Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
269/12.8GEPTM.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Data do Acordão: 04/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Para o preenchimento do conceito de ameaça, perante uma expressão verbal anunciadora de um mal, não acompanhada de qualquer ato de execução, é futuro o tempo em que o agente permanece inativo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal.
II - O critério determinante, para aferição da incriminação autónoma da ameaça, é, pois, que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.
III – A expressão proferida pela arguida, num bar, dirigindo-se ao ofendido, “cala-te ou levas um par de estalos”, na sequência de uma discussão entre ambos sobre a questão de a arguida ter ou não pedido uma bebida que este não lhe serviu, não assenta no incondicionado suposto de “facere”exigido pelo tipo objectivo de ilícito em causa, não podendo ademais, na perspectiva de um critério objectivo-individual, do homem comum, tendo em conta as características individuais do ameaçado, ter-se como criminalmente relevante.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 269/12.8GEPTM.E1
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos de processo comum em referência, o Ministério Público acusou a arguida, B…, da prática de factos consubstanciadores da autoria material (i) de um crime de ameaça, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 153.º n.º 1, do Código Penal (CP), e (ii) de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos termos do disposto no artigo 143.º n.º 1, do CP.
2 – Precedendo audiência de julgamento, a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido, por sentença de 19 de Dezembro de 2013, decidiu nos seguintes termos:
«Nestes termos, julgo a acusação pública parcialmente provada e parcialmente procedente e, em consequência:
1) ABSOLVO a arguida B… da prática um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1 do CPenal.
2) CONDENO a arguida B… pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do CPenal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 8 euros, num total de 480 euros (a que corresponde a pena subsidiária de 40 dias de prisão, caso a arguida não pague, voluntária ou coercivamente, a multa aplicada).
3) Condeno ainda a arguida no pagamento das custas do processo com taxa de justiça que fixo em 2 e ½ UC, incluindo encargos legais e a compensação devida à Defesa Oficiosa, que será fixada e processada em conformidade com o regime legal aplicável.»

3 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância interpôs recurso da sentença.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1. São elementos constitutivos do crime de ameaça, p. e p., pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, a promessa ou anúncio de um mal futuro, que configure um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, em ordem a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação.
2. Pelo que, o bem jurídico tutelado é a liberdade individual de decisão e de acção e exige-se apenas a consciência de que o comportamento assumido seja susceptível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade da pessoa visada.
3. Assim, o mal anunciado será um mal futuro, sempre que o agente anuncia a outrem a prática de um mal, mas mantém-se inactivo quanto à sua execução.
4. In casu, a arguida disse ao ofendido C… “cala-te ou levas um par de estalos”, querendo, desse modo, condicionar o ofendido na sua decisão de relatar a D…, seu patrão, o que se havia passado momentos antes com a mesma e, consequentemente, limitá-lo na sua liberdade de decisão e acção, sendo irrelevante para efeitos de incriminação se essa susceptibilidade de afectar a sua paz individual ou a liberdade de determinação se tenha prolongado por mais ou menos no tempo.
5. É de todo irrelevante que a ameaça tenha sido condicional, já que a concretização do mal anunciado – dar um par de estalos - estaria apenas e somente dependente da vontade da arguida B….
6. Acresce que para o preenchimento do tipo subjectivo do ilícito penal em apreço basto que a arguida tenha a consciência de que o comportamento assumido é susceptível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade da pessoa visada, pelo que não é necessário que, em concreto, se provoque medo ou inquietação, ou seja, que o ofendido C… tenha ficado afectado ou lesado.
7. Assim, a douta sentença violou o disposto no artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, ao considerar que a conduta em apreço não configura a prática de um crime de ameaça.
Pelo exposto, concedendo provimento ao presente recurso, entendemos dever ser revogada a sentença proferida nos presentes autos, que deverá ser substituída por outra que, tendo por base a fundamentação acima expendida, condene a arguida B… pela prática do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal.»

4 – O recurso foi admitido, por despacho de 10 de Fevereiro de 2014.

5 – A arguida respondeu ao recurso, defendendo a confirmação do julgado (não se transcrevendo as conclusões da respectiva minuta dada a impropriedade do suporte digital enviado aos autos).

6 – Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que o recurso não merece provimento.
Pondera, designadamente, nos seguintes termos:
«Ora, no caso em apreço, ficou provado que na situação de desentendimento entre a arguida e o ofendido, aquela disse, dirigindo-se ao ofendido: “cala-te ou dou-te um par de estalos”.
Na situação de conflito que se gerou, não há dúvidas de que se verificam os elementos anúncio de mal “contra a integridade física” e que esse mal estava “dependente da própria vontade” da arguida.
Contudo, não foi anunciado um mal futuro, que é elemento constitutivo do crime de ameaça, mas sim um mal de execução iminente.
Comportamento que, aliás, a arguida concretizou, desferindo ao ofendido um estalo na face.
Nenhuma outra conclusão se pode retirar da factualidade supra descrita pois que,, ocorrendo os factos numa situação de discussão, não pode deixar de ser entendido como aviso da execução imediata de uma agressão.
O uso daquela expressão não foi feito de forma isolada e as palavras, ainda que ameaçadoras, foram proferidas num contexto de discussão localizada no tempo.
Daí que o mal ameaçado fosse de execução imediata e não futura, como se exige no art. 153º nº 1 do Código Penal.
Assim sendo, há que concluir que não tendo ficado provado um dos elementos do crime de ameaça (anúncio de mal futuro), sempre teria a arguida que ser dele absolvida.»

7 – O objecto do recurso reporta ao exame da questão de saber se a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido incorreu em erro de jure, na operação subsuntiva, do passo em que, à luz da materialidade provada, julgou inverificado o crime de ameaça acusado.
II

8 – Em primeira instância, julgou-se a matéria de facto nos seguintes termos:
«A) Da matéria de facto:
Com relevância para a boa decisão da causa, apuraram-se os seguintes factos:
FACTOS PROVADOS:
1. No dia 27 de Agosto de 2012, pela 1h00, a arguida dirigiu-se ao Bar (…), onde trabalhava o seu ex-companheiro C….
2. Nesse local, a arguida pediu ao ofendido que lhe trouxesse a bebida que a mesma lhe havia pedido, ao que o mesmo respondeu que nada lhe pedira.
3. Na sequência da discussão gerada sobre o referido pedido, a arguida disse ao ofendido “cala-te, ou levas um par de estalos”.
4. Mais tarde, quando o ofendido se encontrava a fechar o bar, a arguida dirigiu-se ao mesmo, insultando-o, tendo este manifestado intenção de chamar a GNR.
5. Assim, dirigiu-se ao exterior do Bar, tendo sido seguido pela arguida, que, então, lhe desferiu uma chapada na cara.
6. Da referida agressão resultou para o ofendido dores na zona atingida, não tendo carecido de assistência médica.
7. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de molestar fisicamente o ofendido, objectivo que logrou alcançar.
8. A arguida sabia qua a sua conduta é proibida e punida por lei.
9. A arguida não tem antecedentes criminais.
10. A arguida é considerada pelas pessoas que consigo convivem como uma profissional competente, afável e respeitadora.
11. A arguida trabalha, auferindo cerca de 800 euros mensais; vive em casa própria; tem o 11.º ano de escolaridade.

FACTOS NÃO PROVADOS:
Nenhum outro facto com relevo para a decisão se apurou, designadamente que:
a) A arguida disse, concretamente, ao ofendido apenas que “eu dou-te um par de estalos”.
b) Ao proferir tal expressão, a arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o objectivo de infundir medo, intimidar e perturbar o ofendido na sua liberdade de determinação e tranquilidade, bem sabendo que as referidas palavras são idóneas a causar medo no ofendido, bem como a prejudicar a sua liberdade de determinação, facto que deliberou, quis e conseguiu.
c) O ofendido sofreu um hematoma como consequência do estalo.
No demais não se responde por não ter relevo para o objecto do processo.

B) Da convicção do Tribunal:
(…)

9 – Não se verifica, de ofício, nulidade de que cumpra conhecer e, de par, também se não verifica, no texto e na economia da sentença revidenda, qualquer vício de procedimento – artigo 410.º n.os 2 e 3, do Código de Processo Penal (CPP).

10 – No particular atinente ao enquadramento jurídico dos factos apurados e no segmento que pertine ao crime de ameaça acusado, a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido ponderou nos seguintes termos:
«Veio ainda a arguida acusada pela prática de um crime de ameaça, porquanto teria dito ao ofendido que lhe daria um par de estalos.[…]
O bem jurídico tutelado neste preceito legal é a liberdade de decisão e de acção, uma vez que as ameaças, tal como significativamente se refere em anotação ao aludido normativo no Comentário Conimbricense do Código Penal, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam a sua paz individual, que é condição de uma verdadeira liberdade.
O preenchimento do conceito de ameaça, convocado pelo crime em evidência, não integra, porém, toda e qualquer actuação que de algum modo provoque receio de algum mal.
Apenas o comportamento que se traduza na invocação de um mal (um dos crimes elencados na norma incriminadora), que seja futuro e cuja ocorrência dependa (apenas) da vontade do agente é que pode ser considerado como ameaça para efeitos da referida previsão penal. Acresce ainda que, pese embora o preenchimento do tipo não exija que, em concreto, o ofendido tenha sentido medo e inquietação, exige-se que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ao ameaçado ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Ora, o que se apurou foi que a arguida disse ao ofendido “cala-te ou dou-te um par de estalos” e disse-o num contexto de desentendimentos e discussão.
Sem dúvida que desferir dois estalos na cara de quem quer que seja configura um crime de ofensa à integridade física. E anunciar que se vai fazê-lo futuramente revela a invocação de um mal futuro.
Porém, o que resulta da factualidade apurada é que o anúncio do mal prometido não dependia exclusivamente da vontade da arguida. Com efeito, a mesma condicionou a sua actuação a uma acção (ou melhor, a uma omissão) do próprio ofendido. Só no caso de o mesmo não se calar, de não parar de falar, é que a mesma lhe desferiria o tal par de estalos.
E porque assim é, não se pode concluir que a ocorrência do mal anunciado pela arguida dependesse da sua exclusiva vontade. Acresce que, dado o contexto em que foi proferida tal expressão, num momento de altercação, nãos e reputa que a mesma se possa considerar como adequada a provocar medo ou inquietação ao ameaçado ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Tanto basta para se excluir o preenchimento de todos os elementos constitutivos do tipo penal em evidência, impondo-se, em consequência a absolvição da arguida, tal como se decide fazer.»

11 – A Dg.ª recorrente situa a dissensão que manifesta relativamente ao julgado na operação subsuntiva, do passo em que a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo, à luz da materialidade provada, julgou inverificado o crime de ameaça acusado.

12 – O n.º 1 do artigo 153.º do CP (epigrafado de ameaça, no proémio do capitulo relativo aos crimes contra a liberdade pessoal) persegue «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação».

13 – No plano do tipo objectivo do ilícito, o conceito de ameaça comporta três fundacionais características: (i) mal, (ii) futuro, e (iii) cuja ocorrência dependa da vontade do agente – cfr., a respeito, por todos, Américo Taipa de Carvalho, no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pp. 550-567.

14 – No dizer do Professor Américo Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 553, § 8):
«O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser de execução iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no acmpo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. […] Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante […], Necessário é só […] que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cfr. artigo 22.º-2 c)).»

15 – Como se refere, com incontornável acuidade, no acórdão, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05/18/2009 (processo349/07.1PBVCT, disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt), aquele segmento da lição do Professor Américo Taipa de Carvalho
«[…] tem de ser cuidadosamente e aquelas palavras não podem ser aplicadas acriticamente, sob pena de intoleráveis atropelos à legalidade democrática, criando áreas de impunidade criminal onde o legislador as não autoriza, para além de se atraiçoar o pensamento daquele Mestre.
Antes do mais, é manifesto que o mal objecto da ameaça tem de ser um mal futuro.
Ameaçar “é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro” (Ac. da Rel. do Porto de 17-1-1996, proc.º n.º 9540886, rel. Fernando Fróis, in www.dgsi.pt).
Mal futuro que se contrapõe a um mal passado.
O anúncio de um mal que se projectaria no passado não constitui ameaça. Assim, a expressão “eu já no dia 24 deste mês era para o matar com uma carrinha”dirigido pelo arguido ao ofendido, por ser uma ameaça de acção em tempo passado não tem objectivamente, de forma inequívoca, o sentido de uma ameaça para o futuro, pelo que não integra o crime de ameaça”(Ac. da Rel. do Porto de 6-7-2000, proc.º n.º 0010392, rel. Marques Pereira, in www.dgsi.pt)
Mas o futuro é o tempo que há-de vir, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da língua Portuguesa Contemporânea, I vol., 2001, pág. 1846), o tempo que se segue ao presente, o que está por vir, que há-de ser, que deverá estar, que há-de acontecer, suceder (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2003, tomo IV, pág. 1828), aquilo que há-de ser (Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 25ªed, vol. II, 1996, pág.1225), que há-de vir (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1991, vol. III, pág. 170), que está para ser, que está por acontecer (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2004, pág. 803).
Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante (Taipa de Carvalho, cit, §7, pág. 343).
O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.
Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.
É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.
Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
Quando alguém afirma que “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças.
Tudo depende da intenção do agente.
É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).
Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio Prof. Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c) – op. cit. § 7, pág. 343 (itálico nosso).
Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um acto de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério ‘mato-te’, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”,in www.pgdlisboa.pt), o Ac. da Rel. do Porto de 5-1-2000, proc.º n.º 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.º n.º 9910861 em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante [neste último sentido cfr. Taipa de Carvalho, cit., §5, pág. 342 e §26, pág. 351, e o Ac. da Rel. do Porto de 18-9-2002, proc.º n.º 0110489, rel. Baião Papão (“Para integrar o elemento subjectivo deste ilícito o que releva é a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, sendo irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça”)].
Nem se diga, como já vimos escrito, que a expressão “eu mato-te” traduz um mal iminente e por isso conforma um acto de execução do crime de que afinal o agente desistiu, não prosseguindo a sua conduta.
É que, aquela desistência tem por efeito que a tentativa deixa de ser punível. Mas o que deixa de ser punível é a tentativa de homicídio, sendo o agente punido por ameaça, ofensa à integridade física, coacção etc, se, em determinadas circunstâncias, os actos de execução integrarem a prática de tais ilícitos [assim, no confronto com os crimes de coacção (artigos 154º, 155º, 156º, 163º, 347º) e de extorsão, o Prof. Taipa de Carvalho assinala que o crime de ameaça cede perante os crimes de coacção e de extorsão, “salvo se em relação a estes se verificar uma desistência relevante da tentativa, e aquele se tiver consumado (isto é a ameaça tiver chegado ao conhecimento do destinatário)”, op. cit., §29, pág. 351].
Nem se diga, ainda, que se o mal for iminente a ameaça do mal ou entra no campo da tentativa ou, não entrando, logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ter ficado o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante.
A circunstância de o espaço temporal que medeia entre o mal anunciado e a certeza da sua não consumação ser maior ou menor pode ser relevante para efeitos de determinação da medida da pena, mas é indiferente para efeitos de incriminação.
O que se exige é tão-somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação
Se essa susceptibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.»

24 – Em consonância, decidiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05/06/2015 (processo 151/12.9GCAVR.C1):
«Para o preenchimento do conceito de ameaça, perante uma expressão verbal anunciadora de um mal, não acompanhada de qualquer acto de execução, é futuro o tempo [em] que o agente permanece inactivo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal.»

25 – De par, no acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora (TRE), de 03/17/2015 (processo n.º 1857/11.5PCSTB.E1), adrede acompanhado pelo decidido no acórdão, também deste TRE, de 07/14/2015 (processo 18/12.0GDMMN.E1), decidiu-se questão simétrica nos seguintes termos:
«I - Para efeitos do preenchimento do tipo legal previsto no artigo 153º do Código Penal, a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º não é típica se ocorrer em simultâneo com a sua execução, sob a forma tentada ou consumada, ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, pois em ambas as situações (ou seja, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado) o desvalor inerente à ameaça é desconsiderado pelo legislador, por estar abrangido pela incriminação do crime prometido.
II - A desconsideração do desvalor da ameaça pressuposta pelo legislador só se verifica nos casos em que a ameaça é seguida ou acompanhada da execução do crime prometido ou por ele consumido - e não outro -, tanto na forma consumada como tentada, isto é, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado.
III - Assim, a punição pela ameaça não é excluída (desde que preenchidos os demais elementos de ordem objetiva e subjetiva) pela simples circunstância de ser proferida num contexto de execução iminente do crime prometido ou do crime por ele consumido, ou seja, quando, objetiva e subjetivamente, o agente promete a prática de um dos crimes de referência reportando-se ao momento imediato ou presente e não a uma hipotética situação futura, nas duas situações seguintes:
- Quando a execução do crime prometido não chegue a ter lugar ou quando a mesma execução não for punível, como sucede no caso de tentativa não punível de crime contra a integridade física;
- Quando o agente pratica um outro crime (quer preencha o mesmo ou diferente tipo legal), tentado ou consumado, e não o crime prometido.
IV - O critério determinante para aferição da incriminação autónoma da “ameaça” é, pois, que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.»

26 – Tal jurisprudência, adrede prosseguida no acórdão, deste TRE, de 15 de Dezembro de 2015 (com coincidentes relator e adjunto do presente acórdão), no sentido de que «I - Para o preenchimento do conceito de ameaça, perante uma expressão verbal anunciadora de um mal, não acompanhada de qualquer ato de execução, é futuro o tempo em que o agente permanece inativo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal. II - O critério determinante, para aferição da incriminação autónoma da ameaça, é, pois, que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global. III - As expressões proferidas pelo arguido «e agora, queres o quê?» e «vá agora, vá agora», no contexto em que foram vozeadas, apontando uma arma à cabeça do ofendido, retiram iminência ao mal prometido.», merece, data venia, inteira adesão.

27 – Revertendo à questão sub inde nestes autos, sem qualquer desdouro para a tese sufragada pela Dg.ª recorrente (nem para a jurisprudência que transcreve), figura-se que ali se incorre em interpretação equívoca do conceito de ameaça reportado ao n.º 1 do artigo 153.º, do CP, no ponto em que se desconsidera, por um lado e nos termos supra editados, que a dimensão do hiato temporal entre o mal anunciado e a sua não consumação é indiferente para efeitos da incriminação pelo crime de ameaça

28 – Por outro lado, caberia ponderar que, constituindo elemento do conceito «ameaça» que a concretização futura do mal «dependa ou apareça como dependente da vontade do agente», tal elemento ou característica do tipo objectivo do ilícito há-de ser reportado a um critério objectivo-individual, do homem comum, tendo em conta as características individuais do ameaçado.

29 – Salienta, a respeito, Américo Taipa de Carvalho (ob. citada, pág. 554, § 9):
«Significa este critério que o ponto de partida para o juízo sobre a dependência, ou não, do mal, é feito segundo a perspectiva do homem comum, isto é, da pessoa adulta e normal. Todavia, sendo este o critério-base, não pode deixar de se ter em conta – como factor correctivo do critério objectivo do “homem médio” – as características individuais da pessoa ameaçada. Assim, afirmações de ocorrência de males futuros poderão não ser consideradas ameaças para um adulto normal (na medida em que seja manifesto que a verificação, ou não, do mal anunciado não depende da vontade do “ameaçante”), mas já o serem, quando a pessoa destinatária da ameaça é uma criança ou umn débil mental (p. ex., dizer a uma criança que vai a uma bruxa para que esta provoque uma doença grave na sua mãe), desde que esta debilidade psicológico-intelectual seja conhecida ou devesse ser conhecida do agente.»

30 – Vale por dizer, retomando o caso dos autos, que a «ameaça» implícita contida nas palavras da arguida («cala-te ou levas um par de estalos»), levada num bar, entre a «ameaçante» cliente e o «ameaçado» empregado, na sequência de uma discussão entre ambos sobre a questão de a arguida ter ou não pedido aquele uma bebida que este lhe não servira, porventura em contexto de loquacidade ou palanfrório, não assenta no incondicionado suposto de «facere» exigido pelo tipo objectivo de ilícito em presença, não podendo ademais, de todo em todo, considerar-se tal expressão, à luz do falado critério objectivo-individual, ter-se como criminalmente relevante.

31 – Termos em que, sem qualquer desdouro para a douta argumentação da Dg.ª recorrente, do passo em que a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido fez adequada interpretação do normativo contido no artigo 153.º n.º 1, do CP, o recurso não pode lograr provimento.

32 – Não cabe tributação – artigo 522.º n.º 1, do CPP.
III

33 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se o julgado.

Évora, 12 de Abril de 2016
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)