Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
95/18.0T9LLE.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PERDA DE VANTAGENS
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A existência de condenação no pagamento da quantia solicitada no pedido cível pelo ofendido/lesado a título de ressarcimento dos danos causados pela prática do crime, não impede que seja decretado o perdimento de igual quantia a favor do Estado e a condenação do arguido no seu pagamento, nos termos do artº 110º, nºs 1, al. b) e 4 do C.P., por ter sido essa quantia a vantagem obtida pelo agente do crime com essa prática.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

A arguida VLPA foi submetida a julgamento e no final do mesmo foi proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga procedente a douta acusação e, consequentemente, decide:

a) Condenar a arguida pela prática de crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de 200 (duzentos) dias de multa;

b) Condenar a arguida pela prática de crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei 109/2009, a pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;

c) Condenar a arguida pela prática de crime burla informática agravada, p. e p. pelo artigo 221.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal, a pena de 200 (duzentos) dias de multa;

d) Condenar a arguida pela prática de crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.ºs 1 alínea b), d) e e) do Código Penal, a pena de 120 (cento e vinte) dias de multa;

e) Suspender a pena de prisão que lhe vai aplicada em b) pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;

f) Em cúmulo Jurídico das penas aplicadas em a), c) e d), nos termos do disposto no artigo 77.º do Código Penal, condenar a arguida na pena única de 420 (quatrocentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de €2100,00 (dois mil e cem euros);

g) Julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente em consequência condenar a arguida o pagar à demandante a quantia de €16.281,14 (dezasseis mil, duzentos e oitenta e um euros e catorze cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros legais, à taxa legal de 4%, contados desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento;

h) Declarar perdida a favor do Estado a quantia de €16.281,14, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática do ilícito, condenando-se a arguida a pagar tal quantia ao Estado, ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1 alínea b) e n.º 4 do Código Penal.

i) Na parte crime, condenar a arguida nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2UC’s;

j) Custas quanto ao pedido de indemnização civil pela arguida (art.º 523.º do Cód. Proc. Penal e art.º 527.º do Cód. Proc. Civil);”

A arguida não se conformou com a sentença condenatória, e tendo dela recorrido, terminou a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“I – A recorrente foi condenada por todos os crimes constantes na acusação, condenada ao pagamento do pedido de indemnização deduzido pelo ofendido, condenada nas custas cíveis e criminais, e AINDA condenada a pagar ao Estado a quantia de € 16.281,14 correspondente à vantagem patrimonial, ao abrigo do artigo 110.º n.º1 alínea b) e n.º 4 do Código Penal.

II – A Recorrente não se conforma com a sua condenação a pagar ao Estado a quantia de €16.281,14 correspondente à vantagem patrimonial, uma vez que também tem de pagar ao ofendido o mesmo valor para o ressarcir do prejuízo sofrido, correspondendo assim a sua condenação numa dupla penalização.

III – A Recorrente é, como ficou provado, uma pessoa que vive uma numa situação económica débil, tem duas filhas menores para criar, esta dupla condenação, foi excessiva e desadequada ao caso concreto.

IV – A Recorrente aceita a condenação pelos crimes que vem acusada, pelo pedido de indemnização formulado pelo ofendido, porque segundo a mesma, “se agiu mal deve ser condenada”, Não aceita o pagamento ao Estado da vantagem patrimonial, porque o ofendido fica ressarcido pelo prejuízo sofrido através do recebimento do montante peticionado no pedido de indemnização.

V – A Recorrente é uma pessoa de bem, não regista antecedentes criminais, encontra-se muito arrependida e envergonhada com a situação, esta integrada social, familiar e profissionalmente, este foi um acto isolado na sua vida, que não voltará a acontecer.

VI – No que respeita à determinação da medida da pena, deveria ter sido feita com recurso aos critérios gerais indicados no artigo 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, pois está o Tribunal subordinado ao critério da culpa e às necessidades de prevenção.

VII – O Tribunal “a Quo” na determinação da medida da pena, deveria também ter recorrido à análise do Relatório Social da Recorrente, elaborado pela DGRS.

VIII – Violou assim o Tribunal “a Quo” as normas aplicadas na determinação da medida da pena estabelecidas na lei penal, nos artigos 71.º e 72.º do Código Penal.

IX – Face ao supra exposto, requer-se a Vossas Exas., para que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que absolva a Recorrente da entrega ao Estado do valor de €16.281,14, correspondente ao valor da vantagem patrimonial obtida pela prática do ilícito, uma vez que essa condenação traduz-se numa dupla penalização, para a qual a mesma não tem recursos económicos suficientes, pois vive em situação débil, de considerar ainda, que a sua absolvição não prejudica o ofendido, o mesmo fica ressarcido do prejuízo sofrido, através do recebimento do montante peticionado no pedido de indemnização por si formulado, e considerado procedente.

Nestes termos e demais do direito, deverá o presente recurso obter provimento, revogando-se a Sentença recorrida, por outra que dê acolhimento às pretensões da Recorrente, tudo para que se faça

JUSTIÇA!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1. O instituto da perda vantagens é uma providência destinada a impedir a manutenção de situações patrimoniais antijurídicas, que constituiu uma medida sancionatória semelhante ou análoga à medida de segurança, com finalidades de prevenção geral e especial.

2. Trata-se de um instituto criado para a prevenção geral e especial da criminalidade, ligado à ideia de que “o crime não compensa” e que o agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial causada em consequência de um facto antijurídico.

3. O direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório.

4. A reserva constante do n.º 2, do artigo 111º do Código Penal, em benefício dos direitos do ofendido implica que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens deverá prevalecer a primeira.

5. No mesmo sentido vai o estabelecido no artigo 130º, n.º 2, do Cód. Penal, ao prever que o tribunal possa “atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109.º e 110.º”.”

6. Não existe incompatibilidade na condenação simultânea na perda de vantagens e no pedido de indemnização civil.

7. Em caso de quantias coincidentes a declaração de perda de vantagem não terá qualquer efeito útil caso o condenado proceda ao pagamento da quantia referente ao pedido de indemnização civil.

8. Havendo concorrência entre a execução do pedido de indemnização civil e a quantia relativa à perda da vantagem patrimonial, a quantia não poderá ser exigida/cobrada duas vezes, devendo prevalecer a execução do pedido de indemnização civil, apenas podendo a quantia relativa à perda da vantagem patrimonial ser exigível caso a ofendida venha a renunciar total ou parcialmente à indemnização.

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Face ao exposto e salvo melhor entendimento, não nos merece, qualquer crítica a douta decisão recorrida.

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, e salvo melhor opinião, a decisão recorrida não é passível de censura e deverá ser mantida.

Contudo, V. Exas. farão, como sempre JUSTIÇA!”

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Neste tribunal da Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer do seguinte teor (na parte que interessa):

“Tem toda a razão quando refere a existência de uma equivalência entre aquilo que foi considerado perdido a favor do Estado e aquilo que irá reverter a favor da vítima em função do pedido de indemnização julgado procedente.

Mas já não tem a mínima razão quando apela à revogação da sentença nesta parte por considerar estarmos em presença de uma dupla condenação.

A senhora Procuradora explica-o proficiente e detalhadamente na sua resposta à qual, por ser completa e elucidativa, nos poderíamos limitar a aderir.

Na verdade, carece totalmente de fundamento a alegação de uma dupla condenação.

Não existe, como é óbvio.

Como dispõe o artº 110º nº 1 a) e b) do CP são declarados perdidos a favor do Estado os produtos e vantagens do facto ilícito típico. Considerando-se como tais as coisas, direitos e vantagens, que constituam vantagem económica, resultante directa ou indirectamente do facto criminoso.

Diz ainda o nº 6 deste preceito que esta disposição não prejudica os direitos do ofendido.

Por outro lado, a perda só não poderá ser decretada se os produtos instrumentos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada – artº 111º nº 1 do CP -.

Ora as vantagens patrimoniais obtidas pela arguida ainda estão em seu poder.

Portanto, bem andou o Ministério Público ao peticionar o dever de pagar ao Estado a quantia de que ilegitimamente se apropriou e bem andou o Tribunal ao proferir condenação nesse sentido.

Todavia, ao contrário do que a arguida alega, nunca será obrigada a desembolsar a mesma quantia duas vezes. A primeira, por hipótese para dar satisfação ao pedido formulado pelo Estado. A segunda em cumprimento da procedência do pedido de indemnização formulado pela ofendida.

Seria um absurdo e a própria lei resolve o problema. O já referido nº 6 do artº 110º deixa antever as consequências de uma interpretação harmónica dos dois interesses em conflito – o direito do Estado promover a realização dos fins preventivos ligados ao sancionamento do crime e na obliteração das inerentes vantagens e o direito do ofendido ver ressarcidos os prejuízos causados pelo ofensor – e o artº 130º do CP completa as conclusões que a partir daquele preceito já poderiam ser retiradas.

Como se refere no nº 2 do artº 130º “… o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do estado ao abrigo dos artºs 109º a 111º, incluindo o valor a estes correspondentes ou a receita gerada pela venda dos mesmos”

A ofendida já tomou a iniciativa de formular o pedido de indemnização que foi julgado procedente. O montante dessa condenação é exactamente o mesmo do valor cuja entrega ao Estado foi ordenada. Se a ofendida assim o entender – e não vislumbramos motivos para que não o faça – em momento próprio poderá fazer valer o seu direito a ser indemnizada fazendo-se pagar – admitindo, por hipótese, que o Estado se antecipe – pelo valor que o Estado Português venha a receber da arguida, ficando esta desonerada de qualquer outra obrigação adicional.

Tudo funciona assim, de um ponto de vista prático, como se estivéssemos perante uma condenação em alternativa e não uma dupla condenação.

Esta matéria já foi suficientemente tratada por vários autores, consta de variadíssima jurisprudência e não padece de interpretações dúbias.

Não iremos, por isso, reproduzir toda a panóplia de doutrina e jurisprudência abundantemente citada pelo Ministério Público na sua resposta, uma vez que o tema se nos afigura bastante claro e inequívoco.

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Finalmente uma última palavra sobre a(s) pena(s).

A motivação é omissa neste ponto.

Contudo nas conclusões diz-se o seguinte:

“VI – No que respeita à determinação da medida da pena, deveria ter sido feita com recurso aos critérios gerais indicados no artigo 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, pois está o Tribunal subordinado ao critério da culpa e às necessidades de prevenção.

VII – O Tribunal “a Quo” na determinação da medida da pena, deveria também ter recorrido à análise do Relatório Social da Recorrente, elaborado pela DGRS.

VIII – Violou assim o Tribunal “a Quo” as normas aplicadas na determinação da medida da pena estabelecidas na lei penal, nos artigos 71.º e 72.º do Código Penal.

Até aqui o recurso era coerente – embora dele discordássemos – e compreendia-se perfeitamente a lógica do raciocínio.

Agora ficámos confusos.

Para além de não ter fundamentado minimamente as razões que a levam a produzir semelhantes afirmações, também não explica – nem bem nem mal… - por que é que o Tribunal não terá, supõe-se, respeitado os critérios do artº 71º do CP.

Será por que as penas são excessivas?

Será por que o período de suspensão é muito longo?

Mistério!

Mistério e contradição desde logo com a própria motivação da qual se poderia deduzir que a única discordância residia na dupla condenação no pagamento das vantagens económicas obtidas com o crime.

As conclusões constituem uma condensação da motivação, um resumo das razões desenvolvidas em momento anterior – artº 412º nº 1 do CPP -.

Que neste recurso não existem.

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O recurso não merece provimento e a sentença deverá ser confirmada.”

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Cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

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APRECIAÇÃO

Questões a resolver:

Como bem observa o Exmº P.G.A. no seu parecer, apesar de no corpo da motivação do recurso a recorrente nada referir quanto a discordância relativa à natureza e medida das penas que lhe foram aplicadas, nas conclusões VI, VII e VIII demonstra tal discordância, referindo que o tribunal recorrido deveria “também ter decorrido à análise do Relatório Social da Recorrente, elaborado pela DGRS” e que foram violados os artºs 71º e 72º do C.P..

Ora, das duas, uma: ou a recorrente fez tais alusões quanto à pena por lapso, uma vez que, por um lado, no corpo da motivação nada refere quanto a isso (o que implica que nunca poderia haver lugar a convite nos termos do nº 3 do artº 417º do C.P.P.) e, por outro lado, alega expressamente que discorda apenas da declaração de perdimento a favor do Estado da quantia equivalente à vantagem patrimonial resultante da prática do crime (e termina a motivação de recurso solicitando a revogação da sentença recorrida apenas nessa parte); ou pretende mesmo pôr em causa a natureza e/ou medida das penas aplicadas e, nesse caso, não dá o mínimo cumprimento ao disposto no artº 414º, nºs 1 e 2, al. b), do C.P.P., desconhecendo-se completamente as razões concretas da eventual discordância quanto à natureza e/ou medida das penas, designadamente onde é que ocorreu violação concreta dos artºs 71º e 72º do C.P..

Assim sendo, seja por uma razão, seja por outra, nada há apreciar quanto às penas fixadas, restando apenas analisar a questão da declaração de perdimento a favor do Estado da vantagem patrimonial, e condenação da recorrente no seu pagamento, concomitantemente com a condenação da recorrente no pagamento da indemnização cível em igual quantia.

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Na parte que interessa, a sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

“1. A ofendida …, S.A., NIPC …, com sede na Rua …., em …, área deste município de …, dedica-se, entre outras funções, à exploração de empreendimentos hoteleiros e similares, promoção no ramo dos direitos reais de habitação periódica dos Apartamentos Turísticos …, também conhecido como “….”;

2. A arguida VLPA trabalhou para a ofendida …, S.A., desde 1 de Março de 2017 até ao dia 24 de Julho de 2017, data em que abandonou o local de trabalho e não mais regressou;

3. A arguida VA foi contratada através de uma empresa de trabalho temporário – “…, Lda.”, para substituir a trabalhadora ACRS que, à data, estava em gozo de licença de maternidade;

4. A arguida VA exerceu funções na sede da ofendida, sita na Rua …, em …, área deste município de …;

5. A arguida VA foi contratada para exercer funções no departamento de contabilidade, cabendo-lhe, entre outras atribuições: emitir facturas, registar facturas de clientes e fornecedores, receber valores pagos por clientes, elaborar e inserir dados nos extractos de contas dos clientes, preparar os pagamentos a fornecedores e a clientes através do internet banking e tratar do expediente geral do escritório;

6. Para poder exercer as funções que lhe estavam confiadas, a arguida VA tinha, também, acesso ao homebanking do … associado à conta com o IBAN … de que a ofendida …, S.A. é titular nesse banco, tendo-lhe sido atribuído um nome de utilizador (o seu nome) e códigos de acesso;

7. A arguida VA é titular da conta à ordem com o IBAN n.º … no banco …;

8. Por seu lado, JMCG, que, pelo menos à data (2017), era companheiro da arguida, é titular da conta à ordem com o IBAN … no banco …, conta bancária à qual a arguida tem pleno acesso;

9. A sociedade ofendida … S.A. tinha, no homebanking do … associado à conta à ordem acima descrita um conjunto de beneficiários frequentes (fornecedores) a quem a ofendida habitualmente fazia pagamentos, estando inseridos nesse conjunto de beneficiários o nome desses fornecedores e o respectivo IBAN, para facilitação dos pagamentos habituais da empresa;

10. Uma das tarefas da arguida VA, como acima se descreveu, era efectuar o pagamento de facturas de fornecedores da ofendida …, S.A., sendo esses pagamentos feitos através do Homebanking do … melhor descrito em 6) da matéria de facto provada; para tal a arguida introduzia os dados a pagamento, nomeadamente o montante e o n.º da factura. Após, munida da factura, solicitava ao director FM a validação da operação, sendo que, após a validação, o pagamento era efectuado;

11. Sucede que a arguida VA decidiu aproveitar-se das suas funções para se apropriar de valores que não lhe pertenciam e que lhe tinham sido entregues por clientes da ofendida para, por sua vez, os fazer chegar à ofendida …, S.A.;

12. Decidiu também a arguida VA aproveitar-se do acesso que tinha ao Homebanking melhor descrito em 6) para, através da manipulação e alteração de dados do mesmo, fazer com que os pagamentos efectuados pela ofendida …, S.A. fossem creditados, quer na sua conta bancária descrita em 7), quer na conta bancária do seu companheiro JG, descrita em 8);

13. Assim no dia 01-03-2017, na sede da ofendida …, S.A., sita na Rua …, em …, área deste município de …, o cliente da ofendida JP entregou à arguida VA a quanta de 1.000€ (mil euros), destinada ao pagamento da taxa de alojamento hoteleiro, tendo a arguida emitido um recibo provisório, que entregou a JP;

14. Sucede que a arguida VA, ao invés de inscrever esse valor na folha de caixa do dia 01-03-2017, bem como na conta-corrente do cliente e de entregar esse montante à ofendida, não o fez, apoderando-se da quantia de 1.000€, (mil euros) que bem sabia ser pertença da ofendida …, S.A., mais sabendo que esta não lhe permitia que desse outro destino aos valores entregues pelos seus clientes;

15. No dia 15-05-2017, na sede da ofendida …, S.A., sitas na Rua …, em …, área deste município de …, o cliente da ofendida JCMH entregou a AMSPS, também funcionária da ofendida e que estava a substituir momentaneamente a arguida VA no seu local de trabalho, a quantia de 1.600€ (mil e seiscentos euros), destinada ao pagamento da taxa de alojamento hoteleiro;

16. Logo que a arguida VA regressou à sede da ofendida, o que sucedeu poucos minutos depois, AMSPS entregou à arguida essa quantia de 1.600€ (mil e seiscentos euros), informando-a que esse montante tinha sido pago por JCMH e que a arguida devia registar esse montante na folha de caixa de dia 15-05-2017, na conta-corrente do cliente, e entregar o montante à ofendida;

17. Sucede que a arguida VA, ao invés de inscrever esse valor na folha de caixa do dia 15-05-2017, bem como na conta-corrente do cliente, e entregar o montante de 1.600€ (mil e seiscentos euros) à ofendida, não o fez, apoderando-se da quantia de 1.600€ (mil e seiscentos euros), que bem sabia ser pertença da ofendida …, S.A., mais sabendo que esta não lhe permitia que desse outro destino aos valores entregues pelos seus clientes;

18. Assim no dia 02-07-2017, na sede da ofendida …,, S.A., sita na Rua …, em …, área deste município de …, o cliente da ofendida PD entregou à arguida VA a quantia de 1.237,75€ (mil duzentos e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos), destinada ao pagamento da taxa de alojamento hoteleiro, tendo a arguida emitido um recibo provisório, que entregou a JP;

19. Sucede que a arguida VA, ao invés de inscrever esse valor na folha de caixa do dia 02-07-2017, bem como na conta-corrente do cliente e de entregar esse montante à ofendida, não o fez, apoderando-se da quantia de 1.237,75€ (mil duzentos e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntios), que bem sabia ser pertença da ofendida …, S.A., mais sabendo que esta não lhe permitia que desse outro destino aos valores entregues pelos seus clientes;

20. Bem sabia a arguida VA que os montantes entregues pelos clientes da ofendida …, S.A. não lhe pertenciam e que apenas era depositária dos mesmos, e que era sua obrigação entrega-los à sua proprietária, a ofendida …, S.A., e ainda assim, apropriou-se da quantia total de 3.837,75€ (três mil oitocentos e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos);

21. A arguida VA obteve um enriquecimento ilícito no valor de 3.837,75€ (três mil oitocentos e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos) à custa do património da ofendida …, S.A., que teve um prejuízo de igual montante;

22. Como acima descrito, uma das tarefas atribuídas à arguida VA pela ofendida …, S.A. era a validação da facturação recebida dos fornecedores da ofendida e através do uso do Homebanking identificado em 6), preparar o respectivo pagamento através de transferência bancária para o beneficiário frequente, como descrito em 9), emitente dessa factura, para depois ser essa transferência validada pelo Director da ofendida, FM;

23. Assim, a arguida VA decidiu aproveitar-se do acesso que tinha ao homebanking, e alterar os IBANs (números internacionais de conta bancárias) de diversos fornecedores da ofendida …, S.A., a quem esta efectuava pagamentos regulares, inserindo no seu lugar os IBANs das contas melhor identificadas em 7) e 8), mas deixando o nome dos fornecedores que já constavam dessa listagem, para, desta forma, todos os pagamentos que a arguida solicitasse para esses fornecedores e que fossem validados pelo Director da ofendida FM fossem transferidos, quer para a sua conta quer para a conta bancária do seu companheiro JG, tendo efectuado as alterações que se descrevem:

a) Entre dia 01-03-2017 e o dia 29-06-2017, no fornecedor “… – eliminou o IBAN pertença deste e inseriu o IBAN correspondente à conta à ordem titulada pelo seu companheiro JG, descrita em 8);

b) Entre o dia 01-03-2017 e o dia 03-07-2017, no fornecedor “…, Lda.”, eliminou o IBAN pertença deste e inseriu o IBAN correspondente à conta à ordem titulada pelo seu companheiro JG, descrita em 8);

c) Entre dia 30-06-2017 e o dia 07-07-2017, no fornecedor “… – eliminou o IBAN do companheiro JG que tinha inserido como descrito na alínea a) supra e inseriu o IBAN correspondente à conta à ordem titulada pela própria arguida VA, descrita em 7);

d) Entre dia 01-03-2017 e o dia 10-07-2017, no fornecedor “…, Lda.” – eliminou o IBAN pertença deste e inseriu o IBAN correspondente à conta à ordem titulada pela arguida VA, descrita em 7);

e) Entre o dia 01-03-2017 e o dia 10-07-2017, no fornecedor “…, Lda.”, eliminou o IBAN pertença deste e inseriu o IBAN correspondente à conta à ordem titulada pelo seu companheiro JG, descrita em 8);

f) Entre dia 01-03-2017 e o dia 17-07-2017, no fornecedor “…,S.A.”, – eliminou o IBAN pertença deste e inseriu o IBAN correspondente à conta à ordem titulada pela arguida VA, descrita em 7.

24. Ao modificar o IBAN constante da listagem de fornecedores do homebanking do … associado à conta com o IBAN … de que a ofendida …, S.A. é titular nesse banco, introduzindo no seu lugar, ora o IBAN da conta à ordem de que é titular, identificada em 7), ora o IBAN da conta à ordem de que é titular o seu companheiro JG, identificada em 8), agiu a arguida VA com intenção concretizada de provocar engano nas relações jurídicas, mais sabendo que estava a interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados não genuínos, com a intenção de que estes fossem considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se de genuínos se tratassem, mais sabendo que estava a praticar tais factos após ter usado um acesso reservado (nome de utilizador e código) que lhe tinha sido fornecido pela ofendida apenas para os fins por ela permitidos, que esta não lhe permitia as alterações que efectuou e que o fazia num sitio da internet que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, com acesso condicionado;

25. A partir do momento em que a arguida VA efectuou as alterações descritas no facto n.º 23), a arguida sabia que todos os pagamentos efectuados através do Homebanking identificado em 6) para pagamento das facturas emitidas por estes à ofendida …, S.A. e que seriam destinadas aos fornecedores descritos nas alíneas a) a f) do facto n.º 23), teriam como destinatárias a sua conta e a do seu companheiro JG, descritas, respectivamente, identificadas em 7) e 8);

26. Assim, a arguida VA, através do uso do Homebanking do … associado à conta com o IBAN … de que a ofendida …, S.A. é titular nesse banco preparou e solicitou os seguintes pagamentos, para serem validados pelo Director FM, tendo entregue as facturas respectivas ao director para validação, o que este fez, concretizando as transferências bancárias que se descrevem:

a) 29-06-2020: pagamento das facturas n.ºs 44923 e 45076 do fornecedor … no valor de 1.520€ (mil quinhentos e vinte euros);

b) b) 03-07-2017: pagamento da factura n.ºs 17AGE16358 do fornecedor “…” no valor de 808€ (oitocentos e oito euros);

c) 05-07-2017: pagamento de uma factura alterada pela arguida VA como adiante se descreverá, em nome de … no valor de 865,92€ (oitocentos e sessenta e cinco euros e noventa e dois cêntimos);

d) 07-07-2020: pagamento da factura n.º 44923 do fornecedor … no valor de 746€ (setecentos e quarenta e seis euros);

e) 10-07-2020: pagamento da factura n.º CFA 2014/1100 do …, Lda. no valor de 109,47€ (cento e nove euros e quarenta e sete cêntimos);

f) 10-07-2020: pagamento da factura n.º G201122785 do fornecedor “…, Lda.” no valor de 631€ (seiscentos e trinta e um euros);

g) 12-07-2017: pagamento de uma factura alterada pela arguida VA como adiante se descreverá, em nome de “…” no valor de 1.452€ (mil quatrocentos e cinquenta e dois euros);

h) 17-07-2020: pagamento das facturas n.ºs G20122683 e G20122784 do fornecedor “…, S.A.” no valor de 1.864€ (mil oitocentos e sessenta e quatro euros);

i) 20-07-2020: pagamento da factura n.º G20122749 do fornecedor “…, S.A.” no valor de 932€ (novecentos e trinta e dois euros);

j) 24-07-2020: pagamento de uma factura do fornecedor “…, S.A.” no valor de 2.214€ (dois mil duzentos e catorze euros)

27. Já após a arguida deixar de trabalhar para a ofendida …, S.A., e mercê da alteração efectuada pela arguida VA descrita no ponto 23. alínea e), a funcionária da ofendida ACRS, que desconhecia as alterações efectuadas pela arguida, solicitou, através do internet banking identificado em 6), um pedido de transferência bancária, que foi devidamente validado e concretizado pelo director FM, para pagamento da factura n. 17AGE16888 emitida pelo fornecedor da ofendida …, S.A., “…, Lda.”, no valor de 1.301€ (mil trezentos e um euros) cujo destinatário acabou por ser a conta bancária identificada em 8), titulada pelo companheiro da arguida, JG, à qual a arguida tinha acesso, obtendo a arguida um enriquecimento ilícito no montante de 1.301€, à custa da ofendida …, S.A. que teve um prejuízo de igual montante;

28. Assim, atentas as modificações efectuadas pela arguida e descritas em 23), as transferências bancárias descritas em 26) não tiveram como destinatários os fornecedores da ofendida …, S.A. e credores desta, mas sim as contas que se descrevem:

a) Transferências descritas nas alíneas d), e), g), h), i) e j) do facto 26) foram creditadas na conta à ordem de que a arguida VA é titular no banco … com o IBAN n.º…, obtendo a arguida desta forma um enriquecimento ilícito, à custa da ofendida …, S.A. no montante de 5.865,47€ (cinco mil, oitocentos e sessenta e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), que teve um prejuízo de igual montante;

b) Transferências descritas nas alíneas a), b), c) e f) do facto 26) foram creditadas na conta à ordem de que o companheiro da arguida, JMCG é titular da conta à ordem com o IBAN … no banco …, conta bancária à qual a arguida tinha pleno acesso, obtendo a arguida desta forma um enriquecimento ilícito, à custa da ofendida …, S.A. no montante de 5.276,92€ (cinco mil, duzentos e setenta e seis euros e noventa e dois cêntimos), ), que teve um prejuízo de igual montante;

29. A arguida VA agiu com intenção concretizada de obter para si um enriquecimento ilícito, no valor global de 12.443,39€ (doze mil quatrocentos e quarenta e três euros e trinta e nove cêntimos), bem sabendo que causava à ofendida …, S.A., um prejuízo de igual montante, tendo para o efeito interferido no resultado de tratamento de dados mediante utilização incorrecta e incompleta de dados sem autorização;

30. A arguida sabia ainda que o valor que ilicitamente obteve à custa da ofendida …, S.A. - 12.443,39€ (doze mil quatrocentos e quarenta e três euros e trinta e nove cêntimos) – era elevado;

31. Como referido nas alíneas c) e g) do facto n.º 26), as facturas aí descritas, e que constam a fls. 14 e 25 dos presentes autos não correspondem a facturas emitidas pelo “…, Lda.”;

32. Na verdade, o documento que consta de fls. 14, foi fabricado/alterado pela arguida VA que, na posse de uma outra factura, emitida pelo “…, Lda.”, alterou a data constante da mesma, introduzindo a data de 25-06-2017, bem como introduziu um n.º de factura que copiou de outra já paga pela ofendida e de outro fornecedor (17AGE16410), inseriu serviços alegadamente prestados e o valor de cada, introduzindo o montante total 865,92€, eliminou o IBAN e a assinatura digital;

33. Por outro lado, o documento que consta de fls. 25, foi fabricado/alterado pela arguida Va que, na posse de uma outra factura, esta sim emitida pelo “…, Lda.”, alterou a data constante da mesma introduzindo a data de 12-08-2017, bem como introduziu um n.º de factura que copiou de outra já paga pela ofendida e de outro fornecedor (17AGE16293), inseriu serviços alegadamente prestados, o valor de cada, introduzindo o montante total de 1.452,00€, eliminou o IBAN existente inserindo o IBAN … que corresponde à conta à ordem titulada pelo companheiro da arguida JG, descrita em 8), e eliminou a assinatura digital;

34. A arguida sabia que estava a alterar os documentos descritos nos pontos 32 e 33 desta acusação, fazendo neles constar falsamente factos juridicamente relevantes que tinha perfeito conhecimento não corresponderem à verdade, bem como que usou e entregou ao director FM esses documentos que tinha alterado para validação das transferências que tinha solicitado, com intenção concretizada de obter um benefício ilegítimo, causando um prejuízo à ofendida …, S.A., bem como para preparar e facilitar a prática do crime de burla informática (através das transferências que obteve com a alteração/uso dos documentos supra descritos);

35. Atenta a forma camuflada de actuação da arguida VA, os legais representantes da ofendida …, S.A. apenas se aperceberam das transferências efectuadas para contas da arguida e do seu companheiro, bem como do facto de a arguida não proceder à entrega à ofendida dos valores em dinheiro pagos pelos seus clientes, no dia 17-12-2017, altura em que a ofendida, após alertada pelos fornecedores do não pagamento de várias facturas, efectuou uma vistoria a todo o trabalho realizado pela arguida e um encontro de contas que originou a descoberta dos factos relatados nesta acusação;

36. Em tudo acima descrito, agiu a arguida VA de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram censuráveis, proibidas e punidas por lei penal, ao que foi indiferente.”

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Como já acima se referiu, a recorrente foi condenada no pagamento do montante indemnizatório €16.281,14, a título de danos patrimoniais, acrescido de juros legais, à taxa legal de 4%, contados desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.

Como fundamento da declaração de igual quantia a favor do Estado e condenação da recorrente no seu pagamento (embora sem qualquer referência a juros), escreveu-se na sentença recorrida:

“Requer o Ministério Público que seja a arguida condenada a pagar ao Estado a quantia de €16.281,14, correspondente ao montante da vantagem patrimonial ilegítima que obteve com a sua conduta.

Atentas as considerações supra no que concerne à responsabilidade criminal da arguida, as quais se dão por integralmente reproduzidas, resulta claro ser de declarar perdida a favor do Estado a quantia de €16.281,14, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática do ilícito, condenando-se a arguida a pagar tal quantia ao Estado, ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1 alínea b) e n.º 4 do Código Penal.”

O referido artº 110º do C.P. dispõe:

Artigo 110.º

Perda de produtos e vantagens

1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.

A solução para o que está em causa no presente recurso está já bem referida, quer na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, quer no parecer emitido pelo Exmº P.G.A. neste tribunal da Relação.

Pouco mais haverá a referir, sendo certo que a questão tem sido já judicialmente apreciada de modo maioritariamente ao aqui seguido.

Vejamos:

A propósito da perda de vantagens, agora prevista no artº 110º do C.P. (redacção introduzida pela L. 30/2017 de 30/5, já em vigor à data da prática do último acto levado a cabo pela recorrente), e anteriormente previsto no artº 111º do C.P., refere o Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, pág. 632: “Nas vantagens, diversamente, o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que «o ‘crime’ não compensa”.

E mais adiante, pág. 633, § 1005, a propósito precisamente da questão concreta em causa neste recurso: “À primeira vista, a consagração da perda de vantagens como providência de carácter criminal pode parecer absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente, sob a forma da restituição em espécie). A providência justifica-se, no entanto, de um duplo ponto de vista. Por uma parte, o lesado pode prescindir da reparação, não apresentando o respectivo pedido; caso em que as finalidades de prevenção, geral e especial, acima apontadas dão fundamento autónomo ao decretamento da perda. Por outra parte, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima foi prejudicada. Suscita-se, nestas hipóteses, o problema de saber até onde deverá a perda das vantagens ser decretada (infra § 1009). Mas seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda. Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda de vantagens poderá vir a ser decretada utilmente”.

Temos, portanto, que a perda das vantagens tem como primeiro objectivo fazer com que o agente do crime não retire qualquer vantagem com a sua prática, fazendo ver a todos (prevenção geral) que para além da punição criminal propriamente dita, não é possível obter qualquer tipo de benefício com a mesma.

E tal objectivo faz sentido mesmo que ocorra condenação no pedido de indemnização formulado pelo ofendido/lesado.

É que mesmo havendo condenação no pedido de indemnização pode sempre o beneficiário desta vir a prescindir da mesma ou permanecer inactivo com vista à sua cobrança. Se tal viesse a ocorrer, e inexistindo declaração de perda da vantagem a favor do Estado e condenação do arguido nesse pagamento, sempre ficaria frustrado o acima referido objectivo e nesse caso ficaria nas mãos do ofendido o crime “compensar”, ou não.

Assim se entendeu, entre outros, no ac. da rel. de Lisboa de 18/6/2019, assim sumariado:

“- O instituto intitulado de “perda de vantagens” constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos.

- A perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”, nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza].

- Reconhece-se, assim, que o agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial demonstrada na acusação, e causada em consequência de um facto antijurídico. Este retorno, sublinhe-se, deverá ocorrer mesmo que o pedido de indemnização civil não tenha sido formulado, por algum motivo tenha sido julgado improcedente ou seja relativo a valor inferior à vantagem patrimonial que ocorra.

- A reserva constante do n.º 2, do citado art. 111ºC.P., em benefício dos direitos do ofendido ou terceiros de boa-fé, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes e no mesmo sentido vai a estatuição do art. 130º, n.º 2, do Cód. Penal, ao prever que o tribunal possa “atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109.º e 110.º”.

- O direito ao pedido de indemnização civil não pode contender ou substituir o direito de o Estado ser de imediato reintegrado na sua esfera patrimonial com os bens/direitos/vantagens que lhe foram subtraídos com a prática do crime.

- Não há qualquer incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social.”

E no texto do referido acórdão:

“Ao contrário do que parece defender o Tribunal recorrido, não há nenhuma incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social, tal como a jurisprudência tem vindo consistentemente a decidir no seguimento de informada doutrina (cfr., entre outros, “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários” - Dr. João Conde Correia e Dr. Hélio Rigor Rodrigues, in Revista Julgar Online, Janeiro de 2017).

Vejam-se, neste sentido e a título de exemplo, os seguintes Acórdãos: - Acórdão de 22 de Fevereiro de 2017, processo n° 2373/14.9IDPRT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Maria Deolinda Dionísio; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Março de 2017, processo n° 86/14.0IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Francisco Mota Ribeiro; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Junho de 2017, processo n° 25/15.1IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador José Carlos Borges Martins; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Julho de 2017, processo n° 149/16.8IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Jorge Langweg; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Maio de 2017, processo n° 259/15.9IDPRT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Lígia Figueiredo; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2018, processo n° 176/16.5PAVFR, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Ernesto Nascimento; e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Janeiro de 2018, processo n° 126/14.3GBAMT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Maria Deolinda Dionísio.”

O mesmo no ac. da rel. do Porto de 26/10/2017, assim sumariado: .

“Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artº 111º CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime.”

Acontece que se, por um lado, o lesado não pode ser prejudicado pela declaração de perda das vantagens (cfr. nº 6 do artº 110º do C.P.), podendo o mesmo nos termos do artº 130º, nº 2, do C.P. “fazer-se pagar” quanto aos danos causados pelo valor das vantagens recebidas pelo Estado, por outro lado, não pode ocorrer execução simultânea pelo Estado e pelo ofendido/lesado ou só por aquele quando, como acontece muitas vezes, designadamente nos crimes fiscais, é o Estado o próprio ofendido.

Mas isso é questão que só posteriormente se colocará, se for caso disso, pois que, como bem se refere no voto de vencido proferido no ac. da rel. do Porto de 30/4/2019:

“Não compete ao tribunal, de primeira instância ou de recurso fixar ressalvas sobre que direitos não podem ser prejudicados com esta perda nem como devem ser reduzidos pagamentos; essas questões terão que ser atendidas no momento próprio (na decisão em primeira instância ou em sede de recurso se já tiverem ocorrido pagamentos ou em execução se ocorrerem depois daquelas decisões) e sempre sem prejuízo de direitos legalmente conferidos não havendo que o declarar.”

Uma coisa é certa, repete-se: a recorrente não será “obrigada” a pagar duas vezes a mesma quantia, ou seja, por duas vezes a quantia de que ilicitamente se apropriou, pois tal constituiria um empobrecimento sem justificação, para além do que se pretende que ocorra: inexistência de benefício com a prática do crime. A recorrente deve voltar a estar na situação patrimonial em que se encontrava antes da prática do crime, não mais “pobre” (em duplicado) do que estava.

É como se refere no texto do acima referido rel. do Porto de 26/10/2017:

“É por isso mesmo, porque não pode ser executada duas vezes (sob pena de se modificar a natureza jurídica do confisco: em vez de colocar o arguido no status patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico seria um mecanismo de redução do seu património lícito) que Jorge de Figueiredo Dias refere quer nesses casos, decretar o confisco poderá não ter utilidade. Da sua asserção não se pode, todavia, retirar que o confisco cessa quando existe um pedido de indemnização civil, mas apenas que «poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente» (Direito Penal Português…, p. 633). O que não significa, por exemplo, que não tenha já relevância (teórica) ou que não possa vir a ganhá-la no futuro (v.g. porque o título executivo já existente prescreveu entretanto).”

Como é sobejamente referido, designadamente pelo Prof. Figueiredo Dias, a declaração judicial de perdimento da vantagem pode vir a revelar-se inútil, inconsequente, mas isso não significa que, pelas razões já referidas, não deva ser decretada. Só assim não será se no decurso do processo se comprovar que o agente do crime ressarciu o ofendido em montante exactamente igual ao das vantagens que obteve com a prática do crime. Aí sim: aquando da condenação já se sabe que a declaração de perda é completamente inútil.

Não sendo esse o caso dos autos, deve a sentença recorrida ser mantida na sua totalidade.

Assim, em conclusão: A existência de condenação no pagamento da quantia solicitada no pedido cível pelo ofendido/lesado a título de ressarcimento dos danos causados pela prática do crime, não impede que seja decretado o perdimento de igual quantia a favor do Estado e a condenação do arguido no seu pagamento, nos termos do artº 110º, nºs 1, al. b) e 4 do C.P., por ter sido essa quantia a vantagem obtida pelo agente do crime com essa prática.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Deverá a recorrente suportar 3 UCs de taxa de justiça (artºs 513º, nº 1, do C.P.P. e 8º, nº 9, e tabela III do R.C.J.).

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Évora, 7 de Setembro de 2021

Nuno Garcia

Edgar Valente