Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
200/11.8GTEVR.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: PERÍCIA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
INDÍCIOS SUFICIENTES
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - No ordenamento processual penal português, a perícia caracteriza-se por ser tendencialmente pública e exigir dois pressupostos para a sua realização: um, formal: a nomeação por entidade judiciária; outro, material: a necessidade de especiais conhecimentos para percepcionar (compreender) e apreciar (valorar) factos.
II - Uma perícia deve cumprir uma tríplice perspectiva: ver assegurada a imparcialidade do(s) perito(s); realizar-se em prazo razoável; sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório.
III – Pode também ser essencial no apuramento de factos, que não é possível obter de outra forma. Mas aqui – e porque os factos do processo estão fora da regra resultante do art. 163.º, n.º 1, do CPP – a perícia não pode ter o mesmo valor probatório e deve ser livremente apreciada.
IV - Ao tribunal incumbe assegurar a imparcialidade e a competência inerentes a uma peritagem, assim se concretizando os deveres do juiz como “gatekeeper”, isto é, como guardião da imparcialidade do ou dos peritos e da sua credibilidade científica.
V – A regra do art. 163.º do CPP é compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como norma que qualifica essa apreciação probatória, na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa, apenas lhe estando vedada uma livre apreciação com apelo a “regras de experiência comum”, à sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia.
VI - O que obriga à qualificada ponderação da perícia, sem impedir que o poder judicial a possa afastar quando materialmente isso se imponha.
VII - Há casos claros de exigência legal (literal) de realização de perícia, pelo menos, os previstos nos arts. 166.º, n.º 2 (documento cifrado) e 351.º, n. º 1 (imputabilidade) do CPP, e do art. 18.º da Lei n.º 45/2004 (autópsia médico-legal).
VIII – A ausência de perícia pode implicar vício do processado, a incluir na parte final da alínea d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP, sempre que, não obstante a inexistência de literal e específica exigência legal de realização da mesma, ocorra situação em que a essencialidade probatória dela se revele, por um critério de necessidade ponderado pela especial natureza dos conhecimentos em causa.
IX - O juízo exigível para se considerar a indiciação suficiente deve afirmar-se numa fórmula de forte, alta probabilidade de condenação, de forte convicção de condenação do arguido.
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 200/11.8GTEVR.E1



Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Inquérito que corre termos nos serviços do Ministério Público da Comarca de Évora, em que é arguido A [1] e assistente B, [2] por despacho lavrado em 14-10-2013 a Mmª. Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Évora lavrou despacho a rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente.
Inconformada com o despacho de arquivamento proferido nos autos, a assistente veio requerer a abertura de instrução visando a pronúncia do arguido pela prática de dois crimes de homicídio por negligência grosseira p. e p. no art. 137.º, n.º 2 , do Cód. Penal.
Alegou, em síntese, que não se pode retirar dos elementos probatórios reunidos nos autos que a mãe da assistente, condutora do veículo de matrícula 62-(…), tenha praticado qualquer manobra proibida e perigosa. Da prova carreada para os autos resulta que foi o arguido que não terá observado o disposto nos arts. 18.º, 19.º e 24.º do Cód. da Estrada, não adaptando a velocidade do veículo de matrícula 05-(…), às condições atmosféricas de nevoeiro intenso e de visibilidade reduzida, não mantendo a distância suficiente em relação ao veículo precedente.
*
Inconformado com a decisão da Mª Juíza dela interpôs a assistente o presente recurso, pedindo a sua procedência pela revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie o arguido, com as seguintes conclusões:
1.ª A recorrente impugna a decisão de não pronúncia por discordar que o despacho recorrido (i) possa ter dado como assente a versão do acidente com a qual se comprometeu na respectiva fundamentação (ii) tenha considerado que não existiam indícios suficientes para submeter o caso a julgamento.
2.ª Dado que (i) o acidente não teve quem o presenciasse (ii) e a única versão existente é a do condutor cuja viatura abalroou o veículo onde seguiam os pais da ora recorrente que a passou à entidade policial (iii) e uma vez que já em sede de inquérito a recorrente solicitou [fls. 50 a 53] a produção de prova pericial, mas o MP diferiu para mais tarde [fls. 92] tal solicitação e acabou por não ser aceite em sede de instrução [vejam-se os despachos de fls. 712, 744 e enfim 924] (iii) ante isso e por entender que só alguém habilitado com conhecimentos especializados poderia ajudar a reconstituir a verdade dos factos, a recorrente obteve e custeou um parecer especializado de uma reputada empresa – a “iCollision” – que, no entanto, viu ser rebaixado em termos de avaliação probatória (iv) os autos exigiam que se obtivesse perícia oficiosa, pelo que o facto de o tribunal, num caso com esta natureza não se ter socorrido de prova pericial, por si determinada, tendo-se limitado a pôr em crise os elementos técnicos trazidos pela assistente, através de empresa especializada, fazem a decisão recorrida incorrer na nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do CPP.
3.ª Ante a prova dos autos, a decisão recorrida não poderia ter consignado que:
-» (i) «os dois veículos não circulavam na mesma via de trânsito: o Peugeot circulava na via esquerda e o BMW na via direita» (ii) «o embate ocorre quando o veículo Peugeot muda de via de trânsito, invadindo a via direita onde seguida o MBW» [antepenúltimo e penúltimo parágrafo da página 16];
-» «os elementos dos autos não indiciam que a velocidade do BMW tenha determinado o acidente» [primeiro parágrafo da página 20];
-» «a conduta da vítima, ao conduzir na faixa esquerda em condições atmosféricas adversas e efectuando manobras para mudar de via trânsito sem se assegurar de que o podia fazer em segurança viola regras de circulação rodoviária» [página 20].
-» a colisão foi «fronto lateral» [facto n.º 1 de entre os tidos por indiciados na página 22].
4.ª Há indícios suficientes que militam no sentido da sujeição do feito a julgamento por criarem a probabilidade de a manterem-se poderem justificar uma condenação [n.º 2 do artigo 283º e artigo 308º, ambos do CPP], nomeadamente quanto aos seguintes factos;
-» Foi a viatura do arguido quem embateu na viatura dos pais da assistente;
A decisão recorrida dá o facto como indiciado (página 22) sob o n.º 1
-» No local, dia e hora dos factos, fazia-se sentir um nevoeiro intenso, com visibilidade entre os 30 k/h a 50 k/hora;
A decisão recorrida dá o facto como indiciado (página 23) sob o n.º 14 e é referido na página 10 da mesma.
-» A circulação em tais condições, ao exigir especiais cautelas para ser efectuada com segurança, implicava uma redução de velocidade, o que foi, aliás, praticado por outros condutores que utilizaram a mesma via naquele instante;
Eis o que sucede com a condutora C [fls. 141 e 444] que afirma que «demorou entre Elvas e o local do acidente cerca de 50 minutos». E o mesmo aconteceu com a D [fls. 154 e 457] a qual afirma de modo concludente que «o nevoeiro era intenso/cerrado deixando pouca visibilidade para os veículos que circulavam à frente, motivo que só se apercebeu do acidente quando passava pela via da esquerda».
-» A carta de condução do arguido encontrava-se caducada desde 01.09.2011, pelo que este conduzia sem habilitação suficiente para tal [artigo 130º do Código da Estrada].
O facto resulta do auto de notícia [fls. 28]. Foi completamente desconsiderado como elemento relevante, o que integra nulidade da instrução [artigo 120º, n.º 2, d) do CPP].
-» O arguido, vistas as condições em que ocorria o trânsito, não conseguiu deter a viatura de modo a evitar o embate, pelo que circularia sem adequar a velocidade da viatura ao que era exigido ante tais circunstâncias, sendo-lhe isso possível e exigível nos termos do artigo 24º do Código da Estrada.
Era possível circular sem embater nas viaturas que se encontrassem no local, paradas mesmo, como sucedeu com a condutora D [fls. 154 e 457] que passou no local momentos a seguir ao acidente.
Veja-se o relatório fotográfico de fls. 488 e seguintes e conclua-se, ante a extensão e profundidade dos danos causados nas viaturas a velocidade a que circularia a viatura abalroante pois a abalroada (i) ou estava imobilizada (ii) ou circulava ela própria e nesse caso não juntou o efeito do impacto da sua colisão ao impacto daquela que consigo colidiu.
Aliás o relatório final da GNR [fls. 513] consigna como hipótese que estivesse «o veículo de matrícula 62-(…), em posição paralela na via (imobilizado ou em movimento».
4.ª Por tudo isto e porque existem indícios suficientes que justificam que seja submetido a julgamento o arguido contra o qual foi requerida instrução, pelos factos referidos na mesma, para apuramento da sua responsabilidade, enquanto autor material e na forma consumada de dois crimes de homicídio por negligência, previstos no artigo 137º, n.º 2 do Código Penal.
Nestes termos deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decrete a pronúncia do arguido para que seja sujeito a julgamento nos termos acima concluídos.
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O Digno Procurador-Adjunto do Tribunal apresentou resposta defendendo o decidido, com as seguintes conclusões:
1ª - A realização de uma perícia não é um acto legalmente obrigatório, pelo que a sua falta, em fase de instrução, não consubstancia qualquer nulidade, designadamente a prevista no artº 120º/2, d) do Código de Processo Penal.
2ª - Na fase de instrução apenas é obrigatória a realização de debate instrutório – artº 289º/1 do Código de Processo Penal - e apenas a sua omissão dá lugar à invocada nulidade (e não a de outros actos, ainda que considerados relevantes para a descoberta da verdade).
3ª - Ainda que assim não se entendesse, a arguição dessa suposta nulidade, em sede de recurso da decisão instrutória, é extemporânea, nos termos do artº 120º/3, c) do Código de Processo Penal, porquanto o indeferimento da perícia foi feito por despacho proferido em 12/07/2013 e notificado à assistente, que dele não recorreu.
4ª - A dinâmica do acidente considerada indiciada pela Mma. JI é aquela que corresponde aos elementos probatórios carreados para os autos, dos quais se destacam: a participação de acidente de viação; a inexistência de marcas de travagem no pavimento; a velocidade excessiva a que necessariamente seguia a condutora do Peugeot, atenta a hora do sinistro e a hora a que ainda estava em Lisboa – 8h46; a deformação dos veículos, patente nas fotografias; o depoimento da testemunha E; e o facto de a condutora do Peugeot se dirigir para Vila Viçosa e o nó de saída para esta localidade – por onde deveria ter seguido - ser 200m antes do local do sinistro.
5ª - Indiciam os autos que o acidente que vitimou os pais da assistente ocorreu porque a condutora do veículo Peugeot seguia na faixa de rodagem da esquerda e invadiu, subitamente e sem garantir que o podia fazer em condições de segurança, como lhe impunham as regras de condução rodoviária, a faixa de rodagem da direita, onde seguia o veículo conduzido pelo arguido, que nele embateu.
6ª – A decisão recorrida está devidamente fundamentada de facto, de forma minuciosa e coerente, com argumentos que correspondem aos elementos existentes nos autos.
7ª - Não existem indícios de que o arguido tenha violado regras de condução estradal e deveres de cuidado a que estivesse obrigado, que tenham sido a causa do sinistro e, consequentemente, das mortes ocorridas.
8ª - Assim, na decisão recorrida, a Mma. JI fez uma correcta interpretação dos elementos de prova existentes e das normas legais aplicáveis, designadamente do art. 308º do Código de Processo Penal e artº 137º do Código Penal.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser indeferido e, consequentemente, deve manter-se a decisão proferida.
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Respondeu igualmente o arguido com as seguintes motivações:
1. Salvo melhor entendimento, nenhuma razão existe para colocar em crise a decisão de não pronunciar o arguido.
2. A fundamentação da Assistente é sustentada, única e exclusivamente, no Relatório pericial que juntou.
3. Esquecendo, ou fazendo tábua rasa, de todos os relatórios técnicos existentes no processo, como sejam o elaborado pelo próprio Núcleo de GNR ou pelo Relatório de Peritagem elaborado pela seguradora do veículo Peugeot e constante a fls. 838 a 907.
4. De todas as conclusões, inclusivamente do Relatório junto pela assistente, resulta claro que o veículo Peugeot, conduzido pelos pais daquela, primeiro, não podia circular na fila da direita e, segundo, estava obliquado na via, pois de outro modo o embate teria de se ter verificado na sua traseira.
5. As características do local e respectivos vestígios foram percepcionados pela agente da autoridade que elaborou a respectiva participação, sendo valoráveis como prova.
6. O mesmo se diga das declarações prestadas pelo arguido, não traduzindo qualquer depoimento indirecto, sendo as mesmas valoradas considerando a sua espontaneidade e o momento em que os agentes da autoridade se confrontam com os factos.
7. O relatório junto pela assistente, sendo um elemento valorável, não constitui juízo técnico ou científico subtraído à livre apreciação do julgador.
8. Mesmo a prova pericial só se presume subtraída à livre apreciação do julgador, podendo este divergir do juízo contido na mesma, estando, nesse caso, obrigado a fundamentar essa divergência.
9. Ainda que se tenham impugnado todas as conclusões do Relatório Pericial que a Assistente juntou, o mesmo corrobora, inequivocamente, o constante do Despacho de Arquivamento quanto ao facto do veículo onde circulavam os falecidos estar atravessado ou obliquado na faixa de rodagem.
10. Tal posicionamento do veículo das vítimas é demonstrado pelos danos que o veículo apresenta, não sendo visíveis quaisquer danos por cima da cava da roda direita traseira, facto que foi percepcionado pelo próprio tribunal na vistoria efectuada.
11. Tal como referido no Despacho de Não Pronúncia, é evidente a falta de objectividade do Relatório pois tendo a própria reconstituição elaborada apurado a violação de deveres de cuidado por parte da condutora do Peugeot, não retira qualquer consequência das mesma.
12. Continuando, do referido Despacho consta que as conclusões vertidas no parecer excedem manifestamente o que seria de esperar de um juízo técnico, invadindo a esfera jurisdicional, ao arrogar-se competências para atribuição de culpas.
13. Concluindo, mesmo que tal Relatório fosse elaborado por um perito nomeado pelo tribunal e na hipótese de ter igual conteúdo, sempre se suscitariam dúvidas sobre a parcialidade e objectividade de quem elaborou tal Relatório.
14. O depoimento e esclarecimentos complementares do autor do aludido relatório não permitiram colmatar tais óbices, sendo manifesta a permanente necessidade do mesmo terminar as explicações no sentido da conclusão do excesso de velocidade do veículo conduzido pelo arguido.
15. Por tudo isto se conclui que o Despacho de Não Pronúncia valorou devidamente o referido Relatório, tanto assim que retirou do mesmo algumas conclusões, como sejam a de que a condutora do Peugeot seguia na via da esquerda, em condições de intenso nevoeiro, não tomando a berma direita como referência.
16. Do Despacho de Não Pronúncia consta e está devidamente fundamentado a não realização de Perícia.
17. Quer porque a velocidade do veículo conduzido pelo arguido não foi determinante para a ocorrência (aliás as velocidades não se encontram devidamente apuradas), quer porque as lesões sofridas pelos falecidos, mormente a fractura da C1/C2, lesão fatal, são compatíveis com um impacto inferior a 80 km/hora.
18. Tal foi referido pela testemunha F, que elaborou o parecer de fls. 675 a 679, concluindo a mesma que existiam ainda dois outros factores de agravamento do risco de letalidade, que foram a idade das vítimas (escalões etários mais elevados têm pior prognóstico) e a circunstância de circularem em veículo mais leve.
19. Também a colisão lateral está associada a um pior prognóstico (maior probabilidade de lesão cervical alta, e maior probabilidade de lesões múltiplas fatais crânio-encefálicas, torácicas e abdominais).
20. Mais, conforme consta do mesmo Despacho foi a manobra da condutora do Peugeot que determinou a ocorrência do acidente, pois invadiu a via de trânsito mais à direita da A 6 sem se ter certificado de que o poderia fazer em segurança e quando circulava na via o carro do arguido.
21. A não ter ocorrido tal manobra, não ocorreria o acidente.
22. Por outro lado, pretendeu a Assistente, que fosse efectuada perícia para reconstituição do acidente, com nomeação de peritos da área de Engenharia Mecânica do I.S.T..
23. A reconstituição científica do acidente junta pela Assistente foi elaborada pela firma Icollision – Tecnologias e Consultoria para a Análise Científica de Acidentes, Ldª, sendo que os sócios da referida firma são os constantes do Acto Societário obtido através do Portal de Justiça, que se encontra junto aos autos.
24. Ora, os mesmos sócios, nomeadamente, o próprio subscritor do Relatório, Engº G, o sócio-gerente, Engº H, e os sócios Engº I, Engº J e Engº K, são investigadores ou mesmo Professores do I.S.T., conforme informações obtidas junto do sítio do mesmo Instituto, já juntas aos autos.
25. Ou seja, é claro que sempre existiria um manifesto conflito de interesses entre os referidos sócios da empresa, enquanto membros do núcleo científico de Investigação de acidentes, e a sua hipotética intervenção (ou mesmo do referido núcleo), na perícia requerida.
26. De qualquer modo, entendeu, e bem, a Mª Juíza de Instrução não ser necessária a perícia, pois os elementos dos autos já eram suficientes para uma correcta apreciação.
27. Por outro lado, é de todo indiferente o alegado quanto à hipotética condução sem habilitação suficiente, pois tal não corresponde à verdade, não estando a carta caducada, o que só aconteceria nos termos legais e em momento posterior ao do acidente.
28. Tanto assim que não foi o mesmo objecto de qualquer auto de contraordenação.
29. Não foi a velocidade do veículo conduzido pelo arguido causal do acidente.
30. Não era exigível ao arguido outro tipo de comportamento, nem lhe era exigível que perante as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o embate, tivesse possibilidade de imobilizar o veículo de modo a evitar o embate.
31. Estando o veículo Peugeot posicionado na via como foi apurado, estava o mesmo lateralmente colocado para a visão do arguido, sendo que nessas condições é por demais evidente que a visualização dos veículos se torna muito mais difícil, pois não têm reflectores laterais ou iluminação, como as que existem na traseira ou na frente.
32. Mais, é evidente que o Peugeot surgiu de forma imprevista na frente do veículo conduzido pelo arguido, mudando de fila.
33. Por tudo o alegado não restam dúvidas que não foram encontrados indícios suficientes que levassem a submeter o arguido ao estigma de um julgamento.
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Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da sua ilegitimidade para se pronunciar em virtude de estar em causa um crime particular.
Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal, tendo respondido a assistente.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
*****
B - Fundamentação:
B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial e os factos que dele constam:
É o seguinte o teor (parcial) do despacho recorrido:
«(…) Entendeu o Ministério Público que os autos não contêm indícios da prática pelo arguido de crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137.º, do Código Penal, entendimento contra o qual se insurge a assistente.
Alega a assistente, em síntese, que não se pode retirar dos elementos probatórios reunidos nos autos que a sua mãe, condutora do veículo de matrícula 62-(…), tenha praticado qualquer manobra proibida e perigosa. Da prova carreada para os autos resulta que foi o arguido que não terá observado o disposto nos arts. 18.º, 19.º e 24.º do Cód. da Estrada (CE), não adaptando a velocidade do veículo de matrícula 05-(…), às condições atmosféricas de nevoeiro intenso e de visibilidade reduzida, não mantendo a distância suficiente em relação ao veículo precedente.
Deu causa, com a sua conduta negligente, ao acidente de que resultou a morte dos progenitores da assistente.
Dispõe o art. 137.º do Cód. Penal que quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (n.º 1) e que, em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos (n.º 2).
Por seu turno, o artigo 15.º do Código Penal estatuiu que age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo legal de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”.
As alíneas a) e b) do artigo 15.º do Código Penal distinguem os casos de negligência consciente e inconsciente, respectivamente.
Para que haja negligência inconsciente é necessário que o agente, ainda que não proceda com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, não tenha sequer representado como possível a realização do facto.
A negligência será consciente quando o agente admite, prevê como possível a realização de um facto que preenche um tipo legal de crime, mas actua confiando que o mesmo se não realizará. O agente não se conforma com a realização do facto, pois que se assim não fosse estaríamos perante uma situação de dolo eventual.
É previsível o facto cuja possível ocorrência seria de esperar pelo homem comum ou homem médio. “Mas não é lícito ficar-se por uma resposta meramente objectiva, que vá buscar para o padrão a capacidade normal ou do homem médio. Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido – mas só nessas condições – é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa do próprio autor da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição.” (cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, I volume, 3.ª edição, Editora Rei dos Livros, 2002, p. 231).
O artigo refere o cuidado a que o agente está obrigado e é capaz.
O dever geral e objectivo de cuidado deve aferir-se pelo conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo, do modo e lugar (cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, ob.cit.).
Nos crimes negligente importa, assim, num primeiro momento, aferir se ocorreu uma violação de um dever objectivo de cuidado que causou o resultado típico e se este resultado era previsível e evitável de acordo com o critério do homem médio.
A imputação de um facto a título de negligência encontra-se, ainda, limitada, ao nível da culpa, pela possibilidade ou capacidade de o agente, segundo as circunstâncias do caso, agir com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, isto é, da capacidade do agente cumprir o dever de cuidado.
Outra limitação da imputação negligente é a previsibilidade do perigo – isto é a ocorrência do resultado em função da conduta ou omissão deve ser previsível pelo agente.
Como se refere no Acórdão da R.G. de 21/04/2008, disponível in www.dgsi.pt, seguindo de perto a lição de Eduardo Correia, in Direito Criminal, vol. I, pág. 431” porque estamos perante um crime de resultado consubstancia o mesmo os seguintes elementos: - a verificação do resultado; resultado previsível em relação ao tipo de conduta praticada; violação do dever de cuidado; e a imputação objectiva do resultado baseado no erro da conduta”. Continuando, refere o mesmo arresto que a consagração do dever objectivo de cuidado visa acautelar o perigo para o bem jurídico protegido, resultante da conduta ou da omissão concreta, devendo ser aferido por um homem médio com a capacidade do agente, podendo este, segundo a experiência geral prever o resultado como consequência possível da sua acção ou omissão, conforme prescrito no art. 10.º, do Cód. Penal.
Assim, no que concerne ao tipo objectivo dos crimes negligentes, agora seguindo de perto H. Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 2.º vol. P. 795 e ss.), o mesmo exige dois elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado e a produção de um resultado causalmente derivado daquela violação.
Dever de cuidado este que, segundo Jescheck, se desdobra em dois momentos.
Num primeiro momento, dito de exigência de cuidado interno, há que avaliar o perigo para o bem jurídico: só a representação da possibilidade de ocorrência de um perigo para o bem jurídico impõe ao agente tomar as medidas de cuidado indispensáveis à sua não verificação.
Desta avaliação decorre o segundo momento, dito de cuidado externo, que se traduz no dever de realizar o comportamento exterior adequado a evitar a produção do resultado típico.
No que concerne à circulação rodoviária, impõe-se ao condutor especiais cautelas e um acrescido dever de cuidado.
Como refere Figueiredo Dias (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 108), a violação de normas referentes à circulação estradal pode legitimamente constituir indício do preenchimento do tipo de ilícito mas não pode em caso algum fundamentá-lo.
No âmbito da condução de veículo há, ainda, que atender ao chamado princípio da confiança, enquanto critério delimitador do ilícito por negligência, segundo o qual quem observa as normas impostas para a regulamentação do tráfego rodoviário, deve poder confiar que os outros também as respeitarão.
Não estamos perante um princípio absoluto, pois o mesmo não se aplicará se o agente tiver razões em concreto para prever a falta de cumprimento das normas por terceiro.
Face ao conceito de indícios suficientes, importa ponderar se os elementos obtidos em sede de Inquérito e Instrução permitem imputar ao arguido a prática dos ilícitos referidos no requerimento de abertura de instrução.
Compulsados os autos, temos como certo que no dia 8/12/2011, pelas 10H15, na A6, ao Km 117,162, no sentido O/E, ocorreu um acidente de viação que consistiu na colisão fronto lateral do veículo ligeiro de passageiros de matrícula 05-(…), conduzido pelo arguido, no veículo ligeiro de passageiros de matrícula 62-(…), conduzido por B e onde seguia como passageiro, L, pais da assistente.
No local, dia e hora dos factos fazia-se sentir intenso nevoeiro.
As vítimas mortais (condutora e passageiro do EE) deslocavam-se de Lisboa, de onde saíram após as 8H46, em direcção a Vila Viçosa.
O local do acidente situa-se a cerca de 200 metros após a saída da A6 que dá acesso às localidades de Borba/Vila Viçosa.
O despacho de arquivamento considerou que o embate se ficou a dever à circunstância de o carro onde seguiam as vítimas, por razões não apuradas, se encontrar, no momento do embate, perpendicular à via de trânsito e na faixa de rodagem da direita, concluindo que a conduta do arguido não deu causa ao acidente.
A assistente insurge-se contra este entendimento, sustentando que o acidente foi causado pela velocidade excessiva que o arguido imprimia ao veículo por si conduzido.
Afigura-se-nos, contudo, que não lhe assiste razão.
Estamos, indubitavelmente, perante um acidente de viação muito violento, com lamentáveis consequências.
As únicas “testemunhas” do acidente são o arguido (e seus filhos) sendo certo que apenas terão uma visão parcelar e instantânea dos momentos que o antecederam.
Temos de conjugar os elementos probatórios recolhidos com vista a, no esforço de reconstituição possível, apurarmos a dinâmica do acidente.
A assistente questionou a validade da participação do acidente, por se ter baseado única e exclusivamente nas declarações do arguido, revelando parcialidade e falta de objectividade no relato dos factos, que não foram presenciados pelo seu autor.
Sustenta que a participação do acidente não pode, assim, ter força probatória, sendo inadmissível, atendendo a que se trata de depoimento indirecto, de acordo com o art. 129.º do Cód. Proc. Penal.
Não lhe assiste, também aqui, razão.
Por um lado, a participação do acidente reporta-nos as características do local percepcionadas e do conhecimento de quem a elaborou, bem como as características das vias, dos veículos intervenientes e dos condutores e passageiros.
Tais percepções e conhecimentos do agente de autoridade, que acedeu ao local após o acidente, são, obviamente, valoráveis como prova.
Mas ainda que a assistente, na questão que invoca, se esteja a referir exclusivamente, à dinâmica do acidente, isto é, à parte da participação onde se refere “descrição do acidente”, vemos que a mesma é resultado não apenas das declarações do condutor do (…), mas também das averiguações que então efectuaram os agentes que se deslocaram ao local e dos vestígios que aí encontraram.
A valoração de tais declarações, no momento em que os agentes de autoridade se confrontam com os factos, prestadas espontaneamente por quem vem, mais tarde, a assumir a posição de arguido, não traduz qualquer depoimento indirecto cuja valoração esteja proibida pelo art. 129.º, do Cód. Proc. Penal, pelo que carece de relevância processual a questão invocada pela assistente.
A participação do acidente é um elemento valorável, a par dos demais, sujeito à livre apreciação do julgador (art. 127.º, do Cód. Proc. Penal).
Por outro lado, invoca a assistente que o Ministério Público, no seu despacho de arquivamento, coloca em causa algumas das conclusões do relatório elaborado pela à “iCollision – Tecnologias e Consultoria Para a Análise Científica de Acidentes, Lda.”, sem que contraponha prova pericial que conclua em sentido contrário e sem justificar as razões de tal discordância.
Também a assistente labora em equívoco, pois que em nenhum momento o Tribunal solicitou à “iCollission” que elaborasse peritagem e não nomeou quem elaborou o relatório como perito.
O relatório em causa, sendo um elemento valorável, não constitui juízo técnico ou científico subtraído à livre convicção do julgador, pois que não tem o valor de prova pericial (cfr. art. 163.º do Cód. Proc. Penal).
Por isso, não tem o Ministério Público nenhum dever acrescido de fundamentar as suas razões de discordância relativamente às conclusões vertidas em tal relatório. Não obstante, o Ministério Público refere no despacho de arquivamento as razões pelas quais se afastou das conclusões vertidas por quem elaborou o relatório, algumas dessas razões com inteira pertinência.
Assim, sendo o relatório elaborado pela “iCollission” um elemento de prova, um parecer técnico, valorável, não traduz juízo técnico que se imponha ao julgador.
E não pode este Tribunal deixar de salientar a falta de objectividade patente no relatório elaborado por uma empresa que tem prestado um inegável serviço na área da reconstituição dos acidentes de viação.
Esta falta de objectividade é para nós patente, quando a própria reconstituição elaborada apura a violação de deveres de cuidado por parte da condutora (mãe da assistente, que solicitou a elaboração de tal parecer) e não retira nenhuma consequência da mesma.
Por outro lado, as conclusões vertidas no parecer excedem manifestamente o que será de esperar de um juízo técnico, invadindo a área jurisdicional, quando se arroga competências para atribuição de culpas.
Assim, mesmo que nos encontrássemos perante um relatório elaborado por um perito nomeado pelo Tribunal e a expensas do mesmo (na hipótese de ter igual conteúdo), sempre se nos suscitariam fundadas dúvidas sobre a parcialidade e objectividade de quem o elaborou.
O depoimento e esclarecimentos complementares do autor do relatório não permitiram colmatar tais óbices, sendo manifesta a permanente necessidade de terminar as explicações no sentido da conclusão do excesso de velocidade do veículo conduzido pelo arguido como causa do acidente.
É o próprio relatório que refere (pág. 59) que se o nevoeiro for muito espesso, o condutor deve avançar “a passo”, tomando a berma direita como referência.
Contudo, resulta dos resultados apurados nas simulações que a condutora do (…) seguia na via da esquerda, em condições de intenso neveiro, não tomando a berma direita como referência.
Também se refere que da análise dos vestígios indicados no croqui não é possível determinar a posição dos veículos no início da colisão e que implicaria uma manobra do Peugeot atípica em ambiente de auto-estrada e em circunstâncias normais não provida de sentido (pág. 38).
Sabemos, não obstante, que na génese de muitos do acidentes estão, infelizmente, muitas manobras atípicas e desprovidas de sentido, pelo que tal hipótese não pode, por isso, ser desprezada.
Também se refere que a posição e ângulo do veículo Peugeot sugere a manobra de mudança de via de trânsito esquerda para a direita e/ou que circulava sobre a marca longitudinal contínua (e que ambas são manobras permitidas) – conclusão 5.ª do relatório.
Mas são tais manobras permitidas?
Não é o próprio relatório que refere que estando nevoeiro intenso, o veículo deveria circular o mais próximo possível da berma direita?
Não resulta dos autos, nem tal relatório aponta, nenhuma razão válida para que o veículo Peugeot circulasse na faixa de rodagem da esquerda, tanto mais que deveria ter saído do nó da A6 que se situava a cerca de 200 metros atrás do local do acidente (e que porventura a condutora não percepcionou exactamente porque circulava na faixa da esquerda e existia intenso nevoeiro no local).
E podia a condutora efectuar manobra de mudança de faixa da esquerda para a direita quando nesta faixa circulava o veículo conduzido pelo arguido a distância que não lhe permitia concluir em segurança tal manobra?
Parece-nos que a resposta a estas perguntas terá de ser negativa em face do que dispõe os artigos 13.º, 14.º, 35.º e 73.º, do Cód. da Estrada.
A reconstituição do acidente foi efectuada pela “iCollision” com base em software informático (“PC - Crash”), que permite ir ensaiando várias possibilidades de acordo com diversos factores, de modo a se alcançar a hipótese que melhor justifique a posição final dos veículos.
Tais simulações, contudo, dependem das variáveis que vão sendo introduzidas no sistema por escolha humana.
Em concreto, a introdução e escolha de diferentes variáveis (como no caso do coeficiente de restituição e de atrito, de acordo com as especificações do fabricante ou as condições da via) foi determinado pelo autor do relatório.
Pese embora a testemunha tenha considerado que os factores que utilizou são os mais adequados, os mesmos permitiram chegar a uma posição de imobilização das viaturas próxima da que foi apurada após o acidente, mas que não coincide totalmente com esta.
Nas várias simulações a que procedeu, nunca alterou o coeficiente de atrito (utilizando sempre o 0.7). Fê-lo, segundo referiu, por considerar que o piso estaria húmido mas não molhado. A considerar piso molhado teria utilizado o coeficiente de atrito de 0.6 (sendo o standard de 0.8).
As condições atmosféricas eram verdadeiramente adversas, com nevoeiro intenso e persistente, isto é, que se mantinha em grande extensão, pelo que seria de considerar a hipótese de o piso se encontrar molhado e não apenas húmido.
Suscitam-se-nos também dúvidas quanto ao coeficiente de restituição utilizado nas simulações, em contraposição com as indicadas pelo fabricante (0,18 em contraposição a 0.1 a 0.3).
Por outro lado, também temos dúvidas de que o impacto inicial tenha ocorrido por cima da cava da roda direita traseira do Peugeot, porquanto no exame à viatura não é perceptível a marca de tal impacto. É certo que o eixo da roda se encontra deslocado, mas não ficámos esclarecidas do motivo pelo qual tal não pode ser consequência da deformação da viatura em outros pontos, nomeadamente de impacto, hipótese que a testemunha descartou peremptoriamente, mas cujas razões técnicas não foram claras e perceptíveis.
Perante estas dúvidas, poderíamos questionar a necessidade em levar a cabo uma peritagem independente, que procurasse dar resposta às mesmas.
Como referimos na decisão de fls. 924 a 925, ponderando a natureza indiciária da prova em sede de instrução e os elementos probatórios juntos aos autos, a dinâmica do acidente nos seus traços essenciais pode ser retirada, em termos indiciários, dos diversos elementos probatórios recolhidos, ainda que a velocidade dos veículos não se encontre convenientemente apurada.
Em nosso entender, a velocidade do veículo conduzido pelo arguido pode ser diferente em função de variáveis introduzidas no sistema, desde logo em função da velocidade do Peugeot.
Mas mesmos que o arguido imprimisse ao seu veículo a velocidade em que a assistente funda o RAI, baseada no relatório da “iCollision” (130 Km/h com um variável de 6 Km/h) não foi esse factor que determinou, em nosso entender, a ocorrência do acidente e as consequências do mesmo.
Cumpre, também, salientar que a condutora do veículo (…) saiu de Lisboa sempre após as 8H46, hora em que procedeu ao abastecimento de combustível no Areeiro.
Hora e meia depois estava no local do acidente, pelo que não poderá ter deixado de imprimir à sua viatura velocidade média muito superior à indicada pelo relatório da “iCollision”. É certo que a indicação da velocidade neste relatório se reporta à instantânea, no momento do embate, e esta não é incompatível com a circunstância de, em condições atmosféricas verdadeiramente adversas, a viatura ter circulado em velocidade média superior à adequada, mas pode perfeitamente justificar a distracção da condutora que, assim, não avistou a saída da autoestrada.
Da participação inicial e do croqui, bem como da análise deste relatório da “iCollision” (com as limitações decorrentes dos factores acima referidos) resulta claramente dos autos que o ponto de impacto ocorreu na via de trânsito direita da A6.
Também resulta que os dois veículos não circulavam na mesma via de trânsito: o Peugeot circulava na via da esquerda e o BMW na via da direita.
Afigura-se-nos, também, podermos afirmar com segurança que o embate ocorre quando o veículo Peugeot muda de via de trânsito, invadindo a via da direita onde seguia o BMW.
Esta hipótese parece-nos mais provável do que a imobilização em perpendicular na via ou o despiste, quer pela ausência de marcas na via anteriores à colisão, quer pela orientação da deformação da viatura Peugeot, pela ausência de capotamento e pela trajectória das viaturas após o embate.
Também é visível uma maior deformação na frente lateral esquerda da viatura BMW (como se pode constatar das fotografias), o que indica que o impacto terá sido a esse nível.
Do depoimento de várias testemunhas que circulavam do local, das imagens tiradas no local após o acidente, participação policial e elementos meteorológicos, podemos concluir que a visibilidade era reduzida, entre os 30 e os 50 Km e que estávamos perante um neveiro de carácter contínuo, isto é, que se fazia sentir numa grande extensão da A6.
A testemunha F (que elaborou o parecer de fls. 675 a 679) confirmou o teor do mesmo e foi peremptório ao afirmar que as lesões sofridas pelas vítimas mortais são compatíveis com um impacto com grande violência, podendo produzir-se às velocidades indicadas no relatório da “iCollision”, mas também podem ser produzidas por um impacto a uma velocidade mais reduzida, por exemplo a 80 Km/H ou até inferior. Neste particular, referiu que não há ainda uniformidade de critérios quanto às “Delta V”, variando em consequência da velocidade do outro veículo, da posição de intrusão, das massas das viaturas envolvidas. Referiu, ainda que os corpos tinham várias lesões fatais, sendo a mais importante a fractura da C1/C2, a qual pode acontecer a um impacto inferior a 80 Km/H.
Esta testemunha também referiu que neste caso, em concreto, existem dois outros factores de agravamento do risco de letalidade, que são a idade das vítimas (escalões etários mais elevados têm pior prognóstico) e a circunstância de circularem em veículo mais leve.
Também a colisão lateral está associada a um pior prognóstico (maior probabilidade de lesão cervical alta, e maior probabilidade de lesões múltiplas fatais crânio-encefálicas, torácicas e abdominais).
A manobra da condutora do Peugeot, ao mudar de via de trânsito, terá sido iniciada instantes antes do embate, pois caso contrário o veículo já estaria posicionado devidamente na via e o embate, a ocorrer, seria traseiro, que não foi o caso.
No entender do Tribunal, foi esta manobra da condutora do Peugeot que determinou a ocorrência do acidente, pois invadiu a via de trânsito mais à direita da A6 sem se ter certificado de que o poderia fazer em segurança e quando circulava na via o carro do arguido.
É difícil perceber, agora, quais as causas que levaram a condutora do Peugeot a empreender essa manobra nas condições em que o fez.
Também não resulta claro o motivo pelo qual circulava o Peugeot na via da esquerda quando, quer pela sua intenção de sair no acesso a Borba/Vila Viçosa, quer pelas condições atmosféricas, deveria conduzir na via da direita.
Poderá ter existido uma distracção da condutora, agravada pelas condições atmosféricas, ou poderá a mesma ter sido acometida por qualquer doença súbita, nomeadamente do foro neurológico, que tenha afectado a sua capacidade de percepção.
Poderá apenas ter ocorrido que quando olhou para o espelho retrovisor, pelas condições atmosféricas, ou ângulo de visão, não tenha percepcionado o veículo conduzido pelo arguido.
Poderia, também circular em velocidade excessiva (o que se indicia pelo tempo do percurso do Areeiro, em Lisboa, até ao local do acidente) só se apercebendo de que ultrapassara a saída já após a mesma, reduzindo a velocidade e iniciando a manobra repentinamente, sem atentar no trânsito que seguia na via da direita.
Estamos já no campo das hipóteses, mas o certo é que o embate apenas ocorre pela invasão da via de trânsito onde seguia o arguido por parte do veículo conduzido pela mãe da assistente.
A não ter ocorrido tal manobra, não ocorreria o embate.
A assistente coloca o assento tónico na violação, por parte do arguido, dos deveres previstos nos arts. 18.º, 19.º e 24.º do CE.
Refere a primeira destas normas que o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste.
Este preceito não tem aqui aplicação directa pois que os veículos não circulavam na mesma via, desconhecendo-se qual a distância que o arguido guardava do veículo que o precedia na via da direita e qual seja esta viatura.
O veículo Peugeot apenas surge na via no instante que antecede o acidente, pelo que não podemos considerar que existiu violação da norma.
Apenas poderiam estar em causa os arts. 19.º e 24.º do CE. O primeiro considera a visibilidade reduzida ou insuficiente sempre que o condutor não possa avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros.
Já o art. 24.º do CE determina que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Mesmo que o arguido não tenha adequado a sua velocidade às condições atmosféricas existentes no local, não terá sido esse o factor que deu causa ao acidente e às consequências do mesmo, pois que a manobra do Peugeot colocou este veículo na trajectória do BMW a instantes do embate, sem qualquer distância que permitisse a realização de manobras de evasão ou a imobilização da viatura, como se refere no relatório de fls. 488 a 515.
Por este motivo, considera o Tribunal que os elementos dos autos não indiciam que a velocidade do BMW tenha determinado o acidente.
É que, como referimos, não é qualquer violação de dever de cuidado que pode levar à imputação do resultado ao infractor. Tal violação terá de ser causal ao acidente.
Terá também o obstáculo que ser expectável, sendo que não existem elementos dos autos que levem a concluir que o arguido poderia ter antecipado a manobra do Peugeot (que circulava noutra via) e, dessa forma, lhe fosse exigível um diferente comportamento.
De nenhum dado objectivo do processo podemos retirar a ilação de que o arguido naquelas condições deveria ter previsto que a vítima iria alterar a trajectória da viatura, como fez, invadindo a via da direita.
E a conduta da vítima, ao conduzir na faixa da esquerda em condições atmosféricas adversas e efectuando manobra para mudar de via de trânsito sem se assegurar de que o podia fazer em segurança viola regras de circulação rodoviária, nomeadamente as mencionadas nas normas acima referidas.
De facto, o art. 35º do CE refere que o condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e para que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito, o que no caso concreto não ocorreu.
Por outro lado, o art. 73º do CE que regula o trânsito nas auto-estradas determina, no seu n.º 3, que o condutor que pretender sair de uma auto-estrada deve ocupar com a necessária antecedência a via de trânsito mais à direita e, se existir via de abrandamento, entrar nela logo que possível.
Pretendendo a condutora do (…) sair no nó que dá acesso a Borba/Vila Viçosa, a mesma não tomou com a devida antecedência a via de trânsito mais à direita, vindo a fazê-lo já depois de ter passado a saída.
Também o art. 13.º do CE determina que o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes. Apenas quando necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direcção.
Também tais regras rodoviárias, não foram observadas pela condutora do (…), que circulava na faixa mais à esquerda, quando o deveria fazer pela via da direita atendendo a que pretendia sair no nó a que tinha acesso por esta via, as condições atmosféricas eram verdadeiramente adversas e não há notícia que se encontrasse a efectuar ultrapassagem.
Por último, por estas razões infringiu também o determinado no art. 14º do CE que estatui que, existindo pluralidade de vias de trânsito, este deve fazer-se pela via de trânsito mais à direita, podendo, no entanto, utilizar-se outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou mudar de direcção.
Perante este quadro, temos de concluir que a operatividade do princípio da confiança não pode ser afastada na situação concreta, nada havendo no processo que indique de que forma o arguido deveria ter actuado prevendo a infracção da condutora do Peugeot, não lhe sendo imputável o evento letal a título de culpa.
É certo que o arguido não logrou evitar o já descrito embate, contudo, actuou de acordo com aquilo que se esperaria de um condutor normal, colocado nas mesmas condições.
Assim, e pese embora o facto de a morte das vítimas se ter ficado a dever ao embate da viatura conduzida pelo arguido na viatura onde as mesmas seguiam, olhando para a matéria de facto indiciariamente provada (e não provada) e que explicitaremos de seguida, nada nos permite concluir no sentido de ter o arguido violado qualquer regra de condução estradal, nomeadamente o dever de circular a uma velocidade adequada para o local, não ter sido suficientemente diligente ou de ter agido com imperícia e que assim tenha provocado o resultado.
Daqui decorre não só a falta um de um dos elementos objectivos deste tipo do crime imputado ao arguido, a violação de um dever de cuidado, como também do elemento subjectivo do tipo, por não ser possível inferir que ao arguido deveria ter sido exigido outro comportamento, que não aquele que efectuou no dia em questão.
Como refere o Acórdão do T.R.G. acima referido, muito embora do acidente tenha resultado “uma infeliz vítima, não nos podemos deixar impressionar com esse facto, para culpar o arguido por crime de homicídio negligente, pois que não se descortina qual foi a sua conduta negligente, que dever de cuidado violou, que comportamento diferente dele assumiria um bom pai de família, ou o tal “homem médio”.
“O dever de previsibilidade do condutor de veículo não pode ir além do normal, não se lhe exigindo, para além do cumprimento das regras de trânsito, a tomada de especiais cautelas desde que o espaço visível à sua frente esteja livre de qualquer obstáculo – não é, designadamente, obrigado a prever a conduta contravencional, negligente ou inconsiderada dos demais utentes da via pública” (Ac. Rel. do Porto, de 14/7/2008, in www.dgsi.pt).
*
Posto isto, considera o Tribunal que se encontra indiciada apenas a seguinte factualidade referida no despacho de arquivamento e no requerimento de abertura de instrução:
1 – No dia 8/12/2011, pelas 10H15, na Auto-Estrada A6, ao Km 117,162, no sentido O/E, ocorreu uma colisão fronto lateral do veículo ligeiro de passageiros de matrícula 05-(…), no veículo ligeiro de passageiros de matrícula 62-(…).
2 – B conduzia o veículo de matrícula 62-(…).
3 – Como passageiro deste veículo seguia, no lugar ao lado do condutor, L.
4 – O veículo de matrícula 05-(…) era conduzido pelo arguido, A.
5 – Respectivamente, no lugar ao lado do condutor e no banco traseiro atrás do condutor desta viatura, seguiam M e N.
6 – Como consequência do embate, B sofreu as lesões melhor discriminadas no relatório da autópsia de fls. 185 a 192 e 521 a 525 (que aqui se dão por reproduzidas) nomeadamente paragem cárdio-respiratória consequente a secção medular completa da C1-C2 que foram causa da sua morte
7 – Como consequência do embate, L sofreu as lesões melhor discriminadas no relatório da autópsia de fls. 178 a 184 (que aqui se dão por reproduzidas), nomeadamente paragem cárdio-respiratória consequente a secção medular completa da C1-C2 que foram causa da sua morte.
8 – Como consequência do embate, o arguido e os seus filhos, M e N, sofreram as lesões descritas a fls. 149 a 162, 786 a 811, 818 a 820 e 824 e respectivos suportes técnicos.
9 – B apresentava no dia e hora dos factos uma TAS de 0.00 g/l.
10 – O arguido apresentava, no dia e hora dos factos, uma TAS de 0.00 g/l.
11 – As análises sanguíneas a ambos os condutores apresentaram resultados negativos para substâncias estupefacientes, psicotrópicas e de efeito análogo.
12 - B e L saíram de Lisboa (zona do Areeiro) na manhã do dia referido em 1, depois das 08H46, em direcção a Vila Viçosa (cfr. talão de abastecimento de combustível de fls. 379 e esclarecimento de fls. 407).
13 – O acidente referido em 1 ocorreu cerca de 200 metros após a saída do nó que dá acesso às localidades de Borba/Vila Viçosa.
14 – No local, dia e hora dos factos, fazia-se sentir um nevoeiro intenso, com visibilidade entre os 30 k/h a 50 k/h.
15 – A viatura de matrícula 62-(…), onde seguiam as vítimas mortais, é de cor cinzenta.
16 – O embate ocorreu na via da direita da faixa de rodagem da A6 sentido O/E, por onde circulava o arguido.
17 – Momentos antes do acidente, a viatura de matrícula 62-(…) circulava pela via esquerda da faixa de rodagem da A6 sentido O/E, tendo iniciado manobra de mudança de direcção para a faixa da direita.
Não se mostra suficientemente indiciado que:
- O arguido circulava a uma velocidade compreendida entre os 124 km/h e os 136 k/h quando embateu no veículo de marca Peugeot.
- O arguido agiu de forma livre.
- Conduzia o veículo matrícula (…) sem adaptar a sua velocidade às condições climatéricas registadas à hora e local onde ocorreu a colisão e não aumentando a distância de segurança para o veículo que o precedia, o que não lhe permitiu fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e determinou o embate.
- A velocidade a que seguia o veículo BMW foi determinante na gravidade das lesões mencionadas em 6 e 7.
IV – DECISÃO:
Pelo exposto e nos termos do disposto no preceituado no artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal decido NÃO PRONUNCIAR o arguido A, pela prática de dois crimes de homicídio por negligência previstos e punidos pelo artigo 137.º, n.º 2 do Código Penal.»
***
Cumpre apreciar
B.2 –O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação. Em função disso as questões a abordar no recurso reconduzem-se a duas: a existência de uma nulidade por violação do disposto na al. d) do n. 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal e a existência de indícios suficientes que justifiquem a pronúncia do arguido pela prática de dois crimes de homicídio negligente.
A apreciação a fazer nestes autos relativamente à invocada nulidade acaba por implicar uma variedade de questões que, não obstante não referidas directamente nas conclusões, implicam um conhecimento mais alargado e a abordagem de matérias que apenas estão sugeridas ou implicitamente postas no recurso.
Desde logo a natureza das perícias e os reflexos disso nos presentes autos. Depois a delimitação clara da natureza da prova real de que dispomos e de um juízo de prognose sobre aquela que poderemos vir a dispor nos autos.
***
B.3.1 – Quanto à natureza das perícias já afirmámos que o legislador português consagrou “ … um modelo de perícia preferencialmente pública, regra que apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência - artigos 152.º, 153.º 154.º, nº 1 e 160º-A do Código de Processo Penal. Consagrou-se, portanto, um regime misto com prevalência de intervenção de organismos públicos, com a qualidade pericial a assentar numa certificação pública, sem exclusão da possibilidade hipotética de apresentação de perícias contraditórias quando não existam organismos públicos reconhecidos para a realização da perícia”. [3]
De qualquer forma, a preferência por um regime de perícias públicas ou privadas é uma opção do legislador nacional, como aliás reconhece o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no seu acórdão Eugénia Lazăr v. Roménia, (“a opção de definir a perícia médico-legal como essencialmente pública ou privada é matéria do ordenamento interno e não cabe ao TEDH intervir no debate”), desde que o regime interno da perícia se rodeie das garantias suficientes para preservar a sua credibilidade, eficácia e devido cumprimento do princípio da igualdade de armas. [4]
Aqui convém recordar que o para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem uma perícia deve cumprir uma tríplice perspectiva: ver assegurada a imparcialidade do(s) perito(s); realizar-se em prazo razoável; sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório.
E a exigência de cumprimento do princípio da igualdade de armas e do contraditório, passa pela possibilidade de ter alguma intervenção não na realização da perícia, sim de colaboração na mesma. É assim que os casos Cottin v. Bélgica (02-06-1995, § 33) e Mantovanelli v. França (17-02-1997, § 36) afirmam que a simples possibilidade de discutir a perícia em audiência pode não ser suficiente se a parte não teve oportunidade de oferecer os seus “comentários” no momento da realização da mesma.
E para este fim – “oferecer os seus comentários” - a possibilidade de nomear consultores técnicos e a sua activa participação no apresentar de dúvidas e sugestões de execução parece-nos ser suficiente para o fim indicado. [5]
Naturalmente que essa participação estará dependente da fase processual e do estatuto dos intervenientes no processo, já que a natureza inquisitória do inquérito penal, a existência de periculum in mora e a inexistência de arguidos e assistentes no momento em que se constata a necessidade de realização da perícia deverão ser tratadas de forma diversa em contraposição com uma perícia a realizar em instrução ou julgamento.
Naturalmente que, em instrução – enquanto fase que se caracteriza pelo contraditório – estas questões ganham (ou podem ganhar, o que ocorre in casu) outra coloração, face à inexistência de inconveniente inquisitório, de periculum in mora e a circunstância de já estarem constituídos arguido e assistente.
Outras dificuldades surgiriam, no entanto. Desde logo a escolha de entidade competente para a realização da perícia e o longo tempo decorrido desde os factos, no caso atenuado com a fixação de dados no exame realizado pela GNR e junção de fotos do sinistro.
Porque aqui devemos ter presente que não existe qualquer entidade pública com competência exclusiva para realizar perícias nesta área, sendo certo que o IMT a não tem, sem negar que seria nas Universidades que se encontraria, seguramente, entidade de competência reconhecida e com possibilidade de ser aceite por todos os “intervenientes” nos autos.
Mas inultrapassável seria que a perícia teria que ser ordenada pelo tribunal a quem incumbiria, igualmente, o controlo da idoneidade científica e ética dessa entidade, de forma a assegurar a consequente imparcialidade dos peritos e credibilidade da perícia.
A perícia supõe despacho da autoridade judiciária na nomeação dos peritos - Artigo 154.º, nº 1 do Código de Processo Penal, [6] pelo que a simples junção de um parecer, mesmo que em área técnica ou científica, não é a junção de uma perícia judicial, por muito especializados que sejam os seus autores e científico o seu conteúdo.
E a razão é simples. Um processo judicial é uma forma que se pretende equilibrada (também expedita q.b.) de chegar a uma decisão pelo que a junção de um parecer que se convertesse em perícia implicaria o dar oportunidade aos outros intervenientes (aqui Ministério Público e arguido) de juntar igual meio de prova, o que transformaria o juízo técnico, artístico ou científico numa mera aritmética de opiniões [7] ou um quebra cabeças para o juiz, que veria o aforismo iudex est peritus peritorum levado à letra demasiado frequentemente, com a consequente anulação prática das várias perícias, sobressaindo então a impossibilidade de o juiz abarcar todos os conhecimentos científicos passíveis de serem necessários em qualquer processo.
Resta concluir então, no particular ponto em apreciação, o da natureza da perícia, que esta no ordenamento processual penal português se caracteriza por ser tendencialmente pública e exigir dois pressupostos para a sua realização: um o aspecto formal – a nomeação por entidade judiciária – outro material, a necessidade de especiais conhecimentos para percepcionar e apreciar factos.
Os peritos são ajuramentados – artigos 91º, nº 2 a 6 e 156º do C.P.P., [8] daqui resultando que não é perito quem não é nomeado como tal pela autoridade judiciária ou não pertence ao quadro de peritos de um estabelecimento público com atribuições periciais. Isto é, não é perito judicial quem quer, quem é arrolado como testemunha, quem subscreveu “parecer”, quem é perito de qualquer outra entidade ou profissional de determinada área e só por o ser.
*
B.3.2 – Após a breve exposição destes princípios base resultantes do ordenamento processual penal português e convencional europeu resta saber se os mesmos foram cumpridos nos autos e qual a configuração probatória a enfrentar.
Sendo a perícia um “meio de prova” - artigos 151º a 163º C.P.P. – deve realizar-se quando a percepção (compreensão) e a apreciação (valoração) de factos exigirem especiais conhecimentos – 151º C.P.P. (artigo 388º do C.C.).
Mas a perícia pode ser essencial no apuramento de factos, como se pretende no caso concreto, em que o labor da perícia também é apurar factos que não é possível obter de outra forma, como este recurso bem demonstra, pois que assenta na perícia a esperança de obtenção de dados factuais que permitam a pronúncia. Mas aqui – e porque os factos do processo estão fora da regra resultante do artigo 163º, n. 1 do C.P.P. – a perícia não pode ter o mesmo valor probatório e deve ser livremente apreciada.
Assente que a perícia se caracteriza por um aspecto formal – a nomeação por entidade judiciária – e por um aspecto material, a necessidade de especiais conhecimentos para percepcionar e apreciar factos, resta constatar no caso concreto pela verificação do pressuposto material, por demasiado evidente que o percepcionar e apreciar factos impõe especiais conhecimentos técnicos e científicos.
É indubitável, igualmente, que o parecer ou estudo junto pela assistente não tem a natureza de perícia processual penal na medida em que não cumprido o pressuposto formal.
E este pressuposto formal é absolutamente essencial – não é mera questão de formalismo desajustado – pois que ali se concretizam os deveres do juiz como “gatekeeper”, como guardião da imparcialidade do ou dos peritos e da sua credibilidade científica.
Apesar de isto apenas estar pressuposto no ordenamento português é aceite que os contributos da jurisprudência do US Supreme Court são de importância determinante, pelo que já revelam de ponderação das questões e que vêm a concretizar-se em Lei na Rule 702 das Federal Rule of Evidence de 1975 e 2000.
Este labor inicia-se com o caso Frye v. US (293 F.1013, DC Circuit Court of Appeals, 1923) que tratando de um antecedente do polígrafo como prova definiu a cláusula da aceitação geral do conhecimento científico: o “scientific expert testimony” só é admissível se for geralmente aceite como fiável pela relevante comunidade científica – “must be sufficiently established to have gained general acceptance in the particular field in which it belongs”.
Os casos Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, inc. (509 u.s. 579, 1993) [9] e General Electric Co. et al . v. Joiner (000 u.s. 96-188, 1997) vêm a densificar a jurisprudência Freye, enquanto o caso Kumho Tire Co., ltd., et al. v. Carmichael et al, (000 u.s. 97-1709, 1999) alarga a jurisprudência ao conhecimento não científico (técnico ou outro especializado, no caso pneus).
Após “drafts” do US Supreme Court em 1969, 1971 e 1972, redigidos por iniciativa do Chief Justice Earl Warren, vêm a ser consagradas pelo Congresso as “Federal Rules of Evidence” de 1975, [10] designadamente a Rule 702. [11]
Daquela jurisprudência podemos retirar as seguintes regras de cautela ética e de controlo da cientificidade da perícia:
- o juiz de julgamento só deve admitir o parecer científico se este for relevante e fiável;
- o juiz de julgamento é o garante de que a prova apresentada provém, realmente, de conhecimento científico (em ambas, o Juiz como “gatekeeper”);
- o conhecimento científico é produto de “metodologia científica” pela utilização de método científico;
- a metodologia científica é o processo de formulação de hipóteses e de posteriores experiências que provam, ou não, a hipótese;
- deve ser sujeita a testes empíricos;
- deve ser conhecida a sua ratio de erro;
- deve ser sujeita a “peer review” (revisão paritária ou revisão pelos pares) e publicação.

Se é certo que estas regras foram formuladas para um sistema muito diverso de aceitação de perícias científicas contraditórias, não menos certo é que se aplicam na ideia essencial a qualquer forma ou sistema de apuramento factual. Mas delas agora só pretendemos retirar o cuidado que deve ser atribuído à nomeação de perito(s) e à aceitação de uma perícia científica que, no ordenamento processual penal português, assenta na escolha e nomeação de perito(s) pela autoridade judiciária.
E daqui resulta a razão de fundo que explica porque o estudo ou parecer junto pela assistente não pode ser aceite como perícia.
E aqui convém lembrar que os signatários do parecer não passaram o crivo de cientificidade que ao tribunal incumbe fazer respeitar de forma a resguardar a imparcialidade e a competência inerentes a uma peritagem, depois de se assegurar o devido contraditório, algo que deixou de ser possível após a emissão do parecer.
Isto é, é ao tribunal que incumbe determinar quem emite perícias e não à assistente impor critérios probatórios ao tribunal.
Assim, se os subscritores do parecer tinham a potencialidade de ser nomeados peritos nos autos – algo que não se nega – depois do parecer emitido em nome de uma empresa e pago o dito por uma das “partes”, a concretização do “expert shopping” retira essa virtualidade pessoal, que não a aceitabilidade automática das opiniões emitidas, que sempre teriam que passar o crivo da livre apreciação. [12]
A não ser assim a apresentação de “perícias” de forma descontrolada teria um efeito perverso, com o primeiro interveniente a apresentar uma a ver a sua “perícia” consagrada como verdade quase inatacável (principalmente face a uma jurisprudência que vê o artigo 163º como excepção à livre apreciação) que poderia impor ao tribunal, sem respeito pelo contraditório que não apenas no seu aspecto formal, por impossibilidade da “contra-parte” apresentar o resultado de um eficaz “expert shopping”.
*
B.3.3 – Mas, junto o dito parecer, quais as consequências em termos probatórios?
Haverá que afirmar, na sequência da previsão dos artigos 125º e 127º do Código de Processo Penal, que a assistente era livre de juntar o parecer (liberdade e legalidade da prova) e o tribunal o deveria apreciar livremente (princípio da livre apreciação da prova). Em ambos os casos se mostra cumprida a lei na concreta decisão.
Seguramente o que não é aplicável ao parecer junto é o disposto no artigo 163º, n. 1 do Código de Processo Penal, precisamente porque não é uma perícia.
Estará aí, seguramente, a razão para que a recorrente se insurja contra o facto de o referido parecer ter visto “rebaixado os termos de apreciação probatória”, mas sem razão pois que não sendo perícia pelas razões supra expostas nunca poderia ser aceite “sem discussão”, pois que nos parece ser esse o entendimento da recorrente, a pretensão de retirar ao tribunal a legitimidade e a capacidade de livremente apreciar esse parecer.
Assim, a emissão e junção de parecer logo no início dos autos (fls. 212-301 do I volume, aos 09-10-2012, antes de lavrado despacho de arquivamento em 17-12-2012 a fls. 529-539) vem a determinar de forma válida aquilo que se pode obter de um parecer com características de cientificidade – ninguém nega essa potencial característica ao parecer que foi junto – e a determinar, igualmente, os parâmetros de apreciação quanto à necessidade de obtenção de perícia com os mesmos pressupostos de facto (danos nas viaturas, local provável do embate, local de imobilização das mesmas, tipo de lesões causadas).
Ou seja, ficamos nos autos com um parecer que substancialmente poderia ser uma perícia e que apenas o não é por falta de requisito formal e ausência de contraditório antes da emissão do parecer. E esse parecer dá-nos a antevisão do que seria uma perícia e do que com esta se poderia obter.
E ninguém nega a possibilidade de a Física e a Matemática darem contributo válido à matéria em apreciação como, aliás, já afirmámos em acórdão desta Relação de 03-06-2008 (proc. 161/08-1):«VI - Um veículo é um corpo sólido que está sujeito às leis da física e é passível de mensuração a sua capacidade para se imobilizar em função da sua massa e da velocidade de que vai animado. Assim, não sendo uma verdade absoluta, não são de desprezar e devem mesmo ser aceites como elementos adjuvantes de muita relevância, os conhecimentos que nos são transmitidos através da física e da matemática para apurar das velocidades de imobilização dos corpos sólidos que são os veículos automóveis».
Sendo certo que o caso dos autos é muito mais complexo que a análise de uma simples distância de travagem, não deixa de ser verdade o que ali também afirmámos, a existência de outros elementos que se não limitam a uma natureza de fenómenos objectivos quantificáveis e mensuráveis, como sejam a capacidade de reacção dos condutores e a qualidade dessas mesmas reacções face ao perigo que enfrentaram.
Portanto, o parecer deve ser livremente apreciado e não imposto ao tribunal como uma verdade inatacável judicialmente, ânsia que se percebe (pessoalmente) mas se não justifica (processualmente).
Mas, além disto, convém precisar que a habitual leitura do artigo 163º do Código de Processo Penal como norma de imposição de taxatividade probatória ou de afastamento do princípio da livre apreciação judicial nos parece uma leitura discutível.
Por isso que, mesmo que tal parecer fosse uma perícia, sempre estaria sujeito a um olhar crítico.
Já afirmámos que o artigo 163º do Código de Processo Penal é compatível com a livre apreciação probatória, apenas se erigindo como uma norma que qualifica essa apreciação probatória na medida em que permite ao juiz divergir com argumentos qualificados na área técnica, científica ou artística em causa.
Apenas está vedada ao juiz uma livre apreciação com apelo a “regras de experiência comum”, à sua convicção pessoal ou a qualquer outro critério que não o uso de conhecimentos e argumentos inerentes à área artística, técnica ou científica da perícia. O que qualifica a perícia, naturalmente, e obriga à sua qualificada ponderação, sem impedir que o poder judicial a possa afastar quando materialmente isso se imponha.
Nada diverso do afirmado pelo Prof. Germano Marques da Silva (Curso, vol. II, pág. 178): «a presunção que o art. 163.º, n.º 1, consagra não é uma verdadeira presunção, … o que a lei verdadeiramente dispõe é que salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial».
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B.3.4 – Face a isto justifica-se ainda a procura de opinião pericial?
Saber quando ordenar a perícia é questão já tratada supra: sempre que seja necessário percepcionar ou apreciar (no caso, obter e apreciar) factos relevantes através de especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos - 151º do C.P.P..
Há casos claros de exigência legal (literal), a implicar necessariamente a realização de perícia. Estão neste caso, pelo menos, os previstos nos artigos 166º, nº 2 (documento cifrado), o artigo 351º, nº 1 (imputabilidade) do Código de Processo Penal e o artigo 18º da Lei 45/2004 (autópsia médico-legal).
Mas também é indubitável que a inexistência de perícia pode implicar vício do processado, a incluir na parte final da alínea d) do n. 2 do artigo 120º do CPP. «insuficiência … da instrução, por … omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade».
Estes serão casos em que a realização de perícia não é “legalmente obrigatória”, no sentido de literal e específica exigência legal de realização.
Ao invés, pode implicar a realização de perícia qualquer caso em que a essencialidade probatória da perícia se revele, e aqui neste sentido “a prova pericial não é facultativa, mas obrigatória como resulta do artigo 151° do Código Penal” no dizer do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-02-2008 (rel. Cruz Bucho). Ou seja, será o critério da necessidade e da especial natureza científica (artística ou técnica) dos conhecimentos implicados a determinar a exigibilidade da realização de perícia.
Esse critério tem que assentar naquilo que os autos já dispõem e naquilo que se espera vir a obter com a perícia para responder às questões em dúvida. O que supõe uma análise quanto aos indícios existentes e aos que podem vir a ser colhidos com a eventual perícia.
*
B.4.1 – Os elementos de prova real constantes dos autos e que relevam em primeira linha para responder à questão posta – para além da prova documental quanto a pormenores – são os seguintes:
- Relatórios de autópsias médico-legais e exames toxicológicos de fls. I/60-78, corrigidos quanto a pormenores formais a fls. II/414-426;
- Relatório do acidente da Brisa – fls. I/143-147;
- Relatórios do HDE de urgência de condutor e ocupantes do 05-(…) – fls. I/149 e ss, I/155 e ss. e I/158 e ss.;
- Parecer da icollision – fls. I/212-301;
- Autos de fls. II/307-317, (que incluem autos de exame ao local e de danos nas viaturas);
- Fotos de fls. II/466-470;
- Exames e croquis realizados pela GNR – II/488-502;
A prova testemunhal ganha relevo na afirmação do intenso nevoeiro (depoimento de D a fls. II/457) e da intenção da condutora do veículo de matrícula 62-(…) se dirigir a Vila Viçosa através da saída da AE 6 entre Estremoz e Borba (depoimento de E a fls. II/400).
Não se atende às declarações do arguido por demasiado arriscadas na sua mais que potencial parcialidade.
Cumpre, então, começar por esclarecer que não pretende este tribunal encontrar uma versão para o acidente, pois que essa não é nossa tarefa, que se limita a saber se a prova carreada para os autos permite ou não concluir pela existência de indícios suficientes de que o arguido terá cometido dois crimes de homicídio por negligência, o que supõe, naturalmente, a afirmação de que o acidente terá ocorrido segundo a versão da assistente, já que o requerimento desta delimita a vinculação temática do tribunal.
Neste labor convém ter presente, igualmente, que não se vê como obter novos e mais esclarecedores meios de prova, para além da potencial perícia ou confissão do arguido. Desta última se não cuida, não é expectável que ocorra nem o despacho de pronúncia visa dar oportunidade para tal.
Todos os factos passíveis de prova pelos meios indicados foram dados como indiciados pelo tribunal recorrido, excepto as ilações (algumas das ilações) do relatório da icollision. E o cerne da questão parece estar aqui, o que permite em termos de ilações o relatório da icollision?
Mas apenas aparentemente, pois que a nosso ver o cerne da questão está em concluir que, mesmo aceitando quase todas as ilações físicas, objectivas, deste relatório nos deparamos com um impasse que não permite e extracção de conclusões seguras em termos de fenómenos físicos, factos, muito menos conclusões jurídicas seguras.
Ponto essencial é fazer corresponder a provável dinâmica do acidente, resíduos indicativos, posição final dos veículos e trajecto “possível” dos dois veículos a um ponto e “modo” de origem do sinistro, isto é, apurar o local do embate inicial e posição relativa dos veículos.
E não temos dúvida em afirmar aceitar algumas das conclusões do parecer da icollision porque razoáveis, tal como expresso nas conclusões 1 a 6 e 9 a 11 (a fls. I/273-274). Ou seja, ambos os veículos obliquavam em sentido convergente e a colisão ocorreu tal como descrito na conclusão 4 e esquemas de fls. I/260-263, designadamente figuras 61 a 63.
Também não temos dúvida em afirmar a inaceitabilidade das conclusões 7, 8, 12 a 14, pois que nada o permite afirmar e o relatório o não fundamenta devidamente.
Aliás, uma pecha do relatório é a ausência de fundamentação científica, pois que se acoberta na simulação computacional, ficando os seus leitores a desconhecer a razão que permite extrair tais conclusões físicas. A simulação computacional também necessita de demonstração científica, já que esse seria um modo expedito de passar por ciência o que pode não ser.
Por outro lado, a simulação computacional será sempre uma hipótese de base matemática que não leva em conta comportamentos e capacidades pessoais e forma pessoal de reagir a perigos iminentes. [13]
Daí que as conclusões 7ª, 8ª, 12ª a 14ª não sejam aceitáveis, com a agravante de que as conclusões 12 a 14 já incluírem apreciações não exclusivamente da área da física, sim do direito, como se confirma pelo uso das expressões “veículo precedente” (se os veículos embateram da forma descrita nenhum é precedente) e “velocidade excessiva”.
Mas o essencial é que, mesmo admitindo a velocidade indicada no relatório do veículo de matrícula 05-(…) (BMW), a clara demonstração do ponto de embate e da posição relativa dos veículos no momento do embate não permite concluir pela afirmação de um nexo causal na causação do acidente e pela existência de uma ilicitude e um juízo de culpa.
Porque obliquou um veículo para a esquerda e porque obliquou o outro para a direita? Ambos obliquaram de motu proprio ou reactivamente? E ambos ou só um e qual? E, sendo ambos, em que medida? Um deles estava imobilizado?
Como se constata, estas dúvidas colocam-se mesmo para a hipótese mais prejudicial ao arguido, o da aceitação das conclusões objectivamente aceitáveis do parecer da icollision.
E, essencial, nenhuma perícia pode apurar os factos que estão expressos nas dúvidas referidas imediatamente supra.
Na falta desses factos é possível um juízo de indiciação suficiente?
*
B.4.1 – Dispõe o artigo 308º do Código de Processo Penal que se «até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos (…)»
Ou seja, no caso, interessa-nos formular um juízo indiciário suficiente.
Questão que se coloca, então, é saber se no direito processual penal português esse juízo indiciário deve ter o mesmo nível de exigência do juízo de certeza judicial típico da sentença.
A doutrina tem revelado uma certa constância na aceitação da necessidade de emitir um juízo de probabilidade idêntico ao juízo de convicção probatória, de verdade judicial, da sentença (v. g. Castanheira Neves, “Sumários de processo criminal” – 1967-1968 – pag. 39 e Fig. Dias, “Direito Processual Penal” – 1974, pag 133), tanto como a jurisprudência se tem inclinado para uma tese de maioria probabilística.
São convincentes os argumentos lógicos e sistemáticos expostos por Noronha e Silveira (in, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, 2004, pags. 155-172), aos quais aderimos no sentido de uma maior exigência de convicção.
Principalmente o argumento de que – com a actual estrutura do processo penal português – o acusador (a assistente, no caso) já dispõe, salvos casos muito excepcionais, de toda a prova que é possível recolher favorável à acusação e que, a partir daí, a tendência natural será a do enfraquecimento da sua posição, via contraditório e à acção da defesa.
Assim, essa maior exigência de convicção não se basta com um juízo de maior probabilidade (de condenação do que de absolvição), com um juízo matemático de mais de cinquenta por cento de hipóteses de condenação. [14]
O juízo exigível para se considerar a indiciação suficiente deve afirmar-se numa fórmula de forte, alta probabilidade de condenação, de forte convicção de condenação do arguido. [15]
Não sendo assim e se optássemos por uma mera maioria probabilística como fonte do juízo de indiciação, suscitar-se-ia, então, a questão de saber se não operaria um juízo fundado de dúvida face à elevada probabilidade (quase cinquenta por cento, para utilizar um meramente demonstrativo raciocínio matemático) de os factos não terem sido praticados pelo arguido e de que forma esse juízo de mera maioria probabilística se articularia com o princípio da presunção de inocência.
Na prática, o juízo de certeza judicial vigente no ordenamento jurídico processual penal português em nada difere do beyond reasonable doubt para o juízo de certeza judicial da sentença, e muito próximo deste anda o juízo de indiciação suficiente.
Ora, no caso concreto os elementos constantes dos autos permitem esse juízo de alta probabilidade de condenação do arguido?
A resposta é claramente negativa. Diríamos mais: sequer para um juízo de mera maioria probabilística. Por isso que se conclua que o recurso deve improceder.
*
***
C - Dispositivo:
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o despacho recorrido.
Notifique.
Custas pela assistente com 2 (duas) Ucs. de taxa de justiça.

Évora, 13 de Maio de 2014
(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar

_________________________________________________
[1] - (…).
[2] - (…).
[3] - Isto foi o que afirmámos num artigo da autoria do relator, «A “Perícia” técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial» publicado na Revista Julgar, n. 15, Setembro-Dezembro de 2012, pag. 28 (27-52).
[4] - Nos §§ 76 a 85 (apesar de o caso se referir a uma perícia médico-legal, a afirmação é aplicável em processo penal a qualquer tipo de perícia).
[5] - Algo que parece não agradar a instituições públicas, designadamente o INML, pois que a Lei n. 45/2004, de de 19 de Agosto é clara na afirmação de que às perícias efectuadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes médico-legais não são aplicáveis “as disposições contidas nos artigos 154º e 155º do Código de Processo Penal”, ou seja, afasta-se a possibilidade de nomeação de consultores técnicos.
[6] - No caso do Ministério Público os artigos 267º e 270º, nº 2, b), 3 e 4, do JIC em inquérito o artigo 269º, nº 1, a), em instrução o artigo 290º, nº 1 e 292º, nº 1 e o Juiz de Julgamento o artigo 340º, nº 2, todos do Código de Processo Penal.
[7] - V. g. o caso interessante de duas perícias contraditórias e a inaceitabilidade de uma terceira para “desempate” in “Carlota Pizarro de Almeida, “Modelos de inimputabilidade – da teoria à prática”, Almedina, 2000, pags. 52-53.
[8] - Excepto no caso de serem funcionários públicos e intervirem no exercício de funções periciais - artigo 91º nº 6, al. a) do Código de Processo Penal.
[9] - Caso “Bendectin” com voto de vencido (parcial) do juiz CJ Rehnquist que alerta para o facto de os juízes se estarem a tornar “cientistas amadores”.
[10] - “If scientific, technical, or other specialized knowledge will assist the trier of fact to understand the evidence or determine a fact in issue, a witness qualified as an expert by knowledge, skilI, experience, training, or education, may testify thereto in the form of an opinion or otherwise.”
[11] - A Rule 702 das Federal Rules of Evidence vem a assumir a seguinte redacção, hoje vigente: «A witness who is qualified as an expert by knowledge, skill, experience, training, or education may testify in the form of an opinion or otherwise if: (a) the expert’s scientific, technical, or other specialized knowledge will help the trier of fact to understand the evidence or to determine a fact in issue; (b) the testimony is based on sufficient facts or data; (c) the testimony is the product of reliable principles and methods; and (d) the expert has reliably applied the principles and methods to the facts of the case».
[12] - Nosso estudo supra citado, pag. 30 a propósito do “expert shopping” como um dos inconvenientes das perícias adversariais.
[13] - Sem contar com o desconhecimento dos parâmetros científicos da programação do software, de onde se pode afirmar que a base científica das simulações computacionais sempre necessitaria de ser demonstrada e sujeita ao contraditório.
[14] - Já o afirmámos em acórdão desta Relação de 21-06-2011 (proc. nº 1.273/08.6PCSTB-A.E1) que «terá sido Lord Denning que na decisão da House of Lords Miller v. Minister of Pensions (1947 - 2 All ER 372) a formular de forma perfeita o “standard of proof”, o “padrão de prova”, o nível de prova suficiente para convencer o tribunal nas acções cíveis e criminais (V. g. The “Law of Evidence”, Prof. Ian Dennis, Thomson, Sweet & Maxwell, 2007, pags. 479 e segs.)». Assim, quanto às acções cíveis o nível de prova foi expresso da seguinte forma: «It must carry a reasonable degree of probability, not so high as is required in a criminal case. If the evidence is such that the tribunal can say “we think it more probable than not”, then the burden is discharged, but if the probabilities are equal, it is not». Este “padrão” ou nível de prova civil (mais provável do que não) é relevante na jurisprudência inglesa e para o processo criminal porquanto assente que é o nível exigido ao réu se lhe couber o “ónus da prova” (Regina v. Walters - 1969). Corresponderá a um nível de prova expresso na frase “preponderance of evidence”, ou “balance of probabilities”, o mais baixo nível de prova e que equivale ao norte-americano “Clear and convincing evidence”.
[15] - Mais exigente se apresenta o nível de prova em processo criminal, expresso por Lord Denning da seguinte forma: «It need not reach certainty but it must carry a high degree of probability. Proof beyond reasonable doubt does not mean proof beyond a shadow of doubt. The law would fail to protect the community if it permitted fanciful possibilities to deflect the course of justice. If the evidence is so strong against a man as to leave only a remote possibility in his favour which can be dismissed with the sentence “Of course it is possible but not in the least probable”, the case is proved beyond reasonable doubt; nothing short will suffice».
A origem desta máxima, que os tribunais ingleses afirmam não poder ser objecto de melhoramento ou explicações suplementares (v.g. “Evidence”, J.R. Spencer, in “European Criminal Procedures”, Cambridge Studies in International and Comparative Law, 2006, Coord. e Edição de Mireille Delmas-Marty e J.R. Spencer) apenas quer significar um mais rigoroso e mais alto nível de probabilidade do que o expresso na teoria do “balance of probabilities” e situa-se na busca dos tribunais ingleses – a partir dos séculos 16 e 17 - pela resposta à questão “como sabemos que as coisas são verdadeiras”, que parece ter obtido resposta nas considerações sobre níveis de probabilidade de John Locke nos “Ensaios sobre o Entendimento Humano” (1690) – V.g. “Evidence, Proof and Facts – A book of sources”, Peter Murphy, Oxford University Press, 2003, pag. 331.