Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5416/16.8T8STB-B.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CASO JULGADO
Data do Acordão: 04/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil, o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.
II. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da identidade de sujeitos, de pedido e da causa de pedir, prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.
III. A decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração de passivo restante proferida em processo de insolvência não constitui caso julgado no novo processo de insolvência em que o devedor formule novo pedido de exoneração, porquanto as circunstâncias que permitem extrair a conclusão quanto à admissibilidade do pedido formulado assentam nas causas que nortearam a situação de insolvência decretada em cada um dos processos e na conduta do requerente do pedido, tendo sempre por referência a concreta declaração de insolvência, no âmbito da qual o pedido é formulado.
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. A... apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante, por entender estarem verificados os requisitos previstos no artigo 237º do CIRE.
O Sr. Administrador de insolvência afirmou não se opor a este pedido, desde que cumpridas todas as condições previstas no artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e não se verificando nenhuma das circunstâncias do artigo 238º do mesmo código.
O credor Banco B... pronunciou-se pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, sustentando que a situação de insuficiência é a mesma que foi já apreciada em acção anterior, onde foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante então apresentado pela insolvente, por decisão transitada em julgado (cf. fls. 213 do processo principal a que se reporta o presente apenso).
Também o Cofre... se pronunciou, a fls. 375 e seguintes dos mesmos autos, pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo agora deduzido, por violação de caso julgado, sustentando que a insolvente não alega qualquer facto superveniente e nessa medida a questão foi já decidida, tendo transitado em julgado.
Por sua vez, o Banco D..., e o Banco E..., pronunciaram-se a fls. 389 e seguintes e 392 e seguintes, abstendo-se quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.
Os credores F…, G… e H…, em Assembleia de credores, realizada em 17/10/2016, declararam não se opor ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

2. Notificada para se pronunciar quanto ao eventual indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, por violação de caso julgado, respondeu a insolvente, concluindo inexistir fundamento para indeferir liminarmente este pedido, alegando que o fundamento de apresentação extemporânea à insolvência não se verifica.

3. Apreciando o pedido formulado, foi proferido o despacho de 14/11/2016 (que consta certificado a fls. 222 a 229, no qual se decidiu indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela devedora, por verificação da excepção dilatória do caso julgado.

4. Inconformada com este despacho interpôs a insolvente o presente recurso, sustentando a admissibilidade do pedido de exoneração do passivo restante, com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª O facto constante do ponto 13 da listagem dos factos dados como provados pela douta sentença de que se recorre deve considerar-se não provado.
2.ª Assim o determina a análise do Acórdão da Relação de Évora proferido no processo 947/10.6TBSTB-B.El (pág. 2 e 3), a relação de credores constante do requerimento inicial que deu origem ao presente processo Doc.26 e ainda da relação de créditos reconhecidos a que alude o artigo 129º do CIRE e que faz parte integrante do relatório apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência em 7/10/2016.
3.ª No novo processo - nos atuais autos - foram reconhecidos os créditos de I… e mulher, o crédito do Banco F…, um crédito do J…, e um crédito do L… .
4.ª Estes créditos apesar de serem anteriores à primeira declaração de insolvência - tal como resulta do Doc. 26 junto com o RI, que não foi posto em causa ou por qualquer forma impugnado - só agora foram reclamados e reconhecidos.
5.ª Deve considerar-se provado que os credores reconhecidos no processo 947/10.6TBSTB não correspondem integralmente aos credores reconhecidos pelo Sr. Administrador de insolvência no presente processo.
6.ª Assim o determina a análise dos documentos mencionados no artigo 2º tal como explicado nos parágrafos anteriores.
7.ª Por outro lado, resulta reconhecido na sentença de que se recorre que os montantes dos créditos reconhecidos são diferentes nos presentes autos por comparação com os créditos reconhecidos no processo 947/10.6 TBSTB.
8.ª Neste sentido veja-se a parte final do ponto 13 dos factos dados por provados na sentença de que se recorre, bem como os documentos mencionados no artigo 2º destas Conclusões.
9.ª Assim deve acrescentar-se à lista de factos provados o facto: “Os montantes dos créditos dos credores da insolvente que foram reclamados no presente processo são diferentes dos montantes dos créditos reclamados no processo 947/10.6TBSTB”.
10.ª Deve ser acrescentado à lista de factos dados por provado o seguinte facto: “a nova apresentação da requerente à insolvência foi determinada pela interposição de novas acções para cobrança de créditos vencidos e não pagos, promovidas por credores que não viram satisfeitos os créditos no anterior processo de insolvência resultando tais acções em penhoras do salário da insolvente que determinavam a incapacidade desta prover ao seu sustento e ao sustento do filho que com ele ainda reside”.
11.ª Considera-se que a prova deste facto resulta da conjugação do alegado no RI nos artigos 10º,12º,e 13º com a sentença que declara a insolvência com base nos fundamentos invocados.
12.ª Isto é, não tendo sido impugnados os factos alegados nos artigos 10º, 12º e 13º do RI e referindo-se no 5º parágrafo da segunda página da sentença que declara a insolvência que esta foi declarada com base nos fundamentos alegados, deve concluir-se que se considerou provado para este efeito que as causas que determinaram a situação de insolvência da requerente são as que referimos no artigo 10º destas conclusões.
13.ª A decisão de indeferimento liminar, salvo melhor opinião, não se apresenta devidamente sustentada na legislação aplicável pois não se verificam no caso concreto as circunstâncias previstas no artigo 238º do CIRE nem tão pouco aos requisitos de verificação da excepção do caso julgado previstos nos artigos 581º CPC.
14.ª Conforme resulta dos factos que entendemos por provados, as partes da acção 947/10.6TBSTB não são as mesmas que se encontram na presente acção, porquanto há credores reclamantes que reclamaram e viram reconhecidos os seus créditos na presente acção quando não tinham intervindo no primeiro processo e vice-versa.
15.ª Por outro lado, não há uma identidade das acções em análise no que toca as respectivas causas de pedir.
16.ª O pedido de exoneração do passivo restante apresentado no processo 947/10.6TBSTB tem a sua causa de pedir na declaração de insolvência ali proferida averbada a certidão do registo de nascimento da requerente em 03/03/2010.
17.ª Por oposição o facto jurídico que serve de base a exoneração do passivo restante representado no presente processo é a declaração de insolvência aqui proferida.
18.ª Por outro lado, a apresentação da requerente a nova insolvência foi determinada por factos novos alegados no requerimento inicial deste processo designadamente nos artigos 10º, 12º e 13º.
19.ª Tais factos não foram impugnados e foram aceites como fundamento para a declaração de insolvência proferida por sentença transitada em julgada nos presentes autos.
20.ª Consequentemente também não há identidade de causa de pedir no que respeita a declaração de insolvência proferida no processo 947/10.6TBSTB e a causa de pedir que sustentou a declaração de insolvência no presente processo.
21.ª Acresce que, o deferimento de exoneração do passivo restante representado na presente acção não iria contradizer a anterior decisão de indeferimento também porque o motivo que determinou tal decisão foi tão somente uma apresentação extemporânea a insolvência circunstância que não ocorreu nos presentes autos.
22.ª Os credores e/ou Administrador de insolvência não provaram ou alegaram a verificação das circunstâncias que legitimariam a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante taxativamente elencadas no artigo 238º do CIRE.
23.ª Salvo melhor entendimento, consideramos que a interpretação da Mma. Juiz do tribunal a quo não tem por isso sustentação na letra da Lei.
24.ª Pelo contrário no artigo 238º al. c) do CIRE, "a contrario sensu" admite a renovação do pedido de exoneração do passivo restante desde que o mesmo não tenha sido decretado nos 10 anos anteriores ao início ao processo de insolvência em que tenha sido apresentado.
25.ª Assim, tendo sido declarada a insolvência da requerente, não se verificando as circunstâncias que legitimariam a verificação da excepção do caso julgado, não se justifica limitar o acesso da insolvente a uma prerrogativa que a Lei deliberadamente quis atribuir aos devedores singulares por considerar que estes são merecedores de uma segunda oportunidade desde que tenham pautado a sua conduta por princípios de boa-fé e respeito pelos legítimos interesses dos credores.
26.ª A requerente depois de seis anos em que viu cedido um terço do seu rendimento a favor dos seus credores, depois de ter ficado privada da sua habitação própria e do seu automóvel, apresentou-se voluntariamente a nova acção de insolvência evitando prejuízo dos seus credores ao proporcionar-lhes o acesso aos seus rendimentos, sem privilegiar qualquer um dos credores em detrimento dos outros.
27.ª Consideramos por isso ser uma grave injustiça a não concessão da exoneração do passivo restante nas circunstâncias deste caso concreto.
Nestes termos e nos mais de direitos deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e concedido a requerente o benefício da exoneração do passivo restante.

5. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Remetidos os autos a esta Relação, cumpre, agora apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
i) Da alteração da matéria de facto; e
ii) Da verificação da excepção do caso julgado.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A insolvente é divorciada e nasceu em 14-02-1963;
2. Vive com um filho nascido em 06-07-1995, que frequenta o 2.º ano do curso de … na FMH;
3. Por sentença proferida no processo n.º 947/10.6TBSTB, no extinto 4.º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Setúbal, foi decretada a insolvência da requerente;
4. Tal processo, após a reforma do mapa judiciário, transitou para a Instância Local de Setúbal, J2;
5. Após conclusão da liquidação e elaboração do mapa de rateio final o processo foi encerrado por decisão judicial proferida em 17-03-2016;
6. No âmbito dos autos de processo referidos em 3, a insolvente requereu e foi-lhe indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por despacho de 21-06-2010, constante da certidão junta a estes autos a fls. 341 e seguintes e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
7. Interposto recurso do despacho de indeferimento liminar, foi o mesmo confirmado por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 03-11-2010 e também transitado em julgado, constante de fls. 358 a 373 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
8. A requerente tem como único rendimento o seu vencimento na qualidade de professora no valor líquido de € 1.280,00 mensais;
9. Os credores que não viram satisfeitos os seus créditos no processo de insolvência referido em 3., apresentam-se agora a requerer a penhora de salário e de outros bens;
10. A insolvente suporta as seguintes despesas:
a. € 430,00 de renda de casa;
b. € 14,00 de água;
c. € 86,00 de electricidade e gás;
d. € 73,00 de telefone;
e. € 100,00 de deslocações;
f. € 1.750,00 com propina anual do seu filho;
g. € 35,65 de despesas de deslocação do seu filho maior;
h. € 30,00 de despesas de estudo diversas;
11. O seu património foi já objecto de liquidação nos autos de processo de insolvência referidos em 3.;
12. A insolvente, actualmente, é apenas titular do seu vencimento, não tendo qualquer outro património;
13. Os credores da insolvente são os mesmos e pelas mesmas dívidas constantes e apreciadas nos autos de processo n.º 947/10.6TBSTB, embora parcialmente reduzidas pelo pagamento obtido por via da liquidação do activo nesses autos;
14. Não tem antecedentes criminais;
15. O passivo encontra-se fixado na lista de créditos reconhecidos em € 368.355,08.
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B) – O Direito
1. Da alteração da matéria de facto
1.1. Pretende a recorrente, em primeiro lugar que se altere a matéria de facto, começando por pedir a alteração/rectificação/aditamento da matéria constante do ponto 13 dos factos provados, porquanto entende que não há total coincidência entre os credores que reclamaram créditos neste processo e os que antes os reclamaram no anterior processo de insolvência (n.º 947/10.6TBSTB-B.E1), alegando que no novo processo foram reconhecidos créditos aos credores I… e mulher, ao Banco F…, um crédito do J…, e um crédito do L…, que no anterior não foram reclamados.
Alega ainda que tais créditos, apesar de serem anteriores à primeira declaração de insolvência, tal como resulta do documento n.º 26, junto com o requerimento inicial, só agora foram reclamados e reconhecidos.
Não obstante se entender que em face da solução jurídica que se dará à questão do “caso julgado” objecto do recurso não relevam as alterações à matéria de facto propostas, certo é que por comparação das relações de créditos reconhecidos nestes autos com a certidão da sentença e o acórdão da Relação proferidos no processo anterior não se alcança tal conclusão, porquanto destes elementos não consta a relação dos créditos reclamados e reconhecidos no primeiro processo. O que consta da sentença e do dito acórdão é uma relação de empréstimos contraídos pela insolvente e que foram tidos em conta para efeitos da declaração de insolvência, a qual nem se pode considerar que contenha todos os créditos contraídos pela insolvente no período anterior à sua apresentação à insolvência (o termo “nomeadamente” ali usado assim o indicia).
Acresce que da dita lista de créditos pedidos pela insolvente constam os contraídos junto da F…s (€ 25.549,00, com vencimento em 05/05/2009), e do J… (€ 2.283,00, com vencimento a 30/11/2009).
Também não há elementos para se apurar se os créditos agora em causa já existiam todos à data da anterior declaração de insolvência, como alega a insolvente na conclusão 4ª. Se em relação aos demais indicados, atenta a data do seu vencimento se pode concluir pela positiva, já o mesmo não sucede em relação ao credor I… e mulher (pais da insolvente), pois, de acordo com o documento a que a insolvente faz referência (doc. 26), o crédito só se vencia a 29/04/2016, não se sabendo a data da sua constituição, pelo que a apurar-se ser posterior à primeira insolvência, tal facto até pode relevar, nomeadamente, em sede de aferição dos pressupostos de admissibilidade do pedido de exoneração do passivo restante, a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Assim, e não tendo sido junta a lista dos créditos reclamados e reconhecidos no anterior processo, ónus que sobre a recorrente impendia, não subjaz fundamento para alteração do referido facto, ou a sua eliminação e substituição pelo que se propõe na conclusão 9ª.

1.2. Quanto ao aditamento da factualidade referida na conclusão 10ª, tal matéria é puramente conclusiva, que se alcança dos factos alegados pela insolvente no requerimento inicial, que levaram o tribunal a reconhecer a situação de insolvência da requerente. Aquela conclusão retirar-se, pois, do elenco dos factos provados constante deste processo relativos à situação patrimonial da insolvente, designadamente os referidos de 8 a 13 e 15, do elenco dos factos provados.

1.3. Deste modo, não se altera a matéria de facto.

2. Da verificação do caso julgado
2.1. Aquando da sua apresentação à insolvência a devedora apresentou pedido de exoneração do passivo restante, alegando reunir as condições legalmente exigidas.
Como se sabe, o regime da exoneração do passivo restante foi introduzido pelo actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo D.L. nº 53/2004, de 18 de Março, representando uma novidade no direito português.
A figura em questão surge justificada no preâmbulo do diploma como uma conjugação inovadora do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, acrescentando-se que “a efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência) que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
No seguimento dessa enunciação de objectivos o Código estabelece depois que uma vez admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante o juiz proferirá despacho inicial, nos termos do artigo 239º, nºs 1 e 2, no qual determinará que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, denominado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário para os fins do artigo 241º (pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas; distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).
Findo esse período da cessão (do rendimento disponível), será então proferida decisão sobre a concessão, ou não, da exoneração do passivo restante do devedor, sendo ouvidos este, o fiduciário e os credores da insolvência (artigo 244º) e, com o deferimento desta, é concedida a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (artigo 245º), apenas não sendo abarcados pela exoneração os créditos por alimentos, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários (artigo 245º, nº2).

2.2. No caso em apreço, o pedido de exoneração foi rejeitado (liminarmente), não por ocorrência de algumas das causas previstas no artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas justificativas do indeferimento liminar, mas porque se concluiu existir caso julgado quanto a esta questão.
É a seguinte a fundamentação da decisão recorrida:
«(…), no caso, a devedora havia sido declarada insolvente, no âmbito do processo n.º 947/10.6TBSTB, tendo aí requerido e sido indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
O despacho de indeferimento proferido nesses autos foi confirmado por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 03-11-2010.
Independentemente dos fundamentos desse indeferimento que não podem aqui ser discutidos, dado que tais decisões transitaram em julgado, cumpre apreciar se as mesmas produzem efeito de caso julgado ou, se ao invés o mesmo devedor pode requerer e ver apreciado novamente pedido de exoneração do passivo restante.
Afigura-se que em teoria poderá.
Porém, não relativamente aos mesmos créditos e credores cuja conduta foi já apreciada e decidida, sob pena de se conseguir obter sob a forma de novo processo a revogação de uma decisão judicial transitada em julgado.
Nos termos do disposto nos artigos 580º e 581 º, do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE, constitui excepção de caso julgado a repetição de uma causa, visando evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.
Nos termos do disposto no art. 581º do CPC, constituem requisitos da litispendência e do caso julgado:
“1 -Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando numa das partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4- Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...).
No caso presente, temos que uma mesma devedora, a insolvente, que havia já sido declarada na acção n.º 947/10.6TBSTB, veio requerer relativamente aos mesmos credores, que lhe seja concedido o benefício de exoneração do passivo restante.
Não releva quanto a nós o montante dos créditos, dado que parte deles foram já pagos no âmbito da referida acção de insolvência, por força da liquidação do activo. Releva sim, o momento da constituição da dívida relativamente a cada um dos credores e a eventual conduta da insolvente merecedora ou não do referido benefício.
E quanto a esta matéria foi já proferida, não uma decisão, mas duas decisões judiciais (a decisão do tribunal de primeira instância e o Acórdão do Tribunal da Relação que a reapreciou e manteve).
A devedora é a mesma os credores são os mesmos, apenas os valores em dívida diferem por força de pagamentos parcelares realizados no processo de insolvência.
Não são alegados quaisquer factos novos, não resultam constituídos novos credores.
Enfatiza a devedora que os credores, transitada a decisão de encerramento do processo de insolvência, vieram novamente efectuar diligências com vista à cobrança dos seus créditos. Créditos esses pré-existentes e relativamente aos quais foi já apreciada a conduta da devedora no âmbito do pedido de exoneração do passivo restante nos autos de processo n.º 947/10.6TBSTB.
Apreciar novamente tal pedido seria permitir que a insolvente /devedora fosse de acção em acção até obter uma decisão que lhe fosse favorável. E seria, ainda, colocar o tribunal perante a possibilidade de revogar uma decisão judicial previamente proferida e já transitada em julgado, colocando-se na situação de contradição de julgados.
Tal situação é inadmissível, pelo que, tem de entender-se, quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, estarmos perante uma excepção de caso julgado, estando ao Tribunal vedada a sua apreciação, por se tratar de uma excepção dilatória, nos termos do disposto nos artigos 576º, 577º, al. i); 580º e 581 º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 17º do CIRE, que terá que ter como consequência o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.»

2.3. A recorrente discorda deste entendimento, concluindo não se verificarem os pressupostos de que depende a excepção em causa, e afigura-se-nos que lhe assiste razão.
Efectivamente, a excepção dilatória do caso julgado, prevista nos artigos 580º, 576º, n.º 2, e 577º, alínea i), do Código de Processo Civil, pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. E, no caso, embora se possa admitir que exista uma identidade de sujeitos e de pedido, posto que as partes são substancialmente as mesmas e o pedido formulado num e noutro processo sempre é o da exoneração do passivo restante, não há, porém, identidade de causa de pedir, porquanto as circunstâncias que permitem extrair a conclusão quanto à admissibilidade do pedido formulado assentam nas causas que nortearam a situação de insolvência decretada em cada uma das acções e na conduta da requerente do pedido, tendo sempre por referência a concreta declaração de insolvência, no âmbito da qual o pedido é formulado (basta atentar nas causas de indeferimento previstas nas alíneas do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

2.4. Acresce que também não ocorre violação da autoridade do caso julgado em razão da decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração apreciado no anterior processo.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21/03/2013 (proferido no proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1), disponível, como os demais citados sem outra referência em www.dgsi.pt, são essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado: a) A excepção dilatória do caso julgado; e b) a autoridade do caso julgado.
A este respeito escreveu-se o seguinte:
«Importa … averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.
Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.
Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou [Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).
Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.
A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra, de 28/09/2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo (Proc. n.º 392/09.6TBCVL.S1, in www.dgsi.pt), afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário, que importa à presente decisão: I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498° do CPC» (actual artigo 581º).
[Em idêntico sentido, cf. ainda, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 19/05/2010 (Processo nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1), e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/11/2011 (proc. n.º 816/09.2TBAGD.C1), onde se concluiu que: “6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil. 7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.”]

2.5. Ora, no processo anterior o que foi apreciado para efeitos de admissibilidade do pedido de exoneração do passivo restante foram as circunstâncias impeditivas à admissibilidade liminar do pedido em função da conduta da insolvente, tendo em conta as causas que conduziram à sua declaração da insolvência.
No processo actual a conduta da insolvente tem que ser valorada em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência, pelo que o objecto do processo é diferente.
É certo que os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos, mas também é certo que a devedora foi declarada novamente insolvente e o pedido de exoneração reporta-se à nova declaração de insolvência.
Ora, se a lei permite que quem tenha sido declarado insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, como agora sucedeu, também o insolvente, que assim, voltou a ser declarado há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação.
Embora não diga directamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

2.6. Deste modo, conclui-se que não ocorre a invocada excepção do caso julgado, procedendo o recurso, pelo que, em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante com a apreciação dos pressupostos a que se reporta o artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que, no caso, não ocorreu, seguindo-se os demais termos.

C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil, o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.
II. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da identidade de sujeitos, de pedido e da causa de pedir, prevista no artigo 581º do Código de Processo Civil.
III. A decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração de passivo restante proferida em processo de insolvência não constitui caso julgado no novo processo de insolvência em que o devedor formule novo pedido de exoneração, porquanto as circunstâncias que permitem extrair a conclusão quanto à admissibilidade do pedido formulado assentam nas causas que nortearam a situação de insolvência decretada em cada um dos processos e na conduta do requerente do pedido, tendo sempre por referência a concreta declaração de insolvência, no âmbito da qual o pedido é formulado.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante, em conformidade com o decidido em 2.6..
Sem custas.
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Évora, 6 de Abril de 2017
(Francisco Xavier)
(Maria João Sousa e Faro)
(Florbela Moreira Lança)