Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
860/20.9GBABF.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: PROVA INDIRECTA
DOLO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A convicção probatória não se sustenta apenas na prova direta, sendo que, relativamente aos elementos subjetivos do tipo e à culpa, a prova direta apenas poderia resultar de confissão. Outras formas, igualmente válidas, existem e deverão ser tidas em consideração no processo de convencimento do julgador, tais como a valoração da prova indireta, ou por presunção.

II – Resultando claro da prova produzida que o arguido, apesar de ter sido informado pelos militares da GNR – que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções – dos motivos pelos quais iria ser algemado, ainda assim não se inibiu de agarrar o braço de um militar, de forma adequada a fazê-lo cair e provocando-lhe, com tal conduta, um hematoma no bícep e escoriações no cotovelo, é legítimo concluir, por prova indireta, ou por presunção, que o mesmo atuou, pelo menos, com dolo eventual, tendo, consequentemente, praticado um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal.

(sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de processo abreviado que correm termos no Juízo Local criminal de Albufeira - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com o n.º 860/20.9GBABF, foi deduzida acusação contra o arguido (...), pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de ofensa qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi 132.º, n.º 2, do Código Penal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, alínea a) e 101.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea c), do Código Penal.
Realizado o julgamento, veio a ser proferida sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº1 e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) e na sanção acessória proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 (três) meses e que o absolveu da prática do crime de ofensa qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 132.º, n.º 2, do Código Penal.
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Inconformado com tal decisão, na parte em que absolveu o arguido da prática de um dos crimes pelos quais vinha acusado, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“1) O Ministério Público não se conformando com a douta sentença na parte em que absolveu o arguido (...) da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, vem dela interpor recurso por discordar dos factos dados como não provados e que, consequentemente, conduziram à absolvição do arguido;
2) Na douta sentença foram dados como não provados os factos n.º 10 e 11 da acusação deduzida, os quais se reportam ao preenchimento do elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada;
3) Resulta do depoimento da testemunha (...), prestado no dia 28 de Janeiro de 2021, entre as 11:46:15 e as 12:00:06, a instâncias compreendidas entre o minuto 04:18 e 07:24, que o arguido apesar de ter sido informado pelos militares, que se encontravam-se devidamente uniformizados e no exercício de funções, dos motivos pelos quais iria ser algemado, ainda assim não se inibiu de atingir o corpo do militar (...), provocando, com a sua conduta um hematoma no bícep e escoriações no cotovelo;
4) Não podemos deixar de frisar que é evidente e notório, porque qualquer homem médio assim o entende, que quando uma pessoa agarra o braço de outra pretende magoar, ofender, no seu corpo, sendo que tal conduta é proibida e punida por lei penal;
5) Qualquer homem médio sabe que não pode agarrar no braço de um militar, devidamente uniformizado, no exercício das suas funções, apenas por estar desagradado com a sua presença em determinado local, e com a intenção de evitar que aquele cumpra as funções que a lei lhe exige;
6) Ademais, qualquer homem médio sabe que não pode causar com as suas condutas hematomas ou escoriações no corpo de militares;
7) O arguido com a sua conduta traduzida em “esbracejar” e agarrar o braço do militar, que se encontrava devidamente uniformizado e no exercício das suas funções, demonstrou, com a mesma, uma atitude de desprezo e indiferença pelos valores da autoridade e da ordem, valores esses norteadores da vida em sociedade;
8) Pelo que, em nosso entender, encontram-se preenchidos os elementos objetivos
que integram o crime de ofensa à integridade física qualificada, sendo a conduta do arguido um acto de violência gratuito revelando-se, deste modo, a especial censurabilidade da conduta manifestada pelo desprezo e indiferença aos valores da vida em sociedade;
9) No que concerne à verificação do elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada, não podemos olvidar que o arguido atuou com dolo, ainda que com dolo eventual porquanto sabia que ao levar a cabo a referida conduta, a mesma seria adequada a provocar lesões no corpo do militar tendo o arguido se conformado com essa realização;
10) Deste modo, entendemos que o elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada encontra-se preenchido;”
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que alterando a matéria de facto dada como não provada para provada, tal como constava da acusação, condene o arguido também pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.”
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o arguido pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. Por sentença foi o arguido absolvido da prática de um crime de ofensa a integridade física qualificada, do artº 143º, nº 1, 145º, nº 1 alínea a) ex vi 132º nº 2 alínea l) do Código de Penal.
2. Compulsados os autos, constata-se que o Mmo. Juiz atendeu à globalidade dos depoimentos das testemunhas (...), aproveitando o mesmo para dar como não provados os elementos objectivos e subjetivos do tipo de crime imputado ao arguido, não ignorando o seu teor no que respeita à descrição dos factos.
3. As declarações do arguido foram prestadas de forma sincera, coerente, sem nunca tentar iludir ou mostrar intenção de ter sequer praticado uma ofensa, pelo que não existiu dolo.”
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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso.
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Procedeu-se a exame preliminar.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:
- Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em violação dos princípios da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP.

II.II - A decisão recorrida.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados os seguintes factos:
“1.No dia 07 de Junho de 2020, pelas 02h11m, na (…), o arguido (...) conduzia o veículo automóvel Seat Ibiza, com a matrícula (…).
2. Foi submetido a uma ação de fiscalização desempenhada pelos militares da G.N.R. (...) por suspeita de perseguição ao veículo com a matrícula (…).
3. Tendo o arguido indicado aos militares que havia ingerido bebidas alcoólicas em momento prévio ao exercício da condução foi o mesmo informado da necessidade de se deslocar ao posto da G.N.R. a fim de realizar teste de pesquisa de álcool no ar expirado de modo a apurar o seu grau de alcoolemia.
4. E informado de que previamente iria ser submetido a revista para fins de segurança, o arguido passou a apresentar um comportamento agressivo pelo que os militares tentaram algemá-lo.
5. Contudo, o arguido esbracejou para que os militares não conseguissem colocar as algemas, tendo sido imobilizado no solo para o efeito. Nesse procedimento o arguido agarrou um braço do militar (...) fazendo com que este último se desequilibrasse e caísse.
6. Em consequência, o militar (...) sofreu um hematoma no bícep e escoriação no cotovelo direito sem que tenha tido necessidade de receber tratamento médico.
7. O arguido encontrava-se ciente de que se estava perante militares da G.N.R. no exercício de funções, os quais se encontravam uniformizados.
8. O arguido conduzia com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,297 g/l.
9. Ao atuar do modo descrito teve o arguido o propósito conseguido de conduzir o veículo automóvel ciente de que estava influenciado pelo álcool apresentando uma TAS superior a 1,2 g/l e que não podia exercer a condução de veículo automóvel com tal taxa de alcoolemia, atuando quanto a tais factos de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
10. O arguido trabalha habitualmente como empregado de mesa; em março de 2021 auferiu a importância de € 665,00; partilhava casa com a mãe, falecida em 08.04.2020; é solteiro e não tem filhos.
11. O arguido não regista antecedentes criminais”.
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Como não provados, elencou a sentença recorrida a seguinte factualidade:
“- Ao atuar do modo descrito nos factos provados, o arguido agiu com o propósito de atingir o militar (...) na sua integridade física, ofendendo-o no seu corpo e saúde.
- O arguido agiu de forma deliberada e consciente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, no que concerne à produção de lesões físicas no referido militar (...).”

II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, «o tribunal ad quem não julga de novo (…)como se inexistisse uma decisão de primeira instância. E a sindicância dessa decisão (…) não inclui ainda a compressão da margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar (…).»[1]
No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento.
Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”.
Importa ter presente que a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, ou a invocação de um erro de julgamento – com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 acima transcritos – não se confunde com a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e invocados no recuso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento, ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
A este propósito, preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:
“(…) 3 – Quando impune a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c ) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Na situação dos autos, encontramo-nos perante uma impugnação ampla da matéria de facto, realizada com respeito pelo disposto no artigo 412.º do CPP. Relativamente à satisfação de tais requisitos, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação à referida norma, no Comentário do Código de Processo Penal “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.”[2]
Verificamos assim que para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.
Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso.[3]
E foi isso justamente que o recorrente fez nos presentes autos, tendo assinalado ter sido produzida prova bastante demonstrativa da autoria dos factos atinentes ao crime de ofensa à integridade física qualificada de que o arguido se encontrava acusado.
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Previamente à incursão que se impõe realizar sobre as provas concretas produzidas nos autos e que sustentaram a decisão recorrida, importa fazer uma breve referência ao princípio da livre apreciação da prova, a que acima nos reportámos e que encontra consagração legal no artigo 127.º CPP.
Assim, caberá reter que, segundo tal princípio processual penal, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Tal liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio.
Encontra-se a referenciada liberdade orientada para a objetividade com vista a lograr obter a verdade validamente adquirida. A formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, se tiver a capacidade de se se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável.
Como assinala Figueiredo Dias[4], a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova), e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Deste modo, importa reter que o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável, de harmonia com as regras da lógica, da razão, da experiência e do conhecimento científico.
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O Ministério Público, que nos presentes autos assume a qualidade de recorrente, afirma ter sido produzida prova bastante demonstrativa da autoria dos factos atinentes ao crime de ofensa à integridade física qualificada de que o arguido se encontrava acusado e do qual foi absolvido. Pretendendo impugnar a matéria de facto considerada como não provada pelo tribunal a quo, o recorrente observou as exigências legais necessárias à impugnação da matéria de facto constantes do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP acima explicitadas, pois que:
- Indicou os pontos concretos da sua discordância, concretamente os dois factos não provados;
- Especificou os pontos do suporte informático em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados de que se socorreu, passagens que transcreveu na sua motivação de recurso;
- E explica as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.
Realizemos então a análise crítica das provas sobre as quais o recurso assentou o invocado erro de julgamento.
Importa em primeiro lugar atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão quanto à parte que se impugna, cabendo referir que, analisada a prova produzida nos autos, constatamos que a mencionada motivação, no que diz respeito ao que foi relatado em audiência por cada um dos intervenientes, arguido, ofendido e testemunhas, está alinhada com o que foi efetivamente dito por cada um deles.
Nas suas declarações o arguido assume o contexto que o coloca no momento e no local dos factos, a ser fiscalizado por agentes de autoridade, concretamente pelos militares da G.N.R. (...), tendo confirmado não apenas que na interação com os militares, surgiram problemas, mas também que enquanto se encontrava no chão a ser algemado, agarrou o braço do militar (...).
Os militares, incluindo o militar o (...), descreveram o sucedido, nos termos que vieram a ser julgados provados, precisando os vários momentos circunstanciais relevantes que ocorreram durante a fiscalização ao arguido.
Os dados objetivos constantes do auto de notícia junto aos autos a fls. 4 a 7 dão consistência ao que foi narrado pelas referidas testemunhas, não sobrando dúvida, também por esta via, quanto à veracidade dos factos tidos por provados.
No concernente à ofensa produzida pelo arguido no corpo na vítima, no caso o militar (...), foi a mesma descrita pela própria e pelas demais testemunhas, que indicaram as circunstâncias e a forma como se consumou tal agressão.
Importa ter presente que a ofensa corporal relevante para efeitos penais é constituída por qualquer maltrato que prejudique o bem-estar físico da vítima, de uma forma que não seja insignificante[5], encontrando-se tal ofensa, nas circunstâncias do presente caso, suficientemente descrita nos factos provados, que não foram postos em causa no recurso.
A discordância do Ministério Público relativamente à sentença impugnada reporta-se à decisão de considerar como não provados os factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo e à culpa do arguido quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada e que são concretamente os seguintes:
“- Ao atuar do modo descrito nos factos provados, o arguido agiu com o propósito de atingir o militar (...) na sua integridade física, ofendendo-o no seu corpo e saúde.

- O arguido agiu deliberada e consciente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, no que concerne à produção de lesões físicas no referido militar (...).”
Vejamos se lhe assiste razão.
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Do depoimento do Militar (...), conjugado com os restantes depoimentos, resulta claro que o arguido, apesar de ter sido informado pelos militares, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções, dos motivos pelos quais iria ser algemado, ainda assim não se inibiu de o atingir no seu corpo, tendo-lhe provocado, com a sua conduta, um hematoma no bícep e escoriações no cotovelo.
É certo que, nas declarações que prestou, o arguido não assumiu a intencionalidade de agredir o militar (...).
Porém, consabidamente, a convicção probatória não se sustenta apenas na prova direta, sendo que, relativamente aos elementos subjetivos do tipo e à culpa, a prova direta apenas poderia resultar de confissão. Outras formas, igualmente válidas, existem e deverão ser tidas em consideração no processo de convencimento do julgador, tais como a valoração da prova indireta, que o tribunal “a quo” parece não ter valorado.
A prova por presunção é legítima, realizando-se por ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigos 349.º e 351.º do Código Civil). Assim tem sido reconhecido por várias instâncias superiores, designadamente pelo Tribunal Constitucional[6] e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos[7].
Ora, nas circunstâncias do caso em apreciação, a prova indireta poderia e deveria ter sido tida em consideração pelo Tribunal como forma de formar convicção no sentido da prova dos factos de caráter subjetivo tidos como não provados, conforme propugna o recorrente.
Efetivamente, na situação dos autos, tal prova indireta ou por presunção, terá por exclusiva referência os factos internos, relativos à liberdade de atuação, intenção e consciência da ilicitude por banda do arguido. Ora, com exceção da confissão, não existe outro modo de se realizar esta prova que não seja o de a escorar nos factos objetivos assentes e deles inferir, por presunção, os factos desconhecidos, para tanto se servindo o julgador das regras da experiência comum, dando aplicação ao princípio da livre apreciação da prova a que acima nos reportámos e que encontra previsão legal no artigo 127.º CPP. Pressuposto disso é que se tenham por seguros os factos que permitem legitimamente fazer as inferências, o que “in casu” manifestamente sucede.
Vertendo ao caso concreto, constatamos que o arguido, aquando do procedimento de algemagem, levado acabo pelos militares (...), agarrou no braço do militar (...), o que provocou o seu desequilíbrio e a sua queda, do que resultou para o militar um hematoma no bícep e o esfolamento do cotovelo.
Para efeitos de valoração da prova indireta, importa colocar o homem médio suposto pela ordem jurídica na posição do arguido para que possamos inferir – partindo da sua conduta objetiva, que se traduziu em agarrar o braço do militar com a força que se revelou adequada a produzir o desequilíbrio, a queda e as consequentes lesões consignadas nos factos provados, e levando em conta os conhecimentos que possuía – que o mesmo sabia, pelo menos, que poderia magoar e ofender o corpo do militar, tendo-se conformado com tal possibilidade e, ainda assim, tendo decidido agir da forma descrita.
De facto, parece-nos evidente que o referido homem médio suposto pela ordem jurídica sabe que se lhe encontra vedada pela lei penal a possibilidade de agarrar o braço de um militar devidamente uniformizado, no exercício das suas funções, de forma a causar-lhe lesões, concretamente hematomas e escoriações, com a intenção de evitar que aquele cumpra as funções que estão adstritas.
Como bem afirma o recorrente na sua motivação de recurso, a conduta do arguido revela desprezo censurável pelos valores da ordem e da autoridade que regem a vida em sociedade, valores que importa tutelar.
Recordemos o excerto dos factos provados que nos dá a visão global da conduta do arguido: “4. E informado de que previamente iria ser submetido a revista para fins de segurança, o arguido passou a apresentar um comportamento agressivo pelo que os militares tentaram algemá-lo.
5. Contudo, o arguido esbracejou para que os militares não conseguissem colocar as algemas, tendo sido imobilizado no solo para o efeito. Nesse procedimento o arguido agarrou um braço do militar (...) fazendo com que este último se desequilibrasse e caísse.
6. Em consequência, o militar (...) sofreu um hematoma no bícep e escoriação no cotovelo direito sem que tenha tido necessidade de receber tratamento médico.”
Realçamos que a conduta que agora se aprecia, que se consubstanciou em agarrar o braço do militar com força suficiente para o fazer cair e para lhe causar lesões, se encontra enquadrada num comportamento globalmente agressivo, comportamento que, aliás, justificou a algemagem.
Tendo presente a atitude global retratada e a forma de atuação do agente, que se revelou adequada à produção de lesões no corpo do ofendido, entendemos encontrar-se demonstrado nos autos que o arguido agiu com conhecimento de que o ofendido era um militar da GNR no exercício das suas funções, sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe as referidas lesões, tendo-se conformado com tal possibilidade e tendo decidido, ainda assim, agir do modo descrito. Nesta conformidade, ao contrário do decidido na sentença impugnada, é nossa convicção que o arguido atuou com dolo, na modalidade de dolo eventual, pelo que importará conduzir os dois factos tidos por não provados, com a redação adequada, ao elenco dos factos provados.
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Façamos então uma breve incursão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 132.º, n.º 2, do Código Penal.
São elementos objetivos do crime de ofensa à integridade física o provocar "ofensa no corpo ou na saúde de outrém".
A ofensa em causa pode traduzir-se numa alteração anatómica ou psicológica, consistindo numa perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo, ou das suas funções psíquicas. No fundo, é necessária uma alteração desvaliosa no normal funcionamento do corpo ou da saúde (no seu equilíbrio normal).
Trata-se de um crime material e de dano, abrangendo um determinado resultado que, como dispõe expressamente a previsão normativa ínsita no n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal, é a lesão do corpo ou saúde de outrem. Ou seja, estamos perante um tipo legal de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito. De notar que o tipo legal base do artigo 143.º, do Código Penal, “(…)fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados(...)”[8].
A revisão do Código Penal, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro introduziu uma alteração sistemática ao crime de ofensa à integridade física qualificada, o qual, mantendo-se intacto no seu tipo base (artigo 143.º), viu alterada a redação e ordem numérica do tipo incriminador, passando este a encontrar previsão normativa no artigo 145.º, nos termos da qual:
«1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144.º.
2 – São suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.»
Ora, seja na redação do Código Penal anterior seja na atual, a aplicação e funcionamento da qualificação que aqui se prevê supõe, antes de mais, a verificação de uma lesão da integridade física simples, conformada nos termos previstos no artigo 143.º do Código Penal – tipo legal fundamental em matéria de crimes contra a integridade física.
Ao nível do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, subjaz, pois, a integridade física da pessoa humana, considerada na conceção erigida pelo nosso legislador penal com base na construção “corporal-objetiva do delito[9], nos termos da qual se estabelece uma clara autonomização entre crimes contra a integridade física e crimes contra a honra.
Quanto ao tipo subjetivo, a norma nuclear do n.º 1 do artigo 143º do Código Penal pressupõe o dolo, em qualquer das suas modalidades, por referência aos artigos 13.º e 14.º do Código Penal, constituído pelo conhecimento dos elementos objetivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los.
O n.º 2 do artigo 145º dispõe que são suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, que constituem exemplos padrão, de caráter não taxativo, mas antes meramente exemplificativo e com uma função indiciadora, função esta contida na condição “ser susceptível de”[10]. O legislador orienta, assim, o intérprete e aplicador do direito com tais elementos padrão que não funcionam automaticamente, que podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade e que importam o agravamento do crime.[11].
Nas palavras de Figueiredo Dias, “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; de verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”[12].
A circunstância qualificativa do art.º 132, nº 2 al. l), ex vi o art.º 145.º, nº 2, a verificar no caso subjudice respeita à qualidade de agente de força pública do ofendido. Na base desta qualificativa, está a qualidade que o ofendido assume no momento da prática do crime. Por conseguinte, pretende-se punir mais gravemente o agente que assume o propósito de ofender a integridade física de alguém que atua no exercício das funções aí consignadas, in casu, um militar da GNR.
A averiguação da existência ou não da especial censurabilidade deve ser feita através de uma avaliação que contenha dois juízos: um juízo externo que advém da análise da forma como o ato foi praticado – o ato há-de ter sido praticado de uma forma reveladora ou em circunstâncias que revelem especial censura ou perversidade do agente – e um juízo interno, revelado na motivação do agente.
Assim, partindo-se, como sempre sucede em matéria de dolo, “da situação como ela foi representada pelo agente”, haverá que “perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo padrão (ou a uma situação substancialmente análoga) e, em caso afirmativo, se se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente[13].
Passando à análise do caso concreto, verificamos que o arguido, durante o processo de algemagem – motivado pelo seu anterior comportamento agressivo durante a fiscalização – ofendeu o corpo do militar da GNR, sabendo que o mesma se encontrava no exercício de funções, tendo-lhe agarrado o braço, de modo a fazê-lo cair, o que lhe causou hematomas e escoriações.
A atuação do arguido foi induzida por motivo censurável, uma vez que pretendia obstaculizar ao legítimo exercício de autoridade por parte dos militares que o fiscalizavam, a quem devia respeito, pelo que não tem qualquer proteção legal, sendo, ao invés, objeto de censura ético jurídica.
O arguido, na veste de condutor fiscalizado, agiu, assim, a coberto de um especial juízo de censurabilidade fundamentado na atitude desvaliosa que desenvolveu, agredindo o militar em causa com absoluto desrespeito pela autoridade e pelas funções que mesmo exercia.
Estão, pois, preenchidos quer os elementos do tipo objetivo do crime de ofensas à integridade física, quer a circunstância qualificativa do mesmo.
Relativamente ao tipo subjetivo, resulta provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta poderia provocar lesões no corpo do ofendido, tendo, ainda assim, decidido atuar da forma descrita e tendo-se conformando com a realização de tal resultado, pelo que agiu com dolo eventual (artigo 14º, nº 3 do Código Penal). Está assim igualmente preenchido o tipo subjetivo de ilícito.
Inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, resulta do exposto ter o arguido praticado o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal que de vinha acusado.
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Da determinação da medida da pena e do cúmulo jurídico
Para a escolha da pena, sobreleva a regra, estabelecida pelo artigo 70.º do Código Penal, da preferência que o Tribunal sempre deverá dar às penas não detentivas quando estas sejam alternativamente previstas com penas de prisão, conquanto com a aplicação de penas não privativas da liberdade fiquem asseguradas de forma adequada e suficiente as finalidades da punição criminal. Porém, considerando que para o crime em análise não se encontra prevista pena alternativa não detentiva, nada há a decidir a tal respeito.
A moldura penal abstrata é de 1 mês a 4 anos de prisão (artigos 145.º, nº 1 alínea a) e 41.º, n.º 1, ambos do Código Penal).
Recordando os princípios basilares e orientadores da determinação da medida da pena, temos que:
- Conforme estabelece o artigo 40º do CP, a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator;
- A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP.
- Tendo como balizas a culpa – que constitui o limite máximo – e a prevenção geral – que coincide com o limite mínimo – a medida concreta da pena determinar-se-á de acordo com as necessidades de prevenção especial.
- Assim, dentro da moldura abstrata da pena deverá encontrar-se a medida da culpa, que fixará o seu limite máximo. Após o que, entre o mínimo legal e o limite máximo dado pela medida da culpa se formará a “moldura da prevenção geral de integração”em obediência à ideia de que o fim da punição reside na defesa dos bens jurídicos e das legítimas expectativas da comunidade com vista ao restabelecimento da paz jurídica e cujo limite mínimo é dado pela defesa do ordenamento jurídico, o ponto abaixo do qual não é socialmente admissível a fixação da pena sem pôr em causa a sua função de tutelar bens jurídicos – dentro da qual a medida da pena será concretizada em função das exigências de prevenção especial: prevenção positiva ou de socialização e, excecionalmente, prevenção negativa de intimidação ou de segurança individuais[14].
- A determinação da medida da pena deverá, pois, ser feita tendo em conta a culpa do agente, observadas as exigências de proporcionalidade entre a pena e o crime, o princípio de necessidade e dignidade penal, bem como as finalidades de prevenção especifica e geral, tutelando de forma efetiva o bem jurídico.
Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço.
Para a fixação do quantum da pena, no que se refere à culpa, que estabelece o limite máximo de pena a aplicar, ressaltam as circunstâncias atinentes à conduta ilícita, nomeadamente as circunstâncias concretas que envolveram a prática do crime, que, conforme acima referimos, se nos afiguram bastante desvaliosas, atendendo ao especial dever de respeito que impendia sobre o arguido na qualidade de condutor fiscalizado, circunstâncias que não poderão deixar de agravar a sua culpa. A seu favor depõe o facto de o mesmo ter atuado com dolo eventual, o grau menos intenso do dolo.
No que concerne às exigências de prevenção geral, relativas à estabilização das expectativas comunitárias, das quais decorre um patamar mínimo, importa considerar que na situação em análise são elevadas as necessidades de prevenção geral positiva destes comportamentos, dada a crescente incidência que estes tipos de crime apresentam na sociedade atual, exigindo tutela acrescida o respeito pelos agentes de autoridade no exercício legítimo das suas funções. As finalidades de prevenção geral assumem especial acuidade na vertente da prevenção geral negativa, incutindo a sociedade a necessidade de responsabilização criminal efetiva do arguido, mas também na vertente positiva, visando-se assegurar a confiança geral na garantia da boa e eficiente realização da justiça.
Relativamente às necessidades de prevenção especial, revelam-se as mesmas diminutas atendendo não só à circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais registados pela prática de quaisquer crimes, mas também à sua integração social e familiar descrita nos factos provados.
Neste contexto, a medida da pena ajustada à culpa do arguido, às exigências de prevenção geral e às necessidades de prevenção especial, situa-se no terço inferior da respetiva moldura abstrata, afigurando-se-nos ajustado graduá-la em 4 meses de prisão.
Nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de prisão não superior a um ano deve ser substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, se esta for suficiente para prevenir o cometimento de futuros crimes.
Não se nos afigurando necessário que o arguido seja punido com pena de prisão efetiva para que não volte a delinquir, deverá substituir-se a pena de prisão por igual tempo de multa, ou seja, pela pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 720,00 (setecentos e vinte euros).
Verificando-se que os factos ora apreciados se encontram em situação de concurso com os que motivaram a condenação do arguido na sentença recorrida pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, importa proceder à determinação da pena única do concurso, de acordo com o artigo 77.º do Código Penal.
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Do cúmulo Jurídico.
Atento o disposto no artigo 77º, n.º 1 do Código Penal “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.” E ainda o seu nº 3 “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão, outras de multa, a diferente natureza destas mantêm-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”
O pressuposto essencial para a efetuação do cúmulo jurídico de penas parcelares é a prática de diversas infrações pelo mesmo arguido antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas.
Ou seja, para se proceder ao cúmulo jurídico é necessário que se verifiquem requisitos de ordem processual e material, nomeadamente:
- Que se trate de penas relativas a crimes praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles;
- Que se trate de crimes cometidos pelo mesmo arguido;
- Que se trate de penas parcelares da mesma espécie.
Ora, é precisamente esta situação que se verifica nos presentes autos quanto ao concurso efetivo e real dos dois crimes praticados pelo arguido.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material “é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.”[15]
Assim, considerando que o legislador penal não adotou o sistema de acumulação – que consistiria na soma das penas com mera limitação do limite máximo – cumpre realizar um juízo que não se limite a um mero cúmulo material.
Tudo deverá passar-se “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências especiais de socialização).” [16]
Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.
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A fixação da moldura penal do concurso efetivo e real, de acordo com as regras doutrinarias e jurisprudências, no caso subjudice encontra-se possibilitada pela igual natureza das penas a considerar no concurso – duas penas parcelares de multa – devendo ter como limite mínimo a pena parcelar mais grave – 120 dias – e como limite máximo a soma aritmética das penas parcelares – 170 dias.
Os crimes em concurso real e efetivo de condução de veículo em estado de embriaguez e de ofensa à integridade física qualificada ora imputados ao arguido foram cometidos em evidente conexão temporal, concretamente no mesmo dia.
“Pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas”.
Assim, atendendo à gravidade e às circunstâncias atinentes à globalidade dos factos praticados, à natureza dos crimes e à personalidade refletida nos mesmos, a pena única deverá fixar-se em 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros), mantendo-se a sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses fixada na sentença recorrida.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, decidindo consequentemente:
A) Alterar a sentença recorrida, determinando que os dois factos considerados não provados passem a constar do elenco dos factos provados, com a seguinte redação:
“- Ao atuar do modo descrito nos factos provados, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta poderia provocar lesões no corpo do ofendido, tendo, ainda assim, decidido atuar da forma descrita e tendo-se conformando com a realização de tal resultado.
- O arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal no que concerne à produção de lesões físicas no corpo do militar (...).”

B) Alterar a sentença recorrida, condenando o arguido:
- Pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída pela pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 720,00 (setecentos e vinte euros).
- Fazendo operar o cúmulo jurídico relativamente às penas aplicadas aos dois crime pelos quais o arguido foi condenado e que se encontram em concurso, condenar o arguido na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros), mantendo-se a sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses fixada na sentença recorrida.
- Manter quanto ao mais a sentença recorrida.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pela relatora)

Évora, de outubro de 2021

Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar
Sumário
I - A convicção probatória não se sustenta apenas na prova direta, sendo que, relativamente aos elementos subjetivos do tipo e à culpa, a prova direta apenas poderia resultar de confissão. Outras formas, igualmente válidas, existem e deverão ser tidas em consideração no processo de convencimento do julgador, tais como a valoração da prova indireta, ou por presunção.

II – Resultando claro da prova produzida que o arguido, apesar de ter sido informado pelos militares da GNR – que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções – dos motivos pelos quais iria ser algemado, ainda assim não se inibiu de agarrar o braço de um militar, de forma adequada a fazê-lo cair e provocando-lhe, com tal conduta, um hematoma no bícep e escoriações no cotovelo, é legítimo concluir, por prova indireta, ou por presunção, que o mesmo atuou, pelo menos, com dolo eventual, tendo, consequentemente, praticado um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal.

[1] Decisão Sumária de 20.02.2019, proferida nesta Relação pela Desembargadora Ana Brito, no proc. 1862/17.8PAPTM.E1.
[2] 3.ª edição, página 1121.
[3] Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.
[4] Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 204 e ss.
[5] Cf. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2012, pp. 304/305.
[6] Acórdãos n.ºs 391/2015, de 12 de agosto e 521/2018, de 17 de outubro, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt
[7] Guide on Article 6 of the European Convention on Human Rights (2018), disponível em: www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_6_criminal_ENG.pdf
[8] Paula Ribeiro de Faria in Comentário Conimbricence ao Código Penal, Coimbra, I Volume, pág. 218 e 219.
[9] Paula Ribeiro de Faria, ob. cit, pag 218.
[10] Figueiredo Dias – “Atas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal”, Parte Especial, Lisboa, 1979, MJ, pág. 24 e seguintes.
[11] Neste sentido tem entendido, na jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça desde os Acórdãos de 08 de Fevereiro de 1984, BMJ, 334, pág. 258, e de 20 de Março de 1985, BMJ, 345, pág. 248.
[12] A. cit., “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T. I, pág. 26
[13] A. cit., ob. cit., T. I, pág. 43
[14] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 3.ª ed., pp. 96 e Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, pp. 114 e segs.
[15] Ac. STJ de 18 de Novembro de 2009, proc. nº 702/08.3GDGDM.P1.S.
[16] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 291.