Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
346/09.2IDSTB.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ILÍCITO TIPICO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
I – Para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado até ao momento da entrega das respetivas declarações periódicas à Autoridade Tributária.

II – Não tendo o tribunal diligenciado pelo apuramento das concretas datas do recebimento parcial ou total do IVA com referência ao momento estabelecido para a entrega de cada uma das sobreditas declarações e do imposto devido, incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório

1. - Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular que corre termos no 2.º Juízo criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, foram sujeitos a julgamento P., Lda., , com sede fiscal em Setúbal, C., natural de Setúbal, nascido a 25.03.1948, casado, serralheiro, residente em Setúbal; M., natural de Setúbal, nascida a 27.10.1952, casada, auxiliar de ação médica, residente em Setúbal; F., natural de Setúbal, nascido a 16.06.1956, casado, empresário, residente em Setúbal e E., natural de Setúbal, nascida a 26.01.1955, casada, técnica administrativa, residente em Setúbal, a quem o MP imputara a prática, em coautoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 7º, n.º 1 e 105º, n.º 1 e 5 do Regime Geral das Infrações Tributárias.

2. - Realizado o julgamento, o tribunal singular decidiu:
- Absolver a arguida M, pela prática em co-autoria e na forma consumada de dois crimes de abuso de confiança fiscal social, p. e p. pelo art. 105º, n.º 1 e 5 do RGIT;

- Condenar o arguido C, pela prática em coautoria e na forma consumada de dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º, n.º 1 e 5 do RGIT, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão para cada um dos crimes. Operado o cúmulo jurídico destas penas foi o arguido C. condenado na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução ao abrigo do art. 50º CP e do art. 14º, n.º 1 RGIT, por um período de 5 anos, condicionada ao pagamento da prestação tributária em causa nestes autos.

- Condenar o arguido F, pela prática em coautoria e na forma consumada de dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º, n.º 1 e 5 do RGIT, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão para cada um dos crimes. Operado o cúmulo jurídico destas penas foi o arguido F. condenado na pena única de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução ao abrigo do art. 50º CP e do art. 14º, n.º 1 RGIT, por um período de 5 anos, condicionada ao pagamento da prestação tributária em causa nestes autos.

- Condenar a sociedade arguida P., Lda, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º do RGIT, na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis) euros, o que perfaz o valor global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).

3. - Inconformado com o assim decidido, vem o arguido F. interpor recurso, de cuja motivação extrai as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES:

1ª – A matéria de facto dada como provado no nº 8 deve ser alterada, por estar provado que clientes da P pagavam a 60 e 90 dias, e por vezes demoravam 100 dias e mais a pagar, mas o IVA tinha de ser pago no mês imediatamente a seguir à emissão da factura, o que impossibilitava a P, por ser uma pequena empresa que não tinha capacidade económica e financeira para adiantar os valores do IVA, correspondente ás facturas que ainda não tinha recebido, de o pagar.

2ª – O número 9 da matéria de facto tem de ser alterada, no que respeita à declaração de IVA do mês de Agosto de 2006 (2006/08) no valor de € 50.681,12 €, apesar de na declaração enviada para o Fisco constar o valor de € 50.681,12, no auto de notícia consta o valor em dívida de € 47.871,96, sendo certo que a folhas 103, consta escrito a lápis, à frente da quantia 50.681, 12 – “Pagos € 2.809,16”.

3ª – Por outro lado, a fols 104, na notificação P, nos termos e para os efeitos da alª b) do nº 4 do artº 105 do RGIT, da arguida P. o valor pedido em relação a 06/08 é de € 47.871,96, sendo certo que a fols 725 consta que em relação ao período de 08/2006, foi efectuado o pagamento de € 2.809,16.

4ª – Tanto mais que a testemunha N., inspector tributário declarou que os “valores correctos são os que estão no auto de notícia”.

5ª – Apesar de tudo isto a “Mª Juiz” “a quo” concluiu que este valor se encontrava em dívida em 23/10/2012, quando é certo que no início do processo – auto de notícia lavrado em 7 de Fevereiro de 2009, o valor da dívida da P, em relação ao mês de Agosto de 2006 era de € 47.781,96.

6ª – Pelo que o ponto nº 9 da matéria dada como provada, tem de ser alterado por forma a que na segunda linha fique a constar “2006/08: € 47.781,96”, tendo até em conta a qualificação jurídica da não entrega de quantias superiores a € 50.000,00 (nº 5 do artº 105 do RGIT com a redacção de 2006)

7ª – Decorre de fols 540 a 548 que os demais arguidos foram notificados, mas o arguido recorrente não foi notificado, decorrendo de fols 117/118 e 182 que a sociedade P. foi notificada na pessoa do recorrente, na qualidade de gerente (fols 117/118) e na qualidade de representante legal da sociedade (fol. 182).

8ª – Sendo certo que o arguido, aqui recorrente não foi notificado pessoalmente nos termos e para os efeitos da alínea b ) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, pelo que o número 11 da matéria de facto, tem de ser julgada de forma diversa do que foi, dizendo-se que

“A excepção do arguido F., a sociedade arguida e representantes legais, foram notificados...até posteriormente

9 ª – Ou então mais singelamente aditar o ponto 9-A que se diga:

O arguido F. não foi notificado, nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT,

10 ª – O número 13, deve ter uma redacção mais clara de forma a que nele conste “integrando-as no património da sociedade e lesando a Administração Fiscal nesse valor”. Na verdade, não há qualquer prova nos autos que os arguidos, pessoas individuais, se tenham aproveitado e apropriado de qualquer quantia da sociedade e muito menos das quantias referente ao IVA

11ª – Os números 19 e 23, devem ser alterados, por a prova produzida não poder determinar tais conclusões., apesar da Mª Juiz “a quo” ter certamente valorado o depoimento do arguido F, aqui recorrente, quando, a directamente interessada e que recebe efectivamente o vencimento, a esposa dele, declarou que tinha um rendimento variável de mês para mês, mas que recebia entre € 600/700 líquidos, considerando “a penhora que tenho”.

12ª – O número 19, deve ser alterado para forma a que a decisão seja “que actualmente vive com o ordenado da esposa, que aufere por mês a quantia de cerca de € 1.400 mensais de ordenado base.

13ª – Tendo igualmente o nº 23 de ser alterado, por forma a que nele conste que a arguida aufere por mês a quantia líquida de cerca de € 600/700, por ter parte do seu vencimento penhorado

14ª – Dispõe a alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, na redacção introduzida pelo artigo 95 do Dec. Lei 53-A/2006 de 29/12, que aprova o Orçamento do Estado para 2007, que se aplica aos autos, por mais favorável ao recorrente e porque consagra uma condição objectiva de punibilidade e se aplica aos processos pendentes (Ac. Trib. Relação do Porto de 11/7/2007 – Procº 3147/07 – Jusnet 4995/2007), que

Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

Alª b) – “A prestação comunicada à administração Tributária através da correspondente declaração não fôr paga, acrescida dos juros respectivos e da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito”.

15 ª - O arguido, aqui recorrente, nunca foi notificado pessoalmente para pagar as quantias em dívida, pelo que não pode ser punido por esses factos porque a notificação do recorrente enquanto representante da pessoa colectiva não dispensa a sua notificação pessoal nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT (Ac. Rel. Coimbra de 30/5/2012 – Procº 7993/04).

16 ª -Assim sendo, deve o recorrente ser absolvido, o que aqui se clama.

17 ª - Sendo o valor da dívida referente ao mês de Agosto de 2008 de € 47.871,96, sempre seria aplicável o nº 1 do artº 105º do RGIT e o arguido condenado em pena de multa, atendendo a que não tem antecedentes criminais e ser esta a medida a privilegiar ou mais gravosamente em trabalho a favor da comunidade dada a sua comprovada difícil situação económica e financeira e o valor a pagar.

18ª – Quanto aos valores a considerar para a medida da pena, dispõe o nº 7 do artigo 105 do RGIT que para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração fiscal.

19ª – A Mª Juiz “a quo” não podia, como fez, juntar o valor das declarações apresentadas nos anos de 2007 e 2008 e concluir que como o valor global era superior a € 50.000, a medida da pena era de 1 a 5 anos de prisão.

20ª – No crime de abuso de confiança fiscal o Tribunal deve ter em conta o valor constante de cada uma das declarações apresentadas à administração fiscal e não o valor global das mesmas.

21ª- A sentença ao omitir tais factos está ferida de nulidade por omissão de pronúncia (Ac. do Trib Relação do Porto de 12/1/2011 – Procº 282/01 – Jusnet 87/2011,com referência a inúmeros acórdãos no mesmo sentido) pois sempre as alterações introduzidas ao artigo 105 do RGIT pelo Dec. Lei 53 A /2006, se devem considerar mais favoráveis para o arguido e de aplicação imediata de acordo com o nº 4 do artº 29 da Constituição da Republica e o acórdão da fixação de jurisprudência do STJ nº 15009 publicado no D. R. de 23/11/2009.

22ª – O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência constitucional e um direito fundamental desde logo ancorado no direito a um processo equitativo expressamente acolhida no artº 205º, nº 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa [32º, nº 1, da Constituição da República].

23ª – Isso implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a se aferir se a mesma está ou não fundada na lei e no direito. É isso que decorre expressamente no disposto no artº 97º, nº 4 do Código de Processo Penal (5), ao estabelecer que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

24ª – Na sequência deste dever de fundamentação o artº 379º, nº 1 enuncia diversas as diversas situações em que uma sentença é nula, sendo uma delas quando a mesma “não contiver as menções referidas no artº 374º, nº 2 e 3, alínea b)” [a)] e outra “Quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não possa tomar conhecimento” [c)].

Ora segundo aquele artº 374º nº 2 “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.

25ª – Por isso exigência de fundamentação é, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legítima, e das garantias de defesa, ambas com assento constitucional, de forma a se aferir da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.

26ª- Daí que a fundamentação de um acto decisório deva estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, sendo certo que no caso de uma sentença deve obedecer ainda os requisitos formais enunciados no citado artº 374º, nº 2.

Tudo isto para se conhecer, ao fim e ao cabo, qual foi o efectivo juízo decisório em que se alicerçou o correspondente despacho, designadamente os factos que acolheu e a interpretação do direito que se perfilhou, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.

27ª – Assim e à partida, não cumprem estes requisitos os ac tos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, er aqueles que se revelem insuficientemente motivadas.

28ª – Verifica-se na sentença a omissão e falta de fundamentação no que respeita a ter considerado o valor de € 73.157,50 em 2006 e € 55.497,07 em 2007/2008, concluindo “pelo que ambos ultrapassavam à data o valor referenciado no nº 5 do artº 105 do RGIT”.

29ª – Daí a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia.

30ª – Assim os valores a considerar, considerando, como o Tribunal o fez, a prática de dois crimes e não crime continuado, teriam de ser, como já dissemos, os valores de cada declaração, com a ressalva de em Agosto de 2008, dever ser considerado o valor de € 47.871,96, uma vez que foi paga a quantia de € 2.809,16.

31ª – Dispõe o nº 1 do RGIT que quem não entregar á administração tributária total ou parcialmente, prestação tributária deduzida...é punido.

A sociedade arguida pagou parcialmente a referida quantia conforme se alcança do próprio auto de notícia, daí que terá de ser o valor de € 47.971,96 a considerar, tanto mais que nenhuma prova foi feita, quanto à data do pagamento parcial, pelo que se tem de considerar e aceitar que a administração fiscal considerou o pagamento parcial efectuado dentro de 90 dias a que se refere o nº 4 do mesmo, até pelo principio do “in dubio pro reo”, tanto mais que a sentença não fundamenta minimamente que provas valorou para chegar à conclusão dos arguidos liquidaram e não entregaram ao estado os montantes dados como provados.

32ª – A medida da pena do recorrente tem de aferir-se pela aplicação do nº 1 do artigo 105 do RGIT e em consequência ser de aplicar uma pena de multa, em detrimento da prisão, por o arguido ser primário, ter cometido ilícito de que vem acusado, por falta de preparação e conhecimentos e estar mal assessorado fiscalmente pelo Técnico de Contas.

33ª - A intensidade do dolo do arguido é diminuto por: a administração tributária, a seguir AT, ter penhorado bens móveis da sociedade arguida em 4 de Setembro de 2007 (fols 998 e 999) para pagamento do IVA no valor de € 61.941,57 e não ter procedido à venda dos mesmos até esta data.

34ª - Ter permitido que parte dos bens fossem vendidos pelo Tribunal do Trabalho de Setúbal, para pagamento de dívidas a trabalhadores da responsabilidade de outra empresa, que não a sociedade arguida.

35ª - Ter afectado quantias recebidas, por penhoras de créditos, afectando-as a dívidas menos antigas do que o IVA de Julho e Agosto de 2008, designadamente a quantia de 19.338,22 €, a que se reportam as folhas 914 e 915 (folhas 46 e 47) da certidão junta pela AT em 2 de Março de 2012.

36ª - Que em 2/09/2008 a sociedade arguida deu de penhor á AT bens no valor de € 123.417,91 (Fols 992 a 924) tendo pago nesta altura € 8.000 que expressamente foi referido que era para pagamento do IVA , que a AT destinou ao pagamento de juros de mora, liquidados em 2007, quando é certo que a dívida de Julho de 2006 de IVA era mais antiga.

37ª - O Tribunal não atendeu ao disposto nos nºs 2, 3 e 6 do artigo 262 do Código de Procedimento e do Processo Tributário que manda que as quantias entregues/penhoradas sejam destinadas às dívidas mais antigas, o que pelas razões atrás expressas e por omissão de pronúncia 2, conduz igualmente à nulidade da sentença, o que aqui se reclama.

38º - A sentença violou o nº 4 do artº 29 e nº 1 do artº 32 da Constituição da República, o nº 4 do artº 94, os artigos 374 e 379 do Cód. Proc. Penal, os nºs 1, 2, 3, 4, e 7 do RGIT e o artigo262 do Código do Procedimento e do Processo Tributário, pelo que deve ser revogada, devendo o arguido aqui recorrente ser absolvido por não se verificar a condição objectiva de punibilidade.»

4. Em primeira instância, o MP pronunciou-se no sentido do povimento parcial do recurso.

5. - Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de nada obstar ao conhecimento do recurso.

6. Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e o recorrente nada acrescentou

7. – Transcrição (parcial) da sentença recorrida

«2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. Os arguidos C, M e E eram, à data da prática dos factos, eram sócios da sociedade denominada "P., Lda.", ora arguida, NIPC ..., com sede fiscal na ...,Setúbal.

2. Apenas as arguidas M e E, constavam da certidão do registo comercial como gerentes da sociedade arguida.

3. A gerência de facto da sociedade encontrava-se a cargo dos arguidos C e F.

4. A sociedade arguida encontrava-se, em Julho e Agosto de 2006 e Setembro de 2007 a Fevereiro de 2008, enquadrada em IVA, no Regime Normal de Periodicidade Mensal.

5. Encontrando-se colectada no Serviço de Finanças de Setúbal 1.

6. Enquanto sujeito passivo de IVA, a sociedade arguida estava sujeita às obrigações de liquidação de IVA; emissão de factura ou documento equivalente, declarativa, de autoliquidação de tributo e pagamento, obrigações que os arguidos C e F, bem conheciam.

7. Estava, assim, a sociedade arguida através dos seus gerentes, que agiam no seu interesse e por sua conta, obrigada a cumprir as regras de liquidação de IVA relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade.

8. Com referência a essas operações, nos períodos 2006/07, 2006/08, 2007/09, 2007/10, 2007/11, 2007/12, 2008/01 e 2008/02, os arguidos C e F, na qualidade de representantes da " P..., Lda." e no seu interesse, procederam, à liquidação a terceiros seus clientes de IVA, à taxa legal, quantias que receberam e não entregaram ao Estado, tal como estavam obrigados.

9. Assim, nos períodos que seguem, os referidos arguidos liquidaram e não entregaram ao Estado os seguintes montantes:
• 2006/07: € 22.476,38;
• 2006/08: € 50.681,12;
• 2007/09: € 9.113,16;
• 2007/10: € 8.110,86;
• 2007/11: € 10.397,97;
• 2007/12: € 8.745,95;
• 2008/01: € 9.963,63; e
• 2008/02: € 9.165,39.

10. Com efeito, os arguidos C e F apresentaram à Administração Fiscal, a declaração periódica de IVA dos mencionados períodos, desacompanhada do respectivo meio de pagamento, não tendo entregue os valores que cobraram aos seus clientes a título de IVA, nem naquela data, nem nos 90 dias posteriores, obtendo, assim, uma vantagem patrimonial que não lhes era devida, no montante total de € 128.654,46, correspondendo:

• 1º Período (2006/07 e 2006/08): € 73.157,50; e
• 2º Período (2007/09, 2007/10, 2007/11, 2007/12, 2008/01 e 2008/02): € 55.496,96.

11. Notificada a sociedade arguida e representantes legais, para procederem ao pagamento do imposto devido relativo aos mencionados períodos, acrescidos de juros de mora e coima, não o fizeram, nem no prazo concedido de 30 dias, nem posteriormente.

12. Os arguidos C e F agiram sempre em representação e no interesse da sociedade "P., Lda." sabendo que estavam obrigados a entregar à Administração Fiscal o IVA liquidado.

13. Agiram com o intuito, que lograram alcançar, de não entregar à Administração Fiscal as quantias de IVA que efectivamente receberam e liquidaram, no total de € 128.654,46, correspondendo € 73.157,50 ao 1º Período (2006/07 e 2006/08) e € 55.496,96 ao 2º Período (2007/09, 2007/10, 2007/11, 2007/12, 2008/01 e 2008/02), integrando-as, antes, nos respectivos patrimónios e lesando a Administração Fiscal nesse valor.

14. Os arguidos C e F agiram livre, voluntária e conscientemente, sempre com o mesmo propósito, que mantiveram entre Julho e Agosto de 2006, agindo do modo descrito em face das mesmas dificuldades económicas que a "P, Lda.", apresentava naquele período temporal.

15. Agiram, igualmente, de forma livre, voluntária e consciente, sempre com o mesmo propósito, que mantiveram entre Setembro de 2007 e Fevereiro de 2008, agindo do modo descrito em face das mesmas dificuldades económicas que a "P, Lda.", apresentava naquele período temporal.

16. Sabiam que tais condutas lhes estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiram de as realizar.

17. O arguido é sócio e gerente de uma sociedade da área de serralharia.

18. Não retira quantia certa de tal actividade.

19. Actualmente vive com o ordenado da esposa, que aufere por mês a quantia de cerca de € 2000,00 ilíquidos.

20. Consigo vive a esposa e uma neta que está á sua guarda.

21. Vive em casa própria que se encontra penhorada pela entidade bancária.

22. Tem de escolaridade o 5º ano.

23. A arguida aufere por mês a quantia líquida de cerca de € 1400,00, por ter parte do seu vencimento penhorado.

24. Tem de escolaridade o 9º ano.

25. Dos CRCs dos arguidos M, E e C nada consta.
26. Do CRC da sociedade arguida nada consta.
27. Do CRC do arguido F. consta uma condenação pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º CP, datado de 02-03-2008, e transitada a sentença em julgado em 16-04-2008, numa pena de 50 dias de multa á razão diária de € 7,00 e na pena acessória de inibição de condução de 3 meses, extinta pelo cumprimento.

28. Em 23.10.2012 encontrava-se ainda em dívida, quanto aos períodos supra elencados, a quantias mencionadas a fls. 1142 e que se reproduz:
· 2006/07 - € 10.274,59.
· 2006/08 - € 47.871,96.
· 2007/09 - € 9.113,16.
· 2007/10 - € 8110,86.
· 2007/11 - € 10.397,97.
· 2007/12 - € 8745,95,
· 2008/01 – € 9.963,63.
· 2008/02 - € 9165,39.
*
2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não resultou provado, com pertinência para a decisão da causa:
i) As arguidas M e E agiram como constante dos factos vertidos supra de 7) a 16).

2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, designadamente na conjugação das declarações do arguido e dos documentos e certidões juntas aos autos.

Desde logo e quanto aos factos vertidos de 1), 4) a 7) atentou-se na prova documental dos autos, designadamente, na certidão do registo comercial dos autos – fls. 173 a 175 – da qual se retira quais os sócios e ainda os gerentes registais – ou seja, de direito. Quanto ao regime de IVA e obrigações fiscais decorrentes, dos demais elementos fiscais dos autos e das declarações ainda de N – inspector Tributário bem como de F que confirmou tais obrigações fiscais por parte da sociedade arguida.

Quanto á demais factualidade, alem dos elementos documentais, atentou-se nas declarações dos arguidos F e E, e na prova testemunhal, que se passa a elencar, conjugados com as regras de experiência comum.

O arguido F assumiu a gerência de facto da sociedade, confirmando que as co-arguidas não tinham intervenção activa na sociedade, limitando-se a assinar a documentação necessária para a actividade da sociedade arguida, pelo que nenhuma decisão tomavam no seio da sociedade. Referiu que a parte financeira e fiscal ou pagamentos eram suas incumbências, mas que as decisões, na prática, eram tomadas pelos gerentes, ou seja, juntamente com o co-arguido C – embora este tivesse particular intervenção na área dos trabalhadores. As co-arguidas tinham intervenção nas assinaturas pois sem estas a sociedade não funcionava.

Confirmou conhecer as obrigações fiscais, e a obrigação de entregar ao Estado as quantias retidas de IVA, discordando, todavia, com os prazos de pagamentos. Confirmou ainda a não entrega dos valores de IVA nos períodos temporais referenciados na acusação e bem assim, os serviços prestados pela sociedade nesses mesmos períodos. Disse, que pelo menos parte desses valores não estavam pagos á data da declaração, mas terão sido pagos posteriormente.

Declarou ainda que posteriormente e com dinheiro seu, tentou proceder a pagamentos junto da Fazenda Nacional, mas que a mesma entidade imputa os pagamentos ás dividas que entende, demonstrando mais uma vez discordância quanto a tal forma de tramitação.

Referiu ainda que a sociedade vivia já algumas dificuldades, e que tentava “olhar” pelos empregados, pagando os ordenados.

A arguida E declarou ser apenas gerente de direito – assinava o que lhe era peticionado mas nada conhecia nem tinha intervenção na sociedade e sua actividade ou decisão de gestão. Referiu que era o marido, F e C quem intervinha na sociedade. Referiu que na ausência do seu marido, quando era preciso assinar algum documento era contactada por C.

Foi inquirido N, inspector tributário que explicitou as diligências efectuadas para confirmação dos valores retidos de IVA, e efectivos pagamentos. Referiu ter falado com F mas não com o arguido C.

A testemunha J, TOC da sociedade, confirmou que a gerência de direito era das esposas mas quem geria a sociedade seriam os maridos – C e F. Todavia, era o arguido F que normalmente se dirigia á contabilidade e com quem falava. Referiu, todavia, que por várias vezes também este era acompanhado de C.
Confirmou ainda valores declarados de IVA e não pagos aos Estado e que os gerentes eram alertados para os não pagamentos.

A testemunha JS, foi funcionário da sociedade arguida, confirmando que as ordens eram dadas pelos dois co-arguidos, sendo C mais na área de gestão do trabalho e trabalhadores, designadamente junto da C, cliente da sociedade.

Por seu turno, PR, que as questões financeiras eram em regra dadas pelo arguido F, mas o arguido C também dava ordens, em particular na C., gerindo o pessoal. Esta testemunha, sendo trabalhador do escritório referiu ainda, com pertinência, que considerava que ao nível financeiro acabavam por ser ambos os co-arguidos a tomar decisões.

CG, declarou ter trabalhado na sociedade arguida e que na oficina as ordens eram dadas pelo arguido F e na S, seriam pelo arguido C.

R declarou ainda que quem dava ordens na oficina e sede era F e na S seria o arguido C

Da defesa foram inquiridas duas testemunhas, ambos ex-funcionários da sociedade arguida.

JP declarou que os patrões e gerentes seriam os dois co-arguidos, sendo que o arguido C geria o pessoal na S além de aí prestar actividade laboral.

JG declarou que via o arguido C mais na S e que este geria o pessoal e aí trabalhava e que se intitulava patrão. Declarou que pagamentos seriam mais com o arguido F.

Assim, e da prova produzida, nomeadamente das declarações dos arguidos F e E, conjugado com os depoimentos das demais testemunhas elencadas, designadamente o TOC e ainda os trabalhadores da sociedade, que mereceram, na generalidade credibilidade – isto quanto ás aludidas testemunhas, resulta pois, como não provada a intervenção das arguidas M e E na gestão de facto da sociedade e por conseguinte, na decisão em causa nos autos de não entrega dos montantes de IVA - daí a prova dos factos vertidos (acrescentados) de 2) e 3 dos factos provados e bem assim, a colocação como não provada da imputação de tais actos á co-arguidas.

No que tange a gestão conjunta por parte de C e F, ainda que se apure que a gestão corrente poderia estar a cargo particularmente de F, tanto mais que este estava em regra na oficina e sede da sociedade arguida, tal não retira a intervenção como gerente de C.

Vejamos.
Desde logo, seria este que levaria alguns documentos para a esposa assinar como gerente de direito. Por outro lado, resultou á saciedade que em geral o próprio se considerava e intitulava patrão, além de que tinha funções de gestão de pessoal, dando ordens directas junto de um cliente – C. Ora, o facto de nem sempre estar na sede da sociedade e por isso, não ser visto com regularidade no horário de trabalho, tal não impedia que este conhecesse a situação da sociedade e decidisse juntamente com o arguido F. Acresce que, como se aferiu quando o arguido F estava ausente era o arguido C que tomava a gestão por si (sozinho). Por outro lado, resulta do depoimento do TOC que C chegou a ter reuniões nessa área juntamente com F.

Donde que, embora se verifique a existência de uma divisão de funções na gerência – gestão de pessoal e C por um arguido, e presença no escritório e sede dando ordens na oficina por outro arguido, resulta que ambos geriam a sociedade e por isso, tomavam decisões sobre a mesma.

A tudo isto acresce o depoimento do co-arguido que confirmou que ambos geriam a sociedade. Note-se que tal se retira do simples facto de terem decidido que ambas as esposas seriam gerentes de direito – em substituição directa dos seus nomes na gestão, o que, conjugando todos os elementos com as regras de experiência comum, não surgiu no espírito do julgador, qualquer dúvida em sede probatória, antes a clara convicção que ambos exerciam conjuntamente a gerência de facto da sociedade arguida.

No que se refere á prestação efectiva dos serviços, pagamentos pelos clientes, retenção de IVA e sua não entrega atempada nos prazos legais, como vertido na acusação e dado como provado, além do depoimento parcialmente confessório do arguido F e do depoimento claro, preciso e conhecedor de N, outra conclusão não podia ser retirada, da análise cuidada dos elementos contabilísticos da sociedade e dos elementos remetidos pelas sociedades e empresas relativas ás facturas declaradas nos períodos de IVA em causa:

- listagens e elementos de fls. 6 e ss, notificações de fls. 104 e ss, elementos de fls. 123 a 165, 173 a 175, 251 a 292, 294 a 315, 294 a 315, 317 a 481, 485 a 510, 525 a 526, 540 a 545, 553 a 624, 625 a 631, 632 a 649, 650 a 653, 675 a 684 e parecer final de fls. 736 e ss dos autos.

Muito foi especulado pela defesa no que tange a impossibilidade de aferir os valores em dívida, atento o n.º de execuções fiscais, e existir por parte das Finanças a pretensão de imputar pagamentos, mesmo voluntários, a outras dívidas mais antigas, bem como uma inércia culposa do Fisco no que tange a venda de bens penhorados, comparativamente a penhoras junto do Tribunal do Trabalho.

Vejamos.
Atentou-se em fls. 894 e ss a 1050. fls. 1105 e ss 1116 e ss e muito particularmente a fls. 1142 – informação fiscal solicitado de forma oficiosa.

Ora, a verdade é que resulta legalmente admissível a imputação do Fisco a dívidas antigas – veja-se que a sociedade arguida tem mais de 20 execuções pendentes.

No entanto a verdade é que de fls. 1142 resulta as quantias ainda não pagas quanto ao processo em análise – períodos temporais de IVA. Acresce que a referência a inércia da Fazenda Nacional em nada isenta a sociedade e responsáveis legais da mesma quanto ao não pagamento atempado e voluntário das quantias.

Quanto aos antecedentes criminais, atentou o tribunal nos certificados do registo criminal constantes dos autos. Aferiu-se ainda das declarações do arguido F e esposa, sobre as suas actuais condições sócio-económicas.

Fazendo a análise crítica da prova produzida, e de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, resultou a convicção do tribunal expressa na matéria de facto acima exposta.

2.4. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA
2.4.1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

Dispunha o art. 105º, n.º 1, do RGIT, que:
1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

No caso, estarão em dívida quantias, todas elas e individualmente consideradas, superiores a € 7500,00, pelo que a presente conduta manterá a sua punibilidade no que tange o valor.

O bem jurídico tutelado com a incriminação é o imposto, como bem jurídico concretizado numa obrigação com um tempo determinado no caso concreto, (cfr. nº 4, do art. 105º, do RGIT), assumindo a mora desta obrigação uma carga axiológica densa porquanto atinente aos fins do Estado relativamente ao bem comum (arts. 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa).

O elemento objectivo do tipo consiste na não entrega tempestiva da prestação devida, traduzindo-se o crime numa mora qualificada, pois que apenas se preenche quando decorram 90 dias sobre a data da obrigação de entrega da prestação tributária. Neste sentido, vide acórdão da Relação do Porto de 14.12.2005, processo 0541858, disponível em www.dgsi.pt.

Não se entende por isso ser necessária a prova da intenção de apropriação, enquanto inversão do título da posse, como se exige para o crime de abuso de confiança comum, previsto no Código Penal.

Em suma, para o preenchimento do tipo de crime em causa nestes autos basta a não entrega ao credor tributário da prestação retida na fonte a título definitivo, ou não entrega ao credor tributário da prestação tributária deduzida por conta daquele, ou ainda não entrega da prestação tributária recebida por terceiros que haja a obrigação legal de liquidar.

No que concerne ao elemento subjectivo do tipo exige-se o dolo, traduzido num querer não entregar as prestações retidas, deduzidas ou recebidas por terceiros, sabendo que há a obrigação legal de as liquidar. Não se exige qualquer dolo específico.

Cumpre, ainda atentar no seguinte.

Devemos atentar no que se refere ao n.º 4, estabelecendo que “os factos são puníveis se: (…) b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.

Remetendo para o já exposto, como questão prévia, tais notificações foram cabalmente efectivadas.

No caso concreto, foram retidas pela sociedade arguida, através dos arguidos C e F, gerentes de facto, da sociedade em causa, prestações tributárias de IVA – supra elencadas, as quais não foram entregues de forma tempestiva, pese embora entregue a declaração, nos termos supra elencados, devendo tê-lo sido, assim se tendo locupletado com tais quantias.

Sabiam os arguidos, por si e em representação da sociedade ora arguida, da obrigação de entregar tais quantias / prestações tributárias ao Estado.

Encontram-se, pois, preenchidos, os elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito em apreço.

Assim, verifica-se que foram efectuadas as operações de retenção ou de cobrança do IVA, as mesmas foram declaradas na correspondente declaração periódica de IVA, e, por outro lado, contabilisticamente, tais montantes permaneceram na sociedade, quando deveriam ter sido entregues ao Estado.

A prova do elemento subjectivo do ilícito extrai-se de toda a factualidade objectiva, em decorrência lógica da mesma e da inexistência de factualidade comprovadora de elementos ou circunstâncias que a excluam ou a justifiquem.

A intenção é distinta dos motivos ou fins que o agente se propõe com a realização do facto e estes podem ser elemento subjectivo da ilicitude do facto punível. Assim, correcta se torna a conclusão no sentido da existência de dolo genérico. Agiu o arguido, por si e em representação da sociedade arguida, com dolo.

No caso em apreço, foi discutido em julgamento que poderia á data da obrigação de entrega dos valores não estarem ainda pagas certas facturas – no entanto, ante o tipo em apreço e supra analisado, verificando-se que todas as facturas foram pagas e retido o IVA não ocorreu pagamento nos diversas prazos legais – 105º RGIT, e diga-se, nem posteriormente, pelo que tal não exime a responsabilidade dos arguidos e sociedade arguida.

Igualmente qualquer “atraso” do Fisco na cobrança coerciva igualmente não inibe a mesma responsabilidade criminal – preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do ilícito em causa.

Estipula o art. 30º n.º 1 Código Penal que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

O crime continuado pode ser definido como a situação em que “através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protejam o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim, diminuir consideravelmente a culpa do agente”[1]. Constituem pressupostos do crime continuado: i) a realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam o mesmo bem jurídico); ii) a homogeneidade da forma de execução; iii) lesão do mesmo bem jurídico; iv) unidade de dolo, ou seja, as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada; v) persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. Podemos, pois, afirmar que o crime continuado constitui uma unidade jurídica criminosa, resultante da construção estritamente jurídica de uma situação que, na sua materialidade, se configura como pluralidade de infracções[2].

Por seu turno, existe um único crime quando se está perante uma unidade de resolução, potenciadora ou afirmante da unidade de infracções, ou seja, quando, de acordo com o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação e não despoletados por uma nova motivação. Desta forma, quando existe apenas um único desígnio criminoso, o crime é necessariamente único, se for subsumível ao mesmo tipo de crime ou seja ofensivo de idêntico bem jurídico[3].

In casu, verificando-se dois períodos temporais distintos – 07 e 08 de 2006 e a partir de 09.2007 a 02.2008, a verdade é que não há uma suficiente continuidade e uniformidade de comportamento, para que se possa dizer que terá existido apenas uma resolução criminosa.

Assim, estar-se-á perante dois crimes – duas unidades resolutivas independentes, pelo que devem os arguidos ser punidos pela prática de dois únicos crimes.

Quanto a 2006 o valor total ascendia a € 73.157,50.
Quanto ao ano 2007/2008, ascendia a um total de € 55.497,07, pelo que ambos ultrapassavam, á data, o valor referenciado no n.º 5 do art. 105º RGIT.

Em face do exposto, preencheram os aludidos arguidos, por si e na referida representação legal, os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado, e por força disso também a sociedade arguida, nos termos do art. 7º, n.º 1 do RGIT, de onde resulta que: “As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.”.

Quanto ás arguidas M e E, não resultou provada a sua intervenção como gerentes ou administradores de facto, pois que apenas compunham o órgão de administração, sem efectivas funções. Pelo que, não se mostram preenchidos os aludidos pressupostos do elemento do tipo objectivo e subjectivo, devendo, por isso, ser absolvidas da prática do crime pelo qual vinham acusadas.

2.4.2. DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal das condutas dos arguidos, importa agora determinar a natureza e medida das sanções a aplicar.

No que se refere aos arguidos F e C, o crime de abuso de confiança fiscal é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

No que tangem as pessoas colectivas, o crime em apreço é punido, quanto à pessoa colectiva com pena de multa entre 240 a 1200 dias – art. 105º, n.º 5 RGIT. Neste caso, o quantitativo diário medeia entre € 5,00 e € 500,00 art. 15º RGIT.

Quanto aos arguidos C e F
Na determinação da pena, deve recorrer-se ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, que dispõe que tal determinação da medida da pena se fará em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, concretizados esses dois termos do binómio (a culpa e a prevenção) a partir da eleição dos elementos para os mesmos relevantes, ou seja, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 do mesmo preceito legal.

Quanto a ambos os arguidos:
- O grau de ilicitude do facto: apresenta-se já gravoso atento o volume de quantias retidas e atentos os períodos temporais, no que tange a duração da conduta – quanto a ambos os crimes e condutas;
- O dolo directo dos arguidos;
- A seu favor militam ainda a ausência de antecedentes criminais (quanto ao crime em apreço e em particular o arguido C, sem qualquer antecedente de qualquer natureza).
- A sociedade embora ainda existente, já não labora, estando diminuídas as necessidades de prevenção especial.
- Quanto a F, a sua inserção social deve militar a seu favor. A seu desfavor o facto de o próprio admitir que é ainda gerente de outra sociedade, pelas que as necessidade de prevenção especial são aqui já medianas.

- Quanto a C deverá atentar-se que a sua intervenção nas decisões em causa seriam de menor monta, pelo que tal deverá ser igualmente ponderado. Quanto ao mesmo sabe-se apenas ser casado com a co-arguida M, pois que não prestou depoimento.

Aos arguidos devem ser aplicadas penas suficientemente dissuasoras de futuros comportamentos delituosos, e que imprima na sua consciência a censurabilidade da sua conduta.

Julgamos que os factos em causa e as exigências de prevenção geral e especial e a culpa dos arguidos, a que já se aludiu supra, justificam a aplicação:

- Ao arguido C, de uma pena de 1 ano e 1 mês de prisão para cada crime.
- Ao arguido F, de uma pena de 1 ano e 4 mês de prisão para cada crime.

PENA DO CONCURSO
Tendo os arguidos sido condenados por dois crimes diversos, em concurso efectivo, há que proceder à pena do concurso.

Nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Antes do mais, há que determinar a moldura legal do concurso (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).

- quanto a arguido C será 1 ano e 1 mês a 2 anos e 2 meses;
- quanto a arguido F será 1 ano e 4 mês a 2 anos e 8 meses;

Ora, é dentro desta moldura que terá que se determinar a pena a aplicar em concreto aos arguidos pelos crimes que cometeu.

Tendo em conta as considerações acima feitas, e operando o cúmulo jurídico nos termos do artigo 77º do Código Penal, julgamos que os factos em causa e as exigências de prevenção geral e especial e a culpa dos arguidos, a que já se aludiu supra, justificam a aplicação:

- ao arguido C de uma pena unitária de 1 ano e 8 meses de prisão.
- ao arguido F de uma pena unitária de 2 anos e 2 meses de prisão.

Da suspensão da pena de prisão
Nos termos do artigo 50º do Código Penal, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, é de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Cumpre, assim, aferir se no caso em apreço haverá lugar ou não à suspensão da execução da pena de prisão em que os arguidos foram condenados e em que condições.

Atendendo a que ambos os arguidos não têm antecedentes criminais quanto a tal tipo de ilícito, e ambos estarão familiarmente inserido, considera-se ser de acreditar que a suspensão da pena de prisão, suscitará a suficiente advertência da ilicitude das suas condutas, pelo que também decida pela sua suspensão.

De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 50º Código Penal, “o período de suspensão tem duração igual à pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”.

Assim, fixa-se o período de suspensão da execução da pena de prisão:
- ao arguido C em 1 ano e 8 meses de prisão.
- ao arguido F em 2 anos e 2 meses de prisão.

Por outro lado, o art. 14º, n.º 1 do RGIT, estabelece que “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

Devemos atentar na jurisprudência fixada pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012, publicado no DR n.º 206, de 24.10.2012, 1ª Série, e que no sumário estabelece que:

No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

A questão que se coloca será apurar se o juiz deve ou não ponderar a capacidade do condenado em pagar a quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão e se a falta dessa ponderação gera nulidade por omissão de pronúncia.

Pese embora, resulte claramente da análise de tal preceito e mesmo da sua interpretação pelo Colendo Tribunal no douto acórdão referido, a verdade é que sempre a aplicação de tal condição, quando decidida a suspensão, é obrigatória.

Diga-se que na decisão da suspensão deve-se apurar se pode ser aplicada outra pena substitutiva – a pena de trabalho comunitário ou outra – como prisão por dias livres, por exemplo, são claramente mais gravosas – o que tem sido, aliás, jurisprudência constante.

Donde que a aplicação da pena suspensa será em termos substitutivos favorável aos arguidos (note-se que nem sequer a pena de multa substitutiva será aqui aplicável atenta a pena aplicada, superior a um ano e não vieram os arguidos declarar aceitar prestar trabalho a favor da comunidade).

E não se afigura que possa a eventual impossibilidade de pagamento total da condição ser previamente apurado – ou seja, como condição para a decisão de suspensão, mas sim posteriormente á decisão de suspensão da execução da pena.

Acresce que, como se disse, a pena privativa de liberdade será sempre mais gravosa, e o art. 14º RGIT e condição fixada continua a ser obrigatória.

Sem prejuízo do exposto, a verdade é que ambos os arguidos estão ainda em idade activa, podendo trabalhar e obter proventos que permitam tal pagamento.

Donde que se retira que qualquer outra pena substitutiva – ante a jurisprudência já expendida sobre a “hierarquia” das penas substitutivas, será de considerar que a suspensão ainda assim é a melhor indicada e que mais favorece os arguidos, porquanto menos gravosa.

Note-se que poderá sempre, a final atentar-se no disposto no art. 14º, n.º 2 RGIT sendo certo que para efeitos de ponderação da extinção ou revogação, o não cumprimento da condição não implica uma revogação automática – art. 55º e 56º CP.

Assim, decide-se, ao abrigo do disposto no art. 14º, n.º 1 RGIT, condicionar a supra determinada suspensão da execução de pena de prisão, ao pagamento da prestação tributária em causa nestes autos.

No entanto, atendendo ao exposto, e por ser mais favorável aos arguidos, fixa-se o período de suspensão em 5 anos – o prazo máximo, porquanto assim dispõe a arguida de um prazo mais alargado para lograr tal pagamento – entendimento que tem sido defendido pela jurisprudência dos tribunais superiores e que comungamos.

Quanto à sociedade arguida
Ora, o crime em apreço é punido, quanto à pessoa colectiva com pena de multa entre 240 a 1200 dias – art. 12º, n.º 2 RGIT.

O quantitativo diário medeia entre € 5,00 e € 500,00 – art. 47º, n.º 2 CP.
In casu, e remetendo para o que supra se expôs quanto aos elementos a atentar para a medida da pena supra elencadas, designadamente o facto da aludida sociedade não deter antecedentes criminais, não ter actualmente actividade, entende-se ser de fixar a pena de multa em 400 dias.

Quanto ao montante diário da multa atendendo ao montante diário mínimo e máximo, e bem assim que a sociedade se encontra insolvente, julga-se adequado fixar a razão diária em € 6,00 (seis euros).

Assim, condena-se a sociedade arguida na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis) euros, o que perfaz o valor global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).»

II – Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso.

De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

As questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:
- Modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente aos factos descritos na sentença sob os nºs 8), 9), 11, 13, 19 e 23 dos factos provados;

- Nulidade de sentença por omissão de pronúncia, em virtude da sentença recorrida não ter apreciado e fundamentado a questão de saber se o valor a ter em conta para efeitos da qualificação prevista no nº 5 do art. 105º do RGIT é o que resulta da soma de todas as declarações ou o valor de cada uma delas;

- Não verificação de condição de punibilidade, por entender que o recorrente não foi pessoalmente notificado nos termos do art. 105º nº4 al. b) do RGIT, o que, segundo diz, implicaria a sua absolvição;

- Integração da conduta do arguido – mesmo considerando a factualidade julgada provada na sentença recorrida - na previsão do art. 105º nº 1 [e 2] do RGIT ( e não dos seus nºs 1 e 5), o que, no entender do recorrente, acarreta a condenação em pena de multa em vez de pena de prisão.

Para além destas questões apreciar-se-á ainda oficiosamente a verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

São, pois, estas as questões a apreciar e decidir, sem prejuízo das que possa ficar prejudicadas pela decisão de outras.

2. Decidindo

A cabal decisão e fundamentação do presente recurso, implica que comecemos por procurar deixar expresso qual o nosso entendimento sobre aspetos de regime do crime de abuso de confiança fiscal que têm suscitado dúvidas e divergências e que são relevantes no caso concreto.

2.1. – A qualificação jurídico-penal dos factos feita na sentença recorrida.

Em primeiro lugar, a factualidade julgada provada nos autos integra os elementos constitutivos de um crime de Abuso de Confiança Fiscal previsto pelo nº2 do art. 105º do RGIT e não pelo seu nº1, contrariamente ao que foi considerado pelo tribunal recorrido, o que tem implicações ao nível do preenchimento típico e punibilidade da conduta aqui em causa.

a) Na verdade, está em causa nos autos Imposto de Valor Acrescentado (IVA), relativamente ao qual dispõem os art.s 27º nº1, 41º nº1 b) do Código de Imposto de Valor Acrescentado (CIVA) que o sujeito passivo deve entregar ao Estado - conjuntamente com a respetiva declaração - o IVA faturado, após a respetiva dedução do imposto suportado. Isto é, conforme pode ler-se por todos no AC STA de 28.05.2008 (acessível em www.dgsi.pt, relator, Jorge de Sousa), “No âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber …não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido. De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributaria a prestação tributária que deduziram …, mas antes, pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm em direito, isto é, do imposto que não deduziram. (…).

No caso do IVA há obrigação de os sujeitos passivos procederem à sua liquidação e adicionarem o valor do imposto liquidado ao valor das mercadorias ou prestação de serviços, incluindo-o na factura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços (arts 35º e 36º nº1 do CIVA) » - redação em vigor à data da prolação do acórdão citado). Não há, portanto, dedução de imposto devido pelas transações comerciais em causa para entregar a quantia deduzida À AT, mas apenas a obrigação de fazer a liquidação do imposto devido por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, preencher e entregar a declaração relativa ao IVA liquidado e ao IVA a suportar pelas operações realizadas com aqueles a quem adquiriu bens ou serviços, fazendo entrega do imposto que, eventualmente, não pôde deduzir naquele de que é devedor tributário.».

Significa isto - no que respeita ao art. 105º do RGIT – que o comportamento fiscalmente exigido (e incumprido) pelo sujeito passivo de IVA não se traduz na entrega à administração tributária (AT) de quantia deduzida nos termos da lei (que estivesse legalmente obrigado a entregar), contrariamente ao que sucede, por exemplo, nas situações de retenção na fonte de IRS a título definitivo, em que estamos, efetivamente, perante «prestação tributária deduzida» porquanto o sujeito passivo subtrai da quantia global (o total do rendimento tributável) a quantia correspondente ao imposto a pagar pelo contribuinte devedor do imposto para a entregar à AT em vez daquele, por imposição legal. Neste sentido, para além do Ac STA supracitado, pode ver-se Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Reimpressão de 2009, Coimbra Editora p. 124, Ac RG de 22.04.2013 (relator-Cruz Bucho, acessível em www.dgsi.pt) e Isabel Marques Silva no estudo citado neste último acórdão[4] e ainda no estudo publicado na Revista de Finanças e Direito Fiscal supracitado, referindo-se à contraordenação p. e p. pelo art. 114º do RGIT[5] em termos válidos para o crime de Abuso de Confiança Fiscal que nos ocupa.

Como se refere no acórdão do STA supracitado, nos casos em que a retenção do IRS na fonte não é feita a título definitivo, mas sim por conta do imposto devido a final (v.g. nas hipóteses previstas no art. 98º do CIRS), verifica-se então dedução por conta da prestação tributária (itálico nosso), situação enquadrável no nº3 do art. 114º do RGIT e igualmente prevista no nº2 do art. 105º que aqui nos ocupa, mas que é distinta da que se verifica com o IVA na generalidade dos casos, incluindo o que aqui nos ocupa.

b) A conduta do sujeito passivo de IVA incriminada pelo art. 105º do RGIT encontra-se, pois, prevista no nº2 daquele preceito e não no seu nº1, como referimos, e não tem a amplitude da obrigação fiscal imposta ao sujeito passivo pelos arts 27 e 41º, do CIVA, uma vez que apenas pune as hipóteses em que o sujeito passivo tenha efetivamente recebido as quantias correspondentes ao IVA.

Conforme se esclarece no mesmo acórdão do STA que vimos citando, relativamente à obrigação fiscal em causa, o art. 27º nº1 do CIVA impõe «… a entrega do montante do imposto apurado (o imposto exigível) no momento da apresentação das declarações a que se refere o art. 41º (anterior art. 40º) do mesmo Código, independentemente de ter sido efetuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia faturada. O regime do art. 71º nºs 8 e 9 (preceitos em vigor em 2008, data de prolação daquele acórdão), relativamente à possibilidade de dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ou de pagamento retardado confirma que a obrigação de pagamento do imposto pelo sujeito passivo não depende de ter sido paga a quantia liquidada pelo adquirente de bens ou utilizador de serviços».

Diferentemente, o art. 105º nº2 do RGIT apenas pune quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7 500 que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja (negrito nosso).

Isto é, a falta de entrega à administração tributária das prestações tributárias correspondentes a IVA a liquidar nos termos dos artigos 27º e 41º do CIVA apesar de, por si, implicar incumprimento da obrigação fiscal, só faz incorrer o sujeito passivo no crime de abuso de confiança fiscal previsto e punível pelo art. 105º nº2 do RGIT se aquelas prestações tiverem sido recebidas, ou seja, como em síntese pode ler-se no Ac. RE de 3.12.2009 (relator, Fernando Ribeiro Cardoso) “II - Para o cometimento desse crime [abuso de confiança fiscal], quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado”, entendimento que sufragamos[6].

Numa nota lateral, veja-se que em face da exigência típica de recebimento do IVA declarado, parece-nos inegável a dimensão patrimonialista do bem jurídico tutelado neste tipo de crime, quer se caraterize o modelo adotado pelo legislador com patrimonialista tout court ou antes com caráter misto ou compromissório, apostado em assegurar proteção penal tanto aos valores da confiança do Fisco em relação a quem a lei impõe a obrigação de deduzir prestação tributária” (ou aos valores da verdade e da transparência nos crimes de fraude fiscal) como aos interesses patrimoniais-fiscais” (Cfr, por todos Susana Aires de Sousa, - Os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, reimpressão de 2009, pág. 68 e 69 e 71).

Inegável é, de acordo com o entendimento que sufragamos, que, relativamente a IVA recebido e não entregue, o nº 2 do art. 105º apenas tutela penalmente os deveres de cumprir os deveres fiscais do sujeito passivo quando do seu incumprimento resultem prejudicados interesses patrimoniais do Estado por não lhe ter sido entregue imposto efetivamente recebido pelo sujeito passivo, enquanto substituto tributário.

c) Tem, pois, o recorrente razão quando pretende que o tipo legal preenche-se apenas com a não entrega do IVA recebido, sendo certo que, conforme é entendimento crescentemente aceite na doutrina e jurisprudência, que igualmente seguimos, na vigência do RGIT o crime de Abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura, que se consuma com a falta de entrega do imposto devido na data legalmente estabelecida para o cumprimento da obrigação fiscal, conforme resulta do confronto do nº1 do art. 105º do RGIT com a redação revogada do art. 24º do RJIFNA e com o disposto no art. 5.º, n.º2 do RGIT, de acordo com o qual «As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários”» - vd, por todos, o Ac RG de 22.04.2003 supracitado e elementos aí citados.

Assim, uma vez que, conforme descrito sob o nº 4 da factualidade provada, “A sociedade arguida encontrava-se, em Julho e Agosto de 2006 e Setembro de 2007 a Fevereiro de 2008, enquadrada em IVA, no Regime Normal de Periodicidade Mensal”, a entrega das declarações relativas ao IVA, bem como a entrega do imposto devido, devem ser feitas até ao 15.º dia do 2º mês seguinte àquele a que disserem respeito as operações respetivas (cfr. artigos 27.º e 41º, n.º1, alínea b), do CIVA, pelo que, em face do disposto no art. 105º nº2 do RGIT, é também até esse momento que deve ter-se verificado o recebimento do imposto a entregar para que possa considerar-se realizado aquele tipo de ilícito.

2.2. Ora no caso presente apenas resultou provado que os arguidos receberam as quantias liquidadas aos terceiros seus clientes de IVA (nº 8 da factualidade provada) e não entregaram os valores que cobraram (nº 10 daquela factualidade), sem que se tenha apurado se tal ocorreu até ao momento legalmente estabelecido para a entrega das declarações e do imposto devido (vd supra), por ser este o momento em que se consuma o crime, conforme referimos, sendo certo que as condições estabelecidas no nº4 do art. 105º são condições de punibilidade[7].

A questão do momento em que a sociedade arguida terá recebido dos seus clientes o IVA declarado encontra-se subjacente à impugnação da decisão que julgou provada a factualidade descrita sob o nº8 dos factos provados na parte em que se refere ao recebimento das quantias liquidadas.

2.3. Assim, passamos ea decidir da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto descrita sob o nº8 da sentença recorrida.

2.3.1. – Por facilidade de exposição e leitura transcreve-se novamente o nº 8 dos factos provados, que é do seguinte teor:

- «8. Com referência a essas operações, nos períodos 2006/07, 2006/08, 2007/09, 2007/10, 2007/11, 2007/12, 2008/01 e 2008/02, os arguidos C e F, na qualidade de representantes da " P., Lda." e no seu interesse, procederam, à liquidação a terceiros seus clientes de IVA, à taxa legal, quantias que receberam e não entregaram ao Estado, tal como estavam obrigados.

Alega o recorrente a este respeito que a sociedade arguida não recebia o pagamento daquelas faturas em tempo de poder entregar ao Estado o IVA no mês seguinte à data da faturas e conclui que, por isso, a matéria de facto dada como provada no nº8 deve ser alterada.

Não diz, porém, em que termos entende dever proceder-se à pretendida alteração e a verdade é que a conclusão não cabe nas premissas, uma vez que naquele nº8 não se faz referência às datas em que as quantias de IVA foram recebidas nem quando deixaram de ser entregues, mencionando-se apenas que os arguidos procederam à liquidação a terceiros seus clientes de IVA, à taxa legal, quantias que receberam e não entregaram ao Estado, tal como estavam obrigados.

Por outro lado, o recorrente não põe em causa que os arguidos receberam as quantias liquidadas a título de IVA aos seus clientes e que tais importâncias nunca foram entregues à administração fiscal, antes ou depois de decorrido o prazo de 90 dias previsto na al. a) do nº4 do art. 105º do RGIT (que se conta da data legalmente fixada para a entrega do IVA declarado) ou de notificados nos termos do art. 105º nº4 b) do RGIT.

Assim sendo, tal como se encontra descrita a factualidade constante do nº8 dos factos provados mostra-se de acordo com a prova produzida e não é sequer posta em causa pela motivação de recurso, incluindo as respetivas conclusões, pelo que improcede a impugnação nesta parte, sem prejuízo de se impor decidir quais as consequências processuais da omissão verificada.

Vejamos então.

2.4. – Referida antes a imprescindibilidade de ser recebido o IVA liquidado aos clientes do sujeito passivo até ao momento em que deve ser entregue à administração fiscal, do ponto de vista substantivo, importa definir agora quais as consequências processuais da falta de apuramento daquela mesma realidade factual no presente recurso, pois mantem-se integralmente o nº 8 dos factos provados com a sua referência ao recebimento do imposto por parte do sujeito passivo, mas sem que conste aí ou em qualquer outro ponto da factualidade provada, qualquer referência ao momento em que teve lugar o recebimento das diversas prestações em causa.

Ora, como se diz, por todos, no Ac STJ de 20-4-2006 (relator Rodrigues da Costa) “A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”

É precisamente o que se verifica no caso presente, pois constata-se da mera leitura da sentença recorrida que apesar de ter julgado provado que o sujeito passivo recebeu o IVA liquidado e não entregue, o tribunal a quo não apurou – julgando provado ou não provado – se tal recebimento teve lugar até ao momento da entrega das declarações respetivas, por ser este o momento em que deve ser entregue o imposto liquidado e recebido, como vimos.

Verifica-se, assim, o vício de insuficiência da decisão para a matéria de facto provada previsto na al. a) do nº2 do art. 410º do CPP[8], pelo que se impõe o reenvio do processo para apuramento daquele facto de harmonia com o disposto no art. 426º do CPP e subsequente julgamento da questão em conformidade com a factualidade que apurar.

2.5.- Fica, pois, prejudicado o conhecimento das questões que podem vir a ser objeto de decisão diversa do tribunal a quo na sequência do reenvio que, no limite, pode vir a absolver os arguidos por falta de preenchimento dos tipos legais, tal como pode vir a aplicar penas concretas distintas.

Não obstante, por razões de economia e também de celeridade processuais e tendo especialmente em conta o preceituado no nº4 do art. 426º do CPP, não deixamos de conhecer das questões de facto e de direito objeto do presente recurso que foram já decididas pelo tribunal a quo e podem condicionar os termos de nova decisão condenatória que eventualmente venha a ser proferida.

Na verdade, importa decidir nesta sede se assiste razão ao recorrente relativamente às questões cujo conhecimento não se mostre inexoravelmente prejudicado, de modo a puder formar-se caso julgado parcial sobre essas mesmas questões, permitindo-se que o tribunal a quo possa considerar a decisão do tribunal de recurso relativamente a elas em eventual condenação futura e evitando futuro recurso do ora recorrente sobre as mesmas questões agora colocadas relativamente às quais venha agora a ficar vencido.

2.5.1 Passamos, pois, a concluir a apreciação da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
2.5.1.1. - O nº 9) dos factos provados é do seguinte teor:

- «9. Assim, nos períodos que seguem, os referidos arguidos liquidaram e não entregaram ao Estado os seguintes montantes:

• 2006/07: € 22.476,38;
• 2006/08: € 50.681,12;
• 2007/09: € 9.113,16;
• 2007/10: € 8.110,86;
• 2007/11: € 10.397,97;
• 2007/12: € 8.745,95;
• 2008/01: € 9.963,63; e
• 2008/02: € 9.165,39.»

Da motivação de recurso e respetivas conclusões resulta que o arguido recorrente põe unicamente em causa o valor de € 50.681,12 referente a agosto de 2006, indicado em 9).

Alega a este respeito que apesar de na declaração enviada para o fisco constar o valor de €50.681,12, a verdade é que no auto de notícia (fls 3) consta o valor em dívida de €47 891, 96, sendo certo que a fls 103 consta escrito a lápis, à frente da quantia de €50.681,12 - “Pagos €2.809,16”. Conclui destes elementos (e de outros meios de prova, designadamente das declarações da testemunha N, inspetor tributário que elaborou o auto de notícia) que, tal como consta daquele auto de notícia, foi paga a importância de € 2 809,16 por conta do IVA referente a agosto de 2006, pelo que a quantia em dívida à data do auto de notícia era de €47 891, 96.

Vejamos.
Resulta claro da motivação do recorrente que este não põe em causa ser de €50.681,12 o valor de IVA referente a agosto de 2006 declarado pela sociedade arguida, mas pretende que de acordo com a prova que especifica, o valor ainda em dívida à data da elaboração do auto de notícia (27.02.2009) era de €47 891, 96, pois a sociedade arguida entregara por conta o montante de € 2 809,16, pelo que é a importância de €47 891, 96 que deve constar do nº 9 dos factos provados na referência a agosto de 2006.

Por outro lado, resulta efetivamente do auto de notícia de fls 3, das declarações da testemunha N., inspetor tributário que elaborou aquele mesmo auto de notícia, e da anotação a lápis de fls 736, que a sociedade arguida entregou realmente a quantia de € 2 809,16 por conta do montante de €50.681,12

Por último, também no nº 28 dos factos provados consta que o valor em dívida referente a agosto de 2006 era de €47 891, 96, em 23.10.2012, pelo que, embora reportado a data bastante posterior não deixa de ser um elemento relevante para a conclusão a tirar no plano dos factos, conclusão que não é sequer questionada, enquanto tal, pelo MP em 1ª instância. Ou seja, que, como aludido, a sociedade arguida entregou realmente a quantia de € 2 809,16 por conta do montante de €50.681,12

No entanto, não resulta da prova produzida se a entrega por conta se verificou em data anterior ou posterior à entrega da declaração respeitante ao mês de agosto de 2006, nem tão pouco se tal se verificou nos 90 dias seguintes a que se reporta al. a) do nº4 do art. 105º do RGIT ou mesmo nos 30 dias a que se reporta a al. b) deste mesmo nº4, sendo certo que a questão de saber qual destes momentos é o relevante constitui questão jurídica sobre a qual ainda não se pronunciou (expressa ou implicitamente) a 1ª instância, pelo que não cabe a este tribunal fazê-lo neste momento.

Assim, uma vez que o nº 9 dos factos provados se refere indistintamente a IVA liquidado e IVA não entregue ao Estado relativamente a todos os meses discriminados, impõe-se apurar se a entrega de € 2 809,16 teve lugar ainda antes da data em que foi entregue a declaração do IVA ou, eventualmente, nos 90 dias seguintes, ou após o prazo de 30 dias, para poder concluir-se se no plano factual e do direito se não foi entregue à administração fiscal a importância total de €50.681,12 ou, antes, a quantia de €47 891, 96 como pretende o recorrente.

Na verdade, tal factualidade é relevante para boa decisão da causa, desde logo porque entendemos que é o valor de cada uma das prestações o determinante para efeitos de verificação da circunstância qualificativa prevista no nº5 do art. 105º do RGIT e não o valor correspondente à soma das prestações abrangidas por cada uma das duas unidades criminosas contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, pelas razões que se expõem autonomamente para maior clareza da exposição – vd infra 2.7. Por outro lado, no caso de entrega parcelar como a que aqui se verificará, sempre se impõe decidir qual o valor relevante para efeitos de qualificação do crime, ou seja, se o é o valor declarado e recebido ou, antes, a diferença entre este último e o valor parcialmente entregue à administração tributária como entenderá Susa Aires de Sousa, ob. citada p. 146, questão que o tribunal a quo terá que decidir igualmente em 1ª instância.

2.5.1.2. Assim sendo, isto é, por não se ter apurado facto determinante da boa decisão da causa, verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art. 410º nº2 a) do CPP relativamente ao momento em que foi feita a entrega de € 2 809,16 por conta do montante de €50.681,12 declarado relativamente a agosto de 2006, facto este a apurar pelo tribunal a quo na sequência do reenvio a determinar.

Apurado que seja o momento em que foi feita a entrega por conta, estará então o tribunal a quo em condições de especificá-lo no nº9 dos factos provados, de modo a poder concluir-se qual foi o montante relativo ao IVA declarado relativamente a agosto de 2006 que não foi entregue, com o sentido e alcance factual e jurídico encerrado naquele nº9: €50.681,12 ou €47 891, 96.

2.5.1.3. - Relativamente ao nº 11 da factualidade provada é manifesta a improcedência da impugnação, porquanto – tal como diz o MP na sua resposta em 1ª instância - o recorrente foi expressamente (cfr fls 117) notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 105º nº4 b) do RGIT através de carta registada com A/R, por ele assinado em 26-01-2009, que lhe foi dirigida na qualidade de gerente de facto da sociedade arguida (cfr fls 117 e 118), pois é na qualidade de representante daquela sociedade (que lhe advém da referida gerência), que o ora arguido e recorrente responde criminalmente nos termos do art. 6º do mesmo RGIT. Não tinha, pois, que voltar a ser notificado aqueles termos, nomeadamente quando o foram os demais a que se referem fls 540 a 548, pelo que nada há a alterar relativamente à factualidade descrita sob o nº11 dos factos provados, como aludido.

2.5.1.4. - Relativamente ao ponto 13 dos factos provados está em causa mais a clarificação do texto que a alteração do seu sentido – tal como resulta de todo o decidido - pelo que, independentemente da relevância jurídica da precisão, atende-se ao requerido, de modo a ficar claro que ali se refere a integração dos valores em causa apenas no património da sociedade arguida, conforme, aliás, sempre resulta dos nºs 14) e 15) da factualidade provada.

A redação do nº13 dos factos provados passa, assim, a ser a seguinte:

-« 13. Agiram com o intuito, que lograram alcançar, de não entregar à Administração Fiscal as quantias de IVA que efectivamente receberam e liquidaram, no total de € 128.654,46, correspondendo € 73.157,50 ao 1º Período (2006/07 e 2006/08) e € 55.496,96 ao 2º Período (2007/09, 2007/10, 2007/11, 2007/12, 2008/01 e 2008/02), integrando-as, antes, no património da sociedade arguida e lesando a Administração Fiscal nesse valor.».

2.5.1.5. Por último, pretende o arguido ver alterado o teor do nº 19 dos factos provados de modo a constar do nº 19 o valor de 1.400 euros de ordenado base a que correspondem 600 ou 700 euros mensais líquidos, por ser o que corresponde ao declarado pelo arguido em audiência. Do mesmo modo entende dever ser alterado o montante indicado sob o nº23, pois a arguida E (absolvida), esposa do arguido recorrente, que foi absolvida, declarou apenas receber cerca de 700 euros mensais, por ter parte do seu vencimento penhorado.

Do teor da sentença recorrida e das declarações do ora recorrente e da arguida E resulta que os valores em causa são os indicados pelo recorrente. E. afirmou claramente que tinha de ordenado base mil quatrocentos e tal euros mensais mas que apenas ganhava entre 600 e 700 euros mensais líquidos, o que, aliás, é igualmente reconhecido pelo MP na sua resposta em 1ª instância, sem que da fundamentação da sentença recorrida resulte o contrário.

Assim, procede a impugnação nesta parte, passando os nºs 19 e 23º da factualidade provada ter a seguinte redação:

- «19. Actualmente vive com o ordenado da esposa, que aufere por mês quantia entre 600 e 700 euros líquidos.»

- «23. A arguida Emília Freitas aufere por mês quantia líquida entre 600 e 700 euros mensais, por ter parte do seu vencimento penhorado.».

2.6. – Da relevância do valor unitário ou individual de cada uma das declarações para efeitos de qualificação do crime nos termos do nº5 do art. 105º do RGIT – fundamentação do entendimento expresso acima.

Como vimos, a sentença recorrida considerou serem dois os crimes praticados por, em síntese, a matéria de facto provada inculcar a existência de duas resoluções criminosas determinante de uma pluralidade de infrações.

Este aspeto da sentença não foi posto em causa, pois não foi objeto de recurso pelo MP nem integra o objeto do recurso do arguido recorrente, pelo que consideramos assente serem dois os crimes praticados, abrangendo um deles a falta de entrega do IVA relativo aos meses de julho e agosto de 2006. Tendo a sentença recorrida considerado que o valor correspondente a julho de 2006 era € 22.476,38 e que ascendia a € 50.681,32 o correspondente a agosto do mesmo ano, procedeu à soma de ambos os valores e entendeu implicitamente ser o resultado desta soma (€ 73.157,50) o valor relevante para efeito de qualificação do crime prevista no nº 5 do art. 105º do RGIT.

Assim, sendo o valor da soma superior a € 50 000, entendeu o tribunal a quo que a conduta omissiva relativa aos meses de julho e agosto de 2006 integra a prática de um crime de Abuso de confiança agravado em razão do valor pelo nº5 do art. 105º do RGIT.

Entendendo nós, como melhor veremos, que o valor relevante para efeitos de qualificação do crime é o que consta de cada uma das declarações e não a soma das mesmas, a qualificação do crime que eventualmente venha a ser considerado relativamente a julho e agosto de 2006, na sequência do reenvio, não se manterá no caso de o valor a considerar no mês de agosto de 2006 ser inferior a 50 000, como aludido, tal como sucede já relativamente ao crime integrado pelas declarações de 2007 e 2008, pois nenhuma delas se aproxima sequer dos 50 000.

Vejamos então as razões que nos levam a perfilhar o entendimento referido, de que deriva a importância de apurar qual o valor efetivamente não entregue em agosto de 2006 para efeitos de qualificação, ou não do crime que possa vir a confirmar-se, sem esquecer, porém, que em resultado do reenvio pode desde logo não se apurar que o sujeito passivo recebeu atempadamente dos seus clientes as quantias de IVA liquidadas e não entregues, o que poderá acarretar mesmo a sua absolvição.

Na hipótese de vir a confirmar-se o recebimento atempado de todo ou parte do IVA declarado, importa considerar, então, as seguintes razões.

O nº7 do art. 105º do RGIT estabelece que “ Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”.

A questão enunciada não se colocaria na redação originária do RJIFNA, cujo art. 24º nº6 determinava que “se a obrigação da entrega da prestação tributária for de natureza periódica, haverá tantos crimes quantos os períodos a que respeita tal obrigação”. No entanto, o DL 394/93 de 24.11, revogou esta norma ainda na vigência do RJIFNA e não foi acolhida a solução nela contida no RGIT aprovado pela citada Lei 15/2001, pelo que nada obsta a que - verificados os critérios de que depende, em geral, a distinção entre unidade e pluralidade de crimes – o agente seja punido por um único crime relativamente a condutas que abranjam uma pluralidade de prestações periódicas não entregues, tal como se considerou na sentença recorrida – neste sentido, por todos, o Ac STJ de 29.01.2004 (acessível em www.dgsi.pt, relator, Pereira Madeira) -, tal como pode ter lugar a punição de uma pluralidade de preenchimentos típicos como crime continuado se estiverem preenchidos os respetivos requisitos legais, conforme é comumente entendido na vigência do RGIT (Vd, por todos, Ac STJ de 27.05.2002 (rel. Flores Ribeiro – CJ A. IX TII/227).

O nº7 do art. 105º constitui uma opção legislativa, que se tem mantido ao longo do tempo, cujo propósito parece ser, desde logo, evitar que a mera consideração do valor declarado pudesse conduzir a uma situação em que sairia mais beneficiado aquele que mais prejudicou o património do Estado (cfr Susana Aires de Sousa, ob. cit. p. 145), o que se verificaria quando o sujeito passivo declarasse valor inferior ao que legalmente estava obrigado. Mandando a lei atender aos valores que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, não adianta ao agente declarar valor inferior ao legalmente exigível.

O nº7 do art. 105º - tal como do nº3 do art. 103º (fraude fiscal) – não se limita, porém, a estabelecer que o valor relevante é o valor que nos termos da legislação aplicável deve constar das declarações a apresentar e não o valor efetivamente declarado.

O preceito estabelece também que o valor relevante é o que deve constar de cada declaração, o que traduz opção legislativa - que se tem mantido ao longo do tempo, como aludido -, na conformação ou configuração da ilicitude, que se impõe ao intérprete.

Em face do nº7 do artigo 105º não é o valor total abrangido pela conduta ilícita punível do agente – ou o valor do prejuízo causado pelo crime a que se refere o art. 13º do RGIT a propósito da medida concreta da pena - que determina aquela conformação, mas um valor especial de referência que o legislador fez coincidir com o valor de cada declaração periódica, por razões que terão mais que ver com opções de política fiscal que estritas razões de ordem criminal.

Sendo configuráveis as hipóteses de crime único e de crime continuado não obstante a pluralidade declarações periódicas abrangidas, entendemos, pois, que nestes casos o montante de 50 000 euros para além do qual o crime é qualificado, refere-se ao valor das declarações periódicas individualmente consideradas e não ao valor global das mesmas. Assim, a qualificação prevista no nº5 do art. 105º somente opera no caso de pelo menos uma das declarações respeitar a valor superior a 50 000 euros, atendendo-se ao valor global das diversas declarações para efeitos de determinação da medida da pena nos termos do art. 13º do RGIT, para além da responsabilidade civil a que possa haver lugar. Decidiu-se assim, entre outros, no Ac RP de 27.04.2005 (relator Fernando Monterroso)[9] e no Ac RL de 04.02.2009 (relator, Nuno Garcia).

É esta a interpretação imposta pela conjugação dos nºs 1 e 2, 5 e 7, do art. 105º do RGIT, que tem levado a considerar-se igualmente que o valor de 7 500 euros de que depende a incriminação corresponde ao valor de cada uma das declarações periódicas (em regra mensais ou trimestrais), mesmo que sejam várias as declarações abrangidas pela conduta típica e o valor da sua soma exceda aquele montante, conforme se decidiu nos acórdãos da RP de 25.02.2009 (relator Luís Teixeira) e da RL de 04.02.2009 (relator, Nuno Garcia).

Do mesmo modo entendeu-se, entre outros, no acórdão do TRE de 24.03.2009 (relator, Gilberto Cunha), da RL de 03.02.2004 (relator, Cabral Amaral) que o valor a considerar na continuação criminosa não deve ser o global mas aquele que corresponda à conduta mais grave que integra a continuação, pelo que só no caso de alguma das declarações ser de valor superior a 50 000 euros opera a qualificação prevista no nº5 do art. 105º do RGIT, entendimento que é igualmente adotado por Susana Aires de Sousa, ob, cit. pp. 143 e 144 que conclui, apelando ao disposto no art. 79ºdo C. Penal, que “ O agente não poderá ser punido com a pena agravada de uma cinco anos de prisão prevista no nº5 do art. 105º se nenhuma das prestações em falta, individualmente considerada, for superior a 50 000, ainda que o valor total das prestações não entregues ultrapasse aquele valor.

Ou seja, entende-se unitariamente que, em face do disposto no nº7 do art. 105º do RGIT, em todas as hipóteses de prática de um único crime ou de uma continuação criminosa, abrangendo uma pluralidade de declarações fiscais periódicas, é ao valor individual destas que deve atender-se para efeitos de incriminação ou qualificação, nos termos dos nº 1, 2 e 5, do art. 105º do RGIT, e não ao seu valor global.

Assim, no caso de vir a apurar-se que foram recebidas até à data da entrega das respetivas declarações a totalidade do IVA declarado relativamente aos meses de de julho e agosto de 2006, a eventual qualificação do crime que lhes corresponde depende de vir a apurar-se que o valor de imposto não entregue foi superior a 50 000 euros também em agosto de 2006.

Já quanto às declarações relativas a 2007 e 2008, a verdade é que mesmo em face da factualidade julgada provada pela sentença recorrida nenhuma delas é de valor superior a 50 000 euros, pelo que o crime de abuso de confiança fiscal que eventualmente lhes corresponda nunca será qualificado pelo nº5 do art. 105 no entendimento que perfilhamos, sendo a conduta punida de acordo com a moldura legal prevista nos nºs 1 e 2 do art. 105º do RGIT

2.7. Vejamos agora as restantes questões de direito suscitadas pelo recorrente e que não se encontram necessariamente prejudicadas pelo reenvio já decidido, incluindo as que pressupunham a procedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

2.7.1. – A falta de preenchimento da condição de punibilidade prevista na citada al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT.

Alega o recorrente a este propósito que não se mostra preenchida aquela condição porquanto, contrariamente ao descrito sob o nº11 dos factos provados, o arguido recorrente não fora notificado em seu próprio nome – mas apenas em nome da sociedade arguida - para proceder ao pagamento do imposto devido relativo aos mencionados períodos, acrescidos de juros de mora e coima, no prazo de 30 dias, nem posteriormente.

Ora, uma vez que a impugnação da decisão que julgara provada o descrito sob o nº11 dos factos provados foi julgada totalmente improcedente, e que a alegação de direito pressupunha a sua procedência, nega-se provimento ao recurso nesta parte, pois encontra-se provado que o arguido recorrente enquanto representante legal da sociedade arguida foi notificado nos termos legais.

2.7.2. - O valor das prestações considerado pelo tribunal recorrido e a invocada nulidade de sentença por omissão de pronúncia.

Dos termos da motivação de recurso é patente que a fundamentação invocada não é suscetível de acarretar a nulidade nomeada, pois não está em causa que o tribunal a quo tenha deixado de apreciar qualquer questão relativa à culpa ou à determinação da sanção que, nos termos dos arts 368º e 369º, do CPP, se impusesse decidir.

A questão suscitada na motivação de recurso tem que ver com o mérito da causa, pois respeita à qualificação jurídico-penal dos factos, de que resulta a moldura legal aplicável, questões de que o tribunal a quo não podia deixar de conhecer sob pena de se verificar a aludida nulidade por omissão de pronúncia. A verdade, porém, é que conheceu e decidiu das mesmas, embora entendendo que a factualidade provada preenchia os elementos constitutivos de dois crimes de Abuso de confiança fiscal qualificados pelo nº5 do art. 105º do RGIT, como aludido.

Por um lado, considerou serem dois os crimes praticados por, em síntese, a matéria de facto provada inculcar a existência de duas resoluções criminosas determinante de uma pluralidade de infrações. Por outro lado, atendeu ao valor total das prestações abrangidas por cada um daqueles crimes para efeitos da qualificativa prevista no citado nº 5 do art. 105º.

Fê-lo sem identificar e analisar a questão jurídica pertinente, ou seja, a questão de saber se nos casos de unidade criminosa que abranja uma pluralidade de declarações periódicas deve atender-se ao valor de cada um delas ou à soma das mesmas para efeitos da agravação prevista no nº5 do art. 105º do RGIT, mas a verdade é que procedeu à qualificação jurídico-penal dos factos de acordo com o entendimento já referido.

Deste modo, a forma lacunosa como a sentença tratou essa questão respeita apenas ao mérito da decisão, na medida em que do tratamento jurídico menos completo resultou erro de direito determinante de errada qualificação jurídica dos factos e consequente determinação da moldura legal aplicável, mas não constitui vício de forma, designadamente a invocada nulidade de sentença que, assim, improcede.

Dado que do reenvio decidido pode resultar a absolvição dos arguidos ou a sua condenação em termos diversos, não pode o tribunal de recurso decidir em substituição a qualificação jurídica de factos que ainda não está assente, cabendo ao tribunal recorrido decidir de novo a eventual qualificação jurídico-penal dos factos que vier a apurar, tendo em conta as questões já decididas e a respetiva fundamentação jurídica.

2.8. – Síntese

Nos termos do art. 402º nº 2 do CPP o presente recurso aproveita aos demais arguidos condenados, pois não se funda em motivos estritamente pessoais.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido F, que aproveita aos demais arguidos condenados como referido, decidindo:

1 - É negado provimento à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto relativamente aos nºs 8 e 11, da factualidade provada, procedendo a mesma quanto aos nºs 13, 19 e 23 daquela factualidade, impondo-se a sua modificação nos seguintes termos:

- «13. Agiram com o intuito, que lograram alcançar, de não entregar à Administração Fiscal as quantias de IVA que efectivamente receberam e liquidaram, no total de € 128.654,46, correspondendo € 73.157,50 ao 1º Período (2006/07 e 2006/08) e € 55.496,96 ao 2º Período (2007/09, 2007/10, 2007/11, 2007/12, 2008/01 e 2008/02), integrando-as, antes, no património da sociedade arguida e lesando a Administração Fiscal nesse valor.»;

- «19. Actualmente vive com o ordenado da esposa, que aufere por mês quantia entre 600 e 700 euros líquidos.»

- «23. A arguida Emília Freitas aufere por mês quantia líquida entre 600 e 700 euros mensais, por ter parte do seu vencimento penhorado.».

2. No que concerne ao nº9 dos factos provados, só após procurar apurar até que momento a quantia de € 2 809,16 foi entregue por conta do IVA respeitante a agosto de 2006, pode o tribunal a quo completar a resposta contida naquele número relativamente a este mesmo mês, de modo a habilitar-se a decidir questão da qualificação do crime prevista no nº5 do art. 105º do RGIT de acordo com entendimento jurídico seguido no presente acórdão, ou seja, o de que a qualificação só terá lugar quando pelo menos uma das prestações recebidas e não entregues for superior a € 50 000 euros e o entendimento jurídico do tribunal a quo relativamente às demais questões enunciadas supra, que aquele tribunal não decidiu na sentença recorrida.

3- Improcede ainda a invocada nulidade de sentença, bem como a invocada falta de verificação da condição de punibilidade prevista na al. a) do nº 4 do art. 105º do RGIT.

4. Julga-se oficiosamente verificado o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, determinando-se o reenvio do processo para julgamento parcial das questões enunciadas supra, ou seja:

- Apurar se o recebimento das quantias de IVA declaradas, recebidas e não entregues, descriminadas em 9) dos factos provados, teve lugar até ao momento da entrega à administração tributária das declarações respetivas”;

- Apurar se a entrega de € 2 809,16 por conta do montante declarado €50.681,12 relativo a agosto de 2006, teve lugar antes da data em que foi entregue a declaração do IVA ou, eventualmente, nos 90 dias seguintes, ou após o prazo de 30 dias, a que se reportam as alíneas a) e b) do nº4 do art. 105º do RGIT.

5. – Consequentemente, deve o tribunal a quo proferir nova sentença em conformidade com a nova factualidade apurada e a que se mantem.

6. – Fica prejudicada, para além da decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto relativamente ao nº9 dos factos provados, a decisão da pretendida não qualificação de ambos os crimes de abuso de confiança fiscal, na dupla dimensão referida na fundamentação do acórdão:

- Só relativamente a IVA declarado e não entregue que tenha sido atempadamente recebido dos clientes da sociedade arguida se verifica o preenchimento do tipo de ilícito;

- Mesma nesta hipótese, a qualificação do crime integrado pela não entrega do IVA relativo a julho e agosto de 2006 só terá lugar se não vier a apurar-se que a quantia entregue por conta do montante declarado de 50 681,12 o foi em momento que implique dever o mesmo ser deduzido ao montante declarado, de acordo com o entendimento jurídico que o tribunal a quo venha a adotar.

Sem custas

Évora, 10.09.2013

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas
Carlos Jorge Berguete
_____________________________________________
[1] Definição referida por Leal Henriques e Simas Santos, “Código Penal Anotado – Parte Geral”, vol. I, Editora Rei dos Livros.

[2] Vide, neste sentido, o acórdão do STJ, de 15.10.1997, proc. n.º 589/97, referido por Leal Henriques e Simas Santos, ob cit.

[3] Vide acórdãos do STJ de 09.12.1999, proc. n.º 900/99 e de 28.10.1998, proc. n.º 852/98.

[4] Pode ler-se no Ac RG ora citado em texto:
- “ Como escreveu Isabel Marques da Silva, no âmbito do IVA, não tem aplicação o n.º 1 mas o n.º 2 do artigo 105.º do RGIT, que estabelece uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerar subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto (Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, Coimbra, 2010, pág. 260.”.

[5] Relativamente ao estado da questão em sede contraordenacional pode ver-se o supracitado Ac do STA de 03.04.2008 e anotação de Isabel Marques da Silva a este mesmo acórdão: Nulla Poena Sine Lege Ou A Não Punibilidade da Não Entrega Do IVA Não Recebido in em Revista de Finanças e Direito Fiscal Ano 1 nº 3, acedido em WWW.pt.calameo.com em julho de 2013, bem como o Ac STA de 16.05.2012 (relatora Fernanda Maçãs) e o Ac RE de 3.12.2009 (relator Fernando R. Cardoso) citado infra, em texto, após a nova redação dada à al. a) do nº5 do art. 114º do RGIT pela Lei 64-A/2008 de 31 de dezembro. As implicações daquela alteração analisadas nestes dois últimos acórdãos não são transponível para o crime de abuso de confiança fiscal, uma vez que o art. 105º do RGIT não foi alterado de forma relevante para o problema.

[6] No mesmo sentido, entre outros, o Ac RG de 22.04.2013 (relator-Cruz Bucho, acessível em www.dgsi.pt), onde pode consultar-se a recensão de doutrina e jurisprudência no mesmo sentido e em sentido contrário.

[7] Quanto à al. a) do nº4, que faz depender a punição das condutas tipificadas nos seus números 1, 2 e 3 de terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo legal de entrega da prestação, vd, por todos, as referências pertinentes em M. Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, As metamorfoses e desventuras de um crime (Abuso de Confiança Fiscal) irrequieto, in RPCC Ano 17, nº1 p. 55

Nos termos da al. b) daquele nº4, os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se - decorrido o prazo de 90 dias a que nos referimos supra – o sujeito passivo não entregar à administração tributária a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração [e recebida], acrescida dos juros respetivos e do valor da coima, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito .

Verificadas divergências na doutrina e jurisprudência a propósito da natureza desta condição e respetivo regime, o STJ fixou jurisprudência no AFJ 6/2008 de 9.04.2008, considerando que a exigência legal de notificação naqueles termos configura uma nova condição objetiva de punibilidade, mantendo-se inalterada a tipicidade do facto.

[8] Neste sentido já decidira o citado acórdão da RG de 22.04.2013

[9] Cuja fundamentação, que sufragamos, é do seguinte teor:

«A redacção deste nº 7 afigura-se inequívoca: a qualificação do crime de abuso de confiança fiscal só ocorre quando de alguma declaração a apresentar à administração tributária dever constar um valor superior a € 50.000. Sob pena de violação do princípio da legalidade, não se pode considerar, como a magistrada do MP na sua resposta, que “o nº 7 do art. 105 do RGIT só tem aplicação quando se verifique a prática de vários crimes ou de um crime na forma continuada”. Esta argumentação esquece que a questão da unidade ou pluralidade de infracções é resolvida pela teoria geral das formas do crime (cfr. art. 30 do Cód. Penal), enquanto a determinação do crime concreto cometido é do campo da tipicidade. As normas acima transcritas do art. 105 do RGIT apenas delimitam os tipos do crime do abuso de confiança fiscal, sendo que o texto do nº 7 não permite qualquer excepção ou ressalva quando for caso de aplicação da norma do nº 5. Ou, por outras palavras, no RGIT o valor global não entregue à administração fiscal, resultante da soma dos valores das diversas declarações, nunca pode ser tomado em consideração para o efeito da qualificação do crime de abuso de confiança fiscal, embora não seja irrelevante, nomeadamente para a aferição da ilicitude do comportamento [A ilicitude afere-se pelo grau de negação dos específicos valores jurídico-criminais tutelados pela norma violada, o que releva para a determinação da medida concreta da pena dentro da moldura penal abstracta cominada para o tipo de crime cometido – cfr. art. 70 nº 2 al. a) do Cód. Penal].

Não decorrendo dos factos provados que alguma declaração a apresentar devesse ser de valor superior a € 50.000, ou o equivalente em escudos, à luz do RGIT cometeram os arguidos o crime de abuso de confiança fiscal «simples» p. e p. pelo seu art. 105 nº 1.

Só mais uma nota: Era diferente o caso do RJIFNA, cujo art. 24 nº 5 apenas dispunha que quando “a entrega não efectuada for superior a 5.000.000$00, o crime será punido com prisão de um a cinco anos”. Nos casos em que a mesma resolução criminosa abrangia mais do que uma entrega, não havia razão para não considerar o valor global em falta para o efeito de se determinar se tinha sido cometido o crime qualificado.