Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
229/15.7 GBSLV.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: CRIME DE SEQUESTRO AGRAVADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 10/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A factualidade assente imputada à arguida traduziu uma significante privação, contra vontade, da liberdade da ofendida/vítima e os actos que lhe foram dirigidos e infligidos – de ameaça à respectiva integridade física e ameaça à vida, golpeando-a com objecto corto contundente, designadamente na cabeça, no rosto e nas costas e desferindo-lhe socos e pontapés por todo o corpo e cortando e rapando o cabelo com uso de tesoura pontiaguda e máquina de cortar cabelo e corte das roupas, incluindo a roupa interior que trajava, deixando-a num lugar ermo e inóspito, completamente desnudada -, traduzem uma actuação constitutiva de uma séria ofensa à dignidade da pessoa humana, excedendo o meio mínimo para levar a cabo a privação de liberdade, enfim, traduzem um “tratamento degradante e desumano”.

As exigências de prevenção geral que subjazem, em primeira linha, ao regime da suspensão da execução da pena de prisão, são prementes e elevadas, atendendo sobremaneira à necessidade de se reafirmar, de forma eficaz, a validade e confiança na norma incriminadora e, no tocante às exigências de prevenção especial, pelo que não é possível no caso sub judice formular um juízo de prognose favorável do futuro comportamento da arguida que ante os factos apurados não deu mostra alguma de ser capaz de avaliar e interiorizar o desvalor da sua conduta.

Significa o exposto que, como se alcança da factualidade assente e das sedimentadas circunstâncias do crime e o que elas revelam da personalidade da arguida, sopesadas, com aqueloutras invocadas pela recorrente, maxime da inserção pessoal e familiar, estas não permitem concluir ter a arguida capacidade para interiorizar a desvalia da sua conduta e para se determinar no futuro de acordo com o direito.

Sem embargo de se afigurar manifesto que, no caso em apreço, o decretamento de tal pena de substituição seria entendido pela sociedade como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime e, por conseguinte, não se mostrariam salvaguardadas as exigências de prevenção geral, na vertente das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, nº 229/15.7 GBSLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal de Portimão, Juiz 1, mediante pronúncia, precedendo pedido de indeminização civil [formulado pelo “Centro Hospitalar do…, EPE” contra os arguidos/demandados, peticionando destes o pagamento das despesas relativas aos cuidados de saúde prestados à ofendida LMR, no montante de 163,11 €], e apresentação de contestação [por banda dos arguidos], foram submetidos a julgamento os arguidos EIAC, RIFA e TFLS, (devidamente identificados nos autos, designadamente a fls. 809), e por acórdão proferido e depositado em 07.05.2019, foi decidido:

“(…)

julgamos a acusação parcialmente procedente e, em consequência:

Absolvemos o arguido TFLS e RIFA da prática de um crime de sequestro, previstos e punidos pelo artigo 158°, n.ºl e n.º2, alínea b), do Código Penal:

Absolvemos o arguido TFLS da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n.º1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

Condenamos a arguida EIAC,

A) na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de sequestro, previstos e punidos pelo artigo 158°, n.ºl e n.º2, alínea b), do Código Penal;

Mais condenamos a arguida na taxa de justiça de 4 (quatro) U.C. e nas demais custas do processo.

Consideramos procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado a fls. 564 pelo CH …e condenamos a demandada no pagamento aquela da quantia de €163,11 (cento e sessenta e três euros e onze cêntimos), acrescido de juros de mora contados desde o trânsito em julgado deste Acórdão até ao efectivo e integral pagamento, absolvendo os demais demandados do pedido.

(…)”.

Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida EIAC, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

“1. Encontra-se a arguida condenada pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158º/1 e 2/b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2. A Recorrente discorda, quer de facto, quer de Direito, com a decisão aqui recorrida.

3. Quanto à matéria de facto, considera a Recorrente que foram incorrectamente julgados os factos provados em 6º a 9º, 11º a 14º, 17º, 18º, 21º, 25º, 27º e 29º a 33º - factos que ora expressamente impugna.

4. Sendo que as provas que impunham decisão diversa da recorrida no tocante aos factos que se têm por erradamente julgados, para além da valoração que não podia ter sido dada a determinados elementos de prova (que a seguir também identificaremos), são:

• Declarações para memória futura prestadas pela Ofendida – prestadas no dia 11/06/2015, com início às 15:56:00 e fim às 16:34:00 (ficheiro áudio 20150611155620_3648409_2870864) e com início às 16:35:00 e fim às 16:52:00 (ficheiro áudio 20150611163521_3648409_2870864), gravado pelo sistema central de gravação do tribunal;

• Depoimento da testemunha EHR, prestado na sessão de audiência de discussão e julgamento do dia 23/04/2019, com início às 10:10:38 e fim às 10:34:56 (ficheiro áudio 20190423101037_3997108_2871988), gravado pelo sistema central de gravação do tribunal e

• Documento junto com a contestação apresentada pela Recorrente como Doc. B1 (declaração emitida por ….).

5. Já os elementos que não poderiam ter merecido a valoração que mereceram são as localizações celulares do n.º … de fls. 375 dos autos e as fotografias de fls. 98 a 129.

6. O tribunal recorrido vem a formar e firmar a sua convicção de que a Recorrente participou nos factos que visaram a ofendida porque considera que o dito n.º de telemóvel lhe pertencia ou era por si utilizado (cfr. páginas 17 e 18 do acórdão) – embora, como veremos, sem qualquer prova que sustentasse tal conclusão.

7. Desde logo, quanto à questão da pertença/utilização do cartão de telemóvel com o n.º … pela Arguida e por reporte ao facto dado como provado em 6º, consideramos que se verifica o vício de falta/insuficiência de fundamentação a que alude o art. 379º/1/a) C.P.P. – o que importa a nulidade do acórdão, a qual deve ser firmada por V. Exas..

8. Isto porque, no que concerne a tal questão, não se escreveu uma linha, uma palavra sequer no acórdão ora em crise que permitisse descortinar como e porque se convenceu o tribunal de 1ª Instância que, conforme deu como provado, o n.º … era da ou utilizado pela Recorrente.

9. Sendo que de acordo com o art. 374º/2 C.P.P. a sentença/acórdão deve conter uma exposição, tão completa quanto possível, dos motivos de facto e de Direito que levaram à decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para a formação de tal convicção.

10. Ainda assim, inexiste qualquer documento emitido pela operadora móvel respectiva que firme a quem pertencia tal número.

11. Sendo que também nas SMS trocadas com ER (constantes de fls. 98 a 129), em momento algum, o interlocutor desta se identifica como sendo a Recorrente.

12. No sentido de não confirmar a convicção do tribunal recorrido de que o número móvel em apreço era da Recorrente, não pode deixar de se ter em conta o depoimento da testemunha ER (acima devidamente identificado e cujas passagens relevantes se encontram também concretizadas nos termos legais).

13. Esta testemunha referiu que só conheceu a Recorrente DEPOIS da ofendida lhe ter dito o que consigo havia sucedido.

14. Dizendo que quem lhe indicou aquele n.º de telemóvel com que trocou mensagens foi a própria ofendida, dizendo que seria o contacto da Recorrente.

15. Adiantou também recordar-se que foi ela quem iniciou os contactos e não o utilizador do n.º ….

16. Mais refere (embora o tribunal recorrido o tenha desvalorizado…) QUE NÃO CHEGOU A MARCAR QUALQUER ENCONTRO ENTRE A ARGUIDA E A OFENDIDA, PORQUE ESTA TINHA MEDO DE SE ENCONTRAR COM AQUELA.

17. Não obstante, o tribunal recorrido acaba por afastar/desvalorizar este depoimento porque entende que o contrário resulta do teor das mensagens trocadas, nomeadamente que foi a Recorrente quem sequestrou e agrediu a ofendida – com o que não concordamos.

18. Porém, dessas mensagens, não resulta mais do que a perspectiva de um encontro entre o interlocutor de ER e a ofendida – não resultando que esse interlocutor fosse a Recorrente, muito menos resultando que esse encontro se tenha concretizado.

19. Pelo que não podemos deixar de questionar em que elementos se apoiou o tribunal recorrido para considerar que era a Recorrente quem se correspondia com ER ou que, tendo ocorrido o encontro que se perspectivava nas mensagens, que o interlocutor de ER era uma das pessoas que abordou e sequestro a ofendida – ainda para mais quando esta testemunha refere peremptoriamente que só contactou com a Recorrente depois da ocorrência dos factos criminosos!

20. Pelo que é evidente que a culpabilidade da Recorrente dada como provada assenta na presunção (SEM PROVAS) de que era aquela que utiliza o n.º ….

21. E é com base nessa presunção que o tribunal recorrido afasta (mal na nossa perspectiva) a declaração emitida pela … (Doc. B1 da contestação), que atesta que, naquele dia 26/05/2015, às 15h, a Recorrente se encontrava em …., no funeral de um seu tio.

22. É verdade que CR (funcionária da … que assinou tal documento) declarou, em audiência, que acontece emitir aquele tipo de documentos sem confirmar a identidade de quem lhe faz o pedido, podendo até o pedido ser feito por uma terceira pessoa. Mas não é menos verdade que esta testemunha não disse que o que atestou não correspondia, em concreto, à verdade!

23. Se, como vimos, o tribunal a quo não tinha sustentáculo para considerar que aquele número era pertença ou era utilizado pela Recorrente (tão pouco se dignou a justificar como alcançou tal conclusão!), não se pode aceitar que os respectivos dados de tráfego sirvam para afastar a referida declaração emitida pela ….

24. Até porque o reconhecimento fotográfico feito pela ofendida nas declarações para memória futura que prestou, por não ter obedecido ao art. 147º/5 C.P.P., não tem qualquer validade – lógica que, aliás, o tribunal recorrido aceitou e firmou no seu acórdão relativamente ao arguido TS.

25. Assim, não se pode aceitar a conclusão de que a Recorrente era quem detinha/utilizava o n.º …, também não se podendo relevar as sms de fls. 98 a 129 dos autos, nem o registo de tráfego de fls. 375.

26. Pelo que é evidente que a prova consistente nas declarações de ER e a declaração constante de Doc. B1 da contestação da Recorrente impunham que o tribunal recorrido também tivesse dado como não provados, quanto à Recorrente, os factos que acima impugnámos.

27. Devendo tais factos passar a constar da matéria de facto dada como não provada ou, no limite, substituindo-se as referências à Recorrente pela expressão “pessoa que não foi possível identificar” – e, por isso, exigindo-se a absolvição da Recorrente.

28. Mas mesmo que V. Exas. considerem que a prova produzida é suficiente para que se dê como provada a actuação criminosa da Recorrente, ainda assim, impõe-se alterar alguns factos – pois que os concretos actos por esta praticados dados como provados não correspondem à prova.

29. Em concreto, certos comportamentos que lhe foram assacados não resultam das declarações para memória futura da ofendida, pelo contrário – pelo que este meio de prova, como veremos, impunha decisão diversa da recorrida.

30. Quanto ao facto 18º, resulta das declarações para memória futura da ofendida (cfr. segmentos devidamente identificados no corpo deste recurso) que a Recorrente NÃO DEU SOCOS À OFENDIDA – apenas alguns pontapés nas costas.

31. Resultando que todos os socos/murros sofridos pela ofendida foram desferidos pela outra pessoa do sexo feminino que ali se encontrava (e a quem a ofendida se refere como a rapariga de cabelo castanho/escuro/preto).

32. Assim, impõe-se a alteração da redacção do facto provado em 18º, que deverá passar a ser a seguinte: “18º Sempre sob ameaça, levaram a ofendida para um local escondido por arbustos e aí a rapariga de cabelo castanho que não se logrou identificar atingiu a ofendida no seu corpo com diversos murros e a arguida EC com pontapés nas costas”.

33. Já no que toca ao facto 21º, em momento algum a ofendida consegue precisar quem lhe infligiu os cortes que sofreu (se a Recorrente, se a outra rapariga, se as duas…), porquanto não o conseguiu percepcionar, como nem sequer conseguiu percepcionar com que objecto tais cortes teriam sido feitos – tudo conforme trechos das declarações para memória futura da ofendida transcritos no corpo do recurso.

34. Se a ofendida não concretiza quem lhe fez tais cortes, só viu uma mão, nem sequer o objecto com que foram feitos, como se pôde dar como provado que tais cortes foram infligidos pela Recorrente e pela outra pessoa do sexo feminino?

35. Pelo que se exige a correcção deste facto, que deverá passar a ter a seguinte redacção: “21º E foram-lhe infligidos vários cortes com objecto corto contundente, que não foi possível identificar, no rosto, na cabeça, as costas, etc”.

36. No que respeita ao facto provado em 22º, mais uma vez o tribunal recorrido contraria o que foi declarado pela ofendida!

37. É que a ofendida refere, de forma que não deixa dúvidas, que foi a outra rapariga (a de cabelo castanho/preto) quem a ameaçou que a mataria se contasse o que se havia passado à polícia (cfr. trecho transcrito no corpo do recurso).

38. Quanto a esta questão, até consideramos existir a contradição insanável a que alude a alínea b) do n.º 2 do art. 410 C.P.P., entre o que se deu como provado em 22º e a página 16 da fundamentação, onde o tribunal recorrido, estando a fazer uma súmula das declarações da ofendida, escreve “A E apanhou parte do cabelo e uma parte da roupa e disse à outra rapariga para ir embora, mas a outra rapariga ainda lhe foi bater mais uma vez, foi nessa altura que disse que a matava, e foram-se embora” (sublinhado nosso)

39. Mais, a ofendida nem sequer refere que essa outra rapariga lhe tenha dito que se contasse à polícia “iria à sua procura”, mas apenas que se contasse a matava.

40. Devendo o facto provado em 22º passar a ter a seguinte redacção: “22º Antes de abandonarem o local, a outra rapariga que não se identificou, em tom sério e grave, dirigindo-se para a ofendida, proferiu as seguintes expressões: “Não vás contar à Polícia, senão mato-te”.

41. Relativamente ao facto provado em 31º, concretamente a saber a arguida que os actos que praticou eram idóneos a colocar em perigo a vida da ofendida, comece por se dizer que não resulta de lado nenhum do acórdão que a ofendida correu perigo de vida (nomeadamente da matéria de facto dada como provada).

42. Aliás, nada é dito ou analisado em sede de fundamentação quanto a esta questão – pelo que não poderá deixar de, mais uma vez, se considerar que a decisão recorrida padece de nulidade, por insuficiência de fundamentação, nos termos do art. 379º/1/a) C.P.P., nulidade que se argui.

43. Depois, como vimos, não pode resultar provado que foi a Recorrente quem infligiu os cortes sofridos pela ofendida – não se podendo, por isso, sequer especular que sabia ou queria que tais lesões fossem provocadas, muito menos que soubesse ou quisesse que tais lesões podiam pôr em causa a vida da ofendida.

44. Sendo que de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, cortes nas costas, rosto e cabeça não são aptos a provocar a morte.

45. Assim, deve este facto ser corrigido, passando a ter a seguinte redacção: “31º Praticaram a arguida e as outras pessoas não identificadas tais actos sabendo que os mesmos eram idóneos e adequados a colocar em perigo a integridade física da ofendida”.

46. Para além do erro de julgamento de facto, consideramos que o tribunal recorrido também errou na determinação da medida concreta da pena que aplicou à Recorrente – pois que errou na análise dos elementos agravantes e atenuantes a que o art. 71º C.P. manda atender, como aplicou pena superior à medida da culpa.

47. Antes de mais, não cremos ser de aceitar o relevo dado às necessidades de prevenção geral, concretamente (na óptica do tribunal recorrido) o “crescente número de crimes desta natureza que têm ocorrido, bem como pela elevada insegurança que os mesmos geram na comunidade”.

48. É que da análise do relatório anual de segurança interna (RASI) de 2018, produzido e publicado, no final de cada ano, por entidade governamental e livremente acessível (https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=ad5cfe37-0d52-412e-83fb-7f098448dba7), resulta, precisamente, que este tipo de criminalidade (rapto/sequestro/tomada de reféns) sofreu uma diminuição de 6,5% em relação ao ano de 2017 – tendo estes dados/factos que ser considerados públicos e notórios.

49. Assim, o que se verifica é uma DIMINUIÇÃO do número de ilícitos desta natureza.

50. E atentos os concretos contornos dos factos por que a Recorrente foi condenada, também não consideramos que gerem um sentimento de “elevada insegurança” na comunidade…

51. Pelo que as necessidades de prevenção geral existem apenas em grau mediano, não elevado.

52. Não se podendo ter também por elevado o grau de ilicitude!

53. Desde logo, porque o modo de execução dos factos não é especialmente desvalioso – atente-se, por exemplo, na curta duração da privação da liberdade da vítima (menos de duas horas).

54. Quanto à alegada falta de arrependimento da arguida, também não cremos que possa ser valorada negativamente!

55. Isto porque, como aliás o próprio tribunal recorrido escreveu, a Recorrente não prestou declarações, reservando-se ao seu direito ao silêncio – resultando de forma clara da jurisprudência que se o silêncio de um arguido pode não o beneficiar, nunca poderá prejudica-lo.

56. Entender, como entendeu o tribunal recorrido, que o silêncio da Recorrente (“nem sequer justificou a sua conduta”…) era de valorar negativamente contra esta consubstancia uma clara violação do art. 61º do C.P.P. e dos princípios da estrutura acusatória do processo penal e do direito à não auto-incriminação.

57. No que toca à violência concretamente exercida, como vimos, na verdade, só resulta da prova que a Recorrente deu alguns pontapés na ofendida – não lhe tendo dado murros, nem se lhe podendo assacar a autoria dos cortes por esta sofridos.

58. De referir ainda, embora isso releve mais ao nível da culpa, que a conduta da Recorrente também não se pode ter por fútil ou gratuita.

59. Pois que o tribunal recorrido ignorou olimpicamente a relação entre a conduta imputada à Recorrente e a sua origem e inserção étnica!

60. Deu-se como provado em 5º que a Recorrente é de etnia cigana, tendo-se dado como provado que mantinha um relacionamento sério com JM (pai do seu, então, único filho). Mais se provou que a ofendida iniciou e manteve, paralelamente, um relacionamento amoroso com o dito JM (factos 3º e 4º). Provando-se também que a actuação da Recorrente visou alcançar que a ofendida confessasse e cessasse esse relacionamento.

61. Ora, o tribunal recorrido desconsiderou, mal, o valor que a etnia cigana confere à honra e ao seu respeito – etnia para a qual a honra é, não poucas vezes, valor que se sobrepõe a todos os demais.

62. Sendo por demais evidente que ao ter descoberto que a ofendida estava envolvida com o seu companheiro era, diríamos até, exigível, de acordo com o quadro de valores próprios da sua comunidade, que a Arguida tomasse medidas para repor a sua honra.

63. Um tribunal não pode nunca desconsiderar o concreto arguido que julga, desatendendo às especificidades étnicas, culturais ou outras do mesmo.

64. Pelo que teria que ter considerado que a culpa da Recorrente é em grau inferior à que um indivíduo não cigano revelaria com o mesmo comportamento!

65. Não o fazendo, veio o acórdão recorrido a violar a parte final da alínea c) do art 71º C.P., bem como o art. 40º/2 C.P. (pois que aplicou à Recorrente pena manifestamente superior ao seu grau de culpa.

66. A Recorrente não tem antecedentes criminais.

67. Está perfeitamente inserida social e familiarmente.

68. Sendo que o tribunal recorrido também exagerou na ponderação das consequências do crime, pois que é falso que a ofendida, na sequência dos actos de que foi vítima, tenha fugido para o seu país de origem – resultando de forma clara das declarações para memória futura (cfr. trecho identificado no corpo do recurso) que a ofendida até manifestou QUE NÃO PRETENDIA DEIXAR PORTUGAL.

69. Assim, quer as necessidades de prevenção geral, quer as de prevenção especial se apresentam em grau manifestamente inferior àquele que foi alcançado e considerado pelo tribunal a quo.

70. Resultando evidente que o tribunal recorrido, ao aplicar a pena que aplicou à Recorrente violou os arts. 71º e 40º do C.P., devendo, nesta sede, tal pena ser reduzida para quantitativo nunca superior a 5 anos de prisão.

71. E confirmando V. Exas. este nosso entendimento, então deverá ser determinada a suspensão da execução da referida pena.

72. Pois que, não só uma pena suspensa não deixa de ser uma efectiva pena/punição como consideramos ser possível efectuar um juízo de prognose no sentido de a simples censura do facto e ameaça de prisão ser suficiente para afastar a Recorrente da reincidência (a arguida não revela uma personalidade especialmente desvaliosa ou anti- jurídica, antes capaz de se conformar com o Direito e com as regras de convivência comunitária, estando totalmente inserida e contando com um forte apoio familiar) e para satisfazer a prevenção geral.

73. Ademais, a finalidade de ressocialização, como é por todos consabido, é sempre melhor e mais facilmente alcançada em meio não privativo da liberdade.

74. Considerando-se no relatório social sobre a mesma elaborado (de fls. … dos autos e datado de 15/02/2019) a “existência de condições para o cumprimento de uma medida judicial de carácter probatório, a executar na comunidade”.

75. Pelo que, sendo a pena a aplicar à Recorrente fixada em medida não superior a 5 anos de prisão, se impõe, nos termos do art. 50º C.P. a determinação da respectiva suspensão.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

• Ser dada como não provada toda a factualidade impugnada e erradamente julgada, absolvendo-se a arguida: Caso assim não se entenda:

• Ser alterada a factualidade dada como provada em 18º, 21º, 22º e 31º, nos termos supra expostos;

• Fixar à Recorrente pena não superior a 5 anos de prisão e

• Determinar-se a suspensão da respectiva execução.”.

Admitido o recurso interposto pela arguida, [cfr. fls. 915], notificados os devidos sujeitos processuais, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou articulado de resposta, alegando, em suma, o seguinte:

“1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

3- São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- Não contém a douta decisão impugnada qualquer erro de julgamento da matéria de facto, ou outro vício que a inquine.

5- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu todo e segundo o que preceituam os arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal, entre outros preceitos legais.

6- A arguida não tem antecedentes criminais.

7- O Tribunal “a quo” baseou a sua decisão na prova produzida e analisada em audiência de julgamento, e, também nas regras da experiência, aliás como o impõe o art.127º, do Código de Processo Penal.

8- No que tange ao "erro notório na apreciação da prova, invocado pela recorrente, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias”. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P. Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova.

E, não se confunda este alegado vício com a discordância acerca da forma como o tribunal fixou a matéria de facto pois, no campo da apreciação das provas, é livre a forma como o Tribunal forma a sua convicção.

9- Trata-se de emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção, consagrado no art. 127º, do C.P.P., de acordo com o qual e, ressalvados os casos em que a lei dispuser diferentemente, "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".

10- Diga-se também que o Tribunal “a quo” fez um exame crítico da prova, explicando de modo detalhado as provas que considerou, como e porquê as valorou, não procedendo os argumentos do recorrente.

11- Aludir a pequenas passagens da prova produzida para deduzir e afirmar que determinados factos dados como provados no Douto Acórdão não deveriam ter sido considerados provados, ou que deveriam ter sido dados como provados outros, é compreensível, mas é argumento que se inclina perante o acervo de provas legais que existem nos autos e apontam sem margem de dúvida, para o cometimento pela EC do crime de sequestro, p. e p. no artigo 158º, nº1 e n.º2, alínea b), do Código Penal, tendo em 1ª instância sido condenada na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, embora o Douto Acórdão ainda não tenha transitado em julgado.

12- Não prestou declarações a arguida na audiência de julgamento, pelo que o Tribunal “a quo” nem sequer teve de ponderar a sua versão dos factos que são o objecto do processo…, o que não sendo raro, não deixa de ser singular…

13- Ao invés do que afirma a arguida, analisado o Douto Acórdão recorrido de um modo lógico-sistemático afigura-se-nos que não contém qualquer “erro de julgamento de facto” ou qualquer outro erro ou nulidade, nem deveria ter uma decisão distinta.

14- Os factos dados como provados no Douto Acórdão, são fruto da ponderação global das provas legais que do processo constam, não havendo lugar a qualquer alteração da matéria de facto dada como provada, da qualificação jurídica ou da pena de prisão efectiva, uma vez que não existem suportes factuais ou legais que justifiquem as pretensões da recorrente.

15- Impugna a recorrente a medida da pena: diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”

16- Ou ainda como se diz no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:” II - Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP.

17- III - Dentro deste limite, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, in www.dgsi.pt, Proc. nº315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.

18- Os factos praticados pela arguida são graves, causaram alarme social, tendo sido praticados com a ajuda de outras pessoas, com grande violência e atentado à dignidade da ofendida, o dolo directo e a falta de arrependimento, tendo sido ponderadas pelo Tribunal “ a quo” todas as circunstâncias que pesavam a favor e contra a arguida.

19- O Tribunal “a quo” ponderou para a escolha e medida da pena a que foi condenada a arguida em 1ª instância, todos os critérios referidos nos arts.40º, 50º, 70º , 71º e 158º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a pena de 6 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de sequestro, p. e p. no artigo 158º, nº1 e n.º2, alínea b), do Código Penal, em sintonia com a culpa da arguida e sem ter olvidado a sua ressocialização.

20- No que concerne à suspensão da execução da pena de prisão que a recorrente pretende em segunda ou terceira linha, dir-se-á que existindo imperativos de prevenção geral e especial a salvaguardar bem como as demais circunstâncias referidas anteriormente e outras que no Douto Acórdão figuram, não podia o Tribunal “a quo” suspender na execução a pena de prisão aplicada, uma vez não foi e (não será) possível “concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, artigo 50º, nº1, do Código Penal, para além do limite temporal previsto no mencionado preceito.

21- A EC no decurso da audiência de julgamento, aquando da leitura do Douto Acórdão, comportou-se de maneira leviana e descontrolada e deixa antever que uma pena não privativa da liberdade, entenda-se prisão suspensa na execução, não se adequa às circunstâncias do processo e da arguida.

22- Deve manter-se na íntegra o Douto acórdão recorrido.

Negando provimento ao recurso.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA”.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto consignou ter tomado conhecimento do processo, nos termos do disposto no artigo 416º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Foi efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais.

Foi realizada a Audiência.

Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como claramente decorre do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões aportadas ao conhecimento desta instância são as seguintes:

(i) - Se a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do estatuído no artigo 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal;

(ii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto nos termos prevenidos no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal;

(iii) - Se a sentença recorrida padece dos vícios prevenidos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, designadamente do vício de contradição insanável da fundamentação, a que alude a alínea b) do mesmo preceito legal;

(iv) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no tocante à dosimetria da pena imposta à arguida, violando o disposto nos artigos 40º, e 71º, do Código Penal.

III

O acórdão recorrido encontra-se fundamentado de facto nos termos seguintes, que se transcrevem:

“(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados, com relevância para decisão da mesma, os seguintes factos:

1º A ofendida LMR, de nacionalidade …, deslocou-se para a região do …, em Portugal, no dia 10 de Marco de 2015, com a intenção de trabalhar na hotelaria ou turismo, por um período de 6 meses, tendo fixado residência em …, …;

2º Partilhando um apartamento com algumas amigas em …, a ofendida logo passou a trabalhar no estabelecimento de bar denominado "…", sito na …., na cidade de …., angariando clientes na rua;

3° Em data que não foi possível apurar, mas que terá sido por alturas do final do mês de Abril, princípios do mês de Maio de 2015, a ofendida conheceu um indivíduo do sexo masculino, de nome JPVM, que é de etnia cigana;

4° Iniciou, então, uma relação amorosa com este individuo, contactando-o frequentemente quer de forma pessoal, quer através do telemóvel por este habitualmente utilizado com o n°…;

5° Porém, o referido JM omitiu à ofendida que tinha um relacionamento sério com EIAC, ora arguida, também ela de etnia cigana, e de quem tinha um filho em comum;

6° Depois de ter tomado conhecimento dessa relação, a arguida E iniciou uma aproximação à ofendida, através de uma amiga desta de nome ER, com quem trocou varias mensagens SMS, através do seu aparelho de telemóvel com o nº …, indagando sobre elementos da vida quotidiana da ofendida, tais como a sua residência, o seu nº de telemóvel, o que fazia no dia-a-dia, levando ainda a que esta amiga da ofendida combinasse um encontro entre esta e a arguida E;

7° Assim, no dia 26 de Maio de 2015, pelas 16 horas e 15 minutos, estava a ofendida no interior do "…", na companhia da sua amiga E, quando a arguida E lhe remeteu uma SMS, dizendo que queria estar pessoalmente com a ofendida, e que esta não se preocupasse pois que não lhe ia fazer mal, já que o problema não era com esta mas com o referido JM;

8º A ofendida acedeu, então, a falar com a arguida E, bem como a indicar a sua própria residência, caso não lhe fizessem mal;

9° Pelas 16 horas e 30 minutos do dia 26 de Maio de 2015, a ofendida dirigiu-se, então, ao local combinado com a arguida E, mais concretamente em frente a um estabelecimento de farmácia existente na …., denominada "…";

10° Depois de a ofendida ali ter aguardado por 10 minutos, pelas 16 horas e 40 minutos ali surgiu um veiculo ligeiro de passageiros que não foi possível identificar, mas que a ofendida descreveu como sendo um veiculo ligeiro de cor escura, de quatro portas, já velho, o qual parou junto de si;

11º Tal veiculo era conduzido por pessoa que não se logrou identificar, e nele seguiam ainda a outra pessoa do sexo feminino que não foi possível identificar no lugar do passageiro da frente e a arguida E no banco de trás;

12° Logo que tal veiculo se imobilizou a arguida E abriu a porta de trás, sorriu e acenou à ofendida dizendo-lhe que entrasse para o interior do veiculo;

13° A ofendida acedeu a tal pedido, e entrou livremente para o interior do referido veiculo, tendo a arguida E lhe dito que tivesse calma, pois só queria falar com ela;

14° Entretanto pessoa que não se conseguiu identificar iniciou a marcha desse veiculo, momento que a arguida E logo aproveitou para trancar as portas do mesmo, e exibir à ofendida uma tesoura de médias dimensões, pontiaguda, e com as pegas em tom azul claro, tendo ordenado à ofendida que tivesse calma;

15° A pessoa não identificada conduziu, então, tal veiculo para fora da cidade de …, tendo seguido em direcção a uma estrada secundaria, junto à Estação da ….. de …., onde imobilizou o mesmo seriam cerca das 17 horas e 30 minutos;

16° Trata-se de local ermo e isolado, onde não existem quaisquer habitações;

17° Ali chegados, enquanto o condutor permaneceu no interior da viatura para vigiar uma eventual aproximação de algumas pessoas, a arguida E e a outra pessoa saíram para o exterior do mesmo, e obrigaram também a ofendida a sair;

18° Sempre sob ameaça, levaram a ofendida para um local escondido por arbustos, e ai atingiram a ofendida no seu corpo com diversos socos a pontapés;

19° Cortaram-lhe o cabelo com recurso a uma tesoura pontiaguda de pegas azuis claras e a uma máquina de cortar cabelo;

20° Cortaram-lhe todas as roupas, incluindo a roupa interior, tendo a ofendida ficado completamente desnudada;

21º E infligiram-lhe vários cortes com objecto corto contundente, que não foi possível identificar, no rosto, na cabeça, nas costas, etc.;

22° Antes de abandonarem aquele local, a arguida E, em tom sério e grave, dirigindo-se para a ofendida, proferiu as seguintes expressões: "Não vás contar à Polícia, senão vou à tua procura e mato-te";

23° De seguida a arguida E e a outra pessoa que não se identificou abandonaram rapidamente aquele local, na companhia do condutor da viatura, tendo ali deixado a ofendida à sua sorte, em local ermo, isolado a desconhecido, toda nua a ferida gravemente, a esvair-se em sangue;

24° A ofendida correu, então, em direcção a uma estrada secundária que passava ali perto, onde pediu socorro, tendo sido acolhida por alguns populares que a encaminharam para o Hospital de …, onde foi assistida;

25° Com tal conduta a arguida e outra pessoa provocaram à ofendida as lesões que se encontram melhor examinadas e descritas a fls. 426-430, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais;

26° As quais lhe vieram a determinar, de forma directa e necessária, um período de 15 (quinze) dias de doença, sendo os primeiros 10 (dez) com incapacidade para o trabalho;

27° Quis a arguida, por essa forma, atingir a ofendida na sua integridade física, como efectivamente atingiu;

28° Pretendendo com isso que esta confessasse aquele relacionamento amoroso;

29° Pela forma supra descrita, a arguida também retirou à ofendida a possibilidade de, livremente, se deslocar para onde e quando desejasse;

30° O que fez sem a autorização e contra a vontade desta;

31° Praticaram a arguida e as outras pessoas não identificadas tais actos sabendo que os mesmos eram idóneos e adequados a colocar em perigo não só a integridade física, como também a própria vida da ofendida;

32° Agiu a arguida E de forma livre, deliberada e consciente, em plena comunhão de esforços e de intentos;

33° Bern sabendo que tal conduta não lhes era permitida, e que a mesma era punida por lei.

Mais se apurou,

As arguidas EIAC e RIFA não são possuidoras de antecedentes criminais.

O Arguido TS já foi condenado por um crime de roubo, por crimes de condução de veiculo sem habilitação legal, por crimes de condução perigosa de veiculo rodoviário e por crime de dano com violência.

À data dos factos em causa neste processo, 2015, o arguido TS encontrava-se a viver sozinho em …, num apartamento arrendado. Trabalhava num café na mesma localidade em situação não regularizada. Centrava os seus interesses em ambientes externos a família, gerindo o seu quotidiano de modo imediatista, reagindo negativamente a orientações normativas muito estruturadas.

Relativamente as co-arguidas neste processo, TS conhece-as expressando-se de forma vaga sobre as mesmas.

Único filho dos progenitores, viveu com os mesmos até aos 2 anos de idade, sendo atribuídos ao pai problemas de alcoolismo e maus-tratos à família que determinaram a separação do casal. A mãe reconstitui agregado familiar, dispunha de uma situação económica, minimamente suficiente, oscilando em razão dos desempenhos laborais sazonais em restauração.

Durante a infância e inicio da adolescência de TS, revelou problemas de disciplina, sucedendo-se episódios desestabilizadores e de incumprimento das normas familiares, contestando aquele ostensivamente as orientações e supervisão do padrasto. Em colisão com este sistema familiar, seria junto da avó materna que foi procurar apoio.

Entre processos de promoção e protecção e apoio, aos 11 anos de idade o arguido já afrontava os elementos da família com funções de parentais e de autoridade, protagonizando fugas de casa e pequenos furtos em dinheiro, inexistindo espaço para diálogo ou entendimento entre os intervenientes. Foram surgindo no jovem acentuados sentimentos de desvalor, raiva e revolta canalizados para comportamentos socialmente desadaptados nomeadamente com o consumo de substancias psicotrópicas iniciados precocemente.

Na passagem da adolescência/ inicio da idade adulta TS apoiou-se uma vez mais na avó materna e numa madrinha, variando as suas permanências em agregados familiares alternativos à mãe.

Confrontativo, conflituosos e impulsivo, sem ineficácia no controlo das atitudes do jovem, este foi-se afirmando em modelos com práticas marginais e isolando-se da família. Quando permanecia em casa, abstraia­ se no seu computador pessoal. Com os irmãos a interacção era agressiva, com reduzida capacidade envolvimento afectivo ou sentimento de protecção. Ao nível escolar, registou situações de retenção no 7° ano, concluiu o 9° ano num curso EFA - B3 de operação e instalação de sistemas informáticas, após intervenção de entidades intervenientes com jovens. Esteve internado 18 (dezoito) meses na …, em … onde efectuou tratamento para a toxicodependência.

Depois deste internamento, teria 16 anos, regressou ao núcleo familiar sem projectos pessoais consistentes: esteve inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional, pontualmente fazia pequenos biscates com o padrasto. Entre os seus interesses comuns à faixa etária destacou o escrever e musicar poemas no estilo hip-hop; valorizava uma imagem cuidada desde o inicio da adolescência direccionada para as tatuagens, piercings e brincos, sem que a família oconseguisse dissuadir. Regista vários processos judiciais a partir dos 16 anos de idade, em contexto de grupo de pares, com situações decorrentes do consumo de estupefacientes; condução de veiculo sem habilitação legal; crimes contra a propriedade e contra as pessoas. Ao longo dos anos o arguido tem vindo a reajustar o sentido de autocritica face às suas condutas delituosas, adaptando formas socialmente mais ajustadas de integração. Tem vindo a efectuar um esforço para cumprir a sanções judiciais de caracter oneroso através de trabalho. No presente encontra-se a cumprir de forma regular, no âmbito do Proc. nº443/13.0GESLV, por sentença transitada em julgado em 17-11-2016, uma pena de 3 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução, cujo termo esta previsto para Fevereiro de 2021. No Proc. N° 149/15.5GESLV, em sentença transitada em 27-04-2018, foi condenado numa pena de 328 horas de trabalho comunitário, que só conseguiu iniciar o cumprimento fora da época sazonal, novembro/2018.

Mantém um relacionamento afectivo estável desde há 5 anos, com coabitação há cerca de 2 anos. Integra o agregado familiar da avó materna, composto no total por cinco elementos, quatro laboralmente activos e uma estudante, sendo referido uma situação económica suficiente. A casa, uma moradia de tipologia V4, mostra-se suficiente para o numero de residentes.

TS e a namorada pretendem autonomizar-se, referidos alguns constrangimentos para contraírem empréstimo bancário. Ambos trabalham em restauração e bar com caracter sazonal: o arguido tem trabalhado em … no mesmo restaurante há cerca de 3 anos como empregado de mesa. No período de invemo fica cerca de 3 meses desempegado, como é a situação actual: desde 01-12-2018 que recebe subsídio de desemprego. Sem dispor de actividades organizadas de tempos livres, centra os seus interesses em meio residencial com a família e com os animais domésticos, Por vezes sai com a namorada, vindo a distanciar-se dos anteriores amigos, procuram sair da área de residência.

Face à presente sujeição a julgamento o arguido apesar de apresentar sentido da ilicitude e da gravidade dos factos a que se reporta da acusação, tende a distanciar-se dos mesmos. Receia eventuais medidas gravosas, uma vez que tem ainda uma situação jurídico-penal com processos pendentes.

Tal como à data dos factos agora em fase de julgamento, EC vive num apartamento de tipologia T3 localizado num bairro social na freguesia de …., partilhando a casa com o companheiro, JM, de 31 anos, e os dois filhos menores do casal, J, de 6 anos, e M, de 3 anos de idade. Este agregado paga 8€ de renda de casa, a que acrescem mais 80€ de despesas correntes domésticas.

O conjunto familiar da arguida apresenta uma situação económica contida, assente no rendimento social de inserção (480 euros mensais) e as prestações/abonos de família relativos aos menores (180 euros/mês). EC é doméstica e não aufere qualquer remuneração laboral, enquanto o companheiro tem licença de venda ambulante e durante a época alta comercializa óculos nas ruas de … para ter algum rendimento extra.

Sendo a mais velha de 4 filhos de um casal de modesta condição social e económica, a arguida nasceu em …mas morou sempre no concelho de…, seguindo o modo de vida tradicional da sua comunidade de origem. Apenas estudou até aos 10 anos de idade, concluindo o 1º ciclo do ensino básico e viveu sempre com os progenitores até se juntar ao actual companheiro há cerca de 7 anos, numa união de facto descrita com estável e gratificante para ambos.

EC não exerce nenhuma profissão e nos tempos livres gosta de se ocupar com actividades ligadas a estética, dedicando-se fundamentalmente a tarefas domesticas e a cuidar dos seus dois filhos menores. Mantêm uma ligação familiar próxima com o núcleo familiar de origem, residente em ….

Não nos foram mencionados questões ou problemas de saúde que afectem o quotidiano da arguida.

Sem antecedentes de natureza penal conhecidos, durante a entrevista individual realizada na nossa equipa de reinserção, EC distanciou-se dos factos ocorridos em 2015 e não se revê no teor do despacho de acusação, não reconhecendo a prática de qualquer conduta criminal.

À data dos factos, como no presente, RA mantem a família constituída, com a particularidade do companheiro se encontrar há 11 anos emigrado na …. As duas filhas mais velhas já se encontram autónomas, pelo que no presente tem a seu cargo os dois mais novos, a filha H de 21 anos e o filho J, de 16. RA, de ascendência cigana, vivencia um relacionamento conjugal com um companheiro de origem lusa, mas não se demarcou de todo das tradições de origem. O padrão relacional implicou designadamente a sua permanência no espaço doméstico e cuidado dos quatro filhos, enquanto o marido, JC assumia a função de sustento do grupo. Refere que este vem a casa de vez em quando, assim como RA se desloca por temporadas a ….

Afirma que à data dos factos se encontrava naquele pais, pelo que estranha e nega peremptoriamente o seu envolvimento.

RA faz rnenção a um percurso de vida dentro dos padrões e valores convencionais ciganos, pese embora a circunstância do casal parental ter sido igualmente de mãe cigana e pai luso. Pouco frequentou a escola em criança, mas em adulta concluiu o 2° ciclo e tirou carta de condicao. Juntou-se ao marido aos 15 anos e prosseguiu uma vida como mãe de família, dedicada em exclusivo as lides domésticas.

Há aproximadamente 14 anos foi-lhes atribuída habitação social, pela edilidade local, situação que ainda mantem, tendo uma renda mensal de 4€. Paralelamente são utentes de RSI de longa duração, prestação que no momento representa um valor mensal de 520€. Junto dos serviços é habitualmente mantida uma atitude de dissimulação e orientação das narrativas de acordo com as conveniências, designadamente quanto a manutenção ou não do relacionamento conjugal com JC.

Já houve noticia de outro envolvimento dos elementos desta família com o sistema de justiça penal, mas não no caso de RA, que aparentemente é primária. Diz desconhecer totalmente quaisquer situações que possam relacionar-se com os factos, recusando-se a abordagem dos mesmos e bem assim apresentando toda uma narrativa que a distancia da situação, relatando episódios da sua vida privada dificilmente comprováveis.

*

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Que os arguidos RFA e TFS tivessem praticado os factos supra descritos em co-autoria.

O arguido TS, que não se encontrava habilitado por carta de condução, ou outro documento de igual valor, regularmente emitido pela entidade administrativa competente para o efeito.

O arguido T conduziu o veiculo em questão pela via pública, numa distância de várias dezenas de quilómetros, não obstante saber que não estava habilitado por carta de condução, e quem sem a mesma não podia conduzir;

Os restantes factos que constam das contestações e que acima não foram considerados provados.

*

3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

Dispõe o art° 374°, nº 2 do CPP, na parte em que estabelece os requisitos da fundamentação da decisão da matéria de facto, que "a fundamentação" deve conter "uma exposição tanto quanta possível completa, ainda que concisa, dos motivos de factos ( ... ) que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".

Deste modo, passamos a fazer uma exposição concisa, mas completa, dos motivos que levaram o Tribunal a dar como provados e como não provados os factos supra referidos, indicando os meios de prova que serviram para formar a convicção dos colectivo de julgadores e fazendo o seu exame critico, cabendo neste, a razão de ciência das testemunhas (em que o Tribunal se baseou), a forma como depuseram e a sua relação com o litígio, os tipos de documentos em que o Tribunal se baseou, seu valor e origem, bem como o valor, origem e credibilidade da demais prova que acudiu à formação da convicção dos julgadores, sem esquecer o recurso às regras da experiência comum.

Evitaremos reproduzir com exaustão o teor da prova, uma vez que tal não constitui requisito legal para a fundamentação da decisão da matéria de facto, sendo o seu conteúdo sindicável, não por via da motivação da decisão da matéria de facto, sim pela leitura dos documentos e relatórios periciais e pela audição dos depoimentos prestados.

Quanto aos factos provados:

O Tribunal fundou a sua convicção, em geral, a partir da análise critica das declarações das testemunhas inquiridas em sede de julgamento, memorias futuras, relatórios periciais e dos documentos juntos aos autos, em conjugação com as regras da experiencia comum e da lógica.

Em particular:

No que concerne às declarações dos arguidos, diga-se que as arguidas não quiseram prestar declarações e o arguido TS negou peremptoriamente a prática dos factos.

Assim, o Tribunal teve em consideração primordialmente as declarações para memória futura da ofendida que referiu que a arguida E queria falar com ela para saber o que se passava entre ela e o J, seu marido. Como ela não queria, a sua amiga E passou cerca de 10 minutos a convence-la que a E não lhe queria fazer mal, pelo que acabou por confirmar que ia ter com ela. No dia em causa, dirigiu-se ao topo da rua onde trabalha e esperou cerca de 10 minutos. Quando estava quase a desistir passou um carro escuro com 3 pessoas lá dentro: um homem à frente a conduzir, uma rapariga de cabelo escuro sentada no lado do «pendura» e a E no banco detrás.

A E sorriu e acenou para que a ofendida entrasse no carro e abriu a porta. A ofendida entrou e a E trancou de imediato as portas e o carro iniciou a marcha. A E tinha um saco branco perto dela que estava aberto e onde se encontravam um par de tesouras azuis. Seriam cerca das 14 horas. A E ainda lhe terá perguntado se ia voltar para …, ao que a ofendida disse que sim e bem assim que a sua mãe e irmã viriam cá dentro de dois dias. Perguntou para onde iam, ao que lhe foi respondido que iam para a zona velha de …., mas na verdade tomaram o sentido da saída de … por estradas velhas. Cerca de 20/25 minutos depois chegaram a um caminha com vegetação e a E disse para sair do carro, sendo que o rapaz ficou dentro do carro. Andou em direcção a arbustos com a E que já tinha as tesouras na mão. Quando a outra rapariga disse à E que a deveriam por de joelhos, a ofendida pensou que lhe iam cortar a garganta. Ai deram-lhe pancadas no nariz com a mão e murros na cara. A rapariga do cabelo castanho também lhe bateu. Depois agarrara-lhe o cabelo, ao que a ofendida cobriu a cara com as mãos e a E começou-lhe a cortar o cabelo enquanto a outra rapariga lho puxava. Com uma máquina eléctrica, as duas raparam-lhe o cabelo, enquanto continuava a ser esbofeteada. A E ainda a pontapeou quando a ofendida estava no chão e a outra batia-lhe na cara. Após, a E aproximou-se com as tesouras, ajoelhou-se e cortou-lhe a roupa, passou a tesoura à outra que continuou a cortar a roupa pela frente, inclusivamente as calças que trajava. A ofendida estava toda enrolava no chão, sendo que a E acabou por gravar a situação, riu-se e a outra rapariga continuou a bater e a rir igualmente. Nunca tentou defender-se e a E e a outra rapariga apenas diziam «não mais J». Depois de a E fazer ovídeo, ambas ainda lhe bateram mais, sendo que a E deu-lhe pontapés nas costas e a outra rapariga no lado esquerdo, sendo que ainda se tentou enrolar mais no chão. A determinada altura, ainda se tentou levantar e fugir mas sentiu logo golpes nas costas e na cara. Não sabe quantas vezes foi atingida mas começou a ver sangue por todo o lado. A E apanhou parte do cabelo e uma parte da roupa e disse à outra rapariga para ir embora, mas a outra rapariga inda lhe foi bater mais uma vez, foi nessa altura que disse que a matava, e foram-se embora. O rapaz nunca apareceu enquanto lhe estiveram a bater pelo que presume ter ficado no carro. Quando se foram embora, acabou por ir para a estrada pedir socorro, sendo que pararam dois carros que a socorreram. Confirma o local dos factos de fls. 63 e 66 e bem assim confirma as fotografias dos autos que lhe foram mostradas. Mais referiu que a sua amiga E disse que havia recebido chamadas o dia inteiro e que na última chamada a E lhe chamou nomes e disse que a ia matar. Mais acrescentou que conheceu o J num bar onde trabalhava e que desconhecia que ele tivesse namorada ou mulher. Sendo que uma vez viu o J na rua com a E e perguntou ao J quem era, o que o J lhe respondeu que era a irmã, aliás como tinha o nome E tatuado no braço e que lhe deu a mesma justificação: ser a irmã e o outro nome tatuado seria do irmão mais novo. Ainda concretizou que seriam cerca das 16h30 quando tudo aconteceu e que o veiculo que os transportou era escuro e velho e tinha ficos soltos no interior.

Ora o depoimento da ofendida atras referido foi claro, pormenorizado e escorreito logrando convencer na sua plenitude o colectivo de juízes, até porque este depoimento é corroborado por demais prova como seja,

- O Relatório de Urgência de fls. 23, datado de 26.05.2015,

- O Relatório de diligência externa de fls. 25.

- O Relatório de exame ao local de fls. 58 e respectiva reportagem fotográfica que comprova que as agressões ocorreram naquele local

- A reportagem fotográfica efectuada à ofendida a fls. 75,

- A reportagem fotográfica do telemóvel da testemunha ER, de fls. 98 (que muito embora em audiência de discussão e julgamento, tenha efectuado um depoimento vago e manifestamente esquecido dos factos, denotando algum constrangimento de estar em julgamento acabou por confirmar ter trocado as mensagens que constam dos autos com a arguida E, muito embora já não se lembrasse ... sendo que o teor dessas mensagens é manifestamente contrario ao que referiu em sede de audiência de discussão e julgamento que a própria ofendida não tinha a certeza que teria sido a arguida E a autora dos factos).

Na verdade, o teor dessas mensagens corrobora na sua totalidade do depoimento para memória futura da ofendida e da acusação.

Consta de tais mensagens, em suma, que a arguida E desde o dia anterior estava a pedir a morada da ofendida e a tentar saber onde é que ela se encontrava, sendo que precisava saber naquele dia. Como a testemunha E disse que não tinha meio de saber, acabou por desistir nesse dia, porém logo pelas 10 horas da manhã do dia em causa, voltou a enviar mensagens à testemunha, que apenas lhe respondeu as 11 da manhã (26.05). A arguida E pediu-lhe para tentar saber onde a ofendida morava o mais rapidamente possível, ao que a testemunha pelas 15h disse que a ofendida estava a trabalhar no …. A arguida ainda perguntou se ela estava com mais alguém e a testemunha disse que estava com uma colega, sendo que a arguida disse-lhe para ir conversar com a arguida (terá sido esta a altura em que a ofendida referiu - em sede de memorias futuras - que a testemunha E teve 10 minutos a convence-la a ir ter com a E aos que esta acabou por ceder pois que a E tem uma tentativa de contacto no telemóvel da testemunha E e terão marcado encontro em contacto telefónico), Pelas 16h12 existe uma mensagem da arguida a referir 15 minutos, ao que a testemunha responde que a ofendida está a ir agora e a testemunha não pode ir pois tern que trabalhar. A E respondeu «OK» as 16h30 e só às 22h51 é que a testemunha E pergunta à arguida se sabe da amiga. A arguida responde logo que não sabe porque não esteve com a ofendida, o que a testemunha manifestamente estranha pois responde «como assim? Ela não chegou a ir ter contigo?» «A ultima vez que a vi foi antes de ir ter contigo» e ainda lhe manda uma mensagem a pedir para jurar que não lhe tinha feito nada e a dizer que confiou nela .., ao que a arguida responde que a testemunha não tem nada a ver com isso e que não sabe de nada, ordenando-lhe que apague o seu numero de telefone pois o assunto está resolvido («apaga o meu numero e boca calada não fiz nada») como a testemunha volta a enviar mensagem, a arguida escreve «a ti vais ver o que faço» e como ainda assim a testemunha não deixa de enviar mensagens, a arguida dá outra justificação de afinal terem sido os tios do J que bateram na ofendida pois achavam que el devia ficar com a arguida pois é de etnia cigana.

Ora, este teor de mensagens juntamente com o registo de trafego da … do telemóvel da E de fls. 375, onde é manifesto que a arguida estava na zona onde ocorreram as agressões.

A acrescer o relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 406/426/460, onde é patente as agressões sofridas perla ofendida, não restam quaisquer dúvidas ao Tribunal que a arguida E praticou os factos como consta da acusação.

As demais testemunhas apenas referiram ter encontrado a ofendida na estrada e chamado a ambulância (AS, TF, PL) ou ter visto um carro escuro na zona (JC), não acrescentando nada no que se reporta à autoria dos factos.

Abra-se aqui um parenteses para referir que a arguida E apresentou em julgamento uma Declaração da «Agencia Funerária …», onde consta que a mesma esteve presente na cerimónia fúnebre do seu familiar, ocorrida no dia 26.05.2015, pelas 15horas em …. Porém, ouvida a funcionária que atestou/declarou tal situação referiu que passa aquele tipo de declarações a qualquer pessoa que lhe peça e nem precisa de ser presencial ou de qualquer documento de identificação, sendo que da análise do trafego da … já referido anteriormente, a arguida deslocou-se para a zona de …, pelas 19 horas desse dia e não antes.

Já no que se reporta aos demais arguidos, em audiência de discussão e julgamento não foi feita qualquer prova da sua autoria, sendo que o Tribunal por um lado, tem um reconhecimento fotográfico dos arguidos efectuado pela ofendida. Este reconhecimento fotográfico foi efectuado em declarações perante a PJ em que a mesma - nas suas declarações e novamente em sede de memoria futura - refere reconhecer com algumas dúvidas a arguida R e sem quaisquer dúvidas o arguido TS. Porém, descreveu o arguido TS como um individuo caucasiano de pele escura, cabelo escuro com tatuagens nas mãos ou dedos e brincos, sendo que não foi efectuado qualquer reconhecimento presencial.

Acresce que no que se reporta a este arguido o Tribunal não possui mais nenhum elemento para assacar a responsabilidade a este individuo que não seja esta espécie de reconhecimento não valido na lei processual penal e no que se reporta à arguida R, para além do reconhecimento titubeante temos um Consulado português em … que atesta que a arguida lá se deslocou naquele dia, juntando documentos assinados pela mesma e copia do cartão de cidadão da mesma.

Em suma, inexiste prova cabal que o arguido TS tenha praticado tais factos e muito menos inexiste prova suficiente que a arguida RA os tenha igualmente praticado, pelo que à luz do principio in dúbio pro reu, se dão os factos com não provados.

Nos que concerne aos factos provados atinentes à situação pessoal dos arguidos baseou-se o Tribunal nos relatórios sociais dos respectivos arguidos, que pelas respectivas suas fontes, metodologia e isenção da entidade que os elaborou, nos mereceram credibilidade.

Para prova dos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se nos certificados de registo criminal de cada um dos arguidos.

O Tribunal teve ainda em consideração os documentos juntos aos autos - uns já acima referidos -, a saber,

Relatório de urgência de fls. 23

Relatório de diligencia externa de fls. 25

Fotografias dos arguidos de fls. 30/31/32

Relatório de exame ao local do crime de fls. 58 e respectivas fotografias

Reportagem fotográfica da ofendida de fls. 75

Cota da PJ de fls. 88

Reportagem fotográfica do telemóvel da testemunha E de fls. 98

Reportagem fotográfica da rua … de fls. 166

Fotografias da casa dos arguidos e respectiva busca de fls. 270

Relatório de exame ao veiculo automóvel …. de fls. 295 (onde não é encontrado qualquer vestígio da ofendida)

Registo de trafego da … ao telem6vel…, pertença da arguida E de fls. 375

Relatório pericial de fls. 404

Relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 406/426/460

*

(…)”.

IV

Apreciando a primeira supra editada questão, [(i)], da nulidade do acórdão recorrido nos termos do estatuído nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, importa, antes de mais, recordar que o dever de fundamentação das decisões judiciais decorre, desde logo, do preceituado no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”. E a lei processual penal, hoje entendida como direito constitucional aplicado, no seu artigo 97º, nº 5, estatui que, “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. Acresce que o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui, nos modernos Estados de Direito, um dos pressupostos do chamado “processo equitativo” (que se traduz, sinteticamente, em três exigências: i) informação ao acusado, de modo detalhado, acerca da natureza e dos motivos da acusação, para que dela se possa defender; ii) um procedimento leal, sem influências externas na formação do juízo; iii) um juiz imparcial, que exerça a função em posição de terciaridade relativamente aos interesses objecto do processo e não dê a alguma das partes tratamento de favor ou de desfavor.), a que aludem os artigos 6º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que no seu nº 1, estatui “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.”) e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (que dispõe “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”).

Como refere o Professor Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2009, pág. 289, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.”.

O acto decisório sentença ou acórdão tem uma fundamentação especial como resulta do disposto no artigo 374º, do Código de Processo Penal que, sob o título “Requisitos da sentença”, dispõe:

“1. A sentença começa por um relatório, que contém:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;

c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;

d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

3. A sentença termina pelo dispositivo que contém:

a) As disposições legais aplicáveis;

b) A decisão condenatória ou absolutória;

c) A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;

d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;

e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.

4. A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.”.

E, conforme estatui o artigo 379º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Nulidade da sentença”:

“1. É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2. As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.

3. Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, excepto em caso de impossibilidade.”.

Assim, a sentença ou acórdão que sabidamente se compõe de três partes - o relatório, a fundamentação e o dispositivo ou decisão stricto sensu -, há-de, na fundamentação, nos termos do nº 2, do supra transcrito artigo 374º, proceder à enumeração dos factos provados e não provados, à exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. Ou, dito de outro modo, ordenadamente, na fundamentação, a sentença ou acórdão começará pela descrição dos factos provados e não provados (a qual, para ser facilmente compreensível, deve obedecer à lógica de quem descreve um episódio da vida real), seguida da exposição dos motivos de facto com exame crítico das provas que conduziram à formação da convicção do julgador, após o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto apurada (em ordem a concluir se o arguido cometeu ou não o crime por que vem acusado), se existem causas de exclusão da ilicitude da conduta ou da culpa do mesmo e, por fim, concluindo-se que o arguido praticou o facto punível, seguir-se-á a escolha e a determinação da medida concreta da pena.

Produzida toda a prova em audiência de julgamento, na fase de deliberação, deve pois o Tribunal valorar os factos descritos na acusação ou na pronúncia, havendo-a, juntamente com os que constam do pedido de indemnização civil, tendo sido enxertado na acção penal, e da contestação, caso tenha sido oferecida pelo arguido e/ou demandado e aqueles que resultaram da discussão da causa, como preceituado no artigo 368º, nº 2, do Código de Processo Penal.

E, por isso, a sentença ou acórdão, na sua fundamentação fáctica, deve conter a “enumeração dos factos provados e não provados”, os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os factos decorrentes daquela elencada origem. Enumerar os factos é especificá-los ou contá-los um a um, o que corresponde a dizer que o Tribunal tem de especificar todos e cada um dos factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que tiverem resultado da discussão da causa, relevantes para a decisão, como provados ou não provados, como, aliás, sempre decorreria do próprio dever de apreciar, descriminada e especificamente todos os factos, imposto pelo citado comando do nº 2, do artigo 368º.

Deste modo, fórmulas genéricas e imprecisas, são ineficazes, porque não dão a indispensável garantia de que todos os factos relevantes alegados, que não surgem descriminados na decisão sobre a matéria de facto, foram considerados nos termos legais. Contudo, nesta vertente, como vem reiteradamente acentuando o Supremo Tribunal de Justiça, o cumprimento do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, não impõe a enumeração dos factos provados e não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista com rigor, em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e bem assim aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto – seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena –, tendo em conta os termos das posições assumidas pela acusação e pela defesa e os poderes de cognição oficiosa que cabem ao Tribunal – cfr., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.01.1999, proferido no processo nº 1216/98, sumariado na www.dgsi.pt/jstj e publicado na integra no Boletim Interno nº 27.

Mas, na sua fundamentação fáctica, a sentença ou acórdão deve conter, ainda, a motivação da decisão de facto, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal e fundamentar tal decisão.

Como afirma Marques Ferreira, in “Meios de Prova”, “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, pág. 228 e segs, “exige-se não só a indicação das provas ou meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o art. 410.º, n.º 2 (…).

E extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade.”.

Neste conspecto, o preceituado no nº 2, do mencionado artigo 374º, está, pois, intimamente ligado ao estatuído no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

De harmonia com o ali consagrado princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, porém, tal apreciação está, como afirma o Professor Cavaleiro Ferreira, em “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211, “vinculada aos princípio em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.

“No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional. [cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206].

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador. [cfr. Prof. Castro Mendes, “Do Conceito de Prova em Processo Civil”, pág. 302].

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.

É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador.

Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.

«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido» [cfr. Paulo Saragoça da Mata, “A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 261-279].

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc..

Atente-se que “Perante uma determinada situação em concreto, produzidos em audiência depoimentos de sentido contrário, é natural que sejam lícitas e possíveis várias soluções, na decisão da matéria de facto. Se aquela que é assumida pelo juiz é uma das soluções admissíveis, à luz das regras da experiência comum (e se, para além disso, tal solução se mostrar suficientemente motivada e esclarecida), então estamos perante decisão inatacável no plano fáctico, pois que produzida em estrita obediência ao estatuído no artº 127º do Cod. Proc. Penal.(…). Em caso de impugnação da matéria de facto, o tribunal de recurso não procede a um novo, a um segundo julgamento, agora pela leitura das transcrições das gravações dos depoimentos oralmente prestados em audiência. Como lapidarmente referiu o Prof. Germano Marques da Silva (…) «o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância» - Forum Justitiae, Maio/99. Muito menos se destina a limitar (ou mesmo arredar) o princípio da livre apreciação da prova consignado no artº 127º do CPP.

Lembremo-nos: nos termos do artº 412º, nº 3, als. a) e b) do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Que impõem, não que permitem. Isto é: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.

Só assim não será quando as provas produzidas imponham decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido. E isto sucederá quando o tribunal decide ao arrepio e contra a prova produzida (v.g., se dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e, ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição se constata que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto ou, pronunciando-se, disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida) ou quando o tribunal valora a prova produzida contra as regras da experiência, as tais que, no dizer de Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, II, 30, se traduzem em «definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade».

Até por aqui se vê a decisiva importância da fundamentação da convicção, na pura e exacta medida em que a mesma pode e deve funcionar como instrumento de controlo do correcto uso da livre (mas não arbitrária) apreciação da prova.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15.03.2011, proferido no processo nº 212/04.8 TACTX.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre.

“Não definindo a lei em que consiste, ou como deve ser efectuado o exame crítico das provas, esse exame tem de assentar em critérios de razoabilidade, de forma completa e clara, que permita avaliar o processo lógico-formal, o raciocínio analítico-crítico efectuado pelo tribunal na ponderação e correlacionamento das provas, no sentido de objectivamente se poder credibilizar a decisão de facto tomada nos termos em que ficou decidida. Tendo em conta os princípios da oralidade e da imediação na actividade de produção da prova, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize específica fundamentação, nem que em relação a cada prova se faça uma descrição dinâmica da sua produção. O que a lei exige é que não basta uma mera referência dos factos às provas, torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, por que razão, ou, com que fundamento, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2007, proferido no processo nº 07P3399, in www.dgsi.pt/jstj [sublinhado nosso].

Ou, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2007, proferido no processo nº 07P1779, disponível no sítio acima referido, “O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).” [sublinhado nosso].

Postos estes considerandos e à luz deles, a recorrente funda a alegação de padecer a decisão recorrida de nulidade, nos termos prevenidos nos artigos 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo “não escreveu uma linha, uma palavra” que permita “descortinar como e porque se convenceu” que o telemóvel com o nº … era da ou utilizado pela Recorrente” e bem assim nada disse sobre a afirmação que efectuou que “os actos que [a arguida – introdução nossa] praticou eram idóneos a colocar em perigo a vida da ofendida”.

Ressalvado o sempre e devido respeito pelo esforço argumentativo da recorrente, somos do entendimento que não lhe assiste razão. Primo aspecto, porque relevante ao objecto da acção penal e à decisão de facto assumida pelo Tribunal a quo é quem utilizou o telemóvel com o nº …, e não a propriedade do mesmo e, conceda-se, a utilização do telemóvel/cartão em causa por banda da arguida mostra-se perfeitamente explicada e motivada. Secundo aspecto, ao objecto da acção penal tal como definido na pronúncia - prática de um crime de sequestro agravado nos termos prevenidos na alínea b), do nº 2, do artigo 158º, do Código Penal, isto é, por ter sido a vítima submetida a ofensa à integridade física, tortura ou tratamento cruel, degradante ou desumano -, é de todo irrelevante a afirmação de que os actos praticados pela arguida, conjuntamente com outra mulher cuja identidade não se logrou apurar, na pessoa da ofendida, foram (ou não) idóneos a colocar em perigo a vida da mesma.

Vale o exposto por afirmar que não se acompanha a pretensão recursiva porque, como se deixou afirmado, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize específica fundamentação e depois porque, em sede da motivação da decisão de facto assumida, o Tribunal a quo procedeu, efectivamente, à indicação de todos os meios de prova produzidos, apreciando-os, valorando-os e aclarando, no que concerne à prova por declarações e depoimentos, a respectiva razão de ciência [entendida esta como a enunciação das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que a testemunha ou declarante adquiriu conhecimento sobre os factos que relata, tornando verosímil a aquisição de tal conhecimento], explicando ainda (e também) o motivo pelo qual uns e outros foram (ou não) e em que medida determinantes da convicção formada e expressa no relato do acervo fáctico que considerou provado e não provado, designadamente o referido pela recorrente. O Tribunal a quo deu a conhecer a todos os destinatários da decisão proferida, maxime à recorrente, o processo racional que conduziu à expressão da convicção formada habilitando todos, designadamente este Tribunal ad quem, à avaliação da consistência, objectividade e rigor do processo lógico e subjectivo da formação da respectiva convicção que, diga-se, não nos merece qualquer reparo. Fê-lo, é certo, em molde diferente do pretendido pela recorrente, expressando distinta visão dos factos que constituem o objecto da acção penal da reclamada pela recorrente e, por conseguinte, naturalmente, não coincidente com a da mesma. Mas, no exame crítico das provas produzidas na instância, o Tribunal a quo credibilizou objectivamente a visão alcançada e expressa no relato dos factos dados como provados e não provados, assente em critérios de razoabilidade e compagináveis com a experiência da vida e das coisas.

Ora, a expressão de fundamentação de facto diversa daquela que a recorrente incorpora na sua peça recursiva não se confunde nem com omissão, nem com insuficiência de exame crítico, a que o Tribunal a quo ademais, repete-se, procedeu e de forma insusceptível de censura.

Em suma, é nosso entendimento que a decisão recorrida não padece da reclamada nulidade prevenida no artigo 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal.

Impõe-se, agora, apreciar a segunda e terceira questões, [(ii) e (iii)], aportadas ao conhecimento deste Tribunal ad quem pela recorrente.

Sabido é que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o Tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em segunda instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.

Assim: impõe-se-lhe a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; impõe-se-lhe a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. Isto é, impõe-se ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. E, sendo caso, impõe-se-lhe a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2012, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.

Postos estes considerandos e sem os olvidar, reclama a recorrente que foram incorrectamente julgados os factos dados como provados na decisão recorrida constantes dos pontos sob os números “8.” a “9.”, “11.” a “14.”, “17.”, “18.”, “21.”, “25.”, “27.” e “29.” a “33.”, porquanto, em sua opinião, não foi produzida prova em audiência de julgamento que permita a prova de tal acervo fáctico que, consequentemente deve ser julgado como não provado.

Precedendo audição do CD contendo a prova gravada produzida em audiência de julgamento e bem assim as declarações prestadas pela vítima LMR para memória futura, forçoso é concluir, por demais evidente, que bem andou o Tribunal a quo ao dar como assente todo o aludido acervo factual.

Acresce que as modificações correctivas que a recorrente propõe à factualidade dada como provada constante dos pontos sob os números “18.”, “21.”, “22.” e “31.”, ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, olvidam a circunstância da arguida se mostrar incursa na prática dos factos em apreço em co-autoria e, por isso, na medida em que os factos foram realizados conjuntamente, ainda que não se tenha logrado apurar qual das intervenientes - a arguida e/ou a mulher cuja identidade não se logrou apurar - praticou todos ou alguns deles e que determinaram o resultado lesivo, os mesmos [facto(s)] são imputados a todas, in casu à recorrente a título consumado e doloso.

Acresce que, em rigor, o desconforto da recorrente relativamente à factualidade dada como provada na instância deve ser (e só pode ser) ponderado ao nível da violação do disposto no citado artigo 127º, do Código de Processo Penal.

Sabido é que, no artigo 127º, do Código de Processo Penal se consagra um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante [o julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84º (caso julgado), 163º (valor da prova pericial), 169º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125º e 126º, do Código de Processo Penal] e o do in dubio pro reo [artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal. Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.].

Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.

E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.

“O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.

Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;

- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.

Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).

A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.

A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..

A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.

É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.

A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.” - v.g. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, de 24.03.2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.

E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal a quo da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo antes necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

Bastará a simples leitura da decisão recorrida, designadamente da motivação da decisão de facto assumida pelo Tribunal a quo, para se alcançar o processo lógico-formal, o raciocínio efectuado pelo julgador na ponderação e correlacionamento das provas produzidas (por declarações, por depoimentos e por documentos lato sensu) e privilegiadas (e bem) na formação da convicção expressa no relato dos factos dados como provados e não provados.

O caminho trilhado pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, que a recorrente quer colocar em crise, mostra-se perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável e, nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer.

Vale o exposto por afirmar que a valoração da prova produzida na instância, conducente à decisão de facto expressa na decisão recorrida, não denota nenhuma afronta das regras de experiência comum, nem contraria o valor da prova por documentos, nem espelha nenhum “desacerto sobre facto histórico de conhecimento geral”, nem “ofensa às leis da física, da mecânica e da lógica” e/ou “ofensa relativamente a conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos” - v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.05.2011, proferido no processo nº 236/05.8 GBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt/jtrg.

Acresce que, na apreciação da prova produzida na instância, também não se descortina qualquer ofensa do princípio in dubio pro reo na medida em que não se vislumbra, nem a recorrente demonstra, que o Tribunal a quo haja resolvido qualquer non liquet contra si e, é por demais sabido que, a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra a arguida recorrente, o que também não ocorre.

Aqui chegados, importa concluir que o Tribunal a quo, na elaboração da decisão recorrida, não se afastou de uma análise correcta, porque absolutamente plausível, da prova produzida em julgamento.

Posto isto, surge como evidente que a não aceitação que a recorrente manifesta relativamente ao modo como o Tribunal a quo decidiu a matéria de facto, não radica na existência de provas (ou falta delas) que impusessem [sublinhado nosso] decisão diversa da que foi proferida, mas tão só na sua análise (pessoal) da prova e da sua vontade de a sobrepor à análise levada a cabo por quem tem o poder/dever de a fazer, o que obviamente não pode proceder, nem ser consentido.

Nestes termos, a alteração da factualidade assente na primeira instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e (c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe ex officio, avivando que a este propósito a recorrente apenas invocou apenas o prevenido na alínea b) do mencionado preceito.

Em comum aos três vícios, o vício que inquina o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, loc. supra mencionado.

Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na pronúncia, nas contestações e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento, em conformidade com o estatuído no artigo 339º, nº 4, do Código de Processo Penal.

Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entres estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário. De igual modo, não se detecta qualquer violação do favor rei, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o Tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra a arguida EIC.

Vale isto por afirmar que, a pretendida verificação no acórdão recorrido de vício de contradição insanável entre o facto dado como provado sob o ponto com o número “22.” e a respectiva fundamentação, igualmente não se verifica na medida em que a recorrente o funda na repristinação do teor das declarações para memória futura prestadas pela vítima e dadas a conhecer em sede de motivação da decisão de facto por banda do Tribunal a quo e não na convicção que o julgador formou no cotejo daquele meio de prova com os demais. Diga-se ainda que, em rigor, tal alegação não teria in casu a virtualidade de consubstanciar a verificação daquele vício porque tratando-se de contradição a mesma não era insanável.

Em consequência, a factualidade assente pelo Tribunal a quo mostra-se sedimentada, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade, cujo conhecimento ex offício se imponha a este Tribunal ad quem.

Importa agora apreciar a última questão, [(iv)], aportada ao conhecimento deste Tribunal, da reclamada comutação in mellius da pena de prisão imposta à recorrente e da pretendida suspensão da respectiva execução.

Antes, porém, importa afirmar que em razão da sedimentação do acervo factual dado como provado pelo Tribunal a quo a reclamada absolvição da arguida da prática, em co-autoria material, de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, se mostra efectivamente prejudicada, porquanto fundada numa peticionada, mas naufragada, alteração da matéria de facto – v.g. artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

E, dúvidas não se nos suscitam que a factualidade assente imputada à arguida traduziu uma significante privação, contra vontade, da liberdade da ofendida/vítima e que os actos que lhe foram dirigidos e infligidos – de ameaça à respectiva integridade física e ameaça à vida, golpeando-a com objecto corto contundente, designadamente na cabeça, no rosto e nas costas e desferindo-lhe socos e pontapés por todo o corpo e cortando e rapando o cabelo com uso de tesoura pontiaguda e máquina de cortar cabelo e corte das roupas, incluindo a roupa interior que trajava, deixando-a num lugar ermo e inóspito, completamente desnudada -, traduzem uma actuação constitutiva de uma séria ofensa à dignidade da pessoa humana, excedendo o meio mínimo para levar a cabo a privação de liberdade, enfim, traduzem um “tratamento degradante e desumano”.

O ilícito em apreço é, em abstracto, punível com pena de prisão de 2 (dois) a 10 (dez) anos.

A recorrente, na reclamada comutação in mellius da pena de prisão que lhe foi imposta, não invoca argumento algum que não tenha sido sopesado na decisão recorrida, outrossim coloca em crise o pendor e valoração que lhes foi atribuído.

Sobre os critérios legais que importam à determinação da pena, perfunctoriamente, dir-se-á que face ao disposto no artigo 71º, nº 1, do Código Penal, na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, está o Tribunal vinculado a critérios definidos em função da culpa do agente e de exigências de prevenção, sendo que, na sua concreta determinação, deve ainda o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam ser consideradas a favor ou contra o agente, as quais se encontram elencadas, de forma não taxativa, nas alíneas a) a f), do nº 2, do citado preceito legal.

Como elementos de referência, na determinação da medida da pena, contam-se o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e as respectivas consequências.

Cumpre, ainda, referir que nos termos do nº 1, do artigo 40º, do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa – cfr. nº 2, do mesmo artigo.

Seguindo os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., páginas 79 a 84, “Primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não obviamente num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança (...) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

(...)

Afirmar que a prevenção geral positiva ou de integração constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de partida para a resolução de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz exactamente a convicção de que existe uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade), nomeadamente por exigências (acrescidas) de prevenção especial, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. É verdade porém que esta “medida óptima” de prevenção geral positiva não fornece ao juiz um quantum exacto da pena. Abaixo do ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem que perca a sua função primordial de tutela dos bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico –, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.

(...)

Dentro da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de “defesa do ordenamento jurídico”) – devem actuar, em toda a medida possível, os pontos de vista de prevenção especial, sendo sim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A medida de necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vector mais importante daquele pensamento.”.

Resta referir o princípio da culpa e o seu significado para o problema das finalidades das penas, seguindo o mesmo ilustre Professor, ob. e loc. supra citados. “Segundo aquele princípio, “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”. A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer considerações ou exigências preventivas (...). A função da culpa (...) é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”.

Em suma, sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena – cfr. artigo 71º, do mesmo Código –, reproduzindo, uma vez mais, o Professor Figueiredo Dias, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 110 e 111, “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”.

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, atentando no que a este propósito nos diz a decisão recorrida e se repristina, que “No caso fazem-se sentir particulares necessidades de prevenção geral, pelo crescente número de ilícitos desta natureza que têm ocorrido, bem como, pela elevada insegurança que os mesmos geram na comunidade. Ponderando o modo de execução dos factos, a falta de arrependimento da arguida que nem sequer justificou a sua conduta e remeteu-se ao silêncio, a violência empregue, totalmente excessiva, fútil e gratuita, as consequências que a conduta da arguida teve na ofendida, importa concluir que, dentro da moldura abstracta deste crime, é manifestamente elevado o grau de ilicitude dos factos. A arguida actuou com dolo directo. Não possui antecedentes criminais, no entanto é o que se espera de uma pessoa normal que viva em sociedade A arguida parece estar socialmente inserida embora subsista pelos rendimentos do Estado. As consequências da conduta da arguida na ofendida foi manifestamente relevante, fazendo a mesma temer pel a sua vida e fugir para o seu Pais de origem. Fazem-se, assim, sentir particulares exigências de prevenção especial positiva.”, somos forçados a concluir que assiste efectivamente razão à recorrente e que a pena de prisão de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses se mostra excessiva e tem que sofrer modificação correctiva por forma a permitir e consentir a afirmação de que a culpa da arguida não foi excedida.

Na verdade, não olvidando que o silêncio sobre os factos por que vinha pronunciada não pode ser contra si valorado – cfr. artigo 343º, nº 1, do Código de Processo Penal –, e que das apuradas circunstâncias atenuantes gerais apenas releva a circunstância de ser delinquente primária e encontrar-se familiar e socialmente integrada, com fraco pendor atenuativo e as circunstâncias agravantes gerais sobressaem, porquanto o grau de ilicitude é elevado quer do ponto de vista do desvalor da acção, quer do ponto de vista do desvalor do resultado e a conduta é imputada à arguida a título de dolo directo e, por isso, intenso, e as finalidades de prevenção geral são de grau elevado sempre que estão em causa crimes que atentam de forma grave contra bens eminentemente de natureza pessoal e porque relacionadas com a satisfação das expectativas comunitárias de manutenção, respeito e reforço da norma violada com o comportamento da arguida e as finalidades de prevenção especial igualmente elevadas, porquanto as qualidades desvaliosas da personalidade da arguida reveladas nos factos evidenciam uma marcada desconformação com o direito e uma total ausência de sentido crítico e desprezo pela dignidade da pessoa humana, sopesadas todas elas, temos como adequada aos factos e circunstâncias apurados, à culpa da arguida e às exigências de prevenção a imposição à mesma da pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. Esta, assim fixada, é a que se nos afigura mais adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassa a medida da culpa da arguida e, por conseguinte, não afronta os princípios da necessidade, proibição ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa -, antes se revela adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, não ultrapassando a medida da culpa da arguida.

Destarte, nada consente, como pretendido pela recorrente, a suspensão da execução da pena de prisão ora imposta. Vejamos.

Dispõe o artigo 50º, nº 1, do Código Penal, que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

Esta medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só deve ser decretada quando o Tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas no texto legal transcrito, ser essa medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade, ou seja, a suspensão da execução da pena terá sempre na base uma prognose favorável ao arguido, a esperança de que este sentirá a condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime, terá perante ela uma atitude de emenda cívica, de reeducação para o direito.

O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança, não é seguramente certeza, mas se tiver sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de emenda cívica e ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa – v.g. Professor Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1ª edição, pág. 341 e segs., Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal”, 3ª edição, em anotação ao artigo 50º e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.10.2003, proferido no processo nº 03P2450, disponível in www.dgsi.pt/jstj.

Significa o exposto que devem ser ponderadas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido à luz dos fins de prevenção especial e, sendo essa conclusão favorável, equacionar-se-á se a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer todas as finalidades da punição.

Encerrando, a opção por esta medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só fará sentido se for possível concluir que o agente do crime terá capacidade para interiorizar dessa forma a desvalia da sua conduta e para se determinar no futuro de acordo com o direito. A pedagogia e a reeducação apenas podem ser exercidas em relação a quem for sensível a esse tipo de apelo.

Mas na avaliação a efectuar não se pode esquecer que, antes de mais, antes da formulação de um juízo de prognose favorável em que entram as exigências de prevenção especial, o regime de suspensão está em primeiro lugar dependente da ponderação das exigências de prevenção geral, na vertente das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Por estas exigências se limita em primeira linha o valor da socialização em liberdade que dita o instituto da suspensão, havendo sempre casos em que essas exigências, não obstante prognose favorável, impedem a suspensão – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 344.

Como refere Anabela Rodrigues, em “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”, “que assim é quanto à prevenção geral, resulta do facto de nenhum ordenamento jurídico suportar pôr-se a si próprio em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. A sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral - isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão”.

E, de facto, o artigo 50º, do Código Penal estipula que a suspensão apenas deve ser decretada se a ameaça da pena for adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição e de entre elas também avulta a prevenção geral de integração.

Postos estes considerandos, as exigências de prevenção geral que, como se deixou editado, subjazem, em primeira linha, ao regime da suspensão da execução da pena de prisão, são prementes e elevadas, atendendo sobremaneira à necessidade de se reafirmar, de forma eficaz, a validade e confiança na norma incriminadora e, no tocante às exigências de prevenção especial, somos do entendimento, sem margem de dúvida, que não é possível no caso sub judice formular um juízo de prognose favorável do futuro comportamento da arguida que ante os factos apurados não deu mostra alguma de ser capaz de avaliar e interiorizar o desvalor da sua conduta.

Significa o exposto que, como se alcança da factualidade assente e das sedimentadas circunstâncias do crime e o que elas revelam da personalidade da arguida, sopesadas, com aqueloutras invocadas pela recorrente, maxime da inserção pessoal e familiar, estas não permitem concluir ter a arguida capacidade para interiorizar a desvalia da sua conduta e para se determinar no futuro de acordo com o direito.

Sem embargo de que se nos afigura manifesto que, no caso em apreço, o decretamento de tal pena de substituição seria entendido pela sociedade como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime e, por conseguinte, não se mostrariam salvaguardadas as exigências de prevenção geral, na vertente das exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Em consequência de tudo o que se deixa exposto, o recurso interposto pela arguida EIAC é parcialmente procedente.

V

Em vista do decaimento parcial no recurso interposto pela arguida, não é devida tributação nos termos do disposto no artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal.

VI

Decisão

Nestes termos acordam em:

A) - Julgar parcialmente provido o recurso interposto pela arguida EIAC e, em consequência, pela prática, em co-autoria material, de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1 e 2, alínea b), do Código Penal, condená-la na pena de prisão de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, revogando, assim, o quantum da pena de prisão imposta na primeira instância e mantendo no mais a decisão recorrida;

B) - Não é devida tributação.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora,20-10-2020

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Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares)

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(J. F. Moreira das Neves)

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(Gilberto da Cunha)