Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2166/17.1T8STR.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
SECTOR EMPRESARIAL DO ESTADO
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: i) A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva. Pretende pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito. É necessário apurar os factos e qualificá-los. A empregadora não é condenada. É apenas destinatária de uma declaração que torna certa uma questão de facto e de direito incerta.
ii) Na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, quando a empregadora é o Estado ou uma empresa pública, o único efeito jurídico que não pode ser produzido com a declaração de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é a condenação da empregadora a admitir o trabalhador ao abrigo de um contrato de trabalho, por impedimento legal.
iii) Quanto ao mais, a decisão proferida na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho produz os seus efeitos normais, pelo que o processo deve prosseguir os seus termos a fim de que o seu objeto seja apreciado após a fixação dos factos provados e não provados.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2166/17.1T8STR.E1

Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO

Apelante: Rádio e Televisão de Portugal, SA (ré).
Apelada: Ministério Público (autor).

Tribunal Judicial da comarca de Santarém, Juízo do Trabalho de Santarém, J1

1. O Ministério Público intentou ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra a ré, pedindo o reconhecimento de existência de contrato de trabalho entre a ré e a trabalhadora BB desde 1 de julho de 2016, com as legais consequências.
Alegou que a trabalhadora BB iniciou a sua atividade ao serviço da ré na data mencionada supra, desempenhando funções de técnica de recursos humanos, encontrando-se desde o mês de janeiro de 2017 a desempenhar funções na área social. Alega factos que consubstanciam, caso sejam provados, uma relação de subordinação jurídica, nomeadamente a utilização de equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes, a observância de horas de início e termo da prestação de trabalho, de segunda a sexta-feira com descanso semanal ao sábado e domingo, da necessidade de comunicação da suas ausências e respetiva autorização, um salário periódico e fixo, pago todos os meses por transferência bancária, a exclusividade da prestação efetuada perante a ré, recebendo ordens, orientações e instruções da mesma, entre outros factos indicados na petição inicial.
Procedeu-se à citação da ré para, querendo, contestar o que sucedeu nos termos seguintes:
Invocou a ré a nulidade da presente ação, nomeadamente face à proibição de constituição de relação de trabalho subordinado com entidades do setor público empresarial sem a prévia obtenção de autorização governamental, da impossibilidade da RTP reconhecer eventuais situações de trabalho dependente, da impossibilidade do tribunal reconhecer eventuais situações de trabalho celebrados pela RTP, da invalidade da participação da ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho), nomeadamente pela ausência de um comportamento culposo, da determinação para a prática de um ato ilegal, da inexistência de ilicitude, da inaplicabilidade da ação de reconhecimento do contrato de trabalho à ré, da litispendência atípica e do risco de casos julgados ou opostos, da extemporaneidade da participação da ACT, pedindo-se subsidiariamente a suspensão do presente processo durante o PREVAP, invocando ainda subsidiariamente o direito de defesa e consequente invalidade da ação promovida pelo Ministério Público, exceções seguidas da impugnação parcial dos factos alegados pelo Ministério Público e no âmbito da qual a ré referiu que o local de execução dos serviços deriva da natureza dos mesmos não sendo imposto por esta, que todas as funções desempenhadas por BB correspondiam não ao desenvolvimento de uma atividade mas sim a tarefas tendentes a um determinado resultado, salientando ainda que a utilização dos equipamentos da ré era também imposta pela natureza e finalidade dos serviços contratados.
Mais alega que as horas de execução dos serviços não eram determinadas pela ré, nem definidas por quem quer que seja, inexistindo qualquer horário de trabalho nem períodos de descanso semanal.
Salienta que BB não estava obrigada a comunicar as ausências. Fazia-o apenas por cortesia, a ré não tinha qualquer intervenção na marcação de férias ou períodos de descanso, desvalorizando todos os outros elementos alegados pelo Ministério Público enquanto reveladores de uma atividade subordinada perante a ré.
Por sua vez, BB veio aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público e indicar prova
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença, com a resposta à matéria de facto e motivação, com a decisão seguinte:
Face ao exposto o Tribunal decide reconhecer a existência de um contrato de trabalho celebrado e executado entre BB e ré, entre 01.07.2016 e 30.06.2017, data essa que a mesma deixou de prestar sua atividade para a ré e cujos efeitos da cessação a 30.06.2017 nos abstemos de tecer quaisquer comentários.
Mais se decide declarar a nulidade do contrato em apreço, na presente data, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 123.º n.º 4, 6.º e 7.º do Decreto-Lei 25/17 de 3 de março, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 122.º e 123.º do Código de Trabalho.
Fixa-se o valor da causa em € 30 001 (trinta mil e um euros).
Custas pela ré (cfr. art.º 527.º n.º 1 do Código de Processo Civil).

2. Inconformada, veio a ré interpor recurso de apelação que motivou e com as conclusões que se seguem:
I. A sentença recorrida é nula, nos termos dos artigos 10.º n.º 3, a) e 615.º n.º 1, d) do CPC, uma vez que, ao decidir que a declaração de nulidade do contrato em apreciação nos presentes autos se fazia “sem prejuízo do disposto nos art.ºs 122.º e 123.º do Código do Trabalho”, se pronuncia sobre questão acerca da qual não se devia pronunciar, pois nas ações especiais de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre os efeitos decorrentes da qualificação dada ao contrato.
II. A sentença recorrida fez errada aplicação da lei, em violação dos artigos 130.º e 608.º do CPC, pois ao apreciar os factos alegados pelas partes e concluir pela existência de um contrato de trabalho, ainda que nulo, o Tribunal a quo não julgou a exceção invocada pela ré e cuja procedência impedia que se pronunciasse sobre a natureza jurídica do contrato por esta celebrado.
III. Com efeito, perante a necessidade de proferir uma decisão nos presentes autos e em face da obrigatoriedade de se pronunciar, preliminarmente, sobre as exceções invocadas pela ré – em especial, a da nulidade da contratação – o Tribunal facilmente concluiria, sem necessidade de qualquer esforço probatório, pela absolvição da ré do pedido de reconhecimento da relação de trabalho formulado pelo autor. Isto porque, das duas uma: ou a relação contratual configuraria uma verdadeira prestação de serviços, o que, de imediato, conduziria à absolvição da ré do pedido, por falta de fundamento; ou, caso se concluísse que as partes desenvolveram a relação jurídica em moldes que permitiriam configurá-la como um contrato de trabalho, então idêntica consequência resultaria para a presente ação, ou seja, a absolvição da ré do pedido, por impossibilidade de o Tribunal reconhecer um contrato originariamente nulo.
IV. Assim, e ao contrário do que sustenta a sentença recorrida, não é a apreciação do tipo de relação jurídica que as partes desenvolveram que está numa relação de prejudicialidade com o julgamento da exceção de nulidade do contrato, mas antes o conhecimento prévio da consequência imediata da eventual qualificação deste contrato como de trabalho (nulidade) que torna desnecessária/prejudica a apreciação da natureza jurídica deste contrato, pois a decisão – de absolvição da ré – não se alteraria.
V. A sentença recorrida fez também errada aplicação do artigo 186.º-O, n.º 8 do CPT quando declarou a existência de um contrato de trabalho originariamente nulo, subvertendo assim o fim visado pela ação de reconhecimento de existência de um contrato de trabalho, que consiste na conversão e regularização de uma relação contratual de natureza laboral, nisso se esgotando o seu efeito útil, já que a mesma não comporta a apreciação de quaisquer efeitos que decorram da declaração de existência do contrato de trabalho.
VI. Sem prejuízo do que antecede, caso se considere que a sentença recorrida se podia pronunciar sobre os efeitos decorrentes da nulidade do contrato celebrado com a ré, no que não se concede, então ter-se-á de entender que o Tribunal a quo fez errada aplicação do direito ao considerar aplicável ao caso sub judice o artigo 122.º do Código do Trabalho (desconsiderando a prevalência do artigo 42.º, n.ºs 5 e 6 da LOE para 2017 e, bem assim, as normas orçamentais correspondentes dos anos anteriores, desde a LOE para 2013, bem como do artigo 123.º, n.º 7, do Decreto-Lei de Execução Orçamental para 2017) bem como uma vez que esta norma visa ressalvar os efeitos decorrentes da celebração de um contrato de trabalho propriamente dito ferido de nulidade, não sendo, nem podendo ser aplicável nos casos como o em apreço, em que inicialmente não foi celebrado um contrato de trabalho, em que se discute a própria natureza do contrato e em que a circunstância que gera a nulidade originária do contrato é o reconhecimento da sua natureza laboral (pelo que a sentença recorrida violou igualmente o disposto nos artigos 280.º, n.º 1 e 289.º do Código Civil.
Nestes termos, e nos demais que doutamente se suprirão, devem as conclusões do recurso ser julgadas procedentes, alterando-se em conformidade a sentença proferida pelo Tribunal a quo e expurgando-se da mesma a parcela em que decide reconhecer a existência de um contrato de trabalho celebrado e executado entre a interessada e a recorrente, bem como as partes em que se refere aos efeitos da declaração da nulidade, em especial o artigo 122.º do Código do Trabalho.

3. O Ministério Público respondeu e concluiu nos seguintes termos:
1. Tendo sido dado como provado que a relação laboral entre BB e a ora recorrente possuía as caraterísticas enunciadas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do art.º 12.º do CT haveria que fazer funcionar a presunção da existência de contrato de trabalho decorrente do disposto no n.º 1 do art.º 12.º do CT uma vez que a recorrente não logrou provar factos que afastassem tal presunção.
2. O Mmº Juiz proferiu decisão consentânea com a matéria de facto dada como provada limitando-se a aplicar o direito a tal enquadramento fático.
3. A recorrente não traz argumentação ou fundamentos que permitam estabelecer um juízo de censura à decisão proferida.
4. Nestes termos, a decisão judicial recorrida merece total confirmação e o recurso deverá ser desatendido e julgado improcedente.

4. Após os vistos, em conferência, cumpre apreciar e decidir.

5. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – A nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
2. Apurar se a eventual nulidade da contratação impede o conhecimento da existência de contrato de trabalho e os efeitos do reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

II - FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
O tribunal recorrido considerou provados os factos seguintes, não impugnados no recurso:
1. Na sequência de ação inspetiva levada a cabo por inspetora do trabalho da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), realizada no dia 8 de maio de 2017, pelas 10h30, foi levantado Auto por utilização indevida, por parte da ré, do contrato de prestação de serviços, em condições análogas ao contrato de trabalho, relativamente a BB, nascida em …, portadora do Cartão de Cidadão n.º …, contribuinte fiscal n.º …, beneficiária da Segurança Social n.º … de nacionalidade portuguesa e residente na Rua …Santarém.
2. BB, na data referida, encontrava-se nas instalações da ré, sitas na Avenida Marechal Gomes da Costa, n.º 37, em Lisboa, mais propriamente na direção da RH, sita no piso 2 do edifício B, sala 05 a visualizar e-mails de forma a conseguir pôr o trabalho em dia pois havia estado ausente por uma semana.
3. A atividade desenvolvida por BB era realizada no local de trabalho pertencente à beneficiária da prestação e por ela determinado.
4. Tendo iniciado a sua atividade na RTP SA em 1.07.2016.
5. BB desempenhava funções de técnica de recursos humanos encontrando-se, desde o mês de janeiro de 2017, a desempenhar funções na área social, as quais se traduzem, nomeadamente, nas seguintes tarefas:
- criação, desenvolvimento e constante atualização da proposta de responsabilidade social (que se encontra, de momento, para validação pela Administração);
- criação do Relatório de Igualdade de Género 2016 (1.º relatório sobre a temática divulgada na RTP);
- participações nas reuniões do GRACE e do IGEN;
- desenvolvimento de estratégias de divulgação de ação social, por exemplo, criação de cartazes e protótipo do banner utilizado para as dádivas de sangue, criação de um questionário (no domínio Google) para criação de um banco de voluntários RTP.
6. Sendo que no período compreendido entre os dias 1.07.2016 e 5.01.2017 BB exerceu funções na área da formação.
7. BB utiliza, no exercício e desenvolvimento das suas funções, os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à ré, beneficiária da atividade, nomeadamente:
- secretária;
- cadeira;
- módulo de gavetas;
- todo o material de escritório como canetas, lápis, borracha, agrafador, etc;
- computador, teclado, monitor, rato;
- telefone fixo com acesso ao exterior.
8. BB desenvolve a sua atividade com observância de horas de início e termo da prestação de trabalho, cumprindo o horário das 10h00 às 18h00, de segunda a sexta-feira, com descanso semanal ao sábado e domingo.
9. Sendo que, apesar de não estar vinculada ao registo dos tempos de trabalho, BB, quando necessita de faltar, comunica a ausência à responsável da área da ação social, pessoalmente, via telefone ou e-mail.
10. E se se ausentar por uns dias (férias) tem de comunicar que irá estar ausente e tem de estar autorizada pela diretora de RH.
11. BB tem cartão magnético permanente, com o n.º …, que lhe permite o acesso às instalações pela Portaria, com torniquetes, ficando registadas as horas de entrada e de saída do local de trabalho.
12. BB recebe da beneficiária da atividade, ré RTP SA, com a periodicidade mensal, uma quantia fixa, no valor de € 1 100 (mil e cem euros), por transferência bancária, mediante emissão de recibo eletrónico, independentemente do volume e quantidade de trabalho.
13. Trabalhando ininterruptamente em situação de exclusiva dependência económica da ré para sua subsistência.
14. A ré, beneficiária da atividade desta, não tem no seu quadro de pessoal trabalhadores que desempenhem as mesmas funções de BB.
15. Que tem integração formal na estrutura orgânica da ré, beneficiária da atividade, participando nas reuniões da equipa e em reuniões com parceiros.
15. Recebendo ordens, orientações e instruções da responsabilidade da área de ação social.
16. Tendo-lhe sido criado, pela ré, beneficiária da sua atividade, email profissional – ….@ext.rtp.pt.
17. BB tem, ainda, acesso à intranet da RTP.
18. Encontrando-se inscrita nas Finanças e na Segurança Social na qualidade de trabalhadora independente (estando isenta no 1.º ano).
19. A prestação de atividade à ré por parte da mencionada BB era feita a coberto do Contrato de Prestação de Serviços para o Desenvolvimento de Processos e Procedimentos na Área de Formação, celebrado entre ambas as partes em 1.07.2016, com início nessa data e termo em 30.06.2017 e que se mantinha na data da visita inspetiva realizada pela ACT.
20. Não lhe sendo pedido que registe os tempos de trabalho.
21. Além do mais, a prestadora não consta dos mapas de horário de trabalho e de férias elaborados pela ré para os seus trabalhadores.
22. Com efeito, é política da ré atribuir um cartão a todos os que permanecem nas suas instalações, gerido pela área de segurança, onde são registadas as horas de entrada e de saída, constando estes dados do sistema de gestão de acessos, gerido exclusivamente pela área de segurança da empresa.
23. Em relação à remuneração auferida pela prestadora foi acordada uma remuneração global pela totalidade dos serviços contratados.
24. E foi também acordado que essa remuneração, em vez de ser paga duma única vez, seria paga em prestações mensais.
25. A prestadora não recebe subsídio de férias ou de Natal por parte da ré, nem qualquer outra quantia, subsídios, abonos previstos no Instrumento de Regulamentação Coletiva aplicável à ré e que esta paga aos seus trabalhadores.
26. Quando a prestadora não pode comparecer para prestar a sua atividade, a ré não lhe paga os honorários acordados durante esse período de não comparência, pelo que, nesses meses, o valor pago mensalmente é inferior aos € 1 100.
27. Por outro lado, nem a ré nem a prestadora aplicaram à remuneração por esta auferida o regime fiscal e previdencial próprio dos rendimentos de trabalho dependente, tendo sempre seguido o regime específico dos rendimentos do trabalho autónomo ou independente.
28. E também nunca as partes aplicaram o regime de acidentes de trabalho próprio das relações de trabalho dependente.
29. Decorre das já mencionadas cláusulas 9.ª, números 1 e 2, do contrato de prestação de serviços junto aos autos segundo as quais, a prestadora executa os serviços contratados “em regime de independência e autonomia, sem sujeição a qualquer subordinação jurídica”, não cabendo à ré “dirigir ou orientar a sua execução”.
30. Neste sentido, a ré nunca exerceu qualquer ação ou advertência disciplinar sobre a prestadora.
31. No que se refere ao endereço de correio eletrónico cabe realçar que o respetivo domínio (“@ext.rtp.pt) não corresponde ao que é atribuído aos trabalhadores da ré.
32. A diferença resulta do domínio conter a referência “ext”, que resulta precisamente de estar em causa um colaborador externo, contratado em regime de prestação de serviços.

B) APRECIAÇÃO
As questões a decidir neste recurso são as que já elencamos:
1. A nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
2. Apurar se a eventual nulidade da contratação impede o conhecimento da existência de contrato de trabalho e os efeitos do reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

B1) A nulidade da sentença por excesso de pronúncia
O tribunal recorrido declarou que a relação jurídica existente entre a autora e a ré era de trabalho subordinado, declarou-o nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 123.º n.º 4, 6.º e 7.º do Decreto-Lei 25/17 de 3 de março, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 122.º e 123.º do Código de Trabalho.
A apelante insurge-se contra a última parte do segmento decisório, com o argumento de que nas ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho o tribunal não pode pronunciar-se sobre os seus efeitos.
A autora formula o pedido seguinte: “reconhecimento de existência de contrato de trabalho entre a ré e a trabalhadora LL desde 1 de julho de 2016, com as legais consequências”.
A sentença fundamentou esta parte decisória nos termos seguintes: “Ou seja, por outras palavras, existe um contrato de trabalho o qual cessou em 30.06.2017, cuja nulidade aqui se declara sem prejuízo do disposto no art.º 122.º do Código de Trabalho, em relação aos efeitos produzidos desde 30.07.2016 até 30.06.2017.
Entender de outra forma seria por um lado proibir a ré de celebrar contratos de trabalho sem as autorizações prévias mencionadas supra mas autorizar a mesma a celebrar falsos contratos de prestação serviço apenas porque esta estava proibida de celebrar contratos de trabalho nos termos expostos.
Tem de existir uma coerência na lei e a proibição contida no art.º 123.º, n.ºs 4, 6 e 7 do Decreto-Lei 25/2017, de 3 de março, não corresponde a uma permissão para violar outras normas igualmente imperativas, nomeadamente o art.º 12.º n.º 2 do Código de Trabalho”.
A sentença recorrida, na parte em que decide “sem prejuízo do disposto nos art.ºs 122.º e 123.º do Código de Trabalho” parece estar para além do pedido, mas apenas na aparência.
A ré arguiu a nulidade do contrato de trabalho caso se entendesse que a relação jurídica devia ser qualificada como tal. A sentença acolheu esta exceção e ao reconhecer a existência de um contrato de trabalho entre a A. e a R. declarou-o nulo, mas sem prejuízo do disposto nos art.ºs 122.º e 123.º do CT. Esta última parte da decisão visa esclarecer a extensão e os efeitos da declaração de nulidade do contrato de trabalho a que correspondem os factos provados e não vai além do pedido, nem vai além do objeto da ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho. Limita-se a esclarecer que a declaração de nulidade não prejudica o disposto nos citados artigos do Código do trabalho.
Neste contexto, a sentença não é nula, pelo que se indefere a nulidade arguida pela apelante.

B2) Apurar se a eventual nulidade da contratação impede o conhecimento da existência de contrato de trabalho e os efeitos do reconhecimento da existência de contrato de trabalho
Como se escreveu no acórdão desta Relação[1], de 01.02.2018, subscrito pelo ora relator e adjuntos, “o que está em causa na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista e regulada nos art.ºs 186.º-K a 186.º-R do CPT, é apreciar se a relação estabelecida entre o prestador da atividade e o beneficiário da mesma constitui uma relação de trabalho subordinado e não outra qualquer, nomeadamente de prestação de serviços.
O Ministério Público pretende que nesta ação sejam apreciados factos que, a provarem-se, em seu entender permitem qualificar como contrato de trabalho a relação estabelecida entre a ré e BB.
Trata-se de apurar matéria de facto que não tem a ver diretamente com a validade da relação jurídica, mas sim com a sua qualificação.
Só após se terem apurado factos quer permitam concluir pela existência de um contrato de trabalho é que se pode analisar se pode ser validamente convolado em contrato de trabalho e a ré condenada a admitir o trabalhador enquanto tal.
O art.º 10.º do CPC, aplicável subsidiariamente ex vi art.º 1.º n.º 2, alínea a), do CPT, prescreve que as ações são declarativas ou executivas (n.º 1).
As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas (n.º 2).
As ações referidas no número anterior têm por fim: as de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (n.º 3, alínea a).
A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva. Pretende pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito[2]. É necessário apurar os factos e qualificá-los. A empregadora não é condenada. É apenas destinatária de uma declaração que torna certa uma questão de facto e de direito incerta.
A decisão proferida nesta ação tem consequências jurídicas definitivas em relação à qualificação jurídica da situação de facto estabelecida entre o prestador de trabalho e o beneficiário da mesma e em relação a terceiros, na medida em que é comunicada oficiosamente pelo tribunal à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I P, com vista à regularização das contribuições desde a data de início da relação laboral fixada (art.º 186.º-O do CPT) e após o seu trânsito em julgado levanta a suspensão do procedimento contraordenacional (art.º 15.º-A n.º 4 da Lei n.º 107/2009, de14 de setembro).
As entidades públicas referidas, após decidido definitivamente pelo tribunal que a situação factual consubstancia um contrato de trabalho, procedem em conformidade.
Todavia, estas consequências jurídicas não afastam a natureza declarativa de simples apreciação positiva desta ação especial. Estas entidades públicas são chamadas a atuar de acordo com o fim da incerteza definido na decisão judicial. Uma vez clarificada a situação de facto e de direito, aquelas entidades limitam-se a prosseguir os seus fins públicos balizadas pela declaração de simples apreciação proferida pelo tribunal na sequência de um processo democrático.
No caso concreto, a empregadora é uma empresa pertencente ao setor público empresarial do Estado Português, em que a admissão dos trabalhadores está sujeita a autorização governamental.
Todavia, tal não impede a apreciação da situação de facto existente entre o prestador da atividade e a empresa beneficiária e a sua qualificação jurídica.
Se a ação proceder, será declarada a existência de uma verdadeira situação de contrato de trabalho entre o prestador da atividade e a ré e constatar-se-á então que esta contratou um trabalhador a recibos verdes (foi celebrado um contrato de prestação de serviços), em situação precária, para o exercício de funções correspondentes a contrato de trabalho, em clara violação da lei.
Trata-se da constatação de uma ilegalidade e não da condenação da ré a admitir o trabalhador ao abrigo de um contrato de trabalho. O que fica definido é que, enquanto durar, esta relação de trabalho é de trabalho subordinado, sujeita ao regime contributivo aplicável aos trabalhadores por conta de outrem e às obrigações daí derivadas, nomeadamente em relação a acidentes de trabalho e doenças profissionais e à exigência de seguro de acidentes de trabalho.
Uma vez clarificada a situação concreta, após prova dos factos alegados pelas partes, aquele período de tempo em que durar a relação de trabalho, embora não possa ser convolada em contrato de trabalho, por impedimento legal, deve ser tratada pelo trabalhador, empregadora, comunidade e pelas entidades públicas como se fosse um contrato de trabalho. A transparência democrática a isso obriga.
O único efeito jurídico que não pode ser produzido com a declaração de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é a condenação da empregadora a admitir o trabalhador ao abrigo de um contrato de trabalho.
Quanto ao mais, a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho produz os seus efeitos normais.
O legislador, ao regular a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não limitou o seu âmbito aos trabalhadores a exercer funções em empresas privadas.
O seu âmbito de aplicação abrange todos os prestadores de trabalho, no setor público ou no setor privado, em que exista a fundada dúvida sobre a natureza da relação jurídica, tendo em conta as funções e o modo como são exercidas em concreto.
A entender-se de outro modo, o legislador estaria a permitir a si mesmo práticas ilícitas, que proíbe às entidades privadas, o que seria manifestamente não ético, imoral e chocaria fortemente o sentido de justiça da comunidade e as regras e princípios de Direito que subjazem ao Estado de Direito Democrático, expressamente inscrito no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Note-se que nestas situações estão pessoas que prestam a sua atividade a um beneficiário sem ser ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas ou privado. São casos em que prestam a atividade a um beneficiário em situações aparentemente semelhantes aos de um trabalhador por conta de outrem em funções privadas, mas de uma forma totalmente desprotegida e vulnerável.
Assim, nestes casos, nem sequer se verifica a eventual constrição derivada do beneficiário da atividade ser uma entidade pública. O prestador da atividade exerce-a de facto ao abrigo de um acordo de direito privado.
Neste contexto, concluímos que, mesmo que se conclua a final que a situação de facto consubstancia um contrato de trabalho que não pode ser convolado em contrato de trabalho, por força de impedimento legal, ainda assim existe interesse público em que tal seja declarado, pelo que a ação deve prosseguir os seus trâmites normais.
Continua a existir interesse em que seja proferida decisão de mérito, após a fixação dos factos provados e não provados”.
A sentença recorrida acolheu precisamente este entendimento. Só faz sentido apreciar a nulidade do contrato de trabalho depois de apurar que existe.
A nulidade refere-se a uma situação concreta, neste caso, a um contrato de trabalho. Produzida a prova e fixada a matéria de facto, o tribunal concluiu e decidiu que a relação que vigorou entre a ré e a trabalhadora era de trabalho subordinado.
Contudo, por força da lei, a admissão de trabalhadores na administração pública e empresas públicas, está sujeita a concurso público e autorização governamental, que no caso não existe. Por isso, em respeito à lei, o tribunal apreciou e declarou que a situação de facto existente consubstancia um contrato de trabalho, mas que é nulo, em face da limitação legal referida.
O conhecimento e declaração da nulidade do contrato de trabalho só pode ocorrer após a constatação da sua existência. Os tribunais não se pronunciam sobre hipóteses, mas sim sobre questões concretas.
Os efeitos da declaração de existência de contrato de trabalho e da sua nulidade já foram apreciados quando foi conhecida a nulidade da sentença e mostram-se bem explicitados no acórdão que transcrevemos, que aqui renovamos.
Nesta conformidade, a sentença recorrida conheceu e aplicou corretamente o direito aos factos provados.
Nesta conformidade, julgamos a apelação improcedente e confirmamos a douta sentença recorrida.
Sumário: i) a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva. Pretende pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito. É necessário apurar os factos e qualificá-los. A empregadora não é condenada. É apenas destinatária de uma declaração que torna certa uma questão de facto e de direito incerta.
ii) na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, quando a empregadora é o Estado ou uma empresa pública, o único efeito jurídico que não pode ser produzido com a declaração de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é a condenação da empregadora a admitir o trabalhador ao abrigo de um contrato de trabalho, por impedimento legal.
iii) quanto ao mais, a decisão proferida na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho produz os seus efeitos normais, pelo que o processo deve prosseguir os seus termos a fim de que o seu objeto seja apreciado após a fixação dos factos provados e não provados.

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 08 de março de 2018.
Moisés Silva (relator)
João Luís Nunes
Paula do Paço

__________________________________________________
[1] Neste sentido, ac. RE, de 01.02.2018, processo n.º 658/17.1T8STC.E1, www.dgsi.pt/jtre.
[2] Reis, José Alberto, Comentário ao Código do Processo Civil, vol. 1.º, segunda edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1960, pp. 19 e 20.