Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
151/17.2T8ODM.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
DIVISIBILIDADE
RECONVENÇÃO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O artigo 209.º do Código Civil consagra um conceito jurídico de divisibilidade, e não naturalístico ou físico, uma vez que materialmente todas as coisas são divisíveis, até à sua ínfima parte.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. Embora seja admissível a dedução de reconvenção na acção de divisão de coisa comum, tal apenas poderá suceder nos casos taxativamente fixados nas als. a) a d) do n.º 2 do art. 266.º do Código de Processo Civil.
2. Não é possível detectar o requisito da reciprocidade entre o direito de exigir a divisão da coisa comum e o exercício de direitos relativos a benfeitorias ali realizadas por outro comproprietário.
3. O artigo 209.º do Código Civil consagra um conceito jurídico de divisibilidade, e não naturalístico ou físico, uma vez que, materialmente, todas as coisas são divisíveis, até à sua ínfima parte.
4. Para se decidir da divisibilidade ou indivisibilidade de um prédio, tem de se atender ao que ele é e não ao que poderá vir a ser, devendo assim o juízo de divisibilidade reportar-se ao momento e estado em que se encontra a coisa quando a divisão é requerida.



Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Competência Genérica de Odemira, (…) e mulher, (…), intentaram acção de divisão de coisa comum contra (…) e mulher, (…), relativa a prédio urbano descrito nos autos, o qual se encontra em compropriedade na proporção de 1/3 para os AA. e de 2/3 para os RR., mais afirmando que o prédio não pode ser dividido em substância.
Contestaram os RR., impugnando a indivisibilidade do prédio, por entenderem que em termos urbanísticos pode ser dividido, sendo que se informaram junto da Câmara Municipal ser possível o fraccionamento do prédio, desde que fosse instruído o respectivo processo de legalização. Uma vez que os AA. nunca quiseram despender as quantias necessárias ao aludido fraccionamento, pedem que a divisibilidade seja alvo de perícia a executar por pessoa indicada pelo Município de Odemira, e formulam quesitos no sentido de se apurar se o prédio é susceptível de constituição em propriedade horizontal ou divisão, se tal divisão poderá ser obtida através de licenciamento municipal, e se o prédio reúne características para o efeito.
Ainda na contestação, os RR. deduzem reconvenção, relativa a obras que realizaram no prédio, quer de substituição do telhado, quer de melhoria do imóvel, num valor global de € 19.191,48, acrescida da remuneração do seu trabalho no valor de € 2.800,00 e da despesa com substituição de portas e janelas, que reputam no valor de € 3.000,00. Assim, no caso de se decidir pela indivisibilidade do imóvel, pedem a condenação dos AA. no pagamento de 1/3 das benfeitorias reclamadas, deduzido do valor do resultado da venda e precedendo a distribuição devida pelos quinhões titulados por ambas as partes.
Após resposta dos AA., foi proferida decisão de não admissão do pedido reconvencional e o imóvel foi declarado indivisível.

Desta decisão recorrem os RR., concluindo:
A) Os recorrentes ao não verem ser admitido o pedido reconvencional formulado, desde logo a posição dos réus é prejudicada.
B) Na verdade tal pedido influencia desde logo o valor a receber ou pagar por cada uma das partes na adjudicação e composição dos seus quinhões.
C) Ao determinar sem mais a conferência de interessados a juiz a quo, sabe que o processo pode terminar logo nessa conferência com a adjudicação do imóvel a uma das partes.
D) Mas o valor desse imóvel, tem necessariamente o valor das benfeitorias incorporadas pelos réus/ reconvintes.
E) Ora, os autores estão comodamente beneficiados com tal decisão, pois nada fizeram para a conservação do imóvel, foram recusando a comparticipação das despesas de conservação e valorização do imóvel e vão receber o valor correspondente ao imóvel, que se existe no estado e no valor que se encontra é à custa dos aqui réus.
F) Ora o despacho da Meritíssima juíza a quo, teve em conta a celeridade processual sem atender a que tal situação das benfeitorias no imóvel influem significativamente no valor que o imóvel possa a vir a ter em sede de venda do mesmo a terceiros ou até adjudicação a uma das partes.
G) Não é pois aceitável que rejeitando o pedido reconvencional liminarmente, decida pela convocação de conferência de interessados, até porque a questão influi de forma significativa na composição dos quinhões que cada uma das partes haja a receber ou a pagar de tornas.
H) Assim, e porque estão em causa obras no montante de € 24.991,48 haveria que em sede de julgamento determinar-se a presente questão prejudicial ao processo, porquanto deverá saber-se em concreto qual o valor incorporado no imóvel pelos réus/reconvintes, para se saber em concreto o que uns e outros têm a receber com a adjudicação do imóvel.
I) Ora, discorda-se da rejeição do pedido reconvencional, o qual até poderia ser decidido perante determinação de perícia a ordenar pelo Tribunal para se saber efectivamente o valor das benfeitorias efectuadas.
J) Na realidade os autores não contestaram a realização das mesmas pelos réus reconvintes e como tal estavam discriminadas as benfeitorias efectuadas: substituição do telhado, recuperação da fachada do prédio, substituição do piso em más condições com assentamento de azulejos e pavimento, pintura e substituição de canalização e sistema de electricidade, substituição de janelas e portas da casa.
K) Assim, devem V. Exas. determinar que seja dado sem efeito o despacho proferido que declarou inadmissível a reconvenção e ordenar que seja a mesma aceite prosseguindo os autos os ulteriores termos, ou determinar-se perícia para avaliar as benfeitorias efectuadas de forma a que os quinhões de cada um dos compartes tenha em consideração as benfeitorias realizadas pelos Réus/ Reconvintes.
L) Igualmente os réus/reconvintes não aceitam o despacho que determinou tout court a indivisibilidade do prédio.
M) Na verdade, a Meritíssima juíza a quo, tendo em conta o que estava na caderneta, entendeu que havia uma indivisibilidade.
N) Ora, as cadernetas muitas das vezes estão desactualizadas na sua descrição, como é o caso.
O) A casa reúne potencialidade para a sua divisão, e nem sequer é verdade que possa perder a sua substância, nem prejudicado o seu uso ou diminuição do seu valor.
P) Na realidade Autores e Réus têm habitado o imóvel em condições plenamente autónomas.
Q) O Autor sempre disse que ocupava a construção existente nas traseiras e o réu a casa principal.
R) Ambas as construções têm sido utilizadas de forma independente e autónoma há muitos anos.
S) E como tal, não é a mera inscrição na matriz e a forma como o prédio ali está descrito que é suficiente para aferir da indivisibilidade.
T) Aliás, o prédio em propriedade horizontal poderá até aumentar o seu valor em caso de venda ou então poder-se-á adjudicar cada uma das fracções à cada uma das partes.
U) Face a isto, não se entende como se determinou desde logo a indivisibilidade quando pela própria contestação se verifica que a realidade física do prédio é diferente da que consta da inscrição na matriz.
V) Pelo que em bom rigor face a tal contestação seria o próprio Tribunal a requerer às entidades administrativas, nomeadamente à Câmara Municipal que determinasse a divisibilidade do objecto em causa na presente divisão.
W) Pelo que devem V. Exas. atento aqui o exposto revogar o despacho ora proferido e determinar a perícia solicitada no sentido de se aferir da divisibilidade do prédio, dado que na realidade autores e réus têm utilizado o mesmo de forma independente e autónoma.

Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

O elenco fáctico a ponderar é o seguinte:
1- Mostra-se inscrita a aquisição, na proporção de 1/3 para os AA. e de 2/3 para os RR., do prédio urbano sito em Almograve, freguesia de (…)/Almograve, concelho de Odemira, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º (…)/20111116, composto de casa de rés-do-chão, anexo e quintal, com a área coberta de 161m2 e descoberta de 235m2, num total de 396m2;
2- Os AA. vêm ocupando o anexo, enquanto os RR. vêm ocupando a casa principal;
3- As redes de água e de electricidade são únicas em todo o prédio, existindo um único contador para tais redes;
4- Ao momento da propositura da causa, a câmara municipal não havia autorizado a divisão ou fraccionamento do prédio.

Aplicando o Direito.
Da admissibilidade de reconvenção em acção de divisão de coisa comum por benfeitorias ali realizadas
Como resulta do art. 925.º do Código de Processo Civil, a acção de divisão de coisa comum é o meio processual que permite o exercício do direito de colocar termo à contitularidade de direitos reais, consagrado no art. 1412.º do Código Civil, processando-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, embora o juiz possa determinar que se sigam os termos do processo comum, se verificar que as questões suscitadas pelo pedido de divisão não podem ser sumariamente decididas – art. 926.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.
Mas determinando a lei a aplicação, em primeira linha, das regras dos incidentes de instância, constantes dos artigos 294.º e 295.º do Código de Processo Civil, tal demonstra a intenção do legislador em conferir a esta forma processual um carácter expedito, com limitação do número de testemunhas a cinco, produção de breves alegações orais e prolação imediata de decisão escrita.
E embora já se tenha decidido que a dedução de reconvenção nesta forma especial de processo pode ser admitida nos termos dos arts. 266.º, n.º 3 e 37.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil[1], importa atentar que a lei processual limita a utilização de tal instrumento às situações previstas nas als. a) a d) do n.º 2 do art. 266.º, não podendo assim admitir-se a dedução de pedido reconvencional fora dos casos taxativamente fixados.
No caso, é evidente a inaplicabilidade das als. a) e d), bem como da al. b), pois o objectivo da acção não é a entrega do imóvel, mas tão só o exercício do direito de exigir a divisão do mesmo – havendo a notar que a causa poderá findar com a adjudicação do imóvel aos próprios RR., sendo incompatível o exercício de direitos relativos a benfeitorias (por exemplo, o seu levantamento) por parte da pessoa que obtém a respectiva propriedade plena.
A questão coloca-se sobretudo em relação à al. c) – quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.
Ora, a compensação constitui um meio de extinção das obrigações para além do cumprimento, que pressupõe sempre que duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor – art. 847.º, n.º 1, do Código Civil – e que ocorram os seguintes requisitos: a) ser o crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; b) terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade. Como nota Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª ed., pág. 194, «para que o devedor se possa livrar da obrigação por compensação, é preciso que ele possa impor nesse momento ao notificado a realização coactiva do crédito (contra crédito) que se arroga contra este», mais adiantando que «diz-se judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento e à execução do património do devedor.»
Quanto à fungibilidade do objecto das obrigações, o mesmo autor escreve que o «requisito da homogeneidade das prestações compensáveis é um puro corolário da ideia de que o credor não pode ser forçado (contra sua vontade) a receber coisa diferente da que lhe seja devida, ainda que de valor equivalente ou até superior» – loc. cit., pág. 195.
No caso dos autos, não é possível encontrar o referido requisito de reciprocidade, com as características supra assinaladas. Com efeito, os AA. são apenas titulares do direito de exigir a divisão da coisa comum, e não dispõem, actualmente, de um crédito judicialmente exigível, que possam contrapor àquele em que os RR. fundam a sua pretensão reconvencional.
Poderá suceder que, nas operações de divisão da coisa comum, resulte um crédito dos AA. para preenchimento do seu quinhão, em resultado de adjudicação do bem aos RR., mas tal é apenas uma mera eventualidade, não podendo assim afirmar-se a existência de um crédito dos AA. com os requisitos de actualidade e de reciprocidade exigidos pela lei civil.[2]
Concluímos, pois, não apenas que o objectivo desta forma processual é o exercício do direito potestativo de exigir a divisão, reconhecido pelo art. 1412.º, n.º 1, do Código Civil, e não a discussão de benfeitorias realizadas sobre a coisa[3], mas ainda que os RR. não demonstraram o preenchimento dos requisitos que, nos termos do art. 266.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, taxativamente condicionam o exercício do direito de reconvir, motivo pelo qual bem procedeu a primeira instância ao não admitir a reconvenção.

Da indivisibilidade do imóvel
De acordo com o art. 209.º do Código Civil, são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam. Trata-se, assim, de um conceito jurídico de divisibilidade, e não naturalístico ou físico, uma vez que, materialmente, todas as coisas são divisíveis, até à sua ínfima parte.
Por outro lado, para se decidir da divisibilidade ou indivisibilidade de um prédio, tem de se atender ao que ele é e não ao que poderá vir a ser, devendo assim o juízo de divisibilidade reportar-se ao momento e estado em que se encontra a coisa quando a divisão é requerida.[4]
Por outro lado, como já afirmou o Supremo Tribunal de Justiça[5], não é legítimo ao comproprietário de um prédio utilizar a acção de divisão de coisa comum para, com o concurso do tribunal, mas sem a concordância dos demais comproprietários, proceder à constituição da propriedade horizontal. Na verdade, excede os poderes de um dos comproprietários, sem o acordo dos demais, proceder à alteração da estrutura e natureza do prédio, pois a tal obsta o disposto nos arts. 1407.º e 985.º, n.º 1, do Código Civil.
Acresce, ainda, que o fraccionamento e constituição da propriedade horizontal sobre prédios urbanos depende da verificação de exigências urbanísticas que são de satisfação exclusivamente deferida às câmaras municipais, a quem cabe, como requisito prévio da constituição da propriedade horizontal, emitir a respectiva licença de utilização – arts. 62.º a 66.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo DL 555/99, de 16/12.
No caso, os RR. não alegaram que o prédio dos autos tinha a sua divisão ou fraccionamento autorizada pela competente câmara municipal, ou sequer que preenchia, actualmente, os requisitos para a concessão da competente licença. Argumentam que, com obras de alteração, com as quais os AA. não concordam, tal divisão poderá ser possível, mas, em bom rigor, no local até pode ser viável a construção futura de uma torre com vários apartamentos, mas o que importa é o estado actual do prédio, e essa é de indivisibilidade jurídica.
Assim, não tendo os RR. alegado, sequer, o actual preenchimento dos requisitos administrativos de constituição da propriedade horizontal, não podia a indivisibilidade deixar de ser declarada, como os AA. requereram e a primeira instância concedeu.[6]

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

Évora, 22 de Março de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
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[1] Assim se decidiu nos Acórdãos da Relação de Guimarães de 25.09.2014 (Proc. 260/12.4TBMNC-A.G1) e da Relação de Lisboa de 24.09.2015 (Proc. 2510/14.3T8OER-A.L1-2), ambos publicados em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 12.03.2013 (Proc. 86/11.2TBVZL-A.C1), publicado no mesmo endereço.
[3] De igual modo se pronunciou o Acórdão da Relação de Coimbra de 28.01.2014 (Proc. 201/12.9T2ALB.C1), também com o mesmo local de publicação.
[4] Neste sentido se pronunciou Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, vol. I, tomo II, pág. 158.
[5] Em Acórdão de 23.09.2008 (Proc. 08B2121), secundado pelo de 14.06.2011 (Proc. 1147/06.5TBVVD.G1.S2), ambos em www.dgsi.pt.
[6] Em sentido idêntico ao do presente aresto, vide os Acórdãos da Relação de Coimbra de 15.01.2013 (Proc. 91/08.6TBVNO.C1) e da Relação do Porto de 02.07.2012 (Proc. 261/09.0TBCHV.P1) e de 16.10.2017 (Proc. 2506/15.8T8VFR-A.P1), todos publicados em www.dgsi.pt.