Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2495/20.7T8STB-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CUMPRIMENTO PARCIAL
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Não é a circunstância de se ter provado, em sede de embargos, que os executados haviam efectuado o pagamento de determinadas quantias que retira à obrigação exequenda o requisito da liquidez que apresentava;
II. O que sucede é que o montante reclamado não é, mercê desses pagamentos, o montante devido e para se alcançar qual é afinal o quantitativo em dívida há que (re) calculá-lo (aritmeticamente) de acordo com o estatuído no artigo 785.º do Cód. Civil, i.e. imputando-os primeiramente aos juros e só após ao capital.
III. O facto de os executados não saberem com rigor os montantes em dívida relativos a cada um dos quatro empréstimos e de o Banco não lhes ter prestado tal informação não tem, nem pode ter a virtualidade, de os eximir do pagamento do que é devido.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO

1. Por apenso à execução sumária para pagamento de quantia certa instaurada por LC ASSET 1, SÀRL, contra AA e BB, vieram os executados deduzir oposição por embargos.

Fundamentaram a sua pretensão alegando o seguinte:
- O requerimento executivo é inepto por falta de alegação da causa de pedir;
- Tendo recebido, em Abril de 2017, uma comunicação de que estavam em contencioso, contactaram o Banco Santander, para saberem o que se passava, tendo sido agendada para 26.07.2017 uma reunião onde esteve o embargante, acompanhado por um amigo, na qual o embargante, depois de lhe ter sido transmitido que tinha apenas duas contas naquele Banco, apresentou aos representantes do contencioso do referido Banco um documento que provava que existia uma terceira conta onde foram feitos os depósitos até 13.07.2017, o que não mereceu qualquer resposta, nem na reunião, nem posteriormente;
- Até à altura tinham sido depositados € 6,400,00 (€ 4.800,00 mais € 1.600,00) que eram ignorados pelo Banco;
- Porque nenhuma resposta era dada, em Outubro de 2017 o embargante solicitou ao seu advogado que tentasse resolver a situação junto do Banco, pagando o que estava para trás de forma justa, uma vez que os pagamentos foram interrompidos por não saber para onde estava a ser canalizado o dinheiro;
- Em Janeiro de 2018 receberam a comunicação da cessão de créditos celebrada entre o Banco Santander e a exequente;
- Como resulta dos depósitos de € 800,00 (valor um pouco superior às prestações) que juntam, efetuados mensalmente desde junho de 2016 até 13.07.2017, nunca poderia ter sido verificado qualquer incumprimento em 10.05.2016 e em 27.06.2016;
- Os montantes depositados foram para uma terceira conta e não estavam a ser descontados nos contratos por motivos alheios aos executados;
- A exequente foi contactada diversas vezes para explicar o que estava a suceder, pois não queriam pagar o que já estava pago, mas nunca ninguém quis perceber o que realmente aconteceu, pois nunca o Banco ou a exequente deram qualquer resposta;
- Não entraram em incumprimento, o que sucedeu foi que o Banco deixou de deduzir nos contratos os montantes depositados mensalmente.
Concluíram pedindo a procedência dos embargos, sendo eles, executados, absolvidos da instância ou do pedido.
A exequente contestou defendendo a improcedência da exceção dilatória da nulidade do processo (decorrente da ineptidão do requerimento executivo por falta de alegação da causa de pedir) e impugnando os factos alegados na petição, referindo em particular que os documentos juntos pelos embargantes revelam que em dezembro de 2016 já o processo tinha sido transferido para o contencioso do Banco.
Concluiu pedindo a improcedência dos embargos.
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção da nulidade do processo (decorrente da ineptidão do requerimento executivo), relegando-se para final o conhecimento da excepção do pagamento.
Realizou-se audiência final e subsequentemente foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e, consequentemente, determinou a extinção da execução.

2. É desta sentença que inconformado recorre a exequente, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

A. O Tribunal a quo considerou/julgou:

a. Não estar cumprido o requisito da liquidez da obrigação exequenda, disposto do artigo 713º do CPC.

b. Haver indícios de alegado abuso na modalidade do “venire contra factum proprium” o que constitui uma exceção peremptória.

B. A ora Recorrente não se conforma com o aqui explanado.

C. Revisitando os factos assentes, ficou provado que: “Por ter ocorrido incumprimento, o embargante começou a fazer depósitos em contas que lhe foram indicadas (…) 31. Os depósitos referidos em 15., 16. e 18. não foram descontados no valor em dívida.”.

D. Já dos factos não provados resulta que não ficou provado que: “Os embargantes depositaram as prestações devidas de maio de 2016 até julho de 2017.”.

E. Ora, os Executados/Recorridos alegam ter efetuado determinados pagamentos entre 2016 e 2017, ao Banco mutuário, apresentando factos que, à primeira vista, poderiam modificar ou extinguir o direito ao ressarcimento da ora Recorrente.

F. Cabia aos Executados/Recorridos, fazer prova dos pagamentos concretizados, uma vez que, no ordenamento jurídico português, o pagamento não se presume efetuado pela mera menção do mesmo.

G. Ora, conforme disposto na própria sentença, não se verificou a concretização de tal prova:” Finalmente, além de nenhuma atividade probatória ter sido desenvolvida para que se desse por provado que a exequente foi contactada pelos embargantes para prestar informações, não se podia dar por provado que foram pagas todas as prestações desde maio de 2016 até julho de 2017. As declarações do embargante e das testemunhas, desacompanhadas de documentos que o comprovem, não permitem que o Tribunal conclua de outro modo, uma vez que era sobre os embargantes que recaía o ónus da prova do pagamento.” (sublinhado nosso).

H. Menciona ainda a sentença que: “Mas parece que só assim seria se fosse possível proceder à liquidação da obrigação exequenda, imputando-se os pagamentos efetuados pelos executados, cenário que a nosso ver está inviabilizado em virtude de a exequente se ter limitado a indicar os montantes totais em dívida, sem fazer qualquer referência ao valor de cada prestação, o impede que se consiga liquidar, mediante simples cálculo aritmético, relativamente a cada contrato celebrado, quer o valor do capital em dívida, quer os juros a contabilizar sobre o capital.”.

I. Dissecando o conteúdo transposto da sentença, tudo com o devido respeito, cabia aos Executados/Recorridos fazer prova dos alegados pagamento, não o tendo feito, no entanto, julga o Tribunal a quo que a execução deve ser extinta e absolvidos os Executados porque a Recorrente se limitou a indicar os montantes totais em dívida (o que também não corresponde à verdade).

J. Ora se os próprios Executados/Recorridos não conseguem fazer prova dos pagamentos das prestações como pode a ora Recorrente imputar esses “alegados” pagamentos (não provados) aos respetivos contratos?

K. Que alternativa restava à ora Recorrente, não tendo sido provado os pagamentos, senão demandar os Executados/Recorridos, conforme fê-lo, pelos valores constantes no requerimento executivo (mais concretamente na liquidação da obrigação onde consta discriminado valor de capital, juros, taxas e datas de incumprimento)?

L. O incumprimento foi provado. Os alegados pagamentos não foram provados.

M. Mais, ficou provado que os depósitos referidos não foram descontados no valor em dívida.

N. Face ao mencionado, tendo o crédito sido cedido, que alternativa restava à ora Recorrente (que não disponha de mais informações e/ou de informações privilegiadas) senão intentar a presente execução para ressarcimento do valor em dívida, com base no incumprimento e nos valores apurados e transmitidos pelo Banco mutuário?

O. Ainda assim, por mera hipótese académica, sem conceder, caso os Executados/Recorridos conseguissem fazer prova de determinados pagamentos, seria sempre possível proceder à liquidação da obrigação exequenda seguindo as regras da imputação de valores constantes no nº. 1 do artigo 784º do CC.

P. Pelo que não se compreende nem se aceita a invocação da falta do requisito de liquidez.

Q. Mais, o Tribunal a quo dispõe que o Banco mutuário agiu contra os princípios da boa fé.

R. Antes de mais interessa para a causa dizer que o “venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, ora, no caso estamos a falar de uma alegada falha cometida pelo Banco mutuário e não pela ora Recorrente, pelo que, desde já se refuta a existência de qualquer abuso de direito, por parte da ora Recorrente.

S. O abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium”, é composto e caracterizado por elementos fundamentais, a saber:

 A existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja suscetível de fundar uma situação objetiva de confiança.

 Que a conduta anterior (factum proprium), e a atual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente.

 Que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé.

 Que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma atividade com base no “factum proprium”, de modo tal que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente.

T. Ora, salvo o merecido respeito, considera a Recorrente que não se verifica, no comportamento da ora Recorrente, o alegado abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprium”, senão vejamos:

U. O elo de confiança estabelecido entre o Banco mutuário e os ora Executados/Recorridos já havia sido “quebrado” aquando do incumprimento do pagamento das obrigações assumidas por estes. Quebra de confiança imputável aos ora Executados/Recorridos, conforme ficou, inclusive, provado nestes autos.

V. Mais a ora Recorrente não põe em causa que, dos factos relatados, poder-se-á concluir que houve uma certa displicência por parte do Banco mutuário ao alegadamente não dar resposta às questões dos Executados/Recorridos, no entanto, não pode tal comportamento ser imputado à ora Recorrente.

W. Qualquer falha de comunicação e/ou falha de informação que tenha existido não teve como base qualquer comportamento da ora Recorrente que se limitou a tentar ressarcir-se dos valores dos créditos (incumpridos) que adquiriu por cessão ao Banco mutuário.

X. Não é intuito da ora Recorrente colocar a boa fé dos Executados/Recorridos em causa, no entanto, foram estes que entraram em incumprimento e, ainda, foram estes que não conseguiram fazer prova dos pagamentos alegadamente realizados entre 2016 e 2017.

Y. Mais, a cessão dos créditos, entre o Banco mutuário e a ora Recorrente, ocorreu em 24/06/2019 e, alegadamente, a última tentativa de contacto dos Executados/Recorridos com o Banco mutuário terá ocorrido em 03/10/2017, ora sabendo encontrar-se numa situação de incumprimento não deveriam os Executados/Recorridos ter encetado outras manobras e/ou diligências, nesse interregno de tempo e até posteriormente, no sentido de resolver a questão do seu incumprimento?

Z. A própria sentença menciona que: “ (…)em reunião com representantes do Banco, o embargante ficou a saber que os depósitos que vinha fazendo eram desconhecidos e não estavam a ser atendidos nem abatidos no valor em dívida;” (sublinhado nosso).

AA. Factos que eram do conhecimento dos Executados/Recorridos.

BB. Factos ocorridos antes da cessão dos créditos, entre Banco mutuário e a ora Recorrente, e cujo conteúdo, veracidade e alcance a ora Recorrente desconhecia (não tendo obrigação de os conhecer - conforme dispõe o nº. 3º do artigo 574º do CPC).

CC. Ora, como pode ser imputado à ora Recorrente um alegado abuso de direito, quando desconhecia os factos e meandros das alegadas comunicações existentes entre o Banco mutuário a os Executados/Recorridos.

DD. Qual foi, em concreto, o limite da boa fé e dos bons costumes excedido pela ora Recorrente?

EE. Mais uma vez, a informação de que os Executados/Recorridos aguardavam, alegadamente, era do Banco mutuário e não da ora Recorrente (agentes completamente diferentes).

FF. Pelo exposto, dúvidas não restam de que a atuação da Recorrente sempre se baseou na observância dos ditames da boa-fé e no cumprimento dos deveres de diligência e transparência que lhe são aplicáveis, tendo encetado todos os esforços com vista à obtenção da regularização do empréstimo em situação de incumprimento, tendo inclusive interpelado os Recorridos para o efeito.

GG. A Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não fez uma correta interpretação e adequada aplicação do Direito, designadamente das citadas disposições legais, devendo, por isso, concluir-se pelo cumprimento do requisito da liquidez e, ainda, pela inexistência de qualquer abuso do direito por parte da ora Recorrente.

Termos em que deverá ser revogada a decisão recorrida, com todas as consequências legais.

Só assim se decidindo, será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA.

3. Contra -alegou o executado defendendo a manutenção do decidido.



4. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões da apelante (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

4.1. Da (i)liquidez da dívida exequenda;

4.2. Da (in) existência de abuso de direito da Exequente.

II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto inserta na decisão recorrida:

“1. Por escritura pública assinada em 23.10.2000, o BANIF concedeu aos executados um empréstimo no montante de 15 milhões de escudos.

2. O referido empréstimo foi concedido pelo prazo de vinte e sete anos, devendo ser reembolsado em trezentas e vinte e quatro prestações mensais sucessivas e constantes de capital e de juros, vencendo-se a primeira um mês após a data de celebração do contrato.

3. Como garantia do empréstimo, foi constituída hipoteca sobre o prédio urbano sito na freguesia de Poceirão, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º ... da referida freguesia.

4. Por documento assinado em 23.10.2000, o BANIF concedeu aos executados um empréstimo no montante de 5 milhões de escudos.

5. O referido empréstimo foi concedido pelo prazo de vinte e sete anos, devendo ser reembolsado em trezentas e vinte e quatro prestações mensais sucessivas e constantes de capital e de juros, vencendo-se a primeira um mês após a data de celebração do contrato.

6. Como garantia do empréstimo foi por escritura constituída hipoteca sobre o prédio urbano sito na freguesia de Poceirão, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º ... da referida freguesia.

7. Por documento assinado em 16.10.2002, o BANIF concedeu aos executados um empréstimo no montante de € 25.000,00.

8. O referido empréstimo foi concedido pelo prazo de vinte e cinco anos, devendo ser reembolsado em prestações mensais sucessivas e constantes de capital e de juros, vencendo-se a primeira um mês após a data de celebração do contrato.

9. Como garantia do empréstimo foi por escritura constituída hipoteca sobre o prédio urbano sito na freguesia de Poceirão, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º ... da referida freguesia.

10. Por documento assinado no dia 01.02.2007, o BANIF concedeu aos executados um empréstimo no montante de € 50.000,00.

11. O empréstimo foi concedido pelo prazo de vinte anos, devendo ser reembolsado em duzentas e quarenta prestações mensais e sucessivas de capital e de juros, vencendo-se a primeira um mês após a data de celebração do contrato em causa.

12. Como garantia do empréstimo foi por escritura constituída hipoteca sobre o prédio urbano sito na freguesia de Poceirão, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º ... da referida freguesia.

13. Por deliberação extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, no dia 20.12.2015, às 23h30, foi aplicada ao Banif - Banco Internacional do Funchal, SA, uma medida de resolução mediante a qual foi determinado “Alienar ao Banco Santander Totta, S.A., os direitos e obrigações, que constituam ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão, do BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A., constantes do Anexo 3 à presente deliberação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 145º-M do RGICSF”.

14. Mediante documento assinado em 15.12.2017, o Banco Santander Totta, SA, cedeu à exequente um conjunto de créditos de que era titular, entre os quais os créditos sobre os executados, importando a cessão a transmissão das garantias e direitos acessórios a eles inerentes.

15. Por ter ocorrido incumprimento, o embargante começou a fazer depósitos em contas que lhe foram indicadas por parte do Banco.

16. Em 10.10.2016, o embargante depositou na conta n.º ...83, do Banco Santander Totta, o valor total de € 800,00.

17. Os embargantes nunca foram titulares da conta n.º ...83.

18. O embargante depositou na conta n.º ...43, do Banco Santander Totta, o valor total de € 6.400,00, no período de 09.12.2016 até 13.07.2017 (correspondendo aquele valor a uma transferência de € 1.600,00, efetuada em 09.12.2016, e a seis depósitos em numerário no valor de € 800,00 cada um, feitos em fevereiro, março, abril, maio, junho e julho de 2017).

19. Os embargantes nunca foram titulares da conta n.º ...43.

20. Em situações de incumprimento, a empresa que trata da recuperação de crédito do Banco Santander Totta indica contas de transição para serem efetuados os depósitos.

21. As contas de transição servem apenas para gestão da dívida e não aparecem na base de dados do Banco de Portugal.

22. No ano de 2017, o embargante dirigiu-se ao balcão do Banco Santander da Av. 5 de Outubro, em Setúbal, para ser informado sobre quanto devia e qual era o valor das prestações, por ninguém o esclarecer e ter tomado conhecimento de que os seus empréstimos estavam no Contencioso do Banco.

23. Foi atendido pelo Sr. CC, gerente do Balcão, que ficou de o informar, mas as diligências que aquele realizou não lhe permitiram obter respostas.

24. Posteriormente, em julho de 2017, o embargante, acompanhado por uma pessoa conhecida, esteve numa reunião com elementos do Departamento de Contencioso do Banco Santander Totta, na qual esteve também presente o gerente do balcão do Banco na Av. 5 de Outubro, em Setúbal, Sr. CC.

25. Nessa reunião, o embargante pediu para ser informado para onde estavam a ir os depósitos que tinha efetuado, e ainda para saber quanto devia e quanto tinha de depositar para regularizar os valores em dívida, mas não obteve qualquer resposta.

26. Na referida reunião, os presentes que integravam o Departamento de Contencioso desconheciam os depósitos a que respeitavam os documentos que então lhes foram exibidos.

27. Sendo que se comprometeram a confirmar posteriormente os valores e a dar uma resposta por escrito.

28. O que nunca aconteceu.

29. No dia 03.10.2017, o embargante entregou no Balcão do Banco Santander Totta, na Av. 5 de Outubro, em Setúbal, uma carta onde fez constar que sempre efetuou os depósitos até julho de 2017 e em que solicitava que lhe fosse entregue um documento atestando a data em que entrou em incumprimento, bem como os extratos das contas nºs. ...10 (conta Banif) e ...31 (conta Santander), acrescentando que vinha fazendo depósitos na conta n.º ...43.

30. Nunca foi dada resposta ao pedido do embargante.

31. Os depósitos referidos em 15., 16. e 18. não foram descontados no valor em dívida.

32. No requerimento executivo alega-se além do mais o seguinte:

“(…)

21º Sucede que os executados deixaram de pagar as prestações contratadas e devidas ao Banco Mutuante, não tendo pago as prestações que se venceram a partir de 27/06/2016 no caso do primeiro contrato, 10/06/2020 no caso do segundo e terceiro contrato e 10/05/2016, no caso do último contrato, ficando em dívida capital nos seguintes valores:

a) 1.º contrato: € 38.556,70;

b) 2.º contrato: € 12.959,80;

c) 3.º contrato: €13.321,60; e

d) 4.º contrato: €30.696,10

(…)”.

B - Factos não provados

Nada mais se provou com relevo para a decisão a proferir.

Nomeadamente, não se provou que:

1. Os embargantes depositaram as prestações devidas de maio de 2016 até julho de 2017.

2. A exequente foi por diversas vezes contactada para informar os embargantes de quanto deviam e quanto tinham de depositar.

6. Do mérito do recurso

6.1. Da (i)liquidez da dívida exequenda


Referiu-se na sentença recorrida que: “Os embargantes não lograram fazer prova do pagamento de todas as prestações que eram devidas nos meses de maio de 2016 e seguintes.
Fizeram prova de alguns depósitos que foram efetuados desde aquela data até julho de 2017, mas não de todas as prestações que seriam devidas a partir das datas de início do incumprimento indicadas no requerimento executivo, o que pode levar a supor que a execução deve prosseguir para pagamento do remanescente do valor em dívida.
Mas parece que só assim seria se fosse possível proceder à liquidação da obrigação exequenda, imputando-se os pagamentos efetuados pelos executados, cenário que a nosso ver está inviabilizado em virtude de a exequente se ter limitado a indicar os montantes totais em dívida, sem fazer qualquer referência ao valor de cada prestação, o impede que se consiga liquidar, mediante simples cálculo aritmético, relativamente a cada contrato celebrado, quer o valor do capital em dívida, quer os juros a contabilizar sobre o capital.
Sendo um dos requisitos da obrigação exequenda (cf. art. 713º do CPC), a «liquidez é a qualidade da obrigação que esteja quantitativamente determinada, sendo na medida do crédito liquidado que será determinada a extensão da execução do património do executado» (excerto do sumário do acórdão da RG de 17.12.2018, proc. n.º 1101/15.6T8PVZ.1.G1, in www.dgsi.pt).
Qualidade que no caso não se verifica e constitui um obstáculo que se nos afigura inultrapassável, devendo determinar a procedência dos embargos, nos termos dos arts. 729º, e), e 731º do CPC.”.

Vejamos.

Efectivamente, a lei impõe que a obrigação exequenda para além de certa e exigível, seja líquida (art.º713º do CPC).

Quando a liquidação dependa de simples cálculo aritmético, como é o caso, o exequente deve fixar o seu quantitativo no requerimento inicial da execução mediante especificação e cálculo dos respectivos valores (art.º 716º, n.º 1 do CPC).

Não há dúvida que no caso em apreço, logo no requerimento executivo foi deduzido um pedido líquido, i.e. o quantitativo da prestação exigida aos executados está numericamente determinado.

Com efeito, aí se referiu estar em dívida do:
“1.º Contrato
Capital: € 38.556,70
Incumprimento: 27/06/2016
Juros desde a data de incumprimento até 30/04/2020: €15.858,00
Total: € 54.414,70
2.º Contrato:
Capital: € 12.959,80
Incumprimento: 10/06/2020
Juros desde a data de incumprimento até 30/04/2020: € 5.394,83
Total: € 18.354,63
3.º Contrato
Capital: € 13.321,60
Incumprimento: 10/06/2016
Juros desde a data de incumprimento até 30/04/2020: €5.545,44
Total: € 18.867,04
4.º Contrato:
Capital: € 30.696.10
Incumprimento: 10/05/2016
Juros desde a data de incumprimento até 30/04/2020: € 13.056,94
Total: € 43.753,04
Aos valores supra enunciados acrescem juros de mora até integral e efectivo pagamento, à taxa de 10,70% (7,70% + 3%), desde 01/05/2020 até efectivo e integral pagamento”.


Ora, não é a circunstância de se ter provado, em sede de embargos, que os executados haviam efectuado o pagamento de determinadas quantias que retira à obrigação exequenda o requisito da liquidez que apresentava.

O que sucede é que o montante reclamado não é, mercê desses pagamentos, o montante devido e para se alcançar qual é afinal o quantitativo em dívida há que (re) calculá-lo (aritmeticamente) de acordo com o estatuído no artigo 785.º do Cód. Civil, i.e. imputando-os primeiramente aos juros e só após ao capital.[1]

É, pois, pertinente a argumentação recursiva da apelante neste conspecto, sendo que os embargos só podem obter procedência parcial.

6.2. Da (in) existência de abuso de direito da Exequente.


Entendeu-se, outrossim, na sentença recorrida haver “outro fundamento que militaria no sentido da procedência dos embargos”.
E, recorrendo ao instituto do abuso de direito, entendeu-se que “a exequente, ao propor a acção executiva, defraudou a confiança da contraparte de que seriam apurados os valores corretos atendendo-se aos pagamentos efetuados de acordo com indicações dadas da parte do Banco.
Sendo que foi em virtude da expectativa criada que os embargantes deixaram de efetuar os depósitos e ficaram a aguardar pelos esclarecimentos do Banco, tanto mais que, sem qualquer indicação concreta por parte do mesmo, não podiam sequer confiar em que os depósitos que fizessem de futuro passariam a ser considerados.”.

Não podemos acompanhar o assim decidido.

Como é consabido, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º do Cód. Civil).

O abuso de direito pressupõe o seu exercício pelo respectivo titular de uma forma de tal modo arbitrária, exacerbada ou desmesurada, que, porque ofensivo da justiça, atentas as concepções ou o sentimento ético-jurídico dominante na colectividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei, se mostre inadmissível.

Assim, verificar-se-á uma situação de abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido e legítimo, o seu exercício seja visto como clamorosamente ofensivo, chocante e reprovável, à luz da justiça, isto é, do sentimento jurídico prevalente na comunidade social.

Por seu turno, o “venire”como comportamento típico abusivo passível de ser sancionado à luz do disposto no art.º 334º do Cód. Civil só releva em circunstâncias especiais.

Para a doutrina da confiança o venire seria proibido quando viesse defrontar inadmissivelmente uma situação de confiança legítima gerada pelo factum proprium, o que se traduz, na prática, em dar o dito por não dito.

Em termos resumidos, são pressupostos do “venire contra factum proprium”: a existência de uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança, consubstanciada na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível; um investimento de confiança; e a imputação da confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante.

“Na verdade, o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Várias razões depõem nesse sentido. Em termos antropológicos e sociológicos, podemos dizer que, desde a sedentarização, a espécie humana organiza-se na base de relacionamentos estáveis, a respeitar. No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante. Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano do princípio da igualdade e da necessidade de harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença. Ora, a pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual.

(…) A tutela da confiança, embora convincente, só pode operar, na falta de preceitos jurídicos, quando se mostrem reunidos especiais pressupostos. De outro modo, poderíamos transformar a sociedade num colete de forças, que prejudicasse as iniciativas individuais necessárias para dar corpo à liberdade e para possibilitar a inovação e o progresso.[2]”.

Cremos que a matéria de facto provada não consente a conclusão alcançada: Dela não emerge que os executados tenham, de modo efectivo, desenvolvido toda uma actuação baseada na própria confiança gerada pelo Banco e que em razão de tal conduta tenham deixado de efectuar o pagamento das prestações convencionadas como contrapartida dos mútuos.

Pelo contrário.
Os mesmos não poderiam deixar de estar cientes que não haviam honrado os seus compromissos e que iriam ser demandados por isso.
A circunstância de não saberem com rigor os montantes em dívida relativos a cada um dos quatro empréstimos e de o Banco não lhes ter prestado tal informação não tem, nem pode ter a virtualidade, de os eximir do pagamento do que é devido.

É que não nos podemos esquecer que os ( insuficientes ) depósitos que o embargante fez em contas que lhe foram indicadas por parte do Banco, só ocorreram após ter entrado em incumprimento ( cfr. ponto 15) e que não há notícia de que a instituição bancária se tivesse comprometido a não executá-los em razão dos mesmos.

Cremos até que constituiria uma violação do princípio da boa fé contratual permitir que os embargantes ficassem desobrigados para com a exequente, escudando-se no facto de tais depósitos não terem sido abatidos à dívida e de não terem sido previamente informados do seu montante.

Portanto, entendemos que não podem deixar de estar vinculados a liquidar as quantias em dívida relativas aos contratados mútuos.

III. DECISÃO
Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, revogando a sentença recorrida, julgam-se os embargos parcialmente procedentes e, em consequência, determina-se a redução da quantia exequenda em consonância com os pagamentos referidos supra em 5.16 e 5.18 os quais devem ser imputados de acordo com o disposto no art.º 785º do Cód. Civil.

Custas pelos apelados.

Évora, 20 de Abril de 2023
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

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[1] Neste sentido, Ac. STJ de 14.7.2021 ( Cura Mariano).
[2] António Menezes Cordeiro - Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas in www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=%2045614