Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1709/11.9TBPTM-A.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: DOCUMENTO ORIGINAL
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Na versão do anterior CPC, tendo o requerimento executivo sido apresentado por via electrónica, com cópia do título executivo, e tendo sido declarada pelo tribunal a necessidade de juntar aos autos o original da livrança, não podia ser proferida decisão de mérito sem que os executados fossem notificados da referida junção.
II - A sentença proferida sem que tal notificação tivesse sido efectuada, constitui uma decisão surpresa, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, geradora da nulidade processual prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, porquanto a falta de notificação da junção da livrança constitui irregularidade que pode ter influência no exame ou na decisão da causa, por não terem sido cabalmente assegurados os direitos de defesa que a lei prevê, mormente a possibilidade da impugnação da genuinidade do documento, ou a ilisão da sua autenticidade ou força probatória, proferindo-se depois e no momento oportuno a decisão quanto ao mérito da causa.
Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – Relatório
1. AA e BB deduziram oposição à execução por requerimento de 19 de Março de 2012, invocando em sua defesa que a «presente execução carece em absoluto de título executivo» porquanto, embora o exequente tenha afirmado haver liquidado, enquanto avalista de uma livrança subscrita pelos executados, o valor desta e respectivos juros de mora, apenas apresentou uma cópia desta e os títulos de crédito não são substituíveis por cópias, o que deveria ter levado ao indeferimento liminar do requerimento executivo.
Terminaram pedindo que seja declarada extinta a instância executiva por falta absoluta de título executivo, determinando-se o levantamento das penhoras entretanto efectuadas e a anulação dos respectivos registos.

2. O exequente contestou, aceitando terem razão os opoentes quanto ao título executivo, e invocando que a mesma se encontrava junta ao processo n.º 2286/03.0TBPTM, no qual também era executado, requerendo a apensação de ambos os processos.

3. Os opoentes responderam, invocando, com relevo para o presente recurso, que a ausência do título no local próprio inviabilizou o exercício pleno do contraditório por parte dos executados, que nem sequer sabem se a presente execução se basta com a junção do título executivo ou se a sua causa de pedir não exigirá, também, a declinação da relação jurídica subjacente ao título, reiterando o pedido formulado.

4. Seguidamente foi proferido despacho referindo existir uma questão prévia que cumpre decidir, e determinando que no âmbito da execução, o exequente fosse notificado para juntar o original da livrança, sob pena de indeferimento liminar.

5. O exequente veio requerer a prorrogação do prazo concedido para cumprimento do despacho, invocando que apesar de ter requerido o desentranhamento da livrança, a mesma não lhe havia sido ainda entregue.

6. Foi então proferido despacho que declarou extinta a execução por falta de título executivo, do qual o exequente interpôs recurso, tendo este Tribunal da Relação revogado a decisão recorrida e determinado a sua substituição por outra que admita a junção aos autos do original do título executivo, por ocorrer motivo justificativo para a prorrogação do prazo para a junção do título em falta, com o consequente prosseguimento dos autos.

7. Baixados os autos, foi proferido o seguinte despacho:
«Compulsados os autos constata-se que, certamente por lapso, a secretaria não deu cumprimento ao despacho referência 8740205, verificando-se que o título executivo ainda não se encontra junto aos autos.
Pelo exposto, junte o título executivo aos autos de execução, conforme ordenado.
Conforme plasmado no despacho supra indicado, o tribunal, na pessoa do ora subscritor e na data em que o mesmo foi proferido, confirmou a existência do título executivo no processo 2286/03.0TBPTM, a fls. 94 do apenso A, pelo que nada obsta a que se profira a decisão necessária ao prosseguimento dos autos».
E de imediato foi proferida SENTENÇA, onde se indicou que a única questão a decidir era a da existência do título executivo, tendo-se considerado os seguintes factos:
«1. O original da livrança cuja cópia se encontra a fls. 13 da execução, encontra-se a fls. 94 do apenso A do processo 2286/03.0TBPTM deste 1.º Juízo Cível.
2. O exequente assinou a livrança dada à execução na qualidade de avalista, tendo pago por conta da mesma a quantia de 18.501,24€ acrescidos de 1.898,00€ a título de custas, no âmbito do processo 2286/03.0TBPTM que correu termos neste 1.º Juízo Cível ».
Após foi efectuado o enquadramento jurídico dos mesmos e proferida decisão, nos seguintes termos:
«Os executados invocaram inexistência do título executivo, por ter sido dada à execução cópia de uma livrança.
Nada mais tendo sido invocado e tendo o tribunal constatado a existência do original da referida livrança, é de improceder o invocado vício.
Por outro lado, da análise do título executivo, constata-se que os executados na qualidade de subscritores, assinaram a livrança dada à execução, prometendo pagar à CC no dia 04 de julho de 2003 a quantia de 17.267,45€ e que o exequente assinou a referida livrança na qualidade de avalista e pagou no âmbito do processo executivo n.º 2286/03.0TBPTM deste 1.º Juízo Cível, as quantias a que se alude no ponto 2 dos factos provados.
O artigo 32.º da LULL, aplicável por força do disposto no artigo 77.º do mesmo diploma legal, dispõe que o dador de aval que paga, fica sub-rogado nos direitos emergentes da livrança contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval.
O aval foi dado aos executados, pelo que assiste o direito do exequente em executar os mesmos mediante a livrança dada à execução.
Termos em que improcede a oposição à execução».

8. Inconformados com esta decisão, os executados interpuseram o presente recurso de apelação que terminaram com as seguintes conclusões:
« I- Neste recurso os Apelantes põem em causa, a sentença, e o despacho tirado imediatamente antes dela.
II- O despacho porque lhes não foi pura e simplesmente notificado, tanto mais que se lhe seguiu de imediato a prolação da sentença,
III- Não tendo, estes, podido exercer o contraditório (art. 3º/1, 3 e 4 do NCPC e CPC),
IV- O que fere a dito despacho de uma nulidade, prevista no art. 195º/1 e 2 do NCPC (art. 201º/1 e 2 do CPC), resultante do facto de, os Apelantes não terem podido exercer o contraditório, por não terem sido notificados do mesmo.
V- A sentença porque foi tirada sem que o título executivo (livrança) e a causa de pedir constassem ainda dos autos da acção executiva, o que consubstancia, não só a nulidade do art. 186º/2-a) do NCPC (art. 193º/2-a) do CPC), mas também a nulidade do art. 615º/1-d-2ª parte, do CPC (art. 668º/1-d)-2º parte do CPC),
VI- E também sem a audição prévia a propósito dos Apelantes (violação do art. 3º/1,3 e 4 do NCPC e CPC),
VII- O que constitui a nulidade processual do art. 195º/1 e 2 do NCPC (art. 201º/1 e 2 do CPC).
VIII- Nulidades cujo conhecimento seriado, por parte de V. Exas., Mmos. Juízes Desembargadores, ora se requer, com todas as legais consequências.».

9. Não foram apresentadas contra-alegações.

10. Dispensados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[2], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, as únicas questões colocadas no presente recurso, são as de saber se se mostram verificadas as invocadas nulidades do despacho recorrido e da sentença que em seguida foi proferida.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto:
Os factos pertinentes para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório supra.
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. - Da nulidade por violação dos princípios do contraditório e da igualdade
Conforme resulta do relatório, as questões que têm sido suscitadas nos presentes autos prendem-se, desde o momento da oposição apresentada pelos executados, com a não junção aquando do requerimento executivo do original do título de crédito em que o exequente fundou a execução de que os presentes autos constituem apenso.
De facto, é consabido que a acção executiva tem na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos (artigo 45.º, n.º 1, do CPC em vigor ao tempo da formação do título[3]), não podendo as partes constituir títulos executivos para além dos legalmente previstos.
O título executivo é, portanto, “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla executio sine titulo”[4]. Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo[5].
Ora, a eficácia que a lei reconhece aos documentos que podem servir de base ao processo executivo tem sofrido modificações mercê de sucessivas alterações legislativas nas quais importa atentar.
Efectivamente, até à entrada em vigor da reforma da acção executiva de 2008, era entendimento que cremos uniforme na doutrina e jurisprudência que o título de crédito não podia substituir-se por cópia, por só aquele poder incorporar a obrigação cambiária, já que "a cópia não é um exemplar da letra, mas uma reprodução dela" e, por isso, "o portador de uma cópia não pode reclamar o pagamento do aceitante exibindo simplesmente a cópia"[6].
Não obstante este entendimento, já então se aceitava que em casos em que o original do título de crédito se encontrasse noutro processo, nada obstava a que o exequente procedesse à execução, desde que juntasse cópia do original devidamente autenticada[7].
Com a reforma da acção executiva introduzida pelo DL n.º 226/2008, de 20 de Novembro[8], passou a ser exigível apenas a cópia do título executivo, quando o requerimento inicial fosse entregue por via electrónica. E passou a ser entendido na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que tal cópia era bastante mesmo quando a execução se fundava em títulos de crédito[9].
Esta alteração do entendimento relativamente à desnecessidade da junção do original do título de crédito com o requerimento inicial, a não ser que tal fosse solicitado ou determinado, decorreu do disposto no artigo 810.º, n.º 6, alínea a), do CPC[10], de acordo com cuja estatuição o requerimento executivo deve ser acompanhado de cópia ou do original do título executivo quando o requerimento é entregue por via electrónica ou em papel, respectivamente. Assim, de acordo com o previsto no artigo 150.º, n.ºs 1, 3 e 7, do referido Código[11], os actos processuais devem ser apresentados a juízo preferencialmente por via electrónica, sendo que a parte que pratique o acto processual por esta via, deve apresentar por transmissão electrónica de dados a peça processual e os documentos que a devam acompanhar, ficando dispensada de remeter os respectivos originais, tendo os documentos apresentados por essa via a força probatória dos originais, nos termos definidos para as certidões.
Ainda assim, apesar de a parte ficar dispensada de apresentar os originais dos documentos, por força do n.º 8 do mesmo artigo, tal dispensa não prejudica o dever de exibição dos originais dos documentos juntos pelas partes por meio de transmissão electrónica de dados, sempre que o juiz o determine, nos termos da lei do processo. Ficaram, portanto, salvaguardadas por esta via razões de segurança e fiabilidade do sistema.
Deste modo, o artigo 3.º, n.º 2, alíneas a) e b) da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro[12], cujo corpo reproduz o disposto no citado preceito do CPC, veio estabelecer que tal determinação para junção do original pode ocorrer designadamente quando o juiz duvidar da autenticidade ou genuinidade dos documentos; e quando for necessário realizar perícia à letra e assinatura dos documentos.
Em face do sobredito, podemos concluir que, considerando a data e modo de entrada em juízo do requerimento executivo, no caso em apreço, tendo o requerimento executivo sido entregue por via electrónica, poderia ser acompanhado, de mera cópia simples do título crédito, não enfermando, por essa razão, de nenhuma invalidade[13].
Devemos, porém, salientar que este entendimento é anterior à disposição inovadora que veio a ser vertida no n.º 5 do artigo 724.º do Código de Processo Civil na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2013, e que expressamente exige a obrigatoriedade da junção aos autos tramitados electronicamente do original do título de crédito em que a execução se funde, ainda que já tenha sido apresentada uma cópia por via electrónica, devendo o juiz, oficiosamente ou a requerimento do executado, determinar a notificação do exequente para em 10 dias, proceder à sua junção, sob pena de extinção da instância.
Em nosso entender, este normativo constitui uma clarificação e uma harmonização entre a interpretação dos preceitos da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, - cujo artigo 68.º apenas admite a validade da cópia dos títulos de crédito nos termos ali plasmados -, e dos preceitos da lei processual civil referentes à validade das cópias dos títulos executivos (n.º 4, alínea a), do citado artigo), distinguindo expressamente no referido n.º 5 a execução fundada em títulos de crédito e exigindo neste caso a apresentação do respectivo original, sendo consequentemente a posse do título de crédito original uma condição do exercício do direito nele incorporado. Assim, só pode recorrer à acção executiva o credor que tenha a posse do título, tendo o credor que não possua o original (ou a cópia que valha como tal nos termos do artigo 68.º da LULL), de recorrer à acção declarativa para formar novo título executivo[14].
Volvendo ao caso dos autos, como vimos supra, pese embora não se encontrasse estabelecida a obrigatoriedade de apresentação do original do título de crédito com o requerimento executivo, o juiz podia determinar a junção do original do documento quer pelas razões exemplificativamente referidas na citada Portaria quer por outras, de entre as quais ressalta naturalmente as situações em que o executado o tivesse requerido em sede de oposição[15] ou em que da oposição deduzida resultasse a conveniência daquela junção, já que incumbe ao juiz, realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de lhe é lícito conhecer, nos termos que à data do despacho se encontravam previstos no artigo 265.º, n.º 3, do CPC, com correspondência na previsão do actual artigo 411.º, sob a epígrafe princípio do inquisitório.
Este princípio terá sido usado no caso vertente em que, mercê da oposição deduzida pelos executados, invocando que o título executivo era o original da dita livrança, a Mm.ª Juíza exigiu a apresentação do original da mesma, sob cominação de indeferimento liminar.
Após as vicissitudes processuais relatadas no relatório, foi determinada a junção desse documento original que constava noutro processo a estes autos, mas ainda antes de o mesmo ter sido junto, o Mm.º Juiz exarou no despacho ora recorrido ter confirmado a existência do original da livrança no processo n.º 2286/03.0TBPTM e considerou nada obstar ao prosseguimento dos autos proferindo de imediato sentença, na qual fez uso dessa livrança para determinar os factos reputados assentes.
Como é evidente, fez uso de factos de que teve conhecimento por virtude do exercício das suas funções, o que é admitido até mesmo sem alegação, nos termos do artigo 412.º na actual redacção do CPC, aplicável à data do despacho e sentença recorrida. Porém, tal uso deve ser efectuado com observância da segunda parte do preceito, ou seja, com a junção ao processo do documento que os comprovasse, o que não ocorreu. Mas, o que releva sobretudo no caso em apreço, é o facto de o ter feito sem ter cumprido o princípio da audiência contraditória, vertido no artigo 415.º do CPC, de acordo com o qual não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas, devendo facultar-se à parte, para o que ora importa, a impugnação da sua força probatória.
O mesmo acontecia caso o documento tivesse sido junto pelo exequente porque a junção ocorria em momento posterior ao articulado de contestação (artigo 427.º do CPC), ou se fosse requisitado pelo tribunal (artigo 439.º do CPC). Em qualquer caso, sublinhe-se, é sempre necessário notificar a obtenção de documento.
E tal compreende-se muito bem se atentarmos que a lei admite a possibilidade de impugnação da genuinidade, bem como a ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento (artigos 444.º e 446.º do CPC), direitos de defesa que não podem ser postergados.
Na verdade, em todos os casos descritos, estamos perante desenvolvimentos do princípio do contraditório vertido no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, e postulado pelo direito a um processo equitativo que decorre do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, princípio que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvos os casos de manifesta desnecessidade.
Note-se, porém, que a lei impõe que a desnecessidade seja manifesta, indicando portanto, que este princípio do contraditório deve ser cumprido mesmo quando possa apresentar-se aparentemente como desnecessária a audição, só podendo ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, ou mais evidentemente, naquelas que pela sua natureza não compreendam o contraditório prévio e que se encontram aliás ressalvadas no n.º 2 do indicado artigo.
Efectivamente, “[e]ste princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussão no objecto da causa”.
Assim, “o problema surgido no contexto da questão de facto está liminarmente resolvido: o tribunal não pode, salvo a coberto da norma contida no n.º 2 deste artigo, decidir com base em factos desconhecidos pela parte ou sobre os quais ela não teve oportunidade de se pronunciar”[16].
Aplicando estes ensinamentos ao caso dos autos, temos então que, não tendo o Exequente procedido à junção do original do título de crédito com o Requerimento inicial, a necessidade da junção do mesmo veio a ser suscitada por via da oposição à qual se seguiu contestação em que foi afirmada a razão dos executados quanto à falta de junção da livrança, invocando a impossibilidade de a juntar nesse momento por razão que veio a ser considerada justificada em sede de recurso - o original da livrança estaria junto a outro processo e o respectivo desentranhamento dependia do deferimento pelo tribunal do respectivo requerimento -, que revogou a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que admita a junção aos autos do original do título, com o consequente prosseguimento dos autos.
Notificadas que foram as partes deste acórdão, naturalmente os executados esperariam ser notificados da junção aos autos do original da livrança, quando a causa que impediu essa junção fosse ultrapassada. E não se diga que tal notificação era manifestamente desnecessária porque afinal o Mm.º Juiz veio a constatar que o original existia em outro processo e a cópia da livrança já tinha sido junta com o requerimento executivo.
Efectivamente, ainda que tal acontecesse, o certo é que, todo o desenvolvimento dos autos decorreu tendo por base a essencialidade do original da livrança. Assim, tendo sido admitida a necessidade de juntar aos autos o original da livrança, e devendo o tribunal assegurar ao longo de todo o processo o cumprimento do princípio da igualdade das partes, vertido no artigo 4.º do CPC, designadamente no exercício de faculdades e no uso dos meios de defesa, no caso dos autos, a omissão do cumprimento do contraditório devido quanto à junção da livrança fundamento da acção executiva previamente à decisão a proferir nos presentes autos, não assegura o tratamento igualitário que a lei prevê relativamente a ambas as partes.
Na verdade, “os princípios da igualdade das partes e do contraditório estão intimamente associados: com efeito, o segundo deriva do primeiro”, já que assegura “um tratamento igualitário das partes num processo, designadamente ao nível da admissão da prova e do seu valor”. Daí que “ambos os princípios, assim conexionados, derivem em última instância, do princípio do Estado de direito”, encerrando “uma particular garantia de imparcialidade do tribunal perante as partes”[17].
Nestes termos, a sentença proferida constitui sem qualquer dúvida uma decisão surpresa, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, geradora da nulidade processual prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC[18] porquanto a falta de notificação da junção da livrança constitui irregularidade que pode ter influência no exame ou na decisão da causa, por não terem sido cabalmente assegurados os direitos de defesa que a lei prevê, mormente a possibilidade da impugnação da genuinidade do documento, ou a ilisão da sua autenticidade ou força probatória, proferindo-se depois e no momento oportuno a decisão quanto ao mérito da causa.
Pelo exposto, entendemos que o processo deve prosseguir com a notificação aos executados da junção aos autos do original da livrança, e subsequente prosseguimento dos autos, conforme for de direito, para o que não pode este Tribunal da Relação substituir-se ao Tribunal recorrido.
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III.3. Síntese conclusiva:
I - Na versão do anterior CPC, tendo o requerimento executivo sido apresentado por via electrónica, com cópia do título executivo, e tendo sido declarada pelo tribunal a necessidade de juntar aos autos o original da livrança, não podia ser proferida decisão de mérito sem que os executados fossem notificados da referida junção.
II - A sentença proferida sem que tal notificação tivesse sido efectuada, constitui uma decisão surpresa, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, geradora da nulidade processual prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, porquanto a falta de notificação da junção da livrança constitui irregularidade que pode ter influência no exame ou na decisão da causa, por não terem sido cabalmente assegurados os direitos de defesa que a lei prevê, mormente a possibilidade da impugnação da genuinidade do documento, ou a ilisão da sua autenticidade ou força probatória, proferindo-se depois e no momento oportuno a decisão quanto ao mérito da causa.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente revogando o despacho proferido que entendeu nada obstar a que fosse de imediato proferida decisão, determinando seja substituído por outro que ordene a notificação aos executados do original da livrança e, consequentemente, anulam a sentença recorrida proferida com base nesse documento, com o subsequente prosseguimento dos autos.
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Évora, 5 de Maio de 2016


Albertina Pedroso [19]


Elisabete Valente


Bernardo Domingos







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[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Elisabete Valente;
2.º Adjunto: Bernardo Domingos.

[2] Doravante abreviadamente designado CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, aplicável aos recursos interpostos de decisões proferidas após a sua entrada em vigor, como é o caso dos presentes autos.
[3] Aplicável ao caso para efeitos da verificação da existência de título executivo, em face do disposto no artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho.
[4] Cfr. Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 13.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 23, citando Chiovenda..
[5] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, pág. 58.
[6] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Vol. III, 150 e 152; e no mesmo sentido, Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução. 13ª ed., pág. 40.
[7] Cfr. Lebre de Freitas, in A Acção Executiva depois da Reforma da Reforma, 5ª ed., pág. 77; e na jurisprudência, a título exemplificativo, o Acórdão do STJ de 14.01.1999, proferido no processo 99B570 e disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cuja entrada em vigor ocorreu em 31.03.2009, anteriormente, portanto, à propositura da acção executiva.
[9] Cfr. neste sentido, Acórdãos STJ de 15.03.2012, processo n.º 227/10.7TBBGC-A; e de 27.05.2014, processo n.º 268/12.0TBMGD-A, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[10] Na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro.
[11] Na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de Agosto.
[12] Com as alterações e republicação efectuadas pela Portaria n.º 1538/2008, de 30 de Dezembro.
[13] Cfr. Acórdãos do STJ supra indicados.
[14] Cfr. neste sentido, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 236 e nota 539.
[15] Cfr. Lebre de Freitas ob. e loc. citado, nota 92.
[16] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. e loc. cit., pág. 31.
[17] Cfr. Ac. TC n.º 499/98, citado por Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., pág. 14.
[18] Cfr. o recentíssimo Acórdão do STJ de 05.04.2016, processo n.º 1538/11.0TBFIG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Texto elaborado e revisto pela Relatora.