Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
650/12.2IDFAR.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A exigência contida na al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, definida como uma condição objectiva de punibilidade, deve constar – como facto – da acusação, sob pena de manifesta improcedência desta, nos termos do artigo 311º do C.P.P..
2 – Não constando tal facto da acusação não pode vir a ser incluido nos factos provados em audiência de julgamento à luz de qualquer dos regimes processuais penais contidos nos artigos 358º ou 359º do C.P.P., implicando a absolvição do ou dos arguidos da acusação.
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação de Évora
Secção Criminal



16

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial de Faro – SC, J3 – correu termos o processo comum singular supra numerado no qual foi deduzida acusação contra:

JPSA, nascido em 10/02/1964, solteiro, titular do BI n.º 9374454, e

JPSA - I.E. Ld.ª, titular do NIPC 507.211.642, com sede na R. Luís Bívar, n.º 24, 8150-156 S. Brás de Alportel,

aos quais tinha sido imputada a prática em co-autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal, p e p. pelo art. 105º nº1, 2, 4 e 7 do RGIT.

O Ministério Público deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos peticionando o pagamento da quantia de 10.000,00€ respeitante ao imposto não entregue.


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A final, por sentença lavrada a 27-10-2015, veio a decidir o Tribunal recorrido:

Absolver o arguido JPSA pela prática em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, 2 e 4, al. a) e b), e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Absolver o arguido do pedido de indemnização civil formulado nestes autos pelo Ministério Público em representação do Estado Português.


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Inconformada, a Digna Magistrada do Ministério Público interpôs recursos intercalar do despacho proferido em sede de sessão de audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 20/10/2015 (cfr. fls. 300 a 303) e da sentença, com as seguintes conclusões:

Recurso intercalar:

1 – No despacho de acusação proferido nos autos encontram-se descritos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime previsto no art. 105º, nº1, do RGIT;

2 – A notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT consiste numa condição objetiva de punibilidade, que é independente do preenchimento do tipo incriminador, consistindo um caso específico de pressuposto adicional de punibilidade que foi introduzido por razões de opção de política criminal, no sentido de dar uma última oportunidade aos arguidos de pagar a dívida fiscal e obstarem à submissão a julgamento e à condenação, pelo que apenas terá de estar verificada na realização da audiência de discussão e julgamento e na prolação da sentença;

3 – Tendo os arguidos sido localizados e prestado TIR após a dedução do despacho de acusação onde consta a não efetivação da notificação prevista no art. 105º, nº4, a. b), do RGIT, nada impede, e até se impõe, que os serviços da secção do juízo criminal procedam à referida notificação (como, aliás, tem vindo a ser a prática corrente nos vários juízos criminais deste Tribunal de Faro), devendo tal notificação ser comunicada através do regime previsto no art. 358º, nº1, do C.P.P., e considerada na sentença;

4 – Ao ter efetuado a comunicação da notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT, efetuada após a prolação do despacho de acusação, através do regime previsto no art. 359º, nºs 1 e 3, do C.P.P., por ter considerado consistir numa alteração substancial de factos não autonomizáveis, entendemos, salvo o devido respeito, que é muito, que a Mmª Juiz “a quo” violou o disposto no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT e no art. 1º, al. f), do C.P.P, já que não se trata, manifestamente, de uma situação em que os factos passam a consistir na prática de crime, mas da verificação de um pressuposto adicional de punibilidade independente do preenchimento do tipo incriminador, não consistindo tal comunicação numa alteração substancial de factos por não se tratar de imputação de crime diverso nem de agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o que expressamente se argui, para efeitos do disposto no art. 412º, nº2, al. a), do C.P.P;

5 – Além do que incorreu a Mmª Juiz “a quo” em erro na determinação da norma aplicável, já que devia ter seguido o regime previsto no art. 358º, nº1, do C.P.P., por se tratar de alteração não substancial de factos, o que expressamente se suscita, para efeitos do disposto no art. 412º, nº2, al. c), do C.P.P;

6 – Considerando a Mmª Juiz “a quo” que a comunicação da efetivação da notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT consistia numa alteração substancial de factos (com o que não concordamos, pelos motivos já expostos), com fundamento em que os factos passariam a ser crime quando não o eram conforme descritos na acusação, sempre deveria ter considerado o regime previsto no art. 359º, nº2, do C.P.P., ou seja, considerado a sua autonomização e valendo tal comunicação como denúncia para que se procedesse pelos novos factos, integradores da prática de crime, já que não o eram até então, segundo o seu entendimento;

7 – Pelo que se requer que seja determinada a revogação do despacho de comunicação de alteração substancial de factos segundo o regime previsto no art. 359º, nºs 1 e 3, do C.P.P., proferido no dia 20/10/2015 (cfr. ata, a fls. 300 a 303), substituindo-o por decisão que determine que se efetue a comunicação da efetivação da notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT nos termos do disposto no art. 358º, nº1, do C.P.P., por se considerar que consubstancia uma alteração não substancial de factos, prosseguindo os autos os habituais ulteriores termos com vista à prolação de sentença condenatória.

Recurso da sentença:

1 – No despacho de acusação proferido nos autos encontram-se descritos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime previsto no art. 105º, nº1, do RGIT;

2 – A notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT consiste numa condição objetiva de punibilidade, que é independente do preenchimento do tipo incriminador, consistindo um caso específico de pressuposto adicional de punibilidade que foi introduzido por razões de opção de política criminal, no sentido de dar uma última oportunidade aos arguidos de pagar a dívida fiscal e obstarem à submissão a julgamento e à condenação, pelo que apenas terá de estar verificada na realização da audiência de discussão e julgamento e na prolação da sentença;

3 – Tendo os arguidos sido localizados e prestado TIR após a dedução do despacho de acusação onde consta a não efetivação da notificação prevista no art. 105º, nº4, a. b), do RGIT, nada impede, e até se impõe, que os serviços da secção do juízo criminal procedam à referida notificação (como, aliás, tem vindo a ser a prática corrente nos vários juízos criminais deste Tribunal de Faro), devendo tal notificação ser comunicada através do regime previsto no art. 358º, nº1, do C.P.P., e considerada na sentença;

4 – Ao ter efetuado a comunicação da notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT, efetuada após a prolação do despacho de acusação, através do regime previsto no art. 359º, nºs 1 e 3, do C.P.P., por ter considerado consistir numa alteração substancial de factos não autonomizáveis, entendemos, salvo o devido respeito, que é muito, que a Mmª Juiz “a quo” violou o disposto no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT e no art. 1º, al. f), do C.P.P, já que não se trata, manifestamente, de uma situação em que os factos passam a consistir na prática de crime, mas da verificação de um pressuposto adicional de punibilidade independente do preenchimento do tipo incriminador, não consistindo tal comunicação numa alteração substancial de factos por não se tratar de imputação de crime diverso nem de agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o que expressamente se argui, para efeitos do disposto no art. 412º, nº2, al. a), do C.P.P;

5 – Além do que incorreu a Mmª Juiz “a quo” em erro na determinação da norma aplicável, já que devia ter seguido o regime previsto no art. 358º, nº1, do C.P.P., por se tratar de alteração não substancial de factos, o que expressamente se suscita, para efeitos do disposto no art. 412º, nº2, al. c), do C.P.P;

6 – Considerando a Mmª Juiz “a quo” que a comunicação da efetivação da notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT consistia numa alteração substancial de factos (com o que não concordamos, pelos motivos já expostos), com fundamento em que os factos passariam a ser crime quando não o eram conforme descritos na acusação, sempre deveria ter considerado o regime previsto no art. 359º, nº2, do C.P.P., ou seja, considerado a sua autonomização e valendo tal comunicação como denúncia para que se procedesse pelos novos factos, integradores da prática de crime, já que não o eram até então, segundo o seu entendimento;

7 – O despacho de comunicação de alteração substancial de factos segundo o regime previsto no art. 359º, nºs 1 e 3, do C.P.P., proferido no dia 20/10/2015 (cfr. ata, a fls. 300 a 303), e que foi objeto de Recurso pelo Ministério Público nesta instância, deverá ser revogado e substituído por decisão que determine que se efetue a comunicação da efetivação da notificação prevista no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT nos termos do disposto no art. 358º, nº1, do C.P.P., por se considerar que consubstancia uma alteração não substancial de factos;

8 - Consequentemente, deverá ser proferida sentença que considere a notificação efetuada para efeitos do disposto no art. 105º, nº4, al. b), do RGIT, e que, necessariamente, deverá ser de condenação, tanto na parte criminal como na procedência do pedido de indemnização civil deduzido em representação do Estado/Fazenda Nacional;

9 – Caso seja dado provimento, no sentido requerido, ao Recurso do referido despacho, a apreciação do presente Recurso revelar-se-á inútil, ficando prejudicado, já que a sentença de absolvição, objeto do presente, consiste numa consequência lógica daquele.


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Os arguidos responderam mas a sua resposta não foi acompanhada de ficheiros informáticos correspondentes.

A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da procedência dos recursos.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. A sociedade JPSA é uma sociedade por quotas que tem como objecto “construção geral de instalações eléctricas, comércio eléctrico e electrónico”.
2. É gerente de tal sociedade o arguido JPSA.
3. No ano de 2008, a sociedade arguida realizou diversos negócios e obteve lucros, tendo, a final, apresentado a respectiva declaração de rendimentos de capital.
4. Foi apurada a quantia de € 10.000 euros a pagar, até 20 de Janeiro de 2009, pela sociedade arguida.
5. Nos 90 dias posteriores ao vencimento do mencionado montante, o arguido não procedeu à sua entrega junto da Direcção de Finanças respectiva.
6. Não se tendo mostrado possível proceder à notificação a que alude o art.º 105.º, n. 4, al. b), do RGIT por ser desconhecido o paradeiro do arguido JPSA .
7. O arguido sabia que, após a declaração de rendimentos, teria que entregar às Finanças a quantia de IRS apurada e efectivamente obtida.
8. Não obstante, o arguido enviou às Finanças a declaração de rendimentos,
9. E, depois de apurada a quantia a pagar, não procedeu ao respectivo pagamento,
10. Assim fazendo da sociedade que representava a quantia total de € 10.000 euros, que sabia não lhe pertencer.
11. Fazendo daquela quantia coisa sua, utilizando-a em proveito da sociedade e em seu próprio proveito.
12. O arguido JPSA actuou sempre da forma descrita em nome da Sociedade que geria e para benefício desta.
13. Agiu de forma livre, consciente e deliberada, sabedor da censurabilidade penal da sua conduta.
14. O arguido não tem antecedentes criminais registados.


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B.1.2 - Não existe matéria de facto não provada

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B.1.3 - Convicção do Tribunal e exame crítico das provas:

«A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto acima descrita resultou da análise crítica e conjugada, à luz das regras de experiência e critérios de normalidade (cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal), da prova produzida em audiência de julgamento, mormente das declarações prestadas pelo próprio Arguido (…) bem como do teor dos documentos juntos aos autos.
Tendo presentes os referidos meios de prova, isoladamente ou conjugados entre si, cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados.
Assim, o ponto 1 e 2 dos factos provados, respeitantes à forma de constituição da sociedade Arguida, ao seu objecto social e à respectiva administração durante o período contributivo em causa resultou demonstrado pelas declarações prestadas em audiência de julgamento pelo Arguido JPSA , confirmadas pelo teor da certidão de registo comercial da sociedade Arguida junta aos autos a fls.278 a 281.
Quanto aos pontos 3 a 5 dos factos provados, relativos à não entrega ao Estado dos montantes de IRS em causa, ao envio das respectivas declarações periódicas e aos valores em dívida, a convicção do Tribunal assentou, desde logo, nas próprias declarações do Arguido JPSA que reconheceu ter usado tais quantias e não ter entregue ao Estado as quantias indicadas no libelo acusatório, justificando tal incumprimento com a falta de liquidez da sociedade Arguida, privilegiando o Arguido, sempre que possível, os compromissos contratuais com os fornecedores. Confirmou, também, os períodos e os valores em falta.
As declarações do Arguido foram, genericamente, corroboradas pelo depoimento da testemunha (…)
No mais, todos os documentos de fls. 23 a 48, nota de liquidação de fls. 42, notificações de fls. 49 a 53, 75 a 78, atestam os períodos e os valores das prestações tributárias em falta.
O valor global de 10.000,00 (dez mil) Euros a que se refere o ponto 10 dos factos provados, é o resultado da liquidação de IRS apurado e comprovado que não foram entregues aos cofres do Estado aquando da entrega das declarações periódicas de IRS, nem nos 90 dias seguintes ao termo deste prazo.
Quanto à autodeterminação do Arguido e à consciência do carácter lesivo, ilícito e criminalmente punível da não entrega dos valores em dívida tais factos assentam nas próprias declarações do Arguido, que assumiu, nesta parte, os factos que lhe eram imputados na acusação, a que acresce a circunstância de o mesmo exercer as funções de gerência da sociedade Arguida, e ter assinado e ter sido advertido pelo TOC da sociedade da sua obrigação liquidar tal imposto.
Relativamente aos antecedentes criminais, os mesmos resultaram da análise do CRC junto aos autos. »


***

Cumpre conhecer.

B.2 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação.

A recorrente suscita, no essencial, uma só questão, a de apurar se a inexistência na acusação da condição objectiva de punibilidade prevista na al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT – apurando-se o facto em audiência - deve ser inserida na previsão do artigo 358º do C.P.P. por se tratar de alteração não substancial dos factos ou, ao invés, na previsão do artigo 359º do mesmo código por se tratar de alteração substancial de factos.

Ambos os recursos têm o mesmo objecto pelo que o destino do recurso intercalar – que considerou os factos que consubstanciam a dita condição objectiva de punibilidade uma alteração substancial – determina o destino do recurso da decisão final.

Sobre este assunto, na sua versão de antecedência lógica, já relatámos dois acórdãos desta Relação e não vemos razão para alterar o aí decidido e fundamentado.

E antecedência lógica na medida em que o presente recurso implica uma tomada de posição em três estádios lógicos, sendo que em decisões anteriores já conhecemos dos dois primeiros:


a) - desde logo saber o que seja a exigência contida na al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT;

b) – depois quais as consequências de ser uma condição objectiva de punibilidade, designadamente o saber se a mesma tem que constar da acusação;

c) – por fim, não constando, se a sua inclusão nos factos provados em audiência de julgamento - sendo uma alteração de factos, não autonomizáveis – pode ser efectivada num dos regimes processuais penais aplicáveis em alternativa (artigos 358º versus 359º do C.P.P.) ou se o não pode ser em qualquer deles.

Quanto ao primeiro ponto o nosso labor encontra-se facilitado dada a existência do acórdão uniformizador de jurisprudência (A.U.J.) nº 6/2008, que é claro no afirmar consagrada naquele preceito uma condição objectiva de punibilidade.

Sobre a segunda questão – a contida na al. b) - existe já jurisprudência desta Relação, tirada em sede de aplicação do regime do artigo 311º do C.P.P. (a manifesta improcedência da acusação que não inclua a condição objectiva de punibilidade) e não se descobriram decisões de outros tribunais superiores sobre a matéria (excepção feita ao acórdão da Relação de Guimarães de 22-11-2010 infra citado).

Assim, no acórdão de 24-09-2013 (proc. 53/11.6TASRP.E1, nosso relato), já defendemos a essencialidade de os factos que concretizam aquela condição objectiva de personalidade serem levados à acusação, como segue:

“1 - Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006 (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008), a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.

2 - Cabe ao poder executivo, isto é, à administração, qualquer que ela seja, proceder a tal notificação antes de o processo ser enviado para tribunal. Assim, verificada a necessidade de se proceder à notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, e ordenada a dita notificação, o processo deverá esperar o decurso de tal prazo de 30 dias.

3 - Só depois disso se deverá passar à fase posterior, ou seja, deduzir acusação. E isto porque se, como afirma Jescheck, “as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo”, a sua existência, a sua verificação, tem que constar da acusação.”

Por acórdão de 10-12-2013 (proc. 67/11.6TASRP.E1, relato do Exmº Desemb. Sénio Alves):

I. Em processo relativo a factos praticados após a entrada em vigor da al. b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12, a notificação aí prevista (e o não pagamento subsequente, nos 30 dias posteriores) deve estar verificada antes da acusação.

II. Não o estando, deve a acusação ser rejeitada, nos termos do disposto no artº 311º, nº 2, al. a) do CPP, por ser manifestamente infundada.

Por acórdão de 05-07-2016 (proc. 186/13.4TATMR.E1, nosso relato):

1 - Tratando-se de uma condição objectiva de punibilidade prevista na lei em data anterior à dedução da acusação, aquela condição deve constar da acusação, enquanto elemento necessário à punibilidade da conduta.

2 - Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo esta condição objectiva de punibilidade, a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.

3 - O que não pode é exigir-se que a acusação contenha o teor da notificação (constando dos autos é uma questão probatória) ou que se mostrem liquidados os juros respectivos, já que estes estarão sempre dependentes do tempo decorrrido e, portanto, serão sempre indeterminados.

4 – Caso seja duvidosa a suficiência factual, isso apenas demonstra a não aplicação do disposto no artigo 311º do C.P.P. ao caso concreto, pois que este preceito exige um indubitável juízo de manifesta improcedência e deve ser usado com parcimónia e nunca nos casos em que a existência factual é discutível ou dependente de conceitos tão fluídos como a distinção entre o que é “facto” e o que pode ser “conclusão” ou “matéria de direito”.

Sobre a terceira questão haverá que tomar posição.


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B.3 – Quanto às duas primeiras questões seguimos em sede de fundamentação o já por nós relatado no acórdão de 24-09-2013 no processo nº 53/11.6TASRP.E1, que se cita por economia.

Ali afirmámos:

«É claro o Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008 ao estabelecer que “A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT]”. - De muita utilidade a leitura do acórdão da Relação de Guimarães de 22-11-2010 (rel. Desemb. Cruz Bucho - 157/03.9DBRG.G1): «“I- A exigência prevista na alínea b) do n.º4 do artigo 105.° do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.° n.º 4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. II- Esta nova condição objectiva de punibilidade não abarca todos os crimes de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social); apenas é aplicável aos casos em que a existência da dívida fiscal é participada pelo sujeito passivo, através da correspondente declaração, que não foi acompanhada do respectivo meio de pagamento. III- No caso de o arguido ser notificado nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º4 do artigo 105.° do RGIT, o processo deve aguardar sempre o decurso do prazo de 30 dias a que alude aquele normativo legal. Este prazo de 30 dias não reveste a natureza de um prazo processual pelo que o arguido a ele não pode renunciar.».
Tratando-se de uma condição objectiva de punibilidade prevista na lei em data anterior à dedução da acusação, esta (acusação) deveria conter a declaração do seu cumprimento, pois que delimitando a acusação o thema decidendum (objecto do processo) e o thema probandum (extensão da cognição), o teor da dita acusação delimita e baseia a existência processual dos elementos que são necessários à punibilidade da conduta.
Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo esta condição objectiva de punibilidade, é claro que a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.
É que, como é bom de ver, se a condição não está verificada, o ilícito não é punido. Se não é punível por isso, a importância da “condição objectiva de punibilidade” está demonstrada. Se não é punido, é inútil vir para o Tribunal.
Porque se trata de uma condição objectiva de punibilidade e não de mais simples condição de procedibilidade.
(….)
Afirma o nosso colega Cruz Bucho, do Tribunal da Relação de Guimarães, que “H.H. Jescheck é peremptório ao afirmar que as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo (Tratado de Derecho Penal, Parte general, 4ª ed., trad. esp., Granada, 1993, pág. 508). Entre nós parece também ser esta a solução defendida por Teresa Beleza, quando assinala que quanto a estas condições funcionam as mesmas exigências de garantia da lei penal em termos de interpretação e de aplicação (Direito Penal, 2ºvol. Lisboa, 1983, pág. 367-368 e 372).
Figueiredo Dias fala mesmo de um capítulo da doutrina do facto punível marcado pela inconcludência: “décadas de especulação levaram só à magra conclusão (negativa) de que ali se trata de um conjunto de pressupostos que, se bem que se não liguem nem à ilicitude, nem à culpa, todavia decidem ainda da punibilidade do facto” (Temas Básicos da Doutrina do Direito Penal, Coimbra, 2001, pág. 247 e Direito Penal, cit., pág. 617, §1, itálico no original).” - In “O crime de abuso de confiança fiscal (e de abuso de confiança à Segurança Social): a Lei do OE 2007 e os processos pendentes”, Guimarães, 6 de Fevereiro de 2007, gentilmente cedido pelo autor.
(…)
Só depois disso se deverá passar à fase posterior, ou seja, deduzir acusação. E isto porque se, como afirma Jescheck, “as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo”, a sua existência, a sua verificação tem que constar da acusação.»


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B.4 – É certo que a Digna magistrada recorrente defende a ideia contrária aos acórdãos desta Relação de Évora de 24-09-2013 e 05-07-2016 (nosso relato) e de 10-12-2013 (Sénio Alves).

E defende diversa posição com argumentos já ponderados e, sempre, em sede substantiva a que pretende atribuir um significado processual de “insignificância” à falha factual, como se coubesse, naturalmente, ao tribunal suprir os vícios e insuficiências da administração fiscal, das acusações deduzidas, como se o nosso Código de Processo Penal consagrasse um processo inquisitório - É claro que estas reminiscências inquisitórias, muito presentes ainda na nossa praxis judicial, chegaram ao ponto extremo de exigir que os tribunais se substituíssem à administração fiscal – e ao Ministério Público – na notificação dos arguidos para a verificação da dita condição, o que apenas revela um profundo distanciamento daquilo que é a essência do processo acusatório.

Sede substantiva pois que a condição objectiva de punibilidade – apesar de assumir uma natureza de aparência processual – é claramente um obstáculo substantivo à punibilidade. Por isso a questão aqui, para além da óbvia base de partida substantiva penal, centra a sua importância em aspectos de cariz processual penal que a digna recorrente olvida e que são de patente relevância.

E, como já se afirmou no acórdão de 05-07-2016, a essência da nossa posição assenta na óbvia necessidade de confrontar o arguido com a verificação de condições objectivas de punibilidade essenciais à sua punição no momento em que é deduzida a acusação.

E só espantaria que, dispondo os autos dos elementos necessários para incluir tal ou tais condições no teor da acusação, se fizesse gala de os não fazer constar por serem elementos de nenhum relevo na punibilidade da conduta, ou cientes de que um tribunal judicial pode fazer as vezes de Ministério Público na correcção e suprimento das suas acusações, como se o acusatório que enforma o nosso C.P.P., por comando constitucional, pudesse ser afastado de vez em quando para avivar as reminiscências inquisitórias do C.P.P. de 1929.

Questão subsequente – e que é muito obviamente subsequente - tem a ver com a possibilidade de, não contendo a acusação os factos pertinentes à condição objectiva de punibilidade, em audiência de julgamento se constatar tal falha e nos depararmos com a possibilidade de inclusão de tal condição nos factos provados em termos de variação factual em audiência de julgamento.

Isto é, não contendo a acusação os factos pertinentes à dita condição, a sua inclusão nos factos provados em sede de audiência de julgamento deve seguir o regime do artigo 358º do C.P.P. (alteração não substancial dos factos) ou, ao invés, o do artigo 359º do diploma (alteração substancial)? Ou nenhum destes?

Ou, numa diversa formulação mais terra a terra, o regime dos ditos preceitos processuais serve para suprir as deficiências das acusações? Porque, é bom ter presente, o regime dúplice da alteração factual contido naqueles preceitos supõe o surgimento de “factos novos” em audiência de julgamento que não constam da acusação por serem desconhecidos – e naturalmente desconhecidos - quando esta foi deduzida.

É, assim, uma corruptela aproveitar tal regime de “factos novos” que surgem em audiência para permitir a descuido ou lapso acusatório quanto a factos conhecidos quando se deduziu acusação, sempre acobertada pela possibilidade de ir cobrindo omissões, fazendo tabula rasa dos princípios do acusatório e do contraditório.


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B.5 – Em termos de fundamentação – que não de decisão – já o STJ assumiu posição em caso análogo, designadamente no A.U.J nº 1/2015 a propósito do elemento subjectivo do tipo.

Era acórdão recorrido o lavrado nesta Relação a 07-12-2012 (proc. 17/07.4GBORQ.E2), que rezava:

“A integração, em julgamento, de factos reportados ao elemento subjectivo do crime de injúria, por recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos humanos, que foram deficientemente narrados na acusação, constitui alteração não substancial dos factos nesta descritos”.

Sobre o conflito veio aquele tribunal a fixar jurisprudência nos seguintes termos:

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.» - relator o Cons. Rodrigues da Costa, in DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27.

E se, como dissemos supra, o decidido neste A.U.J. se não pode interpretar de forma extensiva, dos elementos subjectivos até à condição objectiva de punibilidade, já as razões da decisão se aplicam indubitavelmente ao caso dos presentes autos, conduzindo à conclusão de que a falta de descrição na acusação da “condição objectiva de punibilidade” não pode – nunca pode - ser suprida pela aplicação do regime contido no artigo 358º do C.P.P., sob pena de se revogar a vigência dos princípios do acusatório e do contraditório.

Para isso tenhamos presente que estamos perante factos que não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo tal como definido pela acusação e que não há acordo quanto à possibilidade de prosseguir o julgamento com o acrescento de tais factos.

Pelo que resta inserir o caso dos autos no conceito de “crime diverso” em função da previsão da al. f) do nº 1 do C.P.P. que define «alteração substancial dos factos» “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Ora, no caso sub iudicio aquilo que consta da acusação é um “nada jurídico” que não permite a punibilidade do arguido precisamente pela falta de uma condição objectiva de punibilidade. Portanto, tendo presente a definição de crime contida na al. a) do artigo 1º supradito, nenhuma pena pode ser aplicada ao arguido.

Se, nos termos daquela alínea a) «crime» é “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”, o teor da acusação não reúne os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao agente. Só a inclusão da condição objectiva de punibilidade atinge o pleno do conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena.

O que está de acordo com o comando contido na al. b) do nº 3 do artigo 283º do C.P.P. quando estabelece que a acusação deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

E, a ser assim - como é - o supramencionado conceito de crime teria que ser encarado como um conceito lato que necessariamente incluiria as exigíveis condições objectivas de punibilidade.

Por outro lado, a não inclusão na acusação da condição objectiva de punibilidade surge como um “mais” relativamente ao conceito de “crime diverso”. É que, tal como está, a acusação não imputa qualquer crime punível ao agente. Só o acrescento daquela condição permite a imputação ao arguido de um crime punível.

A situação no caso é, pois, mais grave do que a suposta pelo legislador, que terá certamente presumido que a dedução de uma acusação em processo criminal imputaria sempre a prática de um crime punível e não se transformaria num episódio processual inócuo. Deduzir uma acusação em processo criminal que não permite a punibilidade do agente e permitir depois a sua alteração configura um maior gravame do que a “simples” imputação de crime mais grave.

E, assim, sempre se poderia pensar – naquele sistema dual supra indicado – que não cabendo a alteração factual na previsão do artigo 358º do C.P.P. por se não tratar de “alteração não substancial”, acabaríamos por integrar a situação na previsão do artigo 359º do código por estarmos – por exclusão – face a uma alteração substancial de factos.

Foi essa a opção do tribunal recorrido, de acordo com a prática habitual de ver aqueles dois regimes processuais com valimentos alternativos.

Quer-nos parecer, no entanto, que nem isso será pois que a situação é muito mais grave do que a mera “imputação de crime mais grave”.

E aqui trazemos de novo à colação o bem fundamentado A.U.J nº 1/2015 do STJ.

Refere este aresto que:

Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.

Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra. Procuradora-Geral Adjunta: «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.

«Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.

«Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.»

Contudo, quer se adopte uma solução ou outra, o certo é que o mecanismo do art. 358.º do CPP é que nunca é aplicável ao caso”.

Se bem que no caso destes autos se não trate de elementos que dizem respeito aos elementos do tipo, as razões apontadas – maxime a “transformação de uma conduta não punível numa conduta punível” - e a gravidade da violação dos princípios do acusatório e do contraditório equiparam as situações normativas de ambos os casos.

Razões que justificam que se mantenha a absolvição dos arguidos, por ausência de descrição de uma condição objectiva de punibilidade, não obstante com esta divergência de fundamentação, isto é, por se entender não aplicável nem o artigo 358º nem o artigo 359º do C.P.P.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos interpostos, acrescendo diversa fundamentação.

Sem tributação.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado)

Évora, 25 de Outubro de 2016

João Gomes de Sousa

Carlos Campos Lobo