Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
649/15.7T8ENT.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA
ABUSO
Data do Acordão: 06/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Num contrato de seguro há uma diferença entre a cláusula limitativa do risco, que é admissível e a cláusula abusiva, pois naquela a finalidade é restringir a obrigação assumida pela seguradora, enquanto nesta é restringir ou excluir a responsabilidade de forma ilegítima por estabelecerem uma desigualdade de força e reduzirem unilateralmente as obrigações do contratante mais forte ou agravarem as do mais fraco, criando uma situação de grave desequilíbrio entre elas, ou seja, em que uma parte se aproveita da sua posição de superioridade para impor em seu benefício vantagens excessivas, que ou defraudam os deveres de lealdade e colaboração que são os pressupostos de boa-fé, ou sobretudo, aniquilam uma relação de equidade que é um princípio de justiça contratual, provocando uma gravíssima situação de desequilíbrio.
II - Assim, as cláusulas limitativas nos contratos de seguro não são vedadas, não sendo consideradas abusivas.
III - Não é abusiva uma cláusula de exclusão do contrato de seguro facultativo em caso de incumprimento da obrigação de inspecção periódica do veículo é abusiva, já que apenas prevê o cumprimento da lei.
IV - No âmbito do seguro facultativo saber se é necessária a demonstração do nexo de causalidade do facto que exclui o seguro e a eclosão do acidente, é algo que depende estreitamente da redacção que, em concreto, tiver a cláusula delimitadora do objecto dos contratos de seguro porque estamos no âmbito da interpretação das respectivas cláusulas.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 - Relatório.

Em 2.02.2015, na Instância Local do Entroncamento, AA veio intentar a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a BB ASSISTÊNCIA S.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 9.803,75€, a título de indemnização por danos patrimoniais resultando da perda total do veículo 00-FC-00, em consequência de acidente de viação, acrescida de juros moratórios a partir da data do acidente até efectivo e integral pagamento e da quantia de 10,00€ por cada dia em que não pôde utilizar a viatura desde a data do acidente até ao pagamento total da indemnização.
Alegou que, celebrou contrato de seguro com a ré, e sofreu um acidente no qual a sua viatura foi objecto de perda total, mas a ré recusou a indemnização à autora, com base em incumprimento contratual, nomeadamente por a mesma não ter cumprido a obrigação de submeter a viatura a inspecção obrigatória.
Considera que, como na anterior lei do seguro se previa que satisfeita a indemnização a seguradora tinha direito de regresso contra o segurado, não tinha a seguradora legitimidade para recusar a indemnização.
Alega ainda que, o incumprimento da obrigação de submeter o veículo e inspecção é apenas punida coima, pelo que considera nula a cláusula de exclusão do contrato de seguro.
Na contestação veio a ré invocar o facto de a viatura não ter sido submetida a inspecção periódica, o que é inserido no contrato como causa de exclusão de indemnização pela seguradora e considera ainda que a autora não poderia ter sofrido o acidente caso tivesse conduzido com o cuidado e diligência devida. Acrescenta que o valor do veículo não é o invocado pela autora, sendo o valor de reparação superior ao do veículo, pelo que o valor peticionado é excessivo.
Considera absurda a ideia da autora de que a cláusula contratual é nula, uma vez que decorre de uma obrigação legal, já que a lei prevê a possibilidade de a seguradora ter direito de regresso sobre o segurado caso o mesmo não tenha cumprido a inspecção obrigatória, o que reforça igualmente a exclusão de responsabilidade da seguradora.
Conclui, assim, pela improcedência da acção, e consequente absolvição da ré do pedido.
Foi proferido saneador-sentença, onde foi decidido considerar a cláusula em causa válida e, em consequência, a acção foi julgada improcedente por não provada e absolver a ré do pedido.
Desta sentença recorreu a A, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):
«I - DOS FACTOS
A - No dia 18 de Fevereiro de 2012, pelas 5.15 horas, o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula 00-FC-00, conduzido pela autora, sofreu um despiste e capotou fora da estrada.
B - Do despiste referido no artigo anterior, resultou a destruição do veículo.
C - No dia 14 de Março de 2012, a Ré comunicou à autora que não iria proceder a qualquer indemnização, de acordo com o disposto no artigo 5°, alínea 11, das Condições Gerais do Seguro Complementar de Perdas Pecuniárias "Finance GAP2"
D - Constando na referida alínea 11 do artigo 5° que "Nas condições normais dos contratos de seguro, e tendo em conta a legislação aplicável, as condições de subscrição da BB Assistência e as disposições contratuais, ter-se-ão sempre por excluídos os seguintes sinistros, casos ou situações: Os que se produzam, carecendo o veículo da documentação ou requisitos (incluindo a Inspecção Técnica de Veículos e Seguro Obrigatório) legalmente necessários para circular pelas vias públicas do país onde se encontrar o Veículo Seguro. "
E - A primeira matrícula do veículo 00-FC-00 foi efectuada em 2008.01.15
F - No dia do acidente ocorrido a 18 de Fevereiro de 2012, o veículo 00-FC-00 não tinha a inspecção técnica de veículos actualizada.
II - DO DIREITO
G - A cláusula 11 do artigo 5 das condições gerais do seguro complementar de perdas pecuniárias "Finance GAP 2", junto à PI como doe, n° 8 determina a exclusão dos sinistros casos, danos ou situações que "os que se produzam carecendo o veículo da documentação (incluindo a Inspecção Técnica de Veículos e Seguro Obrigatório) legalmente necessários para circular pelas vias públicas do país onde se encontrar o veículo segurado. "
H - Ora esta cláusula, não é mais que uma cláusula leonina, ao contrário do constante na douta sentença onde pode ler-se no último parágrafo "corno tal considera a cláusula em causa válida"
I - Tais cláusulas abusivas lesam a boa fé, causando um grave desequilíbrio nos direitos e obrigações das partes em prejuízo do elo mais fraco, consideradas nulas na legislação, não implicando a nulidade do contrato.
J - Como determinado no artigo 15° e alínea b) do artigo 18° do Decreto-Lei n° 446/85 de 25 de Outubro
L - No acórdão de 13-01-2005 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo Revista n° 196/04 da 7a Secção, lê-se:
I - Em matéria de contratação de seguros o que importa é proteger o consumidor de seguros, seja ele pessoa singular ou empresa, de eventuais abusos do predisponente.
II - Assim, são nulas, por força do que dispõe o art. 22. ~ n. o 1, aI. b) do DL n. o 446/85, na redacção do DL n. o 220/95, de 31-08, as cláusulas insertas em contrato de seguro que permitam à seguradora a resolução ad nutum do contrato.
M - Assim nada mais resta que considerar nula a cláusula 11 do artigo 5 das condições gerais do seguro complementar de perdas pecuniárias "Finance GAP 2",
N - Caso não se considere tudo o que aqui já foi exposto, sem prescindir e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que:
O - A Cláusula 11 do artigo 5° das condições gerais do seguro complementar de perdas pecuniárias "Finance GAP 2", poderia ser, eventualmente, considerada válida, o que só por mera hipótese académica se admite, mas mesmo assim com a ressalva de o sinistro ter sido provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo,
P - Desde que o condutor fizesse prova do bom funcionamento do veículo.
Q - E esta questão não foi apreciada em sede da douta sentença em apreço, pelo que deve ser apreciada.
R - A anterior lei do seguro obrigatório aprovada pelo Decreto-Lei n." 522/85, de 31 de Dezembro, no seu artigo 19°, alínea f) previa que satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tinha direito de regresso se não tivesse apresentado o veículo à inspecção obrigatória excepto se o mesmo provasse que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo."
S - Contudo o referido Decreto-Lei n." 291/2007 de 21 de Agosto, que revogou o Decreto Lei referido na alínea anterior, nas alíneas h) e i) do artigo 27°, vai no mesmo sentido dom diploma revogado.
T - Do exposto verifica-se que as seguradoras, no caso do seguro obrigatório, apenas tinham e têm o direito de regresso, na medida em que o acidente tenha sido provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
U - Ora a existência da alínea 11 do artigo 5° das condições gerais do seguro complementar determina a exclusão dos seguintes sinistros: "Os que se produzam carecendo o veículo da documentação ou requisitos (incluindo a Inspecção Técnica de Veículos e Seguro Obrigatório) legalmente necessários para circular pelas vias públicas do país onde se encontrar o Veículo Segurado,"
v - Pelo que a cláusula referida no artigo anterior deve ter tratamento igual, isto é, a exclusão das disposições contratuais, se o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
x - Sobre este assunto se pronunciou Tribunal da Relação do Porto no acórdão proferido em 18-05-2006 no processo 0632156, afirmando que "A seguradora, satisfeita a indemnização (a que só há lugar demonstrados os pressupostos do dever de indemnizar), apenas tem direito de regresso «contra o responsável pela apresentação do veículo a inspecção periódica que não tenha cumprido a obrigação decorrente do disposto no n° 2 do artigo 36° do Código da Estrada e diplomas que o regulamentam, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo"
Z - Ora da leitura do "boletim de perda total", junto como doc 2 da PI, elaborado por CC, SA, pode ler-se na síntese, "Estado Geral Mecânica" BOM
AA - Além de que arrolou 3 testemunhas, todos eles mecânicos para informarem do estado da viatura antes do acidente, que não foram ouvidas
AB - Pelo que, também, requer:
c) a apreciação do conteúdo descrito nos artigos anteriores;
d) a condenação da Ré ao pagamento à autora da quantia de 9.803,75 € (nove mil oitocentos e três euros e setenta e cinco cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais resultante da perda total do veículo 13-FC-56 em consequência do acidente de viação;
e) a condenação da Ré ao pagamento da quantia de € 10,00 (dez euros) por cada dia que não pode utilizar a viatura, desde a data do acidente (18.08.2012) até ao pagamento, pela Ré, do total da indemnização;
f) a condenação da Ré ao pagamento dos juros à taxa legal desde a data do acidente até efectivo e integral pagamento;
g) E nas custas e procuradoria condigna.
Termos em que deve ser dado como provado o presente recurso nos termos supracitados, com a condenação da Ré,
Porém Vossas Excelências farão a costumada justiça.»
Foram juntas contra-alegações pelo R, tendo o mesmo formulado as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A ora recorrida emitiu um Seguro Complementar de Perdas Pecuniárias denominado "Finance Gap2", que dispensava coberturas que beneficiavam o veículo da A., ora recorrente;
2. As referidas coberturas e o regime a que as mesmas se encontram sujeitas encontram-se discriminadas nas Condições Gerais da Apólice, juntas aos presentes autos, nunca tendo a recorrente invocado o seu desconhecimento (cf. doe. 8, junto com a p.i.);
3. O veículo da recorrente sofreu um acidente no dia 18 de Fevereiro de 2012, tendo sofrido diversos danos, pelo que foi, pela sua proprietária accionado o referido seguro;
4. A seguradora, ora recorrida, declinou assumir responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização por ter verificado que o veículo sinistrado não tinha sido submetido, no momento em que ocorreu o acidente, à inspecção técnica obrigatória (IPO);
5. Com efeito, nos termos do artigo 5.0, aI. 11), das Condições Gerais do referido seguro (rubrica "Exclusões"), ficam excluídos das coberturas da apólice os sinistros que se produzam carecendo o veículo da documentação ou requisitos (incluindo a Inspeção Ténica de Veículos e Seguro Obrigatório) legalmente necessários para circular pelas vias públicas do país onde se encontrar o veículo segurado (cf. doe. 8, junto com a p.i.).
6. Acresce que do artigo 2.0 das referidas Condições Gerais, tem-se como veículo seguro aquele que é propriedade do Segurado ou que a outro título legítimo este detenha e relativamente ao qual se possam considerar cumulativamente verificados diversos requisitos, entre os quais o de ter sido sujeito às inspecções técnicas que sejam legalmente exigidas (cf. ibidem);
7. E ainda se deve ter em conta que, nos termos do artigo 3.° das mesmas Condições Gerais, as garantias disponibilizadas pelo seguro valerão e serão asseguradas nos termos e condições previstas na Apólice (cf. ibidem);
8. Todas estas cláusulas, designadamente a que consta do acima referido artigo 5.°, aI. 11), das Condições Gerais, devem ser consideradas válidas e eficazes, não padecendo de qualquer vício susceptível de interferir com a sua aplicabilidade;
9. Com efeito, trata-se de fazer depender o accionamento das coberturas dispensadas pelo seguro do cumprimento de uma obrigação legal e a que todos os veículos se encontram sujeitos, constituindo, aliás, uma regra de segurança básica de circulação automóvel;
10. Nunca a existência de uma tal cláusula poderia ser considerada como abusiva ou atentatória dos princípios da boa-fé, ao contrário do que pretende a recorrente, uma vez que se trata de uma imposição lógica e absolutamente compreensível para as partes que contrataram o seguro;
11. Não faz qualquer sentido, como bem refere a douta sentença recorrida, que o tomador do seguro fosse indemnizado por um acidente provocado pela própria incúria ou pelo incumprimento de normas legais, não se vislumbrando como pode entender-se que uma cláusula que apenas prevê o cumprimento de um requisito legal possa ser abusiva (cf. douta sentença recorrida, p. 5);
12. Pode ainda ler-se na referida douta sentença recorrida que a cláusula que se encontra aqui em causa apenas exige que a contraparte cumpra um requisito legal, o qual é uma forma de a seguradora ter a certeza de que a viatura se encontrava em bom funcionamento à data do acidente (ibidem);
13. Não existe assim qualquer tipo de invalidade que possa ser considerada ou que interfira com a referida cláusula, pelo que a mesma deve ser considerada válida para todos os efeitos;
14. Deste modo, a ora recorrida tinha o direito de recusar assumir o pagamento de qualquer indemnização, invocando o facto de não se mostrar cumprido a aludida obrigação contratual;
15. O seguro em causa não tem a natureza de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pelo que não lhe são aplicáveis as regras jurídicas daquele;
16. Trata-se de um seguro de contratação voluntária o qual se rege pelas condições que integram a respectiva apólice e que foram livremente assumidas e aceites pela ora recorrente;
17. Não assiste deste modo a esta qualquer razão para defender a inaplicabilidade do disposto no já referido artigo 5.0 aI. 11), das referidas Condições Gerais.
Nestes termos, e tendo em conta o acima exposto, negando provimento ao presente recurso e confirmando, em consequência, a douta sentença recorrida, cumprirão V.Exas, ILUSTRES DESEMBARGADORES, a lei, assim fazendo a costumada e são JUSTIÇA!»
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Factos considerados provados na 1ª instância:
1. No dia 18 de Fevereiro de 2012, pelas 05.15h, o veículo ligeiro de passageiros, marca Seat, modelo Ibiza 1.2, de cor cinzenta, com a matrícula 00-FC-00, conduzido pela autora, sofreu um despiste e capotou fora da estrada.
2. Do despiste referido em 1 resultou a destruição do veículo.
3. Em 14 de Março de 2012, a ré comunicou à autora que não iria proceder a qualquer indemnização, de acordo com o disposto no artigo 5.°, alínea 11.
4. Da alínea referida em 3 consta: "Nas condições normais dos contratos de seguro, e tendo em conta a legislação aplicável, as condições de subscrição da BB Assistência e as disposições contratuais, ter-se-ão sempre por excluídos os seguintes sinistros, casos, danos ou situações(. . .) Os que se produzam, carecendo o veículo da documentação ou requisitos (incluindo a Inspecção Técnica de Veículos e Seguro Obrigatório) legalmente necessários para circular pelas vias públicas do país onde se encontrar o Veículo Seguro."
5. A primeira matrícula do veículo 00-FC-00 foi efectuada em 2008.01.15.
6. No dia referido em 1, o veículo 00-FC-00 não tinha a inspecção técnica de veículos actualizada.


2 – Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir são:
- Saber se a cláusula de exclusão do contrato de seguro facultativo em caso de incumprimento da obrigação de inspecção periódica do veículo é abusiva.
- Saber se era relevante a demonstração do nexo de causalidade da falta de inspecção em relação ao acidente.


3 - Análise do recurso.

3.1 - Saber se a cláusula de exclusão do contrato de seguro facultativo em caso de incumprimento da obrigação de inspecção periódica do veículo é abusiva.

A recorrente discorda a sentença “por esta concluir que não estamos perante uma cláusula contrária à boa-fé, nem leonina, pois a mesma exige que a contraparte cumpra um requisito legal, o qual é uma forma de a seguradora ter a certeza de que a viatura se encontrava em bom funcionamento à data do acidente”.
Não cremos que a recorrente tenha razão.
Senão vejamos:
Está em causa a cláusula 11 do artigo 5 das condições gerais do seguro complementar de perdas pecuniárias "Finance GAP 2", que “determina a exclusão dos sinistros casos, danos ou situações que "os que se produzam carecendo o veículo da documentação (incluindo a Inspecção Técnica de Veículos e Seguro Obrigatório) legalmente necessários para circular pelas vias públicas do país onde se encontrar o veículo segurado."
Trata-se portanto de uma cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora na falta de inspecção técnica de veículos.
Não vemos de que forma esta cláusula possa lesar a boa- fé, causando um grave desequilíbrio nos direitos e obrigações das partes em prejuízo do elo mais fraco, como diz a recorrente.
Tal como refere – e bem – a sentença recorrida:
“Não obstante o fundamento do diploma que regula as cláusulas contratuais legais ser proteger a parte mais fraca, isso não significa que a seguradora tenha que ficar particularmente vulnerável, o que aconteceria, caso não tivesse qualquer cláusula no contrato que a salvaguardasse de incumprimentos contratuais por parte do segurado.
Com efeito, nenhum sentido teria permitir que o tomador do seguro fosse indemnizado por acidente provocado pela própria incúria, ou pelo incumprimento das normas legais.
Por outro lado, não se vislumbra como pode entender-se uma cláusula que apenas prevê o cumprimento de um requisito legal possa ser abusiva.”
E nem se diga que, a cláusula é abusiva só por o contrato ser apresentado já preenchido ou parcialmente preenchido à contraparte, por um dos contratantes que se encontra em situação de superioridade sobre o outro.
É necessário mais do que isso.
É necessário uma imposição ilegítima.
Ora, neste caso, trata-se de exigir apenas o cumprimento da lei.
É que, há uma diferença entre a cláusula limitativa do risco, que é admissível e a cláusula abusiva pois naquela a finalidade é restringir a obrigação assumida pela seguradora, enquanto nesta é restringir ou excluir a responsabilidade de forma ilegítima por estabelecerem uma desigualdade de força e reduzirem unilateralmente as obrigações do contratante mais forte ou agravarem as do mais fraco, criando uma situação de grave desequilíbrio entre elas, ou seja, em que uma parte se aproveita da sua posição de superioridade para impor em seu benefício vantagens excessivas, que ou defraudam os deveres de lealdade e colaboração que são os pressupostos de boa-fé, ou sobretudo, aniquilam uma relação de equidade que é um princípio de justiça contratual, provocando uma gravíssima situação de desequilíbrio.
Assim, as cláusulas limitativas nos contratos de seguro não são vedadas, não sendo consideradas abusivas.
E no nosso caso a exigência contratual corresponde ao cumprimento da lei, nada tendo de abusivo.
O veículo estava sujeito a inspecção periódica obrigatória.
As inspecções destinam-se, essencialmente, a verificar se os veículos se encontram em condições de circulação em segurança, de forma a não ocorrer acidentes e danos por deficientes condições dos órgãos de segurança, se não padecem de deficiências ou irregularidades, sobretudo das que respeitem às condições de segurança do veículo (nomeadamente no que concerne ao funcionamento dos órgãos de direcção e de travagem do veículo); visa-se garantir um acréscimo de segurança a todos os veículos automóveis em circulação e compreende-se que a seguradora faça depender dessa condição a sua responsabilidade, sendo o seguro facultativo, como diz a recorrida:
Deste modo, ao não ter realizado a referida inspeção dentro do prazo obrigatório, a ora recorrente colocou-se numa situação de ilegalidade, porque bem sabia que não podia nem devia circular com o veículo naquelas condições.
Ao sofrer um acidente naquelas circunstâncias, não goza a ora recorrente da presunção de que o veículo se encontrava apto para circular em segurança, justamente por se encontrar numa situação de irregularidade legal, derivada da não realização da inspeção técnica obrigatória.
Acresce que se compreende e faz todo o sentido que as seguradoras incluam como pressuposto do acionamento das coberturas de seguros desta natureza o cumprimento da lei.
Em suma, estamos perante uma cláusula não abusiva.


3.2 - Saber se era relevante a demonstração do nexo de causalidade da falta de inspecção em relação ao acidente:

Alega ainda subsidiariamente a recorrente que, ainda que se considere válida a cláusula em causa, o condutor tinha que fazer prova de o sinistro ter sido provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo e essa questão não foi apreciada em sede da douta sentença em apreço, defendendo que deve ser apreciada.
Ou seja, diz que “mesmo que o Tribunal não acolha esta tese da nulidade da referida cláusula contratual, deverá ser dado na mesma provimento ao presente recurso e às pretensões do ora recorrente desde que se fizesse prova em juízo de que, não obstante o veículo não ter sido sujeito à inspecção técnica obrigatória, o mesmo se encontrava em bom estado de funcionamento e que o acidente não tinha sido causado por qualquer problema técnico de que o veículo enfermasse (cf. Decretos-Lei nºs 522/85, de 31 de Dezembro e 29112007, de 21 de agosto (artigo 27.°, als. h) e i)”;
Quid júris?
Em primeiro lugar, importa referir que, não estamos no âmbito do direito de regresso e o dever de indemnizar da Ré depende da verificação dos pressupostos contratuais.
Por outro lado, estamos no âmbito do seguro facultativo e não obrigatório e logo, cabe no âmbito da livre disposição das partes e obedece por esse motivo, a princípios diferentes dos seguros obrigatórios.
Assim sendo, trata-se apenas de interpretar o contrato para concluir se há ou não o dever de indemnizar, ou seja, saber se a exclusão do sinistro da cobertura do seguro depende apenas da circunstância do veículo não ter inspecção técnica actualizada ou, pelo contrário, é também indispensável a prova da existência de nexo de causalidade adequada entre tal taxa e a eclosão do acidente, é algo que depende estreitamente da redacção que, em concreto, tiver a cláusula delimitadora do objecto dos contratos de seguro porque estamos no âmbito da interpretação das respectivas cláusulas - neste sentido, Ac. RC de 15.07.2008, proc. nº 36/12.9TBALD.C1 e Ac. RL de 07/11/2013, in www.dgsi.pt.
Se ao abrigo da liberdade de estipulação contratual consagrada no artigo 405º, nº 1, do Código Civil, foi definido o limite da exclusão da cobertura contratual por referência à falta de inspecção, não se coloca a questão do nexo de causalidade entre essa falta e a eclosão do acidente.
É necessário interpretar a vontade das partes, sendo certo que, tal não significa que se possa extrair de determinado documento ou declaração de vontade contratual algo que não tenha a mínima correspondência com a sua própria letra, colocando-se, pois, a questão da interpretação das declarações negociais constantes em tal documento.
A interpretação desta cláusula está sujeita às regras dos artigos 236º e 238º nº1 do CC.
A este propósito, a propósito de um caso semelhante, embora estando em causa uma cláusula relativa à condução sobre a influência do álcool pode ler-se no Ac. RC de 15.07.2008, proc. nº 531/06.9 TBPBL.C1:
«E, no mesmo sentido, afirmou-se no texto do Ac. do S.T.J. de 15/05/2003[9], tendo em mente o seguro facultativo, que “não se coloca nesta sede a questão do nexo de causalidade entre o efeito do álcool ingerido pelo recorrido e a eclosão do acidente, porque as partes definiram o limite da exclusão da cobertura contratual por referência ao volume da alcoolemia legalmente consentido pela lei portuguesa a quem conduzisse veículos automóveis”.
No caso dos autos, estamos perante um seguro inteiramente facultativo, de «danos próprios», cuja apólice, sob o artº 36º, nº 1, al. c), contém uma cláusula de exclusão segundo a qual “para além das exclusões previstas no Artº 6º, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações ... c) sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob influência do álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos”.
(…) Importa, portanto, interpretar a aludida cláusula da apólice de seguro em termos de saber se a exclusão do sinistro da cobertura do seguro depende apenas da circunstância de o segurado conduzir com uma T.A.S. superior à legalmente permitida ou se, pelo contrário, é também indispensável a prova da existência de nexo de causalidade adequada entre tal condução e a eclosão do acidente.
Convém começar por referir que não estamos perante uma cláusula de exclusão da responsabilidade no sentido próprio da expressão, mas antes perante uma cláusula limitativa do objecto do contrato de seguro, já que o escopo da mesma não é afastar ou excluir a responsabilidade mas antes suprimir uma obrigação que, sem esse acordo de vontades, faria parte do contrato.
O contrato de seguro, cuja regulamentação geral consta dos artºs 425º e seguintes do Cód. Comercial, é um contrato formal, oneroso e de adesão.
Em matéria de interpretação e integração da declaração negocial regem os artºs 236º a 239º do Cód. Civil, normas que, com pequenas «nuances», consagram a doutrinalmente chamada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria. Considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável.
Na interpretação das cláusulas do contrato de seguro o texto do documento que o formaliza (a apólice) constitui simultaneamente ponto de partida e limite de indagação, já que não pode a declaração valer com um sentido que nele não tenha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (artº 238º, nº 1 do Cód. Civil).
Não deve também olvidar-se que, sendo o contrato de seguro um contrato de adesão, contém cláusulas gerais, inegociáveis por parte do respectivo tomador, as quais, nos termos do artº 10º do Dec. Lei nº 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 220/95, de 31/08, “são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam”. Sendo que as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (artº 11º).
(…) sendo certo que a exigência do nexo de causalidade não aparece com um mínimo de correspondência no respectivo texto.
Na acção de regresso não está em causa a responsabilidade emergente do contrato de seguro, mas o exercício de um direito que surge de novo na titularidade da seguradora, que satisfez a indemnização ao lesado, situando-se no âmbito da responsabilidade extracontratual.
Na presente acção a causa de pedir consubstancia-se no alegado incumprimento do contrato de seguro e o que se discute é se o capital reclamado está ou não coberto, face ao teor da cláusula, e como se argumentou no Ac. do STJ de 15/5/2003, já atrás referido, “não se coloca nesta sede a questão do nexo de causalidade entre o efeito do álcool ingerido pelo recorrido e a eclosão do acidente, porque as partes definiram o limite da exclusão da cobertura contratual por referência ao volume da alcoolemia legalmente consentido pela lei portuguesa a quem conduzisse veículos automóveis”.
Ou seja, a cláusula em questão tem como escopo a delimitação do objecto do contrato de seguro facultativo de danos próprios e, de acordo com ela, não constituem objecto do dito contrato os sinistros que ocorram quando o condutor do veículo conduza sob a influência do álcool.
Para que tal exclusão actue basta que o condutor seja portador, na altura do acidente, de uma T.A.S. superior à permitida por lei, não havendo que indagar se a correspondente alcoolemia foi ou não adequadamente causal do sinistro».
Também no nosso caso, basta ler a cláusula em causa para concluir que não há qualquer referência ao nexo causal, pelo que a cláusula de exclusão, seguindo as regras de interpretação referidas, que a mesma funciona independentemente de se verificar a existência de nexo de causalidade.
Em suma:
Improcede totalmente o recurso.


Sumário:
I - Num contrato de seguro há uma diferença entre a cláusula limitativa do risco, que é admissível e a cláusula abusiva, pois naquela a finalidade é restringir a obrigação assumida pela seguradora, enquanto nesta é restringir ou excluir a responsabilidade de forma ilegítima por estabelecerem uma desigualdade de força e reduzirem unilateralmente as obrigações do contratante mais forte ou agravarem as do mais fraco, criando uma situação de grave desequilíbrio entre elas, ou seja, em que uma parte se aproveita da sua posição de superioridade para impor em seu benefício vantagens excessivas, que ou defraudam os deveres de lealdade e colaboração que são os pressupostos de boa-fé, ou sobretudo, aniquilam uma relação de equidade que é um princípio de justiça contratual, provocando uma gravíssima situação de desequilíbrio.
II - Assim, as cláusulas limitativas nos contratos de seguro não são vedadas, não sendo consideradas abusivas.
III - Não é abusiva uma cláusula de exclusão do contrato de seguro facultativo em caso de incumprimento da obrigação de inspecção periódica do veículo é abusiva, já que apenas prevê o cumprimento da lei.
IV - No âmbito do seguro facultativo saber se é necessária a demonstração do nexo de causalidade do facto que exclui o seguro e a eclosão do acidente, é algo que depende estreitamente da redacção que, em concreto, tiver a cláusula delimitadora do objecto dos contratos de seguro porque estamos no âmbito da interpretação das respectivas cláusulas.


4 – Dispositivo.

Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Évora, 30.06.2016

Elisabete Valente

Bernardo Domingos

Silva Rato