento do tipo privilegiado do art. 25º do Dec.-lei 15/9, cujo limite máximo é de 5 anos de prisão. Pôr último, não se apuraram circunstâncias relativas à pessoa do arguido, para além da ausência de antecedentes criminais e a sua juventude (completara 23 anos há poucos dias), que pudessem justificar a opção pelo mínimo legal, ou mais próximo dele que a pena de 1 ano e 4 meses de prisão que se entende adequada em face da procedência parcial dos fundamentos do recurso do arguido em matéria de determinação da pena.

A situação de facto apurada pelo tribunal a quo não fundamenta a necessidade de sujeitar o arguido a regime de prova, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, pelo que julga-se o recurso procedente também nessa parte.

III. DISPOSITIVO

Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, A., revogando a sentença recorrida na parte em que lhe aplicou a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, decidindo, em substituição, aplicar-lhe a pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, suspensa na sua execução por igual período de tempo, mas sem sujeição a regime de prova, mantendo-se tudo o mais decidido.

Sem custas, dado que o art. 513º do CPP faz depender a condenação do arguido do decaimento total em qualquer recurso.

Évora, 5 de julho de 2016

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

(António João Latas)

(Carlos Jorge Berguete)