Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3687/11.5TASTB.E1
Relator: CARLOS JORGE BERGUETE
Descritores: ARMA
PERDIMENTO
DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
IRREGULARIDADE
SENTENÇA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Legislação Nacional: ART. 78 LEI 5/2006
Sumário: O art. 78.º da Lei n.º 5/2006 não é uma norma fundamentadora da perda a favor do Estado, mas sim uma norma que determina o destino a dar às armas perdidas a favor do Estado.
Se uma decisão é irregular mas deveria ter constado da sentença, deve entender-se como situação integrada no art. 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e passível de recurso no prazo de recurso da sentença.
Decisão Texto Integral:
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Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora
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1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com o número em epígrafe, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de S, o arguido CFS foi condenado, por sentença transitada em julgado, como autor material de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, respectivamente, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, da redacção dada pela Lei n.º 17/2009, de 06.05, na pena, em cúmulo, de 300 (trezentos) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), a qual foi, entretanto, sob promoção do Ministério Público, declarada extinta pelo pagamento.
Nessa mesma promoção, o Ministério Público consignou que as armas e munições apreendidas sejam declaradas perdidas a favor do Estado, remetendo-se certidão de fls. 91 e 94 e da douta sentença ao competente Núcleo de armas e Explosivos da PSP nos termos e para os efeitos do preceituado no art.º 78.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
De seguida, proferiu-se despacho (ora recorrido) do teor seguinte.
Declaram-se perdidas, a favor do Estado, a espingarda identificada na sentença, a fls. 167, e as munições apreendidas – art. 78.º Lei 5/2006 de 23 de fevereiro.

Inconformado com tal despacho, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:
a. Sucede que, o Tribunal “a quo” decidiu sem que o Ministério Público tivesse promovido, na acusação, ou até à sentença a perda a favor do Estado impossibilitando-se assim a defesa do arguido de tal consequência jurídica, violando assim o disposto no art.º 61.º, n.º 1 al.b) do CPP.
b. A decisão de perda a favor do Estado ocorreu sem fundamento legal, o que constituí um vício da decisão que determina a sua nulidade por falta de fundamentação, violando assim o disposto no art.º 97, n.º 5 do CPP;
c. É na sentença que deve de ser determinada a perda de bens a favor do estado e não posteriormente, devendo os bens não declarados perdidos a favor do estado na sentença, ser restituídos aos seus titulares nos termos do disposto no Art.º 186.º, n.º 2 do CPP que sai assim violado conjuntamente com o disposto no art.º 374.º, n.º 3 do CPP.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas, julguem aplicáveis deve a decisão do Tribunal “a quo” que declarou perdida a favor do Estado a espingarda e munições ser revogada, fazendo-se assim a costumada, JUSTIÇA.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1. No caso dos autos, o despacho recorrido declarou o perdimento da arma de fogo e das munições apreendidas, uma vez que constituem instrumentos essenciais à prática dos crimes em que o ora recorrente foi condenado e poderão ser usados no cometimento de novos ilícitos da mesma natureza.
2. Aliás, a mera detenção desses objectos, pela sua própria natureza, é algo que, por si só, é proibido por qualquer particular.
3. Pelo que, a nosso ver, inexiste obstáculo legal para que o perdimento desses objectos a favor do Estado seja declarado em despacho autónomo mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.º 374.º, n.º 3, al. c), do Cód. Proc. Penal, se omitiu o destino a dar-lhe, não se afigurando razoável permitir, ao abrigo do invocado art.º 186.º, n.o 2, do Cód. Proc. Penal, a respectiva restituição.
4. Face ao exposto, a douta decisão recorrida não nos merece qualquer reparo, entendendo-se não se mostrarem violados quaisquer dispositivos legais, devendo manter-se a condenação do arguido nos seus precisos termos.
Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso, e, em consequência, ser integralmente confirmada a douta decisão recorrida.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sustentando que o despacho é nulo por falta de fundamentação, a suprir pelo tribunal recorrido e, assim, no sentido do provimento do recurso.
Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como pacificamente decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP.
Assim, reconduz-se a apreciar se o despacho sob censura, ao ter declarado as armas e munições perdidas a favor do Estado, incorreu em violação dos invocados preceitos legais, ou seja, dos arts. 61.º, n.º 1, alínea b), 97.º, n.º 5, 186.º, n.º 2, e 374.º, n.º 3, do CPP.

Apreciando:
Decorre da sentença como provado que o ora recorrente tinha guardadas na sua residência uma espingarda de repetição de um cano, calibre 12, e 3417 munições desse mesmo calibre, sem que fosse titular de licença de uso e porte ou detenção válida relativamente a tais objectos, sabendo que não os podia deter nessas circunstâncias e que a sua conduta era proibida.
Conforme à fundamentação do enquadramento jurídico que mereceu tal factualidade, a arma e as munições integram a classe C, por referência ao art. 3.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2006, cuja detenção se encontrava fora das condições legais segundo o disposto no art. 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da mesma Lei, motivando a condenação correspondente e na pena referida.
O perdimento da arma e das munições veio a ser decidido, nos moldes aludidos, em despacho posterior à sentença.
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A matéria atinente à perda de instrumentos do crime, que aqui releva, encontra-se prevista no art. 109.º do Código Penal (CP), dependendo da verificação cumulativa de que esses objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, sendo que pode ter lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.
Conforme já acentuava Eduardo Correia, Autor do Projecto que esteve na origem do então art. 107.º do CP na versão de 1982 (cfr. Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal – Parte Geral – II volume, AAFDL, 31.ª Sessão, de 27.04.1964, pág. 198):
«O preceito em discussão (…) parte da ideia de que nem sempre os produta e os instrumenta sceleris devem ser apreendidos, mas só quando à sua não apreensão esteja ligado um perigo típico, que se procura caracterizar exactamente. Há aqui, como de longe vem a ser evidenciado pela doutrina, uma mistura, em proporções difíceis de definir, de medida preventiva e de reacção penal, a partir daí se compreendendo que a providência não esteja limitada, na sua aplicação, pelo facto de o arguido vir a ser efectivamente condenado.
Alterada a sua redacção por via da revisão operada pela Lei n.º 48/95, de 15.03 (que hoje se mantém), visou esta, tão-só, a substituição da expressão “crime” por “facto ilícito típico”, alicerçada na necessária correcção terminológica à luz da natureza do instituto em causa e da circunstância de ser aplicável às situações de não punição de determinado agente.
Acerca dessa natureza, de que já esse Autor dava conta, resulta pacífico que se trata de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança, não se confundindo com a pena acessória (já que prescinde de qualquer ligação com a culpa do agente), com efeito da pena ou condenação (nos termos já referidos) e com a medida de segurança em sentido rigoroso (esta é orientada para a perigosidade do agente e não para a perigosidade dos objectos) – cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, págs. 627 e seg..
O seu fundamento assenta, pois, em exigências, quer individuais, quer colectivas, de segurança e de perigosidade dos objectos apreendidos, no sentido, eminentemente objectivo, de aferição da natureza dos mesmos e das circunstâncias de que, da sua detenção ou utilização, venham, ou possam vir, a ser atingidos a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou de serem utilizados para a prática de factos ilícitos típicos.
Sem prejuízo de que as circunstâncias do caso possam ser atendidas, isso constitui crivo complementar, mas não excludente, do critério, objectivo, da natureza dos objectos.
E (como também salienta Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 628) o decretamento não se encontra limitado pela culpa do agente e tem de constituir providência que se revele proporcionada à gravidade do ilícito-típico e à perigosidade do objecto.
Ora, a arma e as munições em causa, dada a sua especificidade, “são adquiridas mediante declaração de compra e venda ou doação, carecendo de prévia autorização concedida pelo director nacional da PSP”, conforme disposto no n.º 1 do art 7.º da Lei n.º 5/2006, podendo a sua aquisição, detenção, uso e porte ser autorizados apenas nos casos a que se referem os n.ºs 2 a 5 do mesmo preceito legal.
São objectos que, pelas suas características, potenciam perigo para a segurança das pessoas.
Como tal, o seu perdimento a favor do Estado é bem susceptível de ocorrer, sem que, contudo, em rigor, não obstante o processo criminal deva subordinar-se ao princípio do contraditório (na audiência de julgamento e nos actos instrutórios que a lei determinar, segundo o art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), tenha de ser obrigatoriamente precedido de manifestação de posição pelos intervenientes processuais, ainda que o possam fazer.
Assim, é irrelevante, em concreto, que, anteriormente, não tenha ficado a constar da acusação alguma alusão ao destino dos objectos, uma vez que nem sequer configura aspecto que a mesma imponha reflectir (cfr. art. 283.º, n.º 3, do CPP), bem como que, em audiência, tal não tivesse sido discutido, já que não se trata de matéria que se prenda com a questão da culpabilidade ou da determinação da sanção (cfr. arts. 368.º e 369.º do CPP).
Por isso, também, à luz dos considerandos expendidos, sobretudo em face da natureza e dos requisitos desse perdimento, não se concorda com o recorrente quando interpreta essa alegada “omissão” como preterição do art. 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP, na medida em que não se trata, em nosso entender, de decisão que pessoalmente o afecte.
Pese embora tenha existido promoção do Ministério Público nesse âmbito e, por isso, devesse ter sido dada oportunidade ao recorrente para se pronunciar, deste modo preservando a “igualdade de armas”, esta circunstância não redunda em situação em que isso fosse obrigatório ou que implique afectação importante dos seus interesses, para comportar violação desse art. 61.º, n.º 1, alínea b).
Sem prejuízo, é efectivamente a sentença, e não o despacho posterior, o lugar próprio para se indicar o “destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”, como decorre do art. 374.º, n.º 3, alínea c), do CPP, sendo que, porém, se essa omissão não constitui fundamento para nulidade da sentença (cfr. art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP), não se descortina obstáculo legal a que venha a ser colmatada, como foi, por despacho posterior.
Acresce que o invocado art. 186.º, n.º 2, do CPP, ao prever que “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”, não pode ser interpretado como imposição de restituição automática decorrente de que a matéria não tenha sido incluída na sentença, uma vez que subordina essa restituição à condição de que a pessoa a tanto tenha direito, o que haverá de resultar, não só da natureza dos objectos, que inculque que, em geral, sejam legitimamente detidos pelas pessoas, como também de que, por isso, nas condições apuradas, a pessoa os detivesse de acordo com o determinado na lei.
Nesta vertente, por essa via, a pretensão do recorrente na restituição da espingarda e das munições não é minimamente fundada.
Todavia, razão lhe assiste ao alegar que o despacho recorrido não surge como fundamentado, já que, como decorre do mesmo, a mera alusão ao art. 78.º da Lei n.º 5/2006 não serve para justificar a declaração de perdimento, dado que, ali, não mais se prevê do que o depósito das armas à guarda da PSP, depois de serem efectivamente perdidas a favor do Estado.
Na verdade, tal como salienta o Digno Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, esse preceito não é uma norma fundamentadora da perda a favor do Estado, mas sim uma norma que determina o destino a dar às armas perdidas a favor do Estado.
Deste modo, o despacho enferma de omissão de fundamentação, em desrespeito pela imposição do art. 97.º, n.º 5, do CPP.
Para a apontada deficiência, afigura-se de extrair a consequência de que o despacho é irregular (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica, 2.ª edição, 2008, pág. 269), nos termos do art. 118.º, n.º 2, do CPP, uma vez que a cominação de nulidade não resulta do princípio da legalidade subjacente ao n.º 1 do mesmo normativo, nem se configura, admitindo que a matéria devesse ter constado da sentença como referido, como situação integrada no art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Visto, então, como padecendo de irregularidade, a questão acabou por ser carreada ao recurso (relativamente a decisão que, nos termos gerais do art. 399.º do CPP, é admissível), suscitando-se, assim, que o prazo para a invocar consistiria, aparentemente, no que é definido no art. 123.º do CPP (três dias a contar do conhecimento do despacho), claramente decorrido no momento da sua interposição.
Não obstante, atendendo a que a decisão em apreço deveria, em rigor, ter sido tomada aquando da sentença, nesta, afinal, se integrando, e que o sentido essencial do pedido no recurso se consubstancia em revogação do despacho (embora não sendo esta defensável), entende-se que o decurso desse prazo não tem virtualidade para a irregularidade se considerar como sanada, além do mais, substancialmente, porque o despacho recorrido está irremediavelmente afectado no seu valor enquanto tal.
A solução, nas circunstâncias, é a que melhor defende a realização da justiça enquanto actividade transparente e leal.
Impõe-se, em conformidade, que o tribunal “ a quo” proceda à reparação da irregularidade detectada, ao abrigo do art. 123.º, n.º 2, do CPP.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- embora com fundamentação diversa, conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência,
- declarar a irregularidade do despacho recorrido, a suprir pelo tribunal “a quo” nos termos legais.

Sem custas (cfr. art. 513.º, n.º 1, do CPP).
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Processado e revisto pelo relator.

(Carlos Jorge Berguete)
(João Gomes de Sousa)