Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
9103/17.1T8STB.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
VELOCIDADE EXCESSIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CONCURSO
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - O conceito de excesso de velocidade deve ser aferido pela incapacidade de executar as manobras cuja necessidade seja previsível, uma das quais é a de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, dependendo o apuramento de excesso de velocidade dos contornos peculiares de cada caso concreto mas tal dispositivo estradal só funciona perante situações previsíveis para o condutor que com elas se depara e não em casos imprevisíveis, não se vendo como é que um condutor pode adequar a marcha do veículo que tripula, de modo a parar no espaço livre e visível à sua frente, quando o obstáculo lhe surge repentinamente e/ou de modo imprevisto.
- O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505.º e 570.º do Código Civil deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.
- Para tal o Tribunal deve formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado não ignorando os casos em que a própria vitima tem um comportamento temerário que de forma grosseira “desafia o perigo” originando um processo causal independente e paralelo ao risco de circulação e não concorrente.
- Ainda que estejamos perante a circulação de um veículo, com a força cinética resultante da velocidade, do volume e da massa do veículo, esse facto ainda que naturalisticamente contribua para o acidente, pelo simples facto de se fazer parte daquela realidade, não é porém determinante, na situação de “aparecimento súbito de um peão na autoestrada” que corresponde a algo extraordinário, fora de toda a normalidade rodoviária, tornando desadequado falar em responsabilidade decorrente da circulação do veículo, atenta a inopinada presença na via do peão, que como perigo súbito e imprevisível é totalmente causal do acidente.
(Sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

(…), (...), (…), (…), (…), intentaram a presente acção declarativa de processo comum contra Companhia de Seguros (…), S.A, peticionando a condenação da R. no pagamento aos AA. na qualidade de herdeiros de (…) da quantia de € 426.056,20, sendo € 415.000,00 a título de danos morais, € 7.000,00 respeitantes a danos patrimoniais, € 4.056,20 decorrentes de despesas de funeral, acrescida de juros vincendos calculados à taxa legal até efectivo e integral pagamento; bem como em eventuais danos futuros materiais ou morais nos quais os AA venham a incorrer decorrentes do acidente objecto destes autos nomeadamente, condenação da R. a suportar todos os danos patrimoniais futuros decorrentes do mesmo, com actualização à taxa da subida de custo de vida e da expectativa de maior ganho do A. a saber a prestação mensal (12 meses ao ano) de € 100,00 aos pais e de € 150,00 à viúva .
Para tanto alegaram, em suma, que (…) foi vítima de atropelamento por veículo conduzido por (…), tendo, a responsabilidade civil emergente da circulação de veiculo sido transferida, através de contrato de seguro, para a R. (…), Companhia de Seguros, SA.
A Ré devidamente citada, contestou, alegando que não pode ser imputado ao seu segurado qualquer responsabilidade na produção do acidente, que se deve totalmente ao comportamento do sinistrado.
Foi citado o Instituto de Segurança Social, IP, nada tendo sido peticionado.
Em sede de audiência de discussão e julgamento foi pelos AA. reduzido o pedido de € 4.056,20, referente às despesas com o funeral em € 3.689,00, correspondente ao montante recebido pela A. (…) a título de despesas de funeral, mantendo o restante pedido.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Inconformados com a sentença, vieram os AA. interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
1. Entendeu o Tribunal que os seguintes factos não estão provados:
“O condutor (…) ia desatento e não viu o triângulo”.
“O condutor do veículo circulava desatento e não conseguiu parar a sua viatura, indo embater no peão”.
2. Os factos supra mencionados decompõe-se em vários elementos, um primeiro elemento referente ao condutor e um segundo elemento referente é um embate no peão.
3. Segundo o Tribunal recorrido o condutor nada poderia fazer.
4. Discordamos em absoluto com esta tese por várias razões:
5. Uma primeira razão decorre do senso comum e da constatação que a circulação de um peão na via pública não causa um acidente.
6. Indicamos como prova a gravação de (…) – Cabo GNR – Destacamento de Trânsito de Setúbal de minutos 6.20 a 13.20, que anexamos.
7. Indicamos a declaração do condutor a minutos 8.46 a 9.20 onde diz em resposta ao mandatário dos AA: ”O senhor chegou a ver o triângulo?”: “Não, eu na altura não cheguei a ver o triângulo, vi logo o camião”.
8. Por outro lado, sempre haveria velocidade excessiva, ou seja o condutor que não consegue parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente ainda que, note-se, não tenha excedido a velocidade permitida para a via onde circula.
9. A forma como ocorreu o acidente é evidente a velocidade excessiva por parte do condutor do veículo segurado na Recorrida, independentemente da velocidade a que circulava, contribuindo para o malogrado e infeliz acidente.
Da especial obrigação de indemnizar os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas
10. Em virtude da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho o seguro automóvel passou a o cobrir os danos dos peões com base na responsabilidade objectiva.
11. Como em muitas matérias referentes ao seguro automóvel a redacção da lei é complexa. É curioso como o legislador usa frequentemente formulações complicadas para dizer aquilo que é simples.
12. O n.º 2 artigo 11.º da DL 291/2007 é um desses casos. Citamos: Artigo 11.º
Âmbito material
1 - O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange:
a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil;
b) Relativamente aos acidentes ocorridos nos demais territórios dos países cujos serviços nacionais de seguros tenham aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei aplicável ao acidente, a qual, nos acidentes ocorridos nos territórios onde seja aplicado o Acordo do Espaço Económico Europeu, é substituída pela lei portuguesa sempre que esta estabeleça uma cobertura superior;
c) Relativamente aos acidentes ocorridos no trajecto previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior, apenas os danos de residentes em Estados membros e países cujos serviços nacionais de seguros tenham aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros e nos termos da lei portuguesa.
2 - O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos.
13. No n.º 2, a lei não se limita a remeter para a lei aplicável à responsabilidade civil, a indemnização devida a esta especial categoria de vítimas. Por que razão deveria fazê-lo apenas para estas vítimas? As outras vítimas terão um regime diferente?
14. Interpretar o artigo desta forma, seria retirar qualquer sentido útil ao preceito pois, tal como qualquer outro lesado, os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas estão abrangidos pelo seguro, que indemniza nos termos gerais da responsabilidade civil.
15. De facto, o legislador, no n.º 2 do artigo 11.º quis e veio dizer algo de novo que, na nossa opinião, consiste em duas regras:
1 - O princípio geral de que o seguro automóvel abrange os danos sofridos por peões, tal como acontece com os passageiros.
2- Os danos cobertos são aqueles que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine deverem ser ressarcíveis.
16. Ou seja, todos danos dos peões, que a lei determina serem ressarcíveis, estão cobertos e abrangidos pelo seguro automóvel.
17. Um exemplo prático de danos não ressarcíveis, seria o caso de um peão apanhar um susto por um condutor ter buzinado, e ter um eventual dano. Ora, este dano não será digno de ser ressarcível e por isso não está abrangido. Será um mero incómodo, eventualmente.
18. Dito de outra maneira, os danos dos peões encontram-se sempre cobertos e abrangidos pelo seguro, desde que tais danos mereçam a tutela do direito.
19. Reconhecemos que a formulação da lei não é a mais clara, mas parece-nos a interpretação possível e mais conforme à Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio.
Da responsabilidade da Ré
20. Por outras palavras, se a presença da vítima na via pode ser imputável a culpa desta, o embate do veículo seguro na R. com a vítima é imputável também a culpa, ainda que mais reduzida, do respectivo condutor.
21. Deste modo, conclui-se pela existência de concorrência de culpas entre o referido condutor e a vítima em proporção a determinar de x para o condutor e de y para a vítima.
22. Por outro lado, sempre será de aplicar a responsabilidade pelo risco, prevista no artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil com uma interpretação actualizada, no sentido de – de acordo com a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça – se admitir a concorrência entre a responsabilidade objectiva e a culpa do lesado;
23. Na nossa opinião a condução do veículo seguro na Ré era uma circulação em velocidade excessiva.
24. Muito modestamente não podemos aceitar a conclusão de que o veículo seguro na R. não contribuiu “com risco relevante para o acidente” e para a morte da vítima.
Os AA. impugnam a decisão recorrida com 3 fundamentos distintos, a saber: (i) erro na matéria de facto, devendo ser dado como provado que o condutor não viu o triângulo; (ii) de acordo com uma interpretação actualista do regime do artigo 505.º do CC, imposta pela exigência de uma interpretação conforme ao direito da União Europeia em matéria de seguro automóvel, é de admitir o concurso entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado, tese que, devidamente aplicada ao caso sub judice, levará a concluir que os riscos próprios do veículo seguro na R. contribuíram para a ocorrência do sinistro; (iii) além disso, não foi devidamente apreciada a questão da velocidade do veículo seguro na R. que, em função do regime do artigo 24.º do Código da Estrada, deve ser tida como excessiva, bem como o facto de este não ter visto o triângulo por ir desatento, implicando assim que se reconheça a negligência do respectivo condutor.
Temos nos quais deve ser revogada a presente decisão.»
Nas contra-alegações, a (…) concluiu nos seguintes termos (transcrição):
«Do recurso sobre a matéria de facto
Pretende o recuso que a sentença recorrida deu como não provados os seguintes factos:
- O condutor (…) ia desatento e não viu o triângulo.
- O condutor do veículo circulava desatento e não conseguiu parar a sua viatura, indo embater no peão.
Não é verdade.
A sentença recorrida deu como não provado, com alguma conexão com o invocado, apenas o seguinte:
- o condutor do veículo com matrícula (…) circulava desatento, não tendo visto o peão.
De resto, não foi alegado que o condutor não tivesse visto o triângulo, pelo que tal nem sequer poderia ser dado com provado.
Como também não foi alegado que o condutor circulasse desatento e por isso não tivesse conseguido parar a sua viatura. Com o que tal não poderia também ser dado como provado.
De qualquer modo, resulta manifesto do depoimento da testemunha (…), mesmo na parte para que se remete na apelação, que o mesmo seguia com muita atenção.
Assim, o que o recurso pretende que seja dado como provado está em manifesta contradição com o que ficou demonstrado, assente sem margem para dúvidas na prova produzida.
Com o que o recurso relativo à matéria de facto deve improceder totalmente.
Do Direito
O decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, não amplia a responsabilidade civil como esta é definida na lei geral e, muito em particular, no Código Civil.
Na verdade, o diploma em questão visa regular o ‘seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel’, como se lê no seu artigo 1.º.
O próprio artigo 4.º do mesmo diploma refere que está sujeito à obrigação se segurar a «pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico (…)».
E mesmo o artigo 11.º, chamado em abono da tese do recurso, refere no seu n.º 1 o que abrange o «seguro de responsabilidade civil» em causa, ao mesmo tempo que o n.º 2, citado nas alegações de recurso, refere expressamente que são atendíveis os danos sofridos «quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos».
Isto é, esta norma, como o diploma do seu conjunto, não veio criar novas situações de créditos indemnizatórios. Antes veio estabelecer quais as situações das que resultam indemnizáveis segundo a lei que determina a existência de responsabilidade civil que são garantidas pelo seguro de responsabilidade civil automóvel.
Não haveria que autonomizar os danos sofridos por peões, ciclistas e por outros utilizadores não motorizados das estradas? Claramente que não.
Mas não resulta desse específico normativo, assim como do diploma no seu conjunto, que o mesmo possa ser interpretado ao contrário do que nele se lê.
Devendo então concluir-se que o seguro de responsabilidade civil automóvel não garante situações em que não exista essa responsabilidade civil, tal como esta é definida na lei geral.
É verdade que a instituição e posterior evolução do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem um cunho marcadamente social.
Mas essa socialização do seguro tem que ver com a garantia dada aos lesados (todos eles) de que, sendo eles credores de uma indemnização, haja quem suporte o pagamento.
O que não aconteceria na grande esmagadora das situações em que o lesante num acidente de viação raramente teria meios para pagar as indemnizações que fossem devidas aos lesados.
Nisto se traduz o carácter social do seguro obrigatório.
Que, por continuar a ser um seguro de responsabilidade civil, não visa garantir lesados que não sejam credores de indemnizações, tais como estas resultam da lei geral.
Contém o recurso apresentado muitas considerações sobre a responsabilidade civil e a sua compaginação entre os atos dos lesantes e os atos dos lesados.
E a maior parte delas merecem sem dúvida apoio, até porque têm o sólido e bem fundamentado respaldo da melhor e mais recente jurisprudência, assim como da doutrina.
A questão surge quando se transpõem esses princípios abstratos para o caso concreto.
Como se lê na sentença, a presunção iuris tantum resultante da absolvição penal por parte do condutor do veículo é incompatível com outras presunções de sentido contrário que existam, e existem, na lei civil.
Depois, não é exato que a sentença recorrida não tenha dado qualquer relevância à velocidade do veículo, que considerou, e muito bem, não ser excessiva: quer porque o condutor já muito a havia reduzido quando se lhe deparou a situação em concreto, quer porque era para ele completamente impensável a conduta temerária e ilícita praticada pelo infeliz peão.
A sentença recorrida não se pronunciou apenas sobre uma eventual violação da ‘lei substantiva’ quando apreciou a questão dum eventual excesso de velocidade. Antes, apreciou a questão em abstrato como a apreciou quanto ao caso concreto.
Sempre concluindo, e bem, que outro comportamento não era exigível ao condutor do ligeiro, quer pela natureza rápida da via – até pelo perigo de circular abaixo ou até próximo da velocidade mínima permitida –, quer pela irresponsabilidade, bem intencionada embora, do comportamento do infeliz peão – que praticamente se foi colocar em frente do ligeiro, cujo condutor nada pôde fazer para evitar o embate.
E repare-se, como bem se lê na sentença recorrida, que, segundo o ‘princípio da confiança’ existente no direito rodoviário, «não se pode fazer impender sobre os utilizadores das vias o especial dever de cuidado, em prever que os outros utilizadores infrinjam as normas de trânsito».
Que foi exatamente o que sucedeu na situação dos autos.
A sentença recorrida verificou se o condutor violou alguma norma de direito estradal, concluindo que o não tinha feito.
A seguir analisou se o mesmo condutor havia violado o dever geral de cuidado que impende sobre qualquer utente de vias públicas, mormente quando se conduz uma viatura.
Para concluir igualmente que tal não tinha acontecido.
Analisou o comportamento do infeliz peão, para concluir que foi o malogrado peão que iniciou «o atravessamento a correr da esquerda para a direita, na direcção da faixa de rodagem por onde circulava o veículo já a velocidade mais reduzida», assim surgindo «inesperadamente na faixa de rodagem de uma autoestrada, onde não podia caminhar», e a uma distância tal do veículo que não permitiu já ao condutor deste parar antes do embate, mesmo tendo já este anteriormente reduzido significativamente a velocidade.
Com o que, concluiu a sentença recorrida, e bem, que o comportamento do peão se traduziu numa «conduta violadora das mais elementares regras de cuidado e diligência, de uma conduta perfeitamente temerária», a qual «foi, sem qualquer dúvida, causa adequada» do acidente dos autos.
Isto é, «o acidente ocorreu devido à actuação do lesado, (…) enquanto peão – que o causou – sem que se possa atribuir ao condutor do veículo (à culpa do condutor) ou aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, o que encerra circunstância excludente da responsabilidade objectiva do proprietário do veículo».
Com o que não é sequer possível ponderar uma concorrência entre a culpa (provada) do peão e uma (inexistente) responsabilidade pelo risco do condutor.
Na esteira, aliás, da linha conceptual expressa no próprio recurso.
Do que tudo resulta que nenhuma censura merecer a sentença recorrida.
Termos em que deve ser rejeitado o recurso, porque interposto por quem não é parte nos autos ou, em qualquer caso, deve o mesmo ser julgado improcedente e confirmada a sentença recorrida, com o que se fará a habitual e esperada Justiça!».
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto recursório, cumpre apreciar e decidir.
Foram considerados provados na 1.ª instância os seguintes factos:
1- No dia 31-08-2015, (…) conduzia o veículo pesado de mercadorias de matrícula (…), circulando pela autoestrada n.º 2 , sentido Lisboa-Algarve;
2- (…) teve que imobilizar o veículo na berma da autoestrada ao Km 47,940 na sequência de rebentamento de pneumático frontal esquerdo;
3- (…) com manutenção do pneu na jante e separação do piso de rolagem;
4- O piso de rolagem do pneu ficou em pedaços na faixa de rodagem da autoestrada;
5- (…) atrás do local onde o pesado ficou imobilizado considerando o sentido norte-sul;
6- A carga transportada pelo veículo pesado estava coberta com uma rede;
7- (…) circulava acompanhado pelo seu filho, (…);
8- Após imobilizar o veiculo (…) vestiu o colete refletor e colocou o triângulo de sinalização de perigo à retaguarda do veiculo, a cerca de 30 metros do veículo;
9- (…) atravessou a faixa de rodagem da autoestrada até ao separador central para apanhar os pedaços de pneu que por ali ficaram espalhados;
10- A tela do pneu ficou caída na faixa mais à esquerda, ocupando toda a largura da faixa mais à esquerda;
11- Após e quando o veiculo ligeiro se aproximava do local, circulando na faixa mais à direita (…) efectuou o trajecto contrário, atravessando, a correr, a faixa de rodagem da esquerda para a direita (considerando o sentido norte-sul) arrastando a tela do piso de rodagem do pneu que havia ficado caída da faixa mais à esquerda da autoestrada;
12- O que fez sem atentar na aproximação ao local que era feita pelo veículo de matrícula (…);
13- O trânsito naquele momento e local era pouco intenso;
14- O veículo ligeiro seguia pela via mais à direita da autoestrada a velocidade compreendida entre os 100-120 Km;
15- O condutor do veículo ligeiro quando viu o pesado imobilizado na berma, a cerca de 100m, e o seu condutor junto ao separador central da autoestrada desacelerou para velocidade entre 70-80 Km;
16- E não obstante o condutor do veiculo ter-se ainda desviado mais para a direita (…) e travado foi embatido pela frente direita do ligeiro na via mais à direita da autoestrada;
17- (…) a cerca de 24metros de distância do local onde (…) deixara o veículo parado;
18- O contacto do veículo de matrícula (…) deu-se com o flanco direito de (…);
19- Após o embate, o corpo de (…) foi transportado sobre a tampa do motor e o vidro do veículo;
20- O qual infletiu para a berma após esse embate;
21- Acabando o corpo de (…) por ficar no piso da berma e na traseira do pesado;
22- Tendo o ligeiro ido embater com a frente direita na traseira esquerda do pesado assim se imobilizando;
23- Em resultado do embate (…) sofreu múltiplas lesões traumáticas crânio encefálicas, torácicas, raquimedulares e dos membros , que determinaram a sua morte imediata;
24- O óbito foi verificado pelo médico da VMER;
25- O resultado de exame químico-toxicológico efectuado a (…) não revelou a presença quer de álcool, quer de drogas de abuso;
26- No local do embate a A2 configura uma recta com boa visibilidade, antecedida de leve curva à esquerda, com 7,80 metros de largura;
27- O piso estava seco e limpo;
28- Quando ocorreu o embate (…) encontrava-se no interior do veículo pesado;
29- Foi o filho (…) que informou a família que o pai tinha falecido num acidente;
30- A viúva, os filhos e os pais de (…) ficaram muito tristes com o falecimento do marido, pai e filho, tendo sofrido um grande choque quando tiveram conhecimento do sucedido;
31- A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), encontrava-se transferida para a Ré através do contrato de seguro titulado pela Apólice (…);
32- A responsabilidade civil na vertente laboral foi assumia pela (…) – Sucursal em Portugal, para quem a entidade patronal transferiu a sua responsabilidade por acidentes de trabalho com os seus trabalhadores;
33- No âmbito do processo n.º 7326/15.7T8STB que correu termos no Juízo de Trabalho de Loures, foi proferida decisão de remição em capital da pensão anual e vitalícia devida, de onde consta que «foi homologado acordo pelo qual a seguradora (…) – Sucursal em Portugal, reconhecendo a existência de um contrato de seguro de acidente de trabalho com a empregadora, abrangendo a retribuição anual de € 8.231,60 e a viúva do sinistrado, (…), como única beneficiária legal do mesmo, se vinculou a pagar-lhe, entre o mais, a pensão anual e vitalícia atualizável, de € 2.469,48, com início em 01.09.2015, até perfazer 65 anos e, a partir desta data, a pensão anual e vitalícia de € 3.292,64», tendo sido entregue, em 19.12.2017, a (…) capital de remição no montante de € 34.637,96;
34- Correu termos o processo-crime n.º 170/15.3GTSTB em que foi arguido (…), tendo sido proferida sentença confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, e devidamente transitada em julgado em 03.02.2020, e nos termos da qual o arguido foi absolvido da prática de um crime de homicídio por negligência;
35- (…) nasceu em 22.09.1961;
36- (…) chegou a Portugal em Outubro de 2000;
37- Desde que chegou a Portugal trabalhou em obras de construção civil;
38- (…) celebrou em 01.04.2001 contrato de trabalho como servente na empresa «(…), Lda.», em Loures;
39- (…) celebrou em 25.10.2007 contrato de trabalho como motorista na empresa «(…) Imobiliária, Decorações e Construções, Lda., em Loures;
40- (…) contraiu casamento civil com (…), cidadã de nacionalidade ucraniana;
41- Deste casamento nasceram dois filhos: (…), nascido em 25-07-1983 e (…), nascido em 23.97.1986;
42- São pais de (…), residentes na Ucrânia, (…), nascido a 16-09-1938 e (…), nascida a 01-07-1939;
43- O corpo de (…) foi levado para a Ucrânia em Setembro de 2015 e foi realizado o funeral no dia 11.09.2015;
44- O filho (…) ficou destroçado quando viu que o pai tinha falecido;
45- O filho (…) estava na Ucrânia quando se deu o acidente e só viu o pai no enterro;
46- (…) ganhava liquido € 590,00/mês;
47- (…) enviava dinheiro à família, mulher, filhos e pais;
48- (…) enviava mensalmente para os familiares cerca de € 150,00;
49- Frequentemente os envios de dinheiro eram feitos através de pessoas que levam dinheiro para a Ucrânia, existindo serviços de transporte e viagens semanais de carrinha;
50- (…) pagou à (…) pela a trasladação € 3.056,20 e € 1.000,00 de funeral na Ucrânia;
51- (…) recebeu da (…) a quantia de € 3.689,14 a título de despesas de funeral.
Foram considerados não provados na 1.ª instância os seguintes factos:
- momentos antes do rebentamento havia sido verificada a carga numa paragem que efectuaram numa área de serviço;
-após ter colocado o triângulo (…) encontrava-se a caminhar pela berma em aproximação ao veículo quando foi embatido pelo veículo de matrícula (…);
- (…), de dentro do veículo, seguia os passos do pai através do espelho retrovisor;
- O condutor do veículo com matrícula (…) ia com muita pressa e circulava a mais de 120 km/h e por esse motivo foi embater em (…) que se encontrava a circular na berma da auto estrada;
- o condutor do veículo com matrícula (…) circulava desatento, não tendo visto o peão;
- o condutor do veículo com matrícula (…) não reduziu a velocidade, nem sequer tentou travar, não se apercebendo da aproximação do peão;
- (…) estudou 10 anos de escola técnica e tinha o curso de pedreiro de construção civil;
- (…) não teve morte imediata;
- (…) teve um sofrimento muito intenso nos momentos que antecederam a sua morte, tendo sentido a vida a apagar-se o que lhe causou muito sofrimento e aflição;
- a viúva (…) isolou-se, apenas recebia visitas em casa e durante meses submeteu-se a tratamento farmacológico para poder dormir;
- sem esse tratamento ficava acordada dias e dias;
-a viúva (…) não foi capaz de remover as pequenas presenças do falecido de sua casa tais como a roupa, os sapatos, etc..
- a viúva de forma duradoura ficou com falta de prazer nas actividades diárias, distúrbios de sono, com uma sensação de agitação, fadiga, constante dificuldade de concentração;
- esta situação comprometeu as suas actividades de trabalho durante 4 meses;
- a mãe de (…) deixou de forma abrupta de saber onde estava o filho, tentava ligar mas ninguém atendia;
- a mãe de (…) isolou-se, apenas recebia visitas em casa e durante meses submeteu-se a tratamento farmacológico para poder dormir;
- sem esse tratamento ficava acordada dias e dias;
- a mãe de (…) de forma duradoura ficou com falta de prazer nas actividades diárias, distúrbios de sono, com uma sensação de agitação, fadiga, constante dificuldade de concentração;
- esta situação comprometeu as suas actividades da vida;
- o pai de (…) desmaiou ao saber que o filho estava morto;
- nunca se soube qual a razão de ele estar naquele carro e qual o contexto do acidente o que deixa os pais perturbados e intrigados até hoje;
- houve uma missa de 9.º dia na igreja (segundo a tradição da Ucrânia) sem o corpo;
- houve um velório de uma noite inteira;
- Foi um colega de curso que fez o elogio fúnebre do falecido.

2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
1ª Questão - Saber se deve ser dado como provado que o condutor não viu o triângulo.
2ª Questão – Saber o condutor do veículo seguro na R. circulava com velocidade excessiva e desatento.
3ª Questão - Saber se há concurso entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado.


3 - Análise do recurso.

1ª Questão - Saber se deve ser dado como provado que o condutor não viu o triângulo.

O recorrente defende que, deve ser considerado provado que: “O condutor não viu o triângulo”.
Alega que, tal facto decorre do depoimento de (…) – Cabo GNR – Destacamento de Trânsito de Setúbal, de minutos 6.20 a 13.20 e da declaração do condutor a minutos 8.46 a 9.20 onde diz em resposta ao mandatário dos AA: ”O senhor chegou a ver o triângulo?”: “Não, eu na altura não cheguei a ver o triângulo, vi logo o camião”.
Mas não é esse o facto que foi dado como “não provado”, mas sim o seguinte:
“O condutor … não tendo visto o peão”.
Aliás, não foi alegado que o condutor não tivesse visto o triângulo, mas sim que não viu o peão.
De qualquer forma a alteração pretendida não iria – só por si – alterar o sentido da decisão e, por isso, seria inútil.
É que o triângulo em causa tem como objetivo alertar os automobilistas, com antecedência, para a presença de um veículo imobilizado na via, mas não a presença de um peão na via.
Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto.


2ª Questão – Saber o condutor do veículo seguro na R. circulava com velocidade excessiva e desatento.

Os recorrentes vieram ainda defender que o condutor do veículo segurado na Ré circulava a uma velocidade excessiva atentas as circunstâncias em causa, justificando tal conclusão apenas no argumento de que assim é porque o condutor não conseguiu parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Com o devido respeito, não concordamos com este entendimento (que no absurdo levaria à conclusão de que qualquer embate traduziria excesso de velocidade).
Resulta do n.º 1 do artigo 24.º do C. E. vigente à data do acidente (aprovado pelo D.L. 114/94, de 3/05) que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Ou seja, pode circular dentro dos limites legalmente previstos e ainda assim circular em excesso de velocidade, sendo então o critério normativo de qualificação da velocidade como excessiva, o da possibilidade do condutor da viatura de detenção da marcha desta no espaço livre e visível à sua frente.
Espaço livre e visível à sua frente é a porção de estrada isenta de obstáculos à frente do veículo abrangida pelas possibilidades visuais do condutor; mas “para a determinação do espaço livre e visível à frente do veículo não contam os obstáculos ou outras circunstâncias que surjam inopinadamente, cuja previsão não seja especialmente exigível ao condutor prudente, entendendo-se este como todo o indivíduo que conduz no respeito escrupuloso de todas as regras estabelecidas para o transito rodoviário, prevendo com tempo os obstáculos razoavelmente previsíveis e regulando a marcha por forma a ser detida, sempre que necessário, em condições de segurança” (cfr. A. A. Tolda Pinto, Código da Estrada e Legislação Complementar, 2ª ed., pág. 59).
O conceito de excesso de velocidade deve ser aferido pela incapacidade de executar as manobras cuja necessidade seja previsível, uma das quais é a de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, dependendo o apuramento de excesso de velocidade dos contornos peculiares de cada caso concreto.
Ou seja, este dispositivo estradal só funciona perante situações previsíveis para o condutor que com elas se depara e não em casos imprevisíveis, não se vendo como é que um condutor pode adequar a marcha do veículo que tripula, de modo a parar no espaço livre e visível à sua frente, quando o obstáculo lhe surge repentinamente e/ou de modo imprevisto.
Compulsada a matéria de facto, verifica-se que o condutor do veículo segurado na Ré conduzia dentro dos limites abstractos previsto na lei.
Não cremos que existissem especiais razões para diminuir em concreto a velocidade: “13- O trânsito naquele momento e local era pouco intenso; 26- No local do embate a A2 configura uma recta com boa visibilidade, antecedida de leve curva à esquerda, com 7,80 metros de largura; 27- O piso estava seco e limpo”.
Por outro lado, decorre do facto 11 e 12 (Após e quando o veiculo ligeiro se aproximava do local, circulando na faixa mais à direita … efectuou o trajecto contrário, atravessando, a correr, a faixa de rodagem da esquerda para a direita (considerando o sentido norte-sul) arrastando a tela do piso de rodagem do pneu que havia ficado caída da faixa mais à esquerda da autoestrada, sem atentar na aproximação ao local que era feita pelo veículo de matrícula …) que o peão surgiu inesperadamente na autoestrada.
Seria claramente desproporcionado que o condutor tivesse de contar com o súbito aparecimento de peões a correr numa autoestrada, pois trata-se de um obstáculo absolutamente imprevisível, tanto mais que se trata de uma autoestrada.
Por outro lado, «in casu» não se sabe a que distância do veículo em causa estava o peão quando atravessou a faixa de rodagem a correr e desconhece-se por isso se o condutor do veículo segurado na Ré podia ou não ter-se apercebido da sua presença ao cortar-lhe o sentido de marcha e, por conseguinte, se podia ou não ter evitado o embate.
De acordo com os critérios de normalidade, de justa medida, da prudência necessária, não se pode atribuir culpa a um agente relativamente a consequências totalmente imprevistas para um homem médio.
Ao condutor do veículo automóvel não é possível atribuir a violação de qualquer regra de condução rodoviária ou mesmo regra de cuidado no exercício dessa condução que permita fazer recair sobre ele qualquer juízo de censura normativa passível de encerrar a afirmação de culpa ou negligência.
Não assiste, assim, também, razão ao apelante quando pretende imputar a culpa na verificação do acidente ao condutor segurado na Ré.


3ª Questão – Saber se há concurso entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado.

Finalmente, os recorrentes defendem que -ao contrário da posição expressa na sentença- existe concorrência entre o risco do veículo segurado na Ré e a culpa do peão.
Em causa está o artigo 505.º do Código Civil que determina o seguinte:
“sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
Sobre tal artigo, até ao final do século XX, existiu a tese clássica e dominante correspondente ao entendimento da impossibilidade da concorrência das duas responsabilidades, subjectiva do lesado e objectiva do condutor do veículo.
Porém, em ruptura com a doutrina e a jurisprudência dominantes de acordo com a qual devia excluir-se o concurso da culpa (do lesado ou do terceiro) com o risco do veículo, o acórdão do STJ de 4 de Outubro de 2007 — processo n.º 07B1710 — foi sensível aos argumentos de Sinde Monteiro (in “Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes (Propostas de alteração ao Código Civil e ao D.L. n.º 408/79, de 25 de Setembro; considerações em torno da criação de um seguro social de acidentes de trabalho e de trânsito)”, in: Revista de Direito e Economia, 1980/1981, págs. 139-154 ) e de Brandão Proença (vide A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, esp. nas págs. 811-826; José Carlos Brandão Proença, “Acidentes de viação e fragilidade por menoridade (para uma nova conformação normativa)”, in: Juris et de jure. Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa — Porto, Universidade Católica Editora, Porto, 1998, págs. 95-115; ou José Carlos Brandão Proença, “Ainda sobre o tratamento mais favorável dos lesados culpados no âmbito dos danos corporais por acidentes de viação”, in: Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2002, págs. 809-837; ou José Carlos Brandão Proença, “Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado – a lógica do ‘tudo ou nada’? – Anotação ao acórdão do STJ de 6 de Novembro de 2003, processo n.º 565/03”, in: Cadernos de direito privado, n.º 7 — 2004, págs. 19-31) e de Calvão da Silva (vide “Acidentes de viação: Concorrência do risco com a culpa do lesado (artigo 505.º); limites máximos da responsabilidade objectiva (artigo 508.º) e montantes mínimos obrigatórios do seguro; indemnização e juros de mora (artigos 506.º, n.º 2 e 805.º, n.º 3) — Anotação ao acórdão do STJ de 1 de Março de 2001”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134.º (2001), págs. 102-128) admitindo-se a concorrência dessas duas responsabilidades.
Resenha retirada do Ac. STJ de 05-05-2022; Proc. n.º 5080/18.0T8MTS.P1.S1 (relator: Nuno Pinto Oliveira)
Como se pode ler no Ac. do STJ, de 24.09.2020, proc. n.º (Relator: Rijo Ferreira):
«não era admitida a concorrência entre responsabilidade pela culpa e responsabilidade pelo risco, sendo a responsabilidade pelo risco automaticamente excluída logo que o dano pudesse ser imputado a conduta (ainda que não culposa) do lesado (cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 2000, pág. 675; MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, 9ª ed. 2010, págs. 392-393).
Ocorre, porém, que a evolução e massificação do trânsito automóvel introduziu na sociedade um risco tão elevado de acidentes (situação a que o preâmbulo do DL 114/94, 03 MAI, que aprova o Código da Estrada refere como “os maiores perigos que a evolução das condições do trânsito trazem consigo”) que este passou a ser visto não já como um risco individual de quem tira proveito pela utilização de um veículo, mas sim como um verdadeiro risco social. E como tal já não era adequado tratar da responsabilidade decorrente da circulação de veículos na perspectiva de mera relação lesante/lesado, mas antes ‘socializar’ essa responsabilidade, agora numa perspectiva de justiça distributiva, criando mecanismos (seguros, fundos de garantia) que assegurassem a indemnização dos danos decorrentes dos acidentes de viação, em particular de certas categorias de vítimas, tidas por mais desprotegidas – passageiros, peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas. Por via dessa ‘socialização’ do risco o centro de gravidade passa da imputação de responsabilidade para a indemnização da vítima, metamorfoseando um seguro dito de responsabilidade em garantia da obrigação da indemnização (daí que quem surge como devedor seja a seguradora e não o autor do dano), criando um sistema de protecção social da insegurança rodoviária. Já não é o património individual do lesante que garante a indemnização, mas antes o aglomerado dos prémios pagos pelos tomadores do seguro; como também, mais do que atribuir a responsabilidade pelo dano o que importa é assegurar a indemnização do lesado.
E com essa evolução entrou em crise o entendimento da impossibilidade de concorrência entre culpa e risco; rectius, entre risco e conduta do lesado.
O trânsito automóvel passou a ser uma realidade quotidiana; a generalidade das pessoas tem de conviver de perto com as máquinas em movimento, no seu dia a dia, ao longo da vida, o que obriga a um tão grande número de precauções acrescidas “que se tornam desculpáveis negligências ou culpas leves dos lesados e se compreende que apenas a culpa grave (ou até muito grave ou extremamente grave) deste seja considerada bastante para afastar a responsabilidade” (como desde há muito vinha defendendo VAZ SERRA; cfr. RLJ, Ano 99, págs. 372-373).
A possibilidade de concurso entre risco e culpa foi ganhando a adesão da doutrina, designadamente de CALVÃO DA SILVA (RJL, Ano 134, pág. 112; Ano 137, pág. 35), SINDE MONTEIRO (Responsabilidade Civil, RDEc, Ano IV, nº 2, 1978, 313; Responsabilidade por Culpa, Responsabilidade Objectiva, Seguro de Acidentes, RDEc, Ano V, 1979, 317 e Ano VI/VII, 1980/81, 123), BRANDÃO PROENÇA (A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação de dano extracontratual, Almedina, 1977; Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”, in CDP, n.º 7, JUL/SET2004, pág. 25), ANA PRATA (Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela, in Estudos em Comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, 345), AMÉRICO MARCELINO (Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 8ª ed. Revista e ampliada, 309), ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, 10ª ed. Reelaborada, Almedina, 2006, 639, nota 1) e MARIA DA GRAÇA TRIGO (Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, UCP, 2015, pág. 467).
Por outro lado a legislação nacional foi consagrando situações de concorrência entre risco e culpa em outros domínios, designadamente na responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos (DL 383/89, 6 NOV, artigo 7.º), nos acidentes com intervenção de aeronaves (DL 321/89, 25 SET, artigo 13.º e DL 71/90, 02 MAR, artigo 14.º) ou embarcações de recreio (DL 329/95, 09 DEZ, artigo 43.º) e produção e distribuição de energia eléctrica (DL 184/95, 27 JUL, artigo 44.º).
Entretanto a nível da União Europeia foi iniciado um processo de uniformização da legislação dos Estados-Membros relativamente ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis e à obrigatoriedade de segurar essa responsabilidade, tendo como objectivos garantir a todas as vítimas de acidentes de viação – e em particular às mais vulneráveis – uma efectiva, suficiente e não discriminatória indemnização e assegurar a livre circulação de veículos e pessoas no mercado interno bem como a concorrência entre os serviços de seguros. Esse processo deu origem às (1ª) Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24ABR12972 (JO L 103, 02MAI1972), (2ª) Directiva 84/05/CEE do Conselho, de 30DEZ1983 (JO L8, 11JAN1984), (3ª) Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14MAI1990 (JO L 129, 19MAI1990), (4ª) Directiva 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16MAI2000 (JO L 191, 20JUL2000) e (5ª) Directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11MAI2005 (JO L 149, 11JUN2005); directivas essas entretanto consolidadas na Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16SET2009 (JO L 263, 07OUT2009).
O programa de uniformização legislativa prosseguido pelas referidas directivas tem como objecto o quadro jurídico atinente ao estatuto do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis segundo a legislação nacional dos Estados-Membros; ele não tem qualquer pretensão de interferir com a regulamentação da responsabilidade civil pela legislação nacional de cada um dos Estados-Membros.
Se em abstracto tal consideração é indiscutida, o certo é que situações da vida real ocorrem em que as regras ou espírito das directivas conflituam com o direito da responsabilidade civil dos diferentes Estados-Membros. Tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia vindo a estabelecer o princípio interpretativo de que embora os Estados membros sejam livres de estabelecer o regime jurídico que considerem mais apropriado relativamente à constituição e ao conteúdo da obrigação e indemnização eles têm de exercer as suas competências de um modo que não retire efeito útil à legislação da União Europeia (cfr. acórdãos Katja Candolin e o.[vítima mortal viajava em veículo em que o condutor e todos os passageiros se encontravam em estado de embriaguez], 30JUN2005, C-537/03, EU:C:2005:417, § 28, Elaine Farrell [viajava na parte traseira de uma carrinha de carga não concebida nem construída para transporte de passageiros], 19ABR2007, C-356/05, EU:C:2007:229, § 34, e Ferreira Santos [colisão de veículos sem culpa de nenhum dos condutores de que resultaram danos para um deles], 17MAR2011, C-484/09, EU:C:2018:158, § 36) e daí retirou uma regra jurisprudencial segundo a qual o efeito útil resultaria esvaziado se a «responsabilidade do próprio lesado pelos danos sofridos (…) tivesse por consequência excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito a ser indemnizado» (acórdão Ferreira Santos, §37; no mesmo sentido, acórdãos Katja Candolin e o., §§ 28-30 e Elaine Farrell, § 35, ambos referenciando que a inadmissibilidade daquela exclusão ou limitação resultava de se basear em critérios gerais e abstractos e que a limitação da extensão da indemnização apenas em circunstâncias excepcionais era de admitir).
Apontava, assim, aquela jurisprudência no sentido de que, «além da exigência de um nexo causal, só uma culpa grave do lesado poderá ter o efeito de limitar a cobertura do seguro (o que significa reduzir o montante da indemnização), ainda assim de uma forma não “desproporcionada” pelo que (…)só uma culpa extremamente grave, em ligação com considerações ao nexo de causalidade, poderá ter o efeito de excluir a cobertura do seguros (o que significa recusar a indemnização)» (SINDE MONTEIRO, Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil, RLJ, Ano 142, pág. 101).
Essa perspectiva, no entanto, sofre alguma disrupção com os acórdãos Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio [colisão de veículo com bicicleta tripulada por criança de 6 anos cuja conduta descuidada teve papel de destaque no surgir do acidente], 09JUN2011, C-409/09, EU:C:2011:371, e Marques Almeida [colisão de veículos sem culpa de nenhum dos condutores em que a vítima foi um passageiro que seguia ao lado de um dos condutores, que não tinha colocado o cinto de segurança e que foi projectado através do pára-brisas], 23OUT2012, C-300/10; EU:C:2012:656), pois que neles o TJUE, depois de reafirmar a sua jurisprudência anterior no sentido de que as legislações nacionais sobre responsabilidade civil não podiam privar as directivas de efeito útil, o que ocorreria no caso de, com base em critérios gerais e abstractos ou sem a ocorrência de circunstâncias excepcionais, se recusasse ou limitasse de modo desproporcionado à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro automóvel com fundamento na sua contribuição para a produção do dano (§§ 28-29 e 31-32, respectivamente), veio afirmar, por um lado, que diferentemente das circunstâncias que deram origem aos acórdãos Katja Candolin e o. e Elaine Farrell «o direito à indemnização das vítimas do acidente é afectado não devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil pelo seguro operado por disposições em matéria de seguro, mas devido a uma limitação da responsabilidade civil do condutor segurado, por força do regime de responsabilidade civil aplicável» (§§ 31 e 34, respectivamente), e, por outro lado, que a legislação nacional aplicável ao caso (artigos 503.º, 504.º, 505.º e 570.º do CCiv.) só afastam a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima e que, além disso, caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a produção do dano ou para o seu agravamento, a indemnização é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade desse facto (§ 33 do primeiro) em função da apreciação das concretas circunstâncias do caso pelo tribunal competente, pelo que tal legislação nacional não tem por efeito excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o direito a uma indemnização pelo seguro obrigatório (§§ 37-38 do segundo), concluindo que a apontada legislação nacional em causa não conflituava com a legislação comunitária em referência.
Independente das dúvidas e perplexidades resultantes desses acórdãos, afigura-se-nos seguro que eles têm sempre por pressuposto que a legislação nacional permite o concurso entre responsabilidade pelo risco e responsabilidade por culpa, pois só nessa medida é possível que o tribunal, mediante a ponderação do concreto circunstancialismo do caso, possa aquilatar do grau de gravidade da conduta do lesado e, em conformidade, com essa avaliação, possa afastar ou limitar proporcionalmente a indemnização pelo seguro.
Tendo em conta essa evolução social, legislativa e do direito europeu o STJ no acórdão proferido em 04OUT2007 no proc. 07B1710 adoptou a interpretação do artigo 505.º do CCiv no sentido da admissão da concorrência entre risco e culpa. Posição essa que se veio a consolidar (cfr. acórdãos de 01JUN2017, proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, 11JAN2018, proc. 5705/12.0TBMTS.P1.S1, 19MAR2019, proc. 5173/15.5T8BRG.G1.S1, 17OUT2019, proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1 e 17DEZ2019, proc. 6610/16.7T8GMR.G1.S1) com a seguinte formulação:
“O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505.º e 570.º do CCiv deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se, à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto para o resultado danoso.”
Incorporando-nos nessa corrente jurisprudencial importa aferir da aplicação da mesma ao caso concreto.
E desde logo importa expressar os critérios fundamentais que subjazem a essa aplicação.
Em primeiro lugar, entendemos, como no referido acórdão de 17OUT2019, que quando o artigo 505.º do CCiv alude a «acidente imputável ao próprio lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do lesado, importando saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pelo lesado», não encontrando qualquer relevância ou utilidade na destrinça entre causação do acidente e causação do dano a que se faz apelo no também referido acórdão de 11JAN2018.
Por outro lado, temos que o fundamento para a responsabilidade objectiva do detentor do veículo não é apenas o perigo do mau funcionamento da máquina (risco agravado) mas também o perigo da simples circulação da máquina (risco comum), pelo que «sempre que o veículo se encontre em circulação, a respectiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos» (MARIA DA GRAÇA TRIGO, op. cit., págs. 486-487).
Dessa consideração, aliada à posição do TJUE de que só em circunstâncias excepcionais ser de admitir a exclusão de indemnização, temos, ainda, que só uma conduta muito grave do lesado pode levar a que se lhe impute em exclusivo a responsabilidade pelo acidente; entendendo-se por muito grave os casos de assunção excessiva de riscos e de exposição deliberada a um risco muito grave (SINDE MONTEIRO, RLJ, Ano 142, págs.128-129).»
O critério do acórdão de 4 de Outubro de 2007 — processo n.º 07B1710 — acabou por se consolidar inclusive na jurisprudência do STJ.
(Mais uma vez de acordo com a resenha retirada do Ac. STJ de 05-05-2022; Proc. n.º 5080/18.0T8MTS.P1.S1 (relator: Nuno Pinto Oliveira: Cfr. designadamente Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 638; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, “Direito dos seguros e direito da responsabilidade civil. Da legislação europeia sobre o seguro automóvel e sua repercussão no regime dos acidentes causados por veículos. A propósito dos Acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE”, in: Revista de legislação e de jurisprudência, ano 142.º (2012), págs. 82-131; Ana Prata, “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, págs. 345-352; Mafalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, vol. II, Principia, Cascais, 2013, págs. 802-803 (nota n.º 1760); Mafalda Miranda Barbosa, “A aplicação analógica das hipóteses de responsabilidade pelo risco”, Estudos a propósito da responsabilidade objectiva, Principia, Cascais, 2014, págs. 116-117 (nota n.º 204); Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação», Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 467-497; e, por último, Rui Ataíde / António Barroso Rodrigues, “Acidentes de viação. Responsabilidade subjectiva, presunções de culpa e responsabilidade objectiva”, in: Julgar, n.º 46 — 2022, págs. 14-32 (esp. nas págs. 30-31).
Cf. acórdãos do STJ de 20 de Janeiro de 2009 — processo n.º 08A3807 —, de 22 de Janeiro de 2009 — processo n.º 08B3404 —, de 17 de Maio de 2012 — processo n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1 —, de 5 de Junho de 2012 — processo n.º 100/10.9YFLSB —, de 1 de Junho de 2017 — processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1 —, de 14 de Dezembro de 2017 — processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1 —, de 11 de Janeiro de 2018 — processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1 —, de 10 de Março de 2019 — processo n.º 5173/15.5T8BRG.G1.S1 —, de 28 de Março de 2019 — processo n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1 —, de 27 de Junho de 2019 — processo n.º 589/14.7T8PVZ.P1.S1 —, de 17 de Outubro de 2019 — processo n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1 —, de 29 de Setembro de 2020 — processo n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1 —, de 13 de Abril de 2021 — processo n.º 4883/17.7T8GMR.G1.S1 —, de 25 de Maio de 2021 — processo n.º 3883/18.4T8FAR.E1.S1 —, de 22 de Junho de 2021 — processo n.º 2992/18.4T8AVR.P1.S1 —, de 19 de Outubro de 2021 — processo n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1 —, de 9 de Março de 2022 — processo n.º 974/19.8T8AVR.P1.S1 — ou de de 15 de Março de 2022 — processo n.º 23399/19.0T8PRT.P1.S1.
Sobre a evolução da jurisprudência do STJ, vide por último Carlos Lopes do Rego, “A problemática da concorrência da responsabilidade objectiva, decorrente dos riscos dos acidentes de viação, com a culpa do lesado”, in: Julgar, n.º 46 — 2022, págs. 33-67).
Seguimos também esse entendimento, sendo o mesmo resumido de forma exemplar no Ac. STJ de 1.06.2017 — processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1 (Relator: Lopes do Rego):
I. — O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505.º e 570.º do Código Civil deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.
II. — Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.»
A este propósito, refere o Ac. STJ de 05-05-2022; Proc. n.º 5080/18.0T8MTS.P1.S1 (relator: Nuno Pinto Oliveira): «Face à interpretação actualista do artigo 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º restringe-se (tem-se restringido) a dois casos:
I. — àqueles em que haja dolo ou culpa grave do lesado;
II. — ainda que não haja nem dolo, nem culpa grave, àqueles em que o facto do lesado deve considerar-se como causa exclusiva do acidente.
Cfr. acórdãos do STJ de 1 de Junho de 2017 — processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1 — e de 11 de Janeiro de 2018 — processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1 e acórdãos do STJ de 20 de Janeiro de 2009 — processo n.º 08A3807 —, de 22 de Janeiro de 2009 — processo n.º 08B3404 —, de 3 de Dezembro de 2009 — processo n.º 81/08.9TBFLG.G1.S1 —, de 17 de Maio de 2012 — processo n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1 — , de 11 de Julho de 2013 — processo n.º 97/05.7TBPVL.G2.S1 —, de 5 de Novembro de 2013 — processo n.º 8/10.8TBTNV.C1.S1 —, de 27 de Março de 2014 — processo n.º 136/07.7TBTMC.P1.S1 —, de 14 de Dezembro de 2017 — processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1 —, de 27 de Junho de 2019 — processo n.º 589/14.7T8PVZ.P1.S1 —, de 17 de Outubro de 2019 — processo n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1 —, de 29 de Setembro de 2020 — processo n.º 1572/14.8TBVNG.P1.S1 —, de 13 de Abril de 2021 — processo n.º 4883/17.7T8GMR.G1.S1 —, de 19 de Outubro de 2021 — processo n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1 — ou de de 15 de Março de 2022 — processo n.º 23399/19.0T8PRT.P1.S1.»
É esse juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto que importa fazer no nosso caso: saber se o risco inerente à circulação do veículo em causa contribuiu para o referido desfecho.
Importa ponderar a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente – vide Ac. STJ de 1.06.2017 supra citado (sublinhado nosso).
Na linha de orientação prevista nos recentes Acs. STJ de 5.05.2022 proc. n.º 5080/18.0 (Relator: Nuno Oliveira) e de 30.11.2022, proc. n.º 1896/20.5T8FNC.L1.S1 (Relatora Maria Graça Trigo) o critério de apreciação da culpa do lesado relevante para efeitos do artigo 505.º do Código Civil (para os quais se remete) deverá ser um critério abstracto ou objectivo, que não pode esvaziar o efeito útil do novo entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca do binómio risco / culpa do lesado, por todas as infracções e omissões do dever de cuidado acabarem por ser configuradas como implicando, em última análise, culpa grave da vítima, susceptível de funcionar como causa exclusiva do acidente como refere Carlos Lopes do Rego, (“A problemática da concorrência da responsabilidade objectiva, decorrente dos riscos dos acidentes de viação, com a culpa do lesado”, cit., pág. 63) mas tal critério também não pode ignorar os casos em que a própria vitima tem um comportamento temerário que de forma grosseira “desafia o perigo”.
No caso em análise cremos que o comportamento da vitima exprime uma negligência intolerável, inadmissível no quadro da circulação rodoviária.
A vítima de forma temerária, expõe-se ao perigo, pelo que cremos estar perante uma situação em que o processo causal é paralelo ao risco de circulação e não concorrente.
Ainda que estejamos perante a circulação de um veículo, com a força cinética resultante da velocidade, do volume e da massa do veículo, esse facto ainda que naturalisticamente contribua para o acidente, pelo simples facto de se fazer parte daquela realidade, não é porém determinante, já que “o aparecimento súbito do peão na autoestrada” corresponde a algo extraordinário, fora de toda a normalidade rodoviária tornando desadequado falar em responsabilidade decorrente da circulação do veículo, atenta a a inopinada presença na via do peão, que como perigo súbito e imprevisível é totalmente causal do acidente.
O aparecimento súbito de um obstáculo em plena faixa de rodagem com as características da autoestrada – é algo com que não se conta em condições normais (é algo diferente se, por exemplo, há nevoeiro ou outras condições atmosféricas adversas) e, por isso, constitui uma cilada em que pode cair qualquer condutor diligente.
Veja-se por exemplo o Ac. STJ de 19-10-2021, proc. n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1, Relator: Fátima Gomes, com as necessárias adaptações, onde se lê:
“O confronto causal do acidente é de molde a concluir que o acidente / atropelamento sendo de atribuir exclusivamente à actuação culposa da vítima/A, não permite que se pondere, para a sua eclosão, de um risco qualificado inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, uma vez que a potencialidade de perigo que, mesmo numa circunstância mais propícia a sinistro automóvel – atropelamento de peão que atravessa a estrada –, comporta a sua circulação, foi alheia ao sinistro. Naquelas circunstâncias de tempo e modo, não se pode considerar ter ocorrido a concorrência de um risco causalmente adequado, porque sem a gravidade suficiente, para promover o resultado danoso, sofrido assim por imputação culposa e exclusiva a cargo da vítima.”
Ou o Ac. STJ de 17-10-2019, Proc. n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1; (Relator: Oliveira Abreu: «Quando não se encontra fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, afastada que está a culpa do condutor do veículo interveniente no acidente ajuizado, cabe aferir se a obrigação de indemnizar se fundamenta em facto danoso gerador de responsabilidade objectiva, porque incluído na zona de riscos a cargo de pessoa diferente do lesado. Nota dominante da responsabilidade pelo risco, temo-la no facto de a lei prescindir daquele elemento subjectivo, da culpa. O fundamento da responsabilidade não reside agora no propósito de um acto culposo, mas sim no controle de um risco, ou talvez, com maior rigor, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o benefício de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos – ubi commodum ibi incommodum.
Tradicionalmente, desvalorizando o elemento literal que decorre do direito substantivo civil, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do artigo 570.º do Código Civil, sendo que actualmente está firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do artigo 505.º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.
Quando se alude a acidente imputável ao próprio lesado, quer-se dizer, antes de mais nada, acidente devido a facto culposo do lesado, acidente causado pela conduta censurável do lesado, importando saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pelo lesado.
Quando se apure que o acidente ocorreu devido à actuação da lesada – que o causou – sem que se possa atribuir ao condutor do veículo (à culpa do condutor) ou aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, esta circunstância encerra causa excludente da responsabilidade objectiva do condutor ou proprietário do veículo.»
Ou o Ac. STJ de 19-10-2021, Proc. n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1 (Relatora: Fátima Gomes) onde se pode ler:
«O confronto causal do acidente é de molde a concluir que o acidente/atropelamento sendo de atribuir exclusivamente à actuação culposa da vítima/A, não permite que se pondere, para a sua eclosão, de um risco qualificado inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, uma vez que a potencialidade de perigo que, mesmo numa circunstância mais propícia a sinistro automóvel – atropelamento de peão que atravessa a estrada –, comporta a sua circulação, foi alheia ao sinistro. Naquelas circunstâncias de tempo e modo, não se pode considerar ter ocorrido a concorrência de um risco causalmente adequado, porque sem a gravidade suficiente, para promover o resultado danoso, sofrido assim por imputação culposa e exclusiva a cargo da vítima.”
II. Olhando para os contornos do presente processo, e fazendo um juízo de adequação e proporcionalidade, à luz da interpretação actualista do regime conjugado do artigo 505.º e 570.º do CC, nos termos do qual o mesmo deve ser lido “como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se, à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto para o resultado danoso”, não conseguimos aqui encontrar os elementos característicos dos riscos próprio do veículo … na vertente de circulação agravada ou de imputação ao peão de um comportamento sem culpa ou com culpa levíssima, à luz dos factos provados relativos às condições do local, tempo, modo e comportamento dos envolvidos no acidente.
III. Não se encontra na situação específica do A. um elemento indicador da necessidade de protecção acrescida da vítima mais frágil que muitas vezes tem conduzido a reduzir a imputação do comportamento do peão como causa do acidente, porquanto era já adulto (o autor nasceu a ... de ...... de 1948) e nada fazia suspeitar do seu estado de saúde e psíquico para realizar a travessia com os necessários cuidados que esta impõe a qualquer peão (factos provados afirmam que era pessoa saudável), a que acresce o facto de ter beneficiado da protecção indemnizatória conferida pelo regime dos acidentes de trabalho, tendo já recebido a indemnização indicada nos factos provados.
IV. Nas circunstâncias dos presentes autos, foi a conduta do A. que determinou exclusivamente o evento lesivo, sem prejuízo de os danos sofridos serem de gravidade superior por estar envolvido um veículo automóvel que o atropelou, não podendo o mesmo beneficiar do regime da responsabilidade objectiva.»
Ou ainda o Ac. STJ de 15-03-2022, Proc. n.º 23399/19.0T8PRT.P1.S1 , Relatora: Ana Paula Boularot em que se considerou de afastar a concorrência entre culpa e risco, na medida em que: “a aceitação desta figura implicaria, sempre, a constatação da contribuição do veículo para a produção do resultado que in casu não se apurou, acrescendo ainda que a condutora conduzia no cumprimento das regras de circulação rodoviária e por forma a evitar o resultado produzido, o qual só ocorreu por culpa exclusiva do peão, cujo comportamento se mostrou violador daquelas mesmas regras cujo cumprimento lhe era igualmente exigido (…) O Tribunal de Justiça, no acórdão de 09-06-2011 proferido no processo C-409/09 (Ambrósio Lavrador) concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano, cfr. http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ. Sendo a jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido da existência de obrigação da interpretação conforme, ou seja, que as jurisdições nacionais devem, na medida do possível, interpretar o respectivo direito à luz das directivas comunitárias (ainda que não transpostas) de acordo com os artigos 249.º e 5.º do Tratado CE, não podemos deixar de interpretar as normas nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva em conformidade com tais directivas, de onde apesar de se admitir face às mesmas a compatibilização da culpa com o risco, por a tal se não opor a legislação portuguesa, a concatenação a fazer não pode deixar de efectuar uma análise criteriosa da actuação dos intervenientes por forma a apurar qual a contribuição que cada um teve para a produção do resultado, fazendo afastar o risco, quando se prove que tal contribuição foi exclusiva do lesado».
Deve, assim, concluir-se que a produção do acidente ficou a dever-se, em exclusivo, à culpa da própria vítima, o que constitui circunstância excludente da responsabilidade da demandada pela reparação dos danos por aquela sofridos.
Ou seja, nas circunstâncias dos presentes autos, foi a conduta do peão que determinou exclusivamente o evento lesivo, sem prejuízo de os danos sofridos serem de gravidade superior por estar envolvido um veículo automóvel que o atropelou, não podendo o mesmo beneficiar do regime da responsabilidade objectiva.
Improcedem, consequente, as conclusões de recurso, impondo-se a manutenção do decidido.

Sumário: (…)


4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 12.01.23
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita