Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
478/15.8TXEVR-L.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: REVOGAÇÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL
AUDIÇÃO DO CONDENADO
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Desde que cumprido o que dispõe o no artº 176.º do C.E.P.M.P.L., aplicável “ex vi” do artº 185º, nº 3, do mesmo Código, não se vislumbra qualquer impedimento legal a que o condenado pudesse ser ouvido por vídeo conferência, nem que tal modo de audição constitua qualquer constrangimento para o depoente, tal como não existe quando se procede à tomada de declarações nos termos do artº 318º, nº 5, do C.P.P..
Quando se alude a audição presencial é para a distinguir da “audição” por escrito, resultante de uma notificação.

A audição presencial não se opõe a audição por vídeo-conferência, que não deixa de ser uma audição presencial, embora com presença à distância, em “directo”.

2 - Se ocorrer revogação da liberdade condicional, o período entretanto decorrido da mesma não tem qualquer efeito para efeitos de “desconto” da pena que o condenado ainda terá que cumprir.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do processo 478/15.8TXEVR-L foi proferida a decisão que segue (na parte que interessa), revogando a liberdade condicional que havia sido concedida a AA:

“ (…)

APRECIANDO:

Com relevância para a causa julgo provados os seguintes factos:

1 - Por decisão de 1/10/2018 proferida por este TEP foi concedida a AA a liberdade condicional, sendo que até então encontrava-se em cumprimento da pena de 8 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, conforme condenação proferida no Proc. 52/06.0JASTB da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Central de …;

2 - O período de liberdade condicional decorreu desde 1/10/2018 (data da libertação do recluso) até 23/7/2021;

3 - Mas, por decisão proferida no Proc. n.º 66/19.0PFSTB da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Local de …, transitada em julgado, e por factos de 4/4/2019, AA foi condenado na pena de 5 meses de prisão, suspensa na execução por 1 ano, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez – pena já cumprida;

4 - E no Proc. 200/21.0PBSTB da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Local de …, por factos de 1/3/2021, foi condenado pela prática de novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 8 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação;

5 - O requerido sabia que, aquando dos factos referidos acima, estava em situação de liberdade condicional;

6 – Sobre os crimes cometidos, referiu que não pensou que, mesmo acusando o consumo de bebidas alcoólicas, tal facto não seria suficiente para revogar a liberdade condicional.

7 – Para além dos crimes acima referidos, o condenado averba ainda anteriores condenações pela prática dos crimes de contrabando qualificado, tráfico de estupefacientes, abandono de comando e condução de veículo em estado de embriaguez (2).

**

Com relevância para a causa inexistem factos por provar.

*

A matéria de facto acima descrita resulta da análise da certidão juntas aos autos, bem como das declarações do condenado (ouvido em 9/6/2022), e ainda do teor do Apenso B.

X

Resulta do disposto no art.º 56 n.º 1 do Código Penal (ex vi art.º 64 n.º 1 do mesmo diploma) que a liberdade condicional deverá ser revogada se no decurso da mesma o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado e com isso revelar que as finalidades que estiveram na base da sua concessão não puderam, por meio dela, ser alcançadas – cfr. o citado art.º 56 n.º 1-b).

No caso que se aprecia verificamos que o recluso ainda logrou manter-se dentro da normatividade por algum tempo, mas não conseguiu assim permanecer, acabando por cometer um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e, passado algum tempo, um novo crime da mesma natureza.

Sendo certo que este tipo de ilícito penal se reveste de menor gravidade quando comparado com aquele outro pelo qual AA cumpriu pena efectiva de prisão e relativamente ao qual corria liberdade condicional, o certo é que, com o seu cometimento, o condenado revela muita ligeireza na forma como encarou as suas responsabilidades, bem sabendo que estava em situação de liberdade condicional.

O condenado, aliás, tem revelado ao longo dos anos séria dificuldade em se adequar aos normativos sociais e do Direito, contando com toda uma série de condenações por crimes de diversa natureza, sendo que os crimes ora em causa – e que determinaram a aplicação de novas penas privativas da liberdade (uma delas já efectiva, ainda que em regime de permanência na habitação) – são ilustrativos da forma irresponsável como continua a encarar a sua forma de estar e as oportunidades sucessivamente concedidas.

Consideramos inconcebível que alguém, em situação de liberdade condicional (e com o que isso significa) tome por pressuposto que conduzir sob influência de bebidas alcoólicas não assume gravidade suficiente para revogar essa mesma liberdade condicional, postura bem demonstrativa da ligeireza com que encarou a sua situação, bem como a própria conduta criminosa depois assumida.

Postura que se censura.

E que não se mostra compatível com as exigências de prevenção especial subjacentes ao instituto da liberdade condicional e à pena que se acompanhava.

Pelo que, a nosso ver, impõe-se a revogação da liberdade condicional concedida (não se mostrando suficiente para acautelar as exigências de prevenção especial sentidas qualquer uma das outras medidas previstas no art.º 55-a) a c), ex vi art.º 64 n.º 1 do Código Penal), já que reclamada pela finalidade última da execução da pena de prisão, ou seja, a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes (cfr. art.ºs 43 e 56, este ex vi art.º 64, todos do Código Penal).

Com consequente cumprimento do remanescente da pena de prisão ainda não cumprida, e aplicada no Proc. 52/06.0JASTB da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Central de ….

DECISÃO

Pelo exposto, revogo a liberdade condicional concedida a AA e, consequentemente, determino a execução da pena de prisão, na parte ainda não cumprida, imposta no Proc. 52/06.0JASTB da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Central de ….”

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Discordando da referida decisão, dela recorreu AA, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1º - Violado o artigo 55º do CP, na medida em que o mesmo aponta para medidas gradativas, que de todo não foram convocadas antes da “última ratio”, violação por inobservância, por não agilização das potencialidades facultadas pela referida norma penal, o que configura uma nulidade que afeta todo o processo incidental.

2º - O condenado, ora recorrente, não foi ouvido presencialmente, mas por vídeo conferência, o que para uma cidadão, ademais humilde e analfabeto, constitui um acrescido obstáculo para se fazer ouvir, no sentido de fazer perceber e entender, pelo que ocorre violação, designadamente do disposto no artigo 495º nº 2 do CPP.

3º - Após a audição do recorrente, não foram ordenadas diligências complementares, conforme impõe o disposto no nº 5 do artigo 185º do CEPMPL, com que o Tribunal pudesse certificar-se da real situação “atualizada” do recorrente, designadamente, do seu estado de saúde, do tratamento em curso de adição alcoólica, da situação familiar, social e laboral, juntando alguns documentos esclarecedores, (5 documentos), que não foram indagados em diligências complementares, pelo que ocorreu violação daquela norma do CEPMPL, nulidade que se argui.

4º - O retorno à cadeia, após três anos de liberdade condicional, acarretará ao ora recorrente, nomeadamente, a perda do emprego, a interrupção dos descontos para a sua carreira contributiva na Segurança Social; destruirá o trabalho e os esforços realizados em ordem à sua completa reintegração, tudo a configurar um excesso e uma desproporcionalidade proibidos pelo artigo 18º nº 2 da CRP

5º - Acresce que a decisão recorrida, ao ordenar o cumprimento do remanescente da pena de prisão ainda não cumprida, sem determinação desse tempo, concreto e preciso, impossibilita o exercício do contraditório ao ora recorrente, pelo que, também por esta omissão quantificadora, ocorre uma nulidade insuprível, por violação, designadamente, do disposto no artigo 20º nº 1 da CRP.

6º - Ademais, entende o ora recorrente que o tempo decorrido em liberdade condicional deve ser considerado na contagem do remanescente eventualmente em falta para completar a duração global da pena (cf. declaração de voto no acórdão nº 181/10, do Tribunal Constitucional), pois que a desconsideração desse tempo, no caso aqui em apreço são três anos, viola o principio da tipicidade das penas, previsto noa artigo 27º e 29º nºs 1 e 3 da CRP, e viola ainda o princípio da adequação e da justa medida, previstos no artigo 18º da CRP

7º - Uma defesa em exercício do contraditório obedece a uma linha unitária, pelo que a revogação da liberdade condicional, desacompanhada da informação quanto ao tempo em falta, relegado este para procedimentos administrativos posteriores, viola o direito de defesa e do contraditório do recorrente, nulidade esta que também se argui, por violação do disposto no nº 5 do artigo 32º da CRP

8º - Suscita-se ainda a inconstitucionalidade do artigo 185º do CEPMPL na medida em que esta disposição permite a concentração no mesmo tribunal de poderes antagónicos, quais sejam o de conceder e o de retirar a liberdade condicional, o que pode colidir com o príncipio da independência dos tribunais, previsto no artigo 203º da CRP

Nestes termos e nos melhor de direito, e com o douto suprimento que se pede, deverá julgar-se procedente a arguição de uma das nulidades suscitadas, anulando-se o douto despacho em recurso, mantendo-se o recorrente em liberdade condicional, ainda que com eventuais novas injunções, com o que se fará

Boa Justiça”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1 – AA beneficiou de liberdade condicional relativamente à pena de oito anos de prisão que lhe foi aplicada no processo n º 52/06.0JASTB, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.

2 – A aludida liberdade condicional decorreu no período compreendido entre 1- 10-2018 e 23-7-2021.

3 – A liberdade condicional em referência ficou sujeita ao cumprimento de obrigações/regras de conduta “maxime” a de o recorrente não incorrer na prática de novos crimes.

4 – Porém, aquele foi condenado no processo n º 66/19.0PFSTB, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena cinco meses de prisão (suspensa na execução), crime esse ocorrido em 4-4-2019, ou seja em pleno decurso do período de liberdade condicional antes mencionado.

5 – Voltou a ser condenado no processo n º 200/21.0PBSTB, pela prática de um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de oito meses de prisão efectiva (em execução em regime de permanência na habitação) ocorrido em 1-3-2021, ou seja também ele no decurso do período de liberdade condicional.

6 – O condenado violou, pois, de forma manifesta e culposa as regras de conduta que condicionavam a liberdade condicional, revelando desta maneira que as finalidades que estavam na base da sua concessão, em particular as exigências de prevenção especial não foram por ela alcançadas.

7 – Consequentemente, bem andou o Tribunal “a quo” ao ordenar a revogação da liberdade condicional, sendo evidente que na decisão recorrida foi feita uma correcta e adequada ponderação dos factos e aplicação do direito.

Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerações, deverão V.as Ex.as negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Assim, farão V.as Ex.as justiça.”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso e cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

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APRECIAÇÃO

Tendo em conta as conclusões da motivação de recurso, foram postas à consideração deste tribunal as seguintes questões:

- violação do artº 55º do Cód. Penal por não se ter aplicado qualquer outra das medidas aí previstas que não a revogação da liberdade condicional;

- não audição presencial do recorrente, ocorrendo por isso violação do artº 495º, nº 2, do C.P.P.;

- falta da realização de diligências complementares conforme impõe o nº 5 do artº 195º do C.E.P.M.P.L.;

- falta de proporcionalidade da revogação da liberdade condicional, ocorrendo, por isso, violação do artº 18º, nº 2, da C.R.P.;

- não fixação na decisão recorrida do tempo a cumprir, ocorrendo, por isso, violação do contraditório, nos termos do artº 20º da C.R.P.;

- não consideração do tempo decorrido em liberdade condicional, ocorrendo, por isso, violação dos artºs 27º e 29º, nºs 1 e 3, e 18º da C.R.P.;

- inconstitucionalidade do artº 185º do C.E.P.M.P.L. por ser o t.e.p. o competente para apreciar a revogação da liberdade condicional, ocorrendo, por isso, violação do artº 203º da C.R.P..

Se é certo que as questões da não audição presencial do recorrente, da não realização de diligências complementares e da competência do t.e.p. não têm que ver directamente com a revogação da liberdade condicional, indirectamente pode entender-se que lhe são prévias e constituem pressuposto da mesma.

Por isso, apesar do que dispõe o artº 186º, nºs 1 e 2, do C.E.P.M.P.L., não deixarão se ser apreciadas.

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A audição do condenado está prevista no artº 176.º do C.E.P.M.P.L., aplicável “ex vi” do artº 185º, nº 3, do mesmo Código, o qual tem a seguinte redacção:

Audição do recluso

1 - O juiz questiona o recluso sobre todos os aspectos que considerar pertinentes para a decisão em causa, incluindo o seu consentimento para a aplicação da liberdade condicional, após o que dá a palavra ao Ministério Público e ao defensor, caso estejam presentes, os quais podem requerer que o juiz formule as perguntas que entenderem relevantes.

2 - O recluso pode oferecer as provas que julgar convenientes.

3 - O juiz decide, por despacho irrecorrível, sobre a relevância das perguntas e a admissão das provas.

4 - Caso perspective como necessária a sujeição do recluso a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, o juiz recolhe, desde logo, o seu consentimento.

5 - A audição do recluso é reduzida a auto.

Ora, desde que cumprido o que dispõe o referido preceito legal, não se vislumbra qualquer impedimento legal a que o recorrente pudesse ser ouvido por vídeo conferência, nem que tal modo de audição constitua qualquer constrangimento para o depoente, tal como não existe quando se procede à tomada de declarações nos termos do artº 318º, nº 5, do C.P.P..

Ao contrário do que alega o recorrente, o artº 495º, nº 2, do C.P.P., não tem aqui aplicação, sendo certo que existe norma expressa (o referido artº 176º do C.E.P.M.P.L.) que regula a audição em causa.

É também por isso, mas não só, que o acórdão da relação de Coimbra de 2/4/2014 referido na motivação de recurso em abono da tese de que não é possível a audição por vídeo-conferência, não tem qualquer aplicação ao caso em apreço.

E sempre se dirá que quando se alude a audição presencial é para a distinguir da “audição” por escrito, resultante de uma notificação.

A audição presencial não se opõe a audição por vídeo-conferência, que não deixa de ser uma audição presencial, embora com presença à distância, em “directo”.

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Quanto à realização de diligências complementares, dispõe o artº 185º, nº 5, do C.E.P. que:

Artigo 185.º

Incidente de incumprimento

(…)

5 - Após a audição, o juiz ordena as diligências complementares que repute necessárias, designadamente junto dos serviços de reinserção social e dos demais serviços ou entidades que intervenham na execução da liberdade condicional

Ora, se o juiz não ordenou a realização de quaisquer diligências complementares é porque entendeu que as mesmas se não justificavam, não impondo a referida disposição legal, ao contrário do que alega o recorrente, qualquer obrigação de proceder a essas diligências.

A disposição legal referida é clara: “.. que repute necessárias …”

Acontece também que o recorrente e o seu defensor foram notificados (referências citius … e …) de que aquando da audição poderiam ser apresentadas as provas entendidas por pertinentes, nada tendo sido apresentado ou requerido nesse sentido.

Era nessa altura que o recorrente deveria ter actuado e não agora, juntando documentos com a motivação de recurso, documentos esses que, como é óbvio, não podem agora ser tidos em conta, uma vez que não foram postos à consideração do tribunal recorrido.

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Quanto à questão da competência do T.E.P. para apreciar o incidente de incumprimento da liberdade, não se vislumbra que ocorra por isso qualquer violação da independência dos tribunais previsto no artº 203º da C.R.P..

Uma coisa nada tem que ver com a outra, tal como não fica beliscada a independência do tribunal da condenação quando aprecia as questões relacionadas com eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão ou com aplicação de qualquer das medidas previstas no artº 55º do Cód. Penal.

E se houvesse (que manifestamente não há) qualquer questão de inconstitucionalidade, sempre seria relativa ao artº 114.º, nº 3, al. c), da L.O.S.J. e ao artº 138º, nº 4, al. c), do C.E.P.M.P.L. não ao artº 185º deste código, como alega o recorrente.

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Vejamos então propriamente a decisão recorrida, nos vários aspectos suscitados pelo recorrente:

- ao contrário do que alega o recorrente, a decisão recorrida refere qual é o período de prisão que o recorrente tem que cumprir por virtude da revogação a liberdade condicional.

Por um lado, refere que: “O período de liberdade condicional decorreu desde 1/10/2018 (data da libertação do recluso) até 23/7/2021” e, por outro lado, refere-se: “Com consequente cumprimento do remanescente da pena de prisão ainda não cumprida, e aplicada no Proc. 52/06.0JASTB da Secção Criminal (Juiz …) da Instância Central de ….”

Sabe-se, pois, que o recorrente tem que cumprir toda a pena que não cumpriu e que esse período corresponde ao tempo de cumprimento que decorreu de 1/10/2018 a 23/7/2021, como certamente o recorrente bem sabe.

- quanto à consideração do tempo de liberdade condicional decorrido, o recorrente apoia-se na declaração de voto de vencida proferida no ac. do tribunal constitucional nº 181/10, proferido no processo n.º 537/09, com acórdão subscrito por outros quatro Juízes Conselheiros, tendo sido relatado pelo Sr. Cons. Carlos Pamplona de Oliveira.

A declaração de voto foi subscrita pela Srª Consª Maria João Antunes e é do seguinte teor:

“Votei vencida por entender que o artigo 64º, nº 2, do Código Penal, interpretado no sentido de que o tempo que o condenado cumpriu em liberdade condicional não deve ser considerado para efeitos do tempo de prisão, nem deduzido na pena de prisão que ao condenado falta cumprir em virtude da revogação da liberdade condicional, viola o princípio constitucional da legalidade (tipicidade) das sanções criminais que se extrai dos artigos 27º e 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Aceitando – como aceita a posição que fez vencimento – que o instituto previsto nos artigos 61º, 63º e 64º do Código Penal foi configurado pelo legislador como um incidente da execução da pena de prisão, é de concluir que, em caso de revogação, conte como cumprimento desta sanção o período de tempo em que o condenado esteve em liberdade condicional. Entendimento contrário faz corresponder a este período uma “medida não detentiva, substituindo a pena de prisão”, que não está prevista na lei.”

Estamos em completo desacordo com o referido voto de vencida.

É que a ser como nele se defende, o período de liberdade condicional seria igual ao período de reclusão. Não faz qualquer sentido. Bem poderia o ex-recluso praticar um crime gravíssimo no último dia do período da liberdade condicional para que a revogação da mesma implicasse que o mesmo cumpriria apenas um dia de reclusão. E se por acaso, como acontece neste processo, aquando a revogação já tivesse decorrido todo o período da liberdade condicional, o ex-recluso não teria quaisquer consequências, pois que se entenderia já cumprida toda a pena restante.

E a ser assim, também no caso de revogação da suspensão da execução da pena de prisão o condenado teria que ver descontado o período já decorrido dessa suspensão, ou todo o período se fosse caso disso, pois que o período da suspensão da pena também é, ou pode ser, um período em que o condenado está sujeito a determinadas regras ou limitações.

O que é acertado é o que se decidiu no referido acórdão do tribunal constitucional, com a fundamentação que, na parte mais relevante, é do seguinte teor:

“Da explanação efectuada há que retirar que a norma impugnada (n.º 2 do artigo 64.º do Código Penal) com o sentido de que o tempo que o condenado passou em liberdade condicional, sem cometer qualquer crime, não deve ser considerado tempo de prisão e como tal deduzido no tempo de prisão que ao condenado falta cumprir em virtude da revogação da liberdade condicional, não viola a garantia prevista no artigo 27.º da Constituição como pretende o recorrente.

Desde logo, como medida probatória, as regras de conduta impostas através do instituto da liberdade condicional têm uma dupla limitação: têm de ser compatíveis com a lei, nomeadamente assegurando os direitos fundamentais do condenado, apenas bulindo com os susceptíveis de limitação legal (como é o caso das enumeradas no artigo 52.º do Código Penal) e têm de ser exigíveis no caso em concreto, numa relação estrita de adequação e proporcionalidade com os fins preventivos desejados – artigo 64.º, n.º 1 por força da remissão para os artigos 52º. a 54º e daquele primeiro para os n.ºs 2 a 4 do artigo 51.º, todos do Código Penal. O condenado, ao infringir os deveres de comportamento resultantes de se encontrar em liberdade condicional, nomeadamente através do cometimento de crime, sabe que esta medida lhe irá ser revogada. A parte da prisão não executada funciona também como um desincentivo à quebra das regras de conduta impostas pelo Tribunal, já que a ameaça do cumprimento do remanescente serve de advertência para o estrito cumprimento das mesmas, que não visam senão a ressocialização do condenado.

E ainda há que ter em atenção que a revogação da liberdade condicional não ocorre de forma automática pois exige um juízo de ponderação sobre o caso concreto, seja por via de apreciação da culpa aquando da infracção dos deveres ou regras de conduta impostos ou do plano de reinserção social, seja por avaliação das finalidades que basearam a liberdade condicional aquando do cometimento de novos crimes (artigos 56.º e 57.º por via do artigo 64.º, todos do Código Penal). Assim, o cometimento de crime durante o período de liberdade condicional não desencadeia automaticamente a revogação da liberdade condicional, dependendo da apreciação que, em concreto, o Tribunal efectuar.

A liberdade condicional consiste na antecipação da liberdade de condenado a pena de prisão durante um período não superior a cinco anos, depois de aquele haver cumprido um período mínimo legal de reclusão e mediante o seu consentimento. Trata-se de substituição parcial de um certo período detentivo por outro não detentivo; é uma medida não detentiva, substituindo a pena de prisão e aquela é um incidente da execução da pena de prisão, mas de carácter não institucional ou não detentivo (“extra-muros”), executada na comunidade, tal como aquela, e como alternativa à continuidade de execução de penas de prisão mais longas. Embora sujeita a deveres e regras de conduta, tem de ser vista como uma verdadeira antecipação da liberdade, à qual o interessado dá a sua adesão, com vigilância do seu comportamento, solidificando as bases de uma real reintegração social. Abandonando a reclusão, tem a oportunidade de retomar o contacto com o seu grupo familiar e participar activamente na vivência quotidiana do mesmo, bem como enveredar por actividade profissional lícita, sendo certo que as regras de conduta e obrigações a que fica sujeito o condenado apresentam um diminuto grau de densidade comparadas com a verdadeira reclusão, não justificando a sua equiparação a esta. A exigência de determinados comportamentos ao condenado, como era o caso de dedicação ao trabalho e manutenção de boa conduta, durante a liberdade condicional, não traduz uma restrição à liberdade de molde a impor a dedução na pena ainda a cumprir quando a liberdade condicional seja revogada.

Em síntese, a liberdade condicional não é, para o condenado, uma medida análoga ao cumprimento da pena de prisão em que foi condenado, (nem representa uma restrição à liberdade análoga às medidas cautelares de prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação ou detenção), a justificar que esse período seja deduzido na pena remanescente a cumprir, uma vez revogada a liberdade condicional pelo cometimento de novos crimes durante o período da mesma.

Não se revelando que a interpretação efectuada pelo acórdão recorrido fira qualquer parâmetro constitucional, deve o recurso interposto ser julgado improcedente.”

Não há, assim, qualquer violação dos artºs 27º, 29º ou 18º, nºs 1 e 3, da C.R.P..

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Quanto ao cerne da questão:

Como se refere na introdução do D.L. 400/82 de 23/9 que aprovou o Cód. Penal, ao referir-se à liberdade condicional, “Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”.

Apesar das modificações entretanto ocorridas quanto ao regime da liberdade condicional, o seu objectivo permaneceu inalterado e, consequentemente, continuam pertinentes aquelas palavras.

Até porque o referido objectivo prende-se indiscutivelmente com o próprio objectivo (ou, pelo menos, um dos objectivos) da execução da pena de prisão, tal como se consagra no artº 42º, nº 1, do C.P.: “A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”.

Como bem refere Anabela Miranda Rodrigues, em A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa da liberdade, seu fundamento e âmbito, Coimbra, 1982, pág. 143: “Sobretudo depois da segunda grande guerra, dado o aumento da criminalidade e a ineficácia das severas formas de punição – ela própria parecia uma «relíquia inútil» - o ideal da sociedade transformou-se na ressocialização dos delinquentes”.

O artigo 61º do C. Penal prevê, pois, para a concessão da liberdade condicional duas modalidades distintas: a obrigatória, aos 5/6 do cumprimento da pena para as penas de prisão superiores a 6 anos, e a facultativa, quando se encontrar cumprida metade, ou 2/3 da pena, independentemente do tipo do crime ou da pena fixada, desde que verificados determinados pressupostos legais.

“… em qualquer das modalidades que reveste – a de uma liberdade condicional facultativa (ope judicis) e a de uma liberdade condicional necessária (ope legis) – configura um período de transição gradual para a vida livre, com vantagens do ponto de vista da ressocialização dos delinquentes e da defesa da colectividade”. (Simas Santos, Leal Henriques, Noções elementares de Direito Penal, 2009, págs.207/8).

Ora, o que resulta da matéria dada com verificada na decisão recorrida (não posta em causa pelo recorrente que nenhuma referência lhe faz) é que no decurso do período da liberdade condicional o recorrente foi condenado por duas vezes por crime de condução de veículo em estado de embriaguez. Na primeira vez (decisão transitada em julgado em 17/5/2019) o recorrente foi condenado em 5 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por um ano; da segunda vez (decisão transitada em 17/11/2021, mas relativa a factos praticados em 1/3/2021), foi condenado em 8 meses de prisão que cumpriu em regime de permanência na habitação.

Parece, pois, evidente que o recorrente não assimilou convenientemente a situação de liberdade condicional em que se encontrava. Ainda para mais reiterou o seu comportamento, tal como, aliás, aconteceu anteriormente, pois que o recorrente já havia sido condenado por condução de veículo em estada de embriaguez em 2008 e 2013.

Refere o recorrente na motivação de recurso que está em tratamento de adição alcoólica (contrariando, aliás, o por si declarado quando foi ouvido no âmbito do presente incidente de incumprimento da liberdade condicional). A questão não é o excessivo consumo de álcool. Ninguém é condenado por isso. A questão é que o arguido conduz depois do consumo excessivo de álcool. E isso é crime. Aí é que está o problema.

O crime de condução sob o efeito do álcool continua a ser desvalorizado e tanto assim é que quando foi ouvido o recorrente declarou que “Sabia que corria a liberdade condicional, mas não pensava que estes crimes de condução com álcool pudessem afectar a sua liberdade condicional.”

O crime de condução sob o efeito do álcool é um crime grave, pois está mais que comprovado que tem dado azo a várias mortes. E não é só dos condutores com excesso do álcool, é também dos restantes utentes das vias públicas.

Vai tardando a tomada de consciência de que o consumo de álcool e a condução são incompatíveis.

Alega também o recorrente que é analfabeto, o que é incompreensível pois que não consta que alguma vez tenha sido condenado por condução sem carta, e é certo que já por quatro vezes foi condenado por condução sob o efeito do álcool.

Por outro lado, foi dado como provado na primeira das sentenças proferidas no decurso do período da liberdade condicional que o recorrente tem a 4ª classe.

A aplicação de qualquer outra das medidas previstas nas als. a) a c) do artº 55º do Cód. Penal, aplicável “ex vi” do artº 64º, nº 1, do mesmo Código é que seria desproporcional à gravidade da conduta do recorrente. Certamente que o recorrente foi advertido, aquando da primeira das condenações ocorrida no período da liberdade condicional, da gravidade da sua conduta e das consequências que da mesma podiam advir, sendo até certo que a pena de prisão foi substituída por suspensão da execução da mesma. De nada serviu, pois novamente o recorrente voltou a conduzir em estado de embriaguez.

Um dos requisitos para a concessão da liberdade condicional é precisamente a prognose de que o seu beneficiário não cometerá mais crimes, como consta no artº 61º, nº 2, al. a), do Cód. Penal.

Isso mesmo consta da decisão que concedeu a liberdade condicional ao recorrente.

Por tudo o referido, entende-se que inexiste qualquer razão para censurar a decisão recorrida, concluindo-se também que as razões que levaram à concessão da liberdade condicional não lograram ser alcançadas, pelo menos no que à prática de crimes diz respeito.

Não ocorreu, pois, qualquer violação do artº 55º do Cód. Penal ou do artº 18º, nº 2, da C.R.P..

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

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Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

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Évora, 8 de Novembro de 2022

Nuno Garcia

António Condesso

Edgar Valente