Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14/09.5GBRMZ.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DO ACÓRDÃO
Sumário:
I - Tem-se entendido, de um modo geral, que os princípios constitucionais do processo penal impõem que ao arguido sejam reconhecidas todas as possibilidades de se opor à acusação contra si deduzida, em ordem a evitar uma condenação injusta, tanto ao nível da matéria de facto, como no plano do direito, o que implica, além do mais, que lhe seja conferido o ensejo de discutir com efectividade os juízos jurídicos formulados pela entidade acusadora.

II - O pleno exercício pelo arguido das garantias de defesa que lhe assistem tem como pressuposto lógico a estabilização do objecto processual logo que este tenha sido fixado pela acusação ou pela pronúncia, quando esta exista, objecto esse que, de acordo com o disposto nos arts. 283.º e 308.º nº 2 do CPP, se compõe obrigatoriamente de uma narrativa factual e de um certo enquadramento jurídico-penal dos factos narrados.

III - Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objecto processual tem de ser necessariamente excepcional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária, o que equivale a dizer, em concreto, dentro dos condicionalismos definidos pelos arts. 358.º e 359.º do CPP.

IV - A omissão da comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no libelo acusatório e da concessão ao mesmo da oportunidade de reorganizar a sua defesa é geradora da nulidade da sentença prevista na al. b) do art. 379.º do CPP, a menos que o crime da condenação constitua um «minus», em relação ao crime da acusação.

V - Do ponto de vista da tutela das garantias do arguido, aquilo que interessa é que os elementos constitutivos do crime pelo qual ele tenha sido condenado estejam abrangidos na tipicidade do crime pelo qual tinha sido acusado e lhe tenha sido conferido o ensejo de se defender, em relação a todos eles.

VI - Se tal não tiver sido assegurado, encontrar-nos-emos perante uma postergação ilegítima das garantias de defesa do arguido e logo geradora de nulidade da sentença, se a alteração não for devidamente comunicada, mesmo no caso em que ao crime da condenação seja cominada penalidade menos severa do que ao da acusação.

VII - Não pode dizer-se que o crime de abuso sexual de crianças constitua um «minus» relativamente ao crime de abuso sexual de menor dependente, não obstante o intenso grau de afinidade entre ambos.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 14/09.5GBRMZ, que correu termos no Tribunal Judicial de Reguengos de Monsaraz, por acórdão do Tribunal Colectivo proferido em 31/1/14, foi decidido:

1 - Condenar o arguido A., pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelos arts. 171, nº 1 e 177, nº 1, al. b) do C.P., e pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido pelos arts. 165, nº 1 e 177, nº 1, al. b) do C.P., nas penas parcelares de três e cinco anos de prisão, respetivamente. Fixar em cúmulo jurídico, a pena única de cinco anos de prisão.

Determinar a suspensão da pena em causa, pelo período de cinco anos, ficando condicionada ao pagamento, por parte do arguido, no prazo de um ano, da quantia de mil e duzentos euros, à instituição onde a B. se encontrar acolhida, podendo fazê-lo, em doze prestações mensais de cem euros cada.

Determinar o acompanhamento da suspensão a regime de prova, a executar pelos Serviços de Reinserção Social (artº 53, nº 3 do C.P.).

Durante o tempo de suspensão, não poderá o arguido, acompanhar, alojar ou receber a ofendida B. (artº 52, nº 2, al. d) do C.P.).

2 - Condenar o arguido a pagar as custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 U.C. de taxa de justiça, cfr. Art. 18 do D.L. 34/08, de 26-02 e arts. 513 e 514 do CPP.

3 – Determinar a recolha de amostra de ADN ao arguido, de molde a que o respetivo perfil de ADN resultante da análise da amostra recolhida seja introduzido na base de dados de perfis de ADN, cfr. Arts. 8, nº 2 e 18, nº 3 da Lei 5/2008, de 12/2.

4 – Cessam as medidas de coação impostas ao arguido.

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

Quanto à culpabilidade:

1. B. nasceu no dia 13 de Janeiro de 1993, sendo filha de C. e do arguido A;

2. A B. é portadora de um atraso de desenvolvimento, apresentando dificuldades cognitivas significativas ao nível linguagem, compreensão verbal, escrita e oral, que a levaram a integrar o ensino especial;

3. A B. viveu, pelo menos, desde 2007, com a mãe C., o arguido e um irmão;

4. O arguido trabalha como cantoneiro, entre as 05h e as 12h00, ficando, por vezes, sozinho em casa com a B, entre as 13h e a chegada de C. ao lar;

5. Em data não concretamente apurada do ano de 2007, no interior da cozinha da habitação, aproveitando que B. estava sentada ao seu colo, A., acariciou os seios da menor, tendo, apenas, cessado a sua conduta, uma vez que C. chegou ao lar;

6. No dia 03.02.2009, cerca das 13h, pensando que estava sozinho em casa com a menor, A, seguiu B. ao quarto de dormir, aproximou-se da mesma, colocou-lhe as mãos entre as pernas, afastando-as, tendo em seguida se deitado em cima da mesma, enquanto a beijava na boca e no pescoço;

7. Pouco depois, o arguido levantou-se, desabotoou as suas calças, retirou o pénis para fora e começou a fricciona-lo com as mãos (gestos de auto masturbação) em frente da filha;

8. Posto isto, caminhou na direção daquela, e com o pénis ereto, deitou-se em cima da mesma, ao mesmo tempo que desapertava o cinto das calças que aquela trazia vestidas;

9. Durante os factos descritos em 6), 7) e 8), C. encontrava-se no quarto ao lado, escondida, e naquele momento entrou e fez se notar, impedindo o arguido de concretizar, naquele dia, a cópula;

10. O arguido sabia a idade da sua filha B;

11. Mais sabia que a mesma padecia e padece de défice cognitivo, que a impede de compreender o que a rodeia;

12. O arguido atuou livre, deliberada e conscientemente, com a intenção concretizada de satisfazer os seus instintos sexuais, na situação descrita em 5) (2007) e na situação descrita em 6) a 8) (3 de Fevereiro de 2009), concretizando os atos supra referidos, aproveitando-se do fácil contacto que mantinha com a B. e do ascendente que mantinha sobre a mesma, mantendo-se indiferente aos sentimentos daquela;

13. Atuando da forma descrita o arguido quis e logrou satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se da ingenuidade e deficiência cognitiva da sua filha, e sabia que ao fazê-lo, a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexual, bem como no seu sentimento de timidez e de vergonha;

14. Os descritos contatos sexuais foram mantidas sempre contra a vontade de B. que, apenas por receio de contrariar o seu pai, e atendendo às suas limitações cognitivas se via incapaz de resistir às investidas do mesmo;

15. O arguido sabia que o seu comportamento era punido e proibido pela lei;
*
Quanto à determinação da sanção:

16. O arguido não tem antecedentes criminais.

17. É cantoneiro na Câmara Municipal de …, auferindo mensalmente, € 560, 41. Vive, sozinho, em casa arrendada pelo montante mensal de 150 euros. Tem como habilitações literárias, a 4ª classe.

O mesmo acórdão julgou os seguintes factos não provados:
a) O arguido ficasse sempre, sozinho em casa com a B, entre as 13h e a chegada de C. ao lar;

b) Em data não concretamente apurada, mas anterior a Janeiro de 2007, no quintal da habitação, sita nas …, nesta comarca, e aproveitando estar sozinho com a menor B, A. abraçou-a e beijou-a na boca, tendo, apenas cessado a sua conduta, porque, entretanto, foi surpreendido por C. que chegou à residência do casal;

c) Entre 2008 e Fevereiro de 2009, em datas e com frequência não concretamente apurada, mas superior a 2 vezes por semana, no interior do quarto que partilhava com C, A. aproveitando que se encontrava sozinho em casa com B., despia-se em frente desta, mostrando-lhe o pénis ereto;

d) Ato contínuo, beijava-a na boca, acariciava-lhe os seios e a zona genital e após, beijava-a na zona genital;

e) Não obstante a menor lhe suplicasse que cessasse tais condutas, proferindo, por diversas vezes a palavra «Não»;

f) A. não se compadecendo, deitava-se em cima da B., abria-lhe as pernas e fazia gestos característicos da prática de relações sexuais, friccionando o pénis no corpo da menor, ejaculando, para cima da mesma, ou para os lençóis da cama, onde se encontravam deitados;

g) Por vezes, e não se bastando com tais práticas, A. tentava introduzir o seu pénis ereto na vagina da menor, o que lhe causava dores;

h) O arguido tivesse tido relações sexuais com a menor B.

Do acórdão proferido o arguido A. veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1 - O Colectivo do Tribunal Judicial de Reguengos de Monsaraz revelou uma falta de sensibilidade judicativa decepcionante na análise de prova produzida em julgamento, maxime no que respeita à consideração da prova documental e prova testemunhal produzida analisada segundo as regras de experiência comum e daquilo que seja a normalidade das condutas humanas.

2 - Assim, nos termos do art. 431.º, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal (adiante, CPP) a Relação de Lisboa tem poderes de cognição que permitem modificar a decisão recorrida quanto à matéria de facto.

3 - No ponto 2 da factualidade provada, apurou o tribunal que “A B. é portadora de um atraso de desenvolvimento, apresentando dificuldades cognitivas significativas ao nível da linguagem, compreensão verbal, escrita e oral, que a levaram a integrar o ensino especial”.

4 - A este respeito, importa referir que como bem consta de fls. 254 a 255, em resposta à solicitação da perícia, há que ter presente que a credibilidade de um depoimento não pode assentar na perícia psicológica efectuada “porque o perito apenas pode e deve pronunciar-se sobre a capacidade da pessoa em causa conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou, ou seja, sobre os aspectos perceptivos e cognitivos do depoimento, e não sobre a sua credibilidade. Este juízo pertence, inexorovalmente, ao tribunal”.

5 - Todavia, sob pena de violação das mais elementares regras de experiência comum, não poderá o tribunal dar credibilidade a um depoimento cujas representações mentais cientificamente não estão ao alcance do depoente, que reflectem fabulação ou que reproduzem uma realidade que lhe foi incutida.

6 - Justamente para melhor se poder apurar a credibilidade que o depoimento da B pode merecer é importante concretizar o atraso de desenvolvimento da B.

7 - Assim, e como resulta da perícia de fls. 349 a 352, a B padece de “deficiência mental moderada”.

8 - Com efeito, na conclusão do aludido relatório pericial pode ler-se que a B. foi avaliada como tendo “um rendimento cognitivo muito inferior, claramente compatível com o diagnóstico de deficiência mental de grau moderado, capaz, não obstante e com as limitações inerentes ao seu grau de deficiência, não só de distinguir comportamentos positivos e negativos, mas também de reproduzir verbalmente situações passadas com recurso à memória.”.

9 - Assim, e com base nos elementos que constam do próprio processo, deve ser modificada a matéria de facto provada para: “2 – A B. é portadora de uma deficiência mental moderada, apresentando dificuldades cognitivas significativas ao nível da linguagem, compreensão verbal, escrita e oral, que a levaram a integrar o ensino especial;

10 – Com pacificamente se tem entendido, “Se o tribunal valorar a prova contra todos os ensinamentos da experiência comum (…) incorre, inquestionavelmente, em erro na apreciação da prova.” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/10/1996 in www.dgsi.pt);

11 - “O erro notório na apreciação da prova tem de substanciar-se em afirmações feitas pelo tribunal e dentro do contexto factual dado como comprovado e não comprovado, por modo a haver de um lado a afirmação que, posta em confronto com outra, evidencie situação que não pode ser harmonizada, tomando como referência os pontos da factualidade posta em confronto” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/01/1998, in www.dgsi.pt).

12 - O recorrente impugna o ponto a matéria de facto em que se deu com provado que “A B. viveu, pelo menos, desde 2007, com a mãe C. o arguido e um irmão

13 - Tal não foi dito em julgamento. Estamos, pois, perante um verdadeiro erro de julgamento pois a prova produzida foi incorrectamente valorada.

14 - O que se passou foi, isso sim, que desde que a B nasceu que vivia, pelo menos, na companhia do pai e da mãe, o aqui arguido e a aqui testemunha C.

15 – Estamos perante um verdadeiro erro de julgamento pois a prova produzida foi incorrectamente valorada já que o arguido e a testemunha B referiram expressamente que a B viveu na companhia do pai e da mãe, a testemunha C, desde que nasceu (vide indicações das passagens da prova gravada).

16 - Deve, assim, modificar-se tal ponto da decisão da matéria de facto para “3 – A B. sempre viveu na companhia do pai e da mãe e, pelo menos, desde 2007, com a mãe C, o arguido e um irmão;”

17 - Foi dado como provado que “4 - O arguido trabalha como cantoneiro, entre as 05h00 e as 12h00, ficando, por vezes, sozinho em casa com a B., entre as 13h e a chegada de C. ao lar;”.

18 - O recorrente impugna o ponto a matéria de facto em que se deu com provado que “o arguido trabalha como cantoneiro, entre as 05h00 e as 12h00, ficando, por vezes, sozinho em casa com a B, entre as 13h e a chegada de C. ao lar;”.

19 - Infelizmente, mais uma vez o acórdão recorrido errou pois o arguido nunca ficava sozinho com a sua filha.

20 - Com efeito, e como foi correctamente dado como provado, o arguido trabalha como cantoneiro e, ao tempo, trabalhava entre as 05:00 horas e as 12.00 horas.

21 - E, aqui chegados, é importante aferir o que ficou efectivamente demonstrado em tribunal quanto ao quotidiano desta família pois tal será relevante, conforme adiante se esmiuçará.

22 – Estamos perante um verdadeiro erro de julgamento pois a prova produzida foi incorrectamente valorada já que o arguido referiu nunca ficar sozinho com a filha B, aflorou-o a testemunha B e disse-o claramente a testemunha C, desempregada que estava sempre em casa (vide indicações das passagens da prova gravada).

23 - O recorrente ilustrou que a descrição que o acórdão faz do conteúdo dos depoimentos acima indicados não corresponde ao que, na realidade, as suas declarações e os depoimentos das testemunhas disseram pelo que deve modificar-se tal decisão da matéria de facto para 4 - O arguido trabalha como cantoneiro, entre as 05h00 e as 12h00”. Só isto podia ser dado como provado.

23 - Cumpre sublinhar que o que está em causa não colide com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP.

24 - “O recurso da matéria de facto não se destina, assim, a postergar o principio da livre apreciação da prova que tem consagração expressa no art.º 127º do CPP, pois que a decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais. – Prof. Figueiredo Dias. Direito Processual Penal. vol. I. ed.1974. pág. 204.” (acórdão da Relação de Guimarães, de 20/03/2006, Proc. n.º 245/06-1 in www.dgsi.pt).

25 - O recorrente impugna os ponto 6, 7, 8 e 9 da matéria de facto em que se deu com provado que:

“6 – No dia 03.02.2009, cerca das 13h, pensando que estava sozinho em casa com a menor, A, seguiu B ao quarto de dormir, aproximou-se da mesma, colocou-lhe as mãos entre as pernas, afastando-as, tendo em seguida se deitado em cima da mesma, enquanto a beijava na boca e no pescoço;

7 – Pouco depois, o arguido levantou-se, desabotoou as suas calças, retirou o pénis para fora e começou a friccioná-lo com as mãos (gesto de auto masturbação) em frente da filha;

8 – Posto isto, caminhou na direcção daquela, e com o pénis ereto, deitou-se em cima da mesma, ao mesmo tempo que desapertava o cinto das calças que aquela trazia vestidas;

9 – Durante os factos descritos em 6), 7) e 8), C encontrava-se no quarto ao lado, escondida, e naquele momento entrou e fez-se notar, impedindo o arguido de concretizar, naquele dia, a cópula;”

26 – A impugnação justifica-se pela existência de um verdadeiro erro notório na apreciação da prova à luz das regras da experiência comum, crivo da credibilidade, fidedignidade e razão de ciência do que é dito por cada uma das testemunhas.

27 - Tal impugnação funda-se ainda nas passagens da prova gravada melhor constantes e indicadas no ponto 4. da presente alegação.

28 – O arguido, na audiência de discussão e julgamento, momento processual em que a prova é produzida, negou a prática dos factos, tendo o tribunal desvalorizado a sua versão dos factos por entender tratar-se de uma “versão contraditória que o arguido apresentou à Mmª Juiz de Instrução, devidamente acompanhado por defensor e com todas as garantias de defesa que a lei processual penal impõe.”.

29 – O tribunal valorou incorrectamente o conteúdo do depoimento da B, o qual tem que ser apreendido à luz das regras de experiência comum que, no caso concreto, respeitam a indagar o que tenha sido espontaneamente dito pela testemunha tendo em conta as suas limitações cognitivas e de memória.

30 – Às declarações prestadas espontaneamente seguiram-se declarações contraditórias com a própria factualidade de que o arguido vinha acusado.

31 - É que o discurso da B soçobra perante perguntas sugestivas, algo que é natural tendo em conta a patologia de que padece e a vontade que tem em agradar a quem se apresente como sue interlocutor sobretudo se investido de poder e autoridade.

32 - Ora, a B disse uma coisa e outra, disse que sim e que não, não soube localizar no tempo os factos e terá fabulado alguns episódios. Ou por outra: terá sido induzida pela mãe a recriar episódios.

33 - E é aqui que a sensibilidade judicativa do julgador deveria ter sobressaído pois a patologia de que a B. padece é uma deficiência mental moderada. Tal comprometimento cognitivo moderado traduz-se nas seguintes limitações:

- volatilidade das construções cognitivas – daí que sinaliza o pai como pode sinalizar qualquer outra pessoa desde que instruída para o efeito;
- sugestionabilidade;
- elevada desejabilidade social;
- comunicação arcaica e, por vezes, descontextualizada;
- juízos comprometidos;

34 - Isto pode ler-se em qualquer manual de psicologia e estas limitações cognitivas e de expressão impõem-se ao julgador para que possa apreciar livremente o discurso da depoente.

35 - Mais, isso mesmo decorria já da perícia de fls. 440 a 451, onde se pode ler:

“Das entrevistas clínico-forenses sobressai o facto de B ter revelado alguma capacidade de narrar eventos passados, ainda que com as limitações próprias das suas parcas capacidades verbais (descrições muito vagas e desprovidas de detalhe).

Revelou grande necessidade de apoio e atenção, associadas a uma carência afectiva significativa. Neste sentido, e devido à existência de características de personalidade mais dependentes, poderá submeter-se aos outros e ser facilmente sugestionada, nomeadamente se estes tiverem investidos de alguma autoridade. (…)

No que diz respeito aos factos relatados, verificou-se o recurso a expressões típicas do seu pensamento concreto. B. não consegue contextualizar o alegado abuso, devido às suas dificuldades em termos de orientação espaço-temporais. Descreve algumas interacções entre ela e o alegado agressor (…). Na descrição dos factos refere detalhes periféricos, irrelevantes e mesmo alguns que não parecem ser totalmente compreendidos e que estarão relacionados com os escassos conhecimentos sexuais existentes.” (cfr. fls. 450 e 451).

36 - E, em conclusão pericial, pode ler-se:

“Assim, em conclusão, apesar de se ter apurado a existência de uma debilidade de grau moderado, considera-se que esta não coloca em causa a capacidade de B. reproduzir os acontecimentos que presenciou e/ou vivenciou, como seja o alegado abuso sexual de que terá sido vítima, ainda que o faça de acordo com as limitações cognitivas e verbais apuradas. Apesar das dificuldades que por vezes evidenciou em distinguir o certo do errado, a resistência a falar sobre os alegados factos, as estratégias que utilizou para evitar abordar essa temática, bem como os sinais de ansiedade observados durante o relato, levam-nos a concluir que B. tem capacidade de entender que a conduta do alegado agressor é desadequada.”

37 - Ou seja: a B. tem capacidade para reproduzir acontecimentos passados por si vivenciados, dentro das limitações verbais e cognitivas que tem e, bem assim, a B. sabe distinguir o certo e o errado, o que passa pela emissão de um juízo crítico (agrado ou desagrado) sobre o que é certo e errado.

38 - Ora, à luz deste quadro, o Colectivo de Reguengos de Monsaraz não podia fazer-se valer do depoimento da B. para alicerçar a sua convicção quanto aos factos que deu como provados.

39 - Mais, e diga-se com honestidade intelectual, tão pouco o poderia fazer para dar como não provados os factos que a B. negou ou referiu de forma diversa pois a testemunha disse uma coisa, depois disse outra, respondeu sugestivamente e enquadrou factos cuja realidade se demonstrou não ter ocorrido.

40 - Vejamos, tendo por base a audição do depoimento gravado e a transcrição das passagens supra citadas cujo labor constante da alegação de recurso se demonstrará não ter sido despiciendo:

A B. disse que:
- a mãe nunca ficou zangada com o pai;
- no dia em que o pai a foi buscar à escola a mãe não ficou zangada;
- nos dias em que o pai a ia buscar à escola, a mãe estava sempre em casa;
- no dia em que os factos terão ocorrido (03/02/2009) a mãe estava em casa;
- a mãe estava lá ao lado do pai;
- a mãe não ficou zangada nesse dia;

41 - E será legítimo perguntar, por forma a aferir da credibilidade que tal versão dos factos pode (não trazer): a mãe estava em casa no dia em que os factos sucederam? A menor tinha-a cumprimentado antes, como afirmara? Será isto normal? Mais, a mãe não ficou zangada com o pai?

42 - Como intuitivamente se alcança, o discurso é incoerente e não pode servir para o tribunal retirar seja que ilações for. Não pode.

43 - Mais, como é evidente, a B. terá alguma ideia do que se terá passado no dia. E há que distinguir o que narra espontaneamente do que se recorda (tirar o casaco), e aquilo que lhe foi induzido.

44 - Este aspecto é fundamental pois se a representação dos factos pela B. fosse efectivamente sua, esta emitiria um juízo crítico sobre os mesmos e não o fez. Aliás, por diversas vezes – e intervaladas – referiu gostar do pai, não estar zangada com ele, ter saudades do pai.

45 - Jamais a B. representou afectiva ou emocionalmente o pai como um agressor ou como tendo agido de forma errada perante ela. E essa capacidade foi-lhe reconhecida.

46 - Isto posto, é mister concluir que o depoimento da testemunha não podia ser valorado porque impreciso, incoerente e contraditório, logo, insusceptível de credibilidade.

47 - O acórdão recorrido, tendo em conta as regras de experiência comum, valorou incorrectamente a matéria de facto impugnada pois um juízo lógico e racional – por contraposição a um juízo apaixonado e de simpatia – impunha uma valoração diversa do testemunho da B. em face da patologia mental de que esta padece.

48 – Há ainda erro notório na apreciação da prova, porque feridente das regras de experiência comum, pois o tribunal tomou em consideração, eminentemente, o depoimento de C., a mãe da B. e companheira do arguido, para dar como provados os factos supra impugnados.

49 – Como melhor consta na fundamentação da matéria de facto, o tribunal fez crença na versão apresentada pela testemunha C.:“Um dia, disse ao arguido que ia a Évora ver o pai que estava no hospital, mas ficou em casa. Quando ouviu a mota do arguido, que regressava com a filha da escola, apagou a luz e foi para o quarto do fundo, onde dormia habitualmente o filho D. A menina despiu o kispo e sentou-se na caminha dela. Ele encostou a mota à parede da casa, entrou e despiu o kispo no quarto. O arguido passou para a frente da menina e disse-lhe qualquer coisa que ela não percebeu e a menina disse não. Abriu as pernas da menina com as mãos dele. Meteu-se no meio das perninhas dela, a menina deitou-se na cama e ele em cima dela aos beijos. Ele levantou-se, deixando a menina na cama, ele desabotoou a braguilha, tirou o pénis para fora “em acção” (erecto). A filha ficou a olhar para aquilo, não dizia nada. Ele deitou-se em cima dela e meteu a mão pelo meio dos dois a desabotoar as calças da menina. Nesse momento, a testemunha saiu de lá de dentro e perguntou-lhe ser mentira o que estava a ver.”.

Antes de mais, são patentes as contradições insanáveis na fundamentação para a resposta à matéria de facto provada pois atente-se às diferenças do que foi o relato dos factos trazido pela B.:

- a mãe estava na sala;
- o pai nunca lhe deu beijos (na boca);
- o pai tirou as calças e as cuecas;

Já se percebeu que os depoimentos são incoerentes, designadamente quanto à alegada abordagem do arguido à ofendida B., sendo insanável a contradição entre as duas versões.

51 - O que ora nos ocupa é saber se o tribunal podia valorar lógica e racionalmente o testemunho de C., a mãe, a mãe alegadamente desconfiada, à luz das regras da experiência comum.

52 - E, aqui, por regras de experiência comum hão-de achar-se as condutas comuns atribuídas ao chamado “homem médio” colocado naquelas circunstâncias.

53 - É, pois, a esta luz que se deverá indagar a versão da C. e se uma outra mãe (ou pai, ou fosse quem fosse), colocada naqueles mesmíssimas circunstâncias, actuaria conforme a testemunha narrou e assim se perceberá se a testemunha criou ou não os factos que narrou.

54 - E, recorde-se, esta testemunha, induziu a filha. Foi a mãe quem lhe ensinou a inenarrável expressão “leite branco da gravidez”

55 - Em relação aos factos alegadamente ocorridos no dia 3 de Fevereiro de 2009, há que atentar no esquema elaborado pela testemunha C..

56 - Como se viu, o arguido nunca ficava sozinho em casa com a sua filha B.; a testemunha C. estava desempregada há muito tempo e ocupava-se da casa no aludido dia 3 de Fevereiro de 2009, disse ao arguido que ia a Évora visitar o pai ao hospital.

57 – O depoimento da testemunha C., à luz das regras de experiência comum, não é credível porque ilógico no quadro fáctico e emocional que a própria descreve pois qualquer pessoa nas suas circunstâncias não agiria como esta refere ter agido e assim baseia a sua percepção directa dos factos.

58 – É legítimo, desde logo, indagar:

- estando desconfiada, enquanto mãe, que diligências C. tomou antes para salvaguarda da sua filha?

- logo no dia em que decidiu montar o ardil ao arguido, apanhou-o em flagrante e tudo se passou mal o arguido chegou a casa?

- a mãe C., já de si desconfiada, prolongou as suas desconfianças até após ver, nas suas palavras, o pai beijar a filha, em cima dela, afastando-lhe previamente as pernas?

- como se não bastando, a mãe C. viu ainda o pai desabotoar as calças, tirar o pénis erecto e exibi-lo à filha B.?

- só após este alegadamente se colocar em cima da B. e tentar desabotoar-lhe as calças é que a mãe C. decidiu irromper pelo quarto donde estava à espreita?

- logo naquela dia é que o pai iria querer copular (sendo a filha virgem como consta do relatório pericial de fls.)?;

- estando o pai com o pénis erecto e, portanto, excitado, porque razão não foram encontrados vestígios de sémen (material genético) na roupa do pai ou da B. que foram objecto de perícias (cfr. perícias de fls.)?;

59 – As interrogações são propositadamente retóricas e as suas respostas intuitivas à luz das regras de experiência comum.

60 - Parece-nos que não haverá grande dificuldade em concluir que, face à matéria de facto apurada, existe na decisão recorrida um manifesto erro notório na apreciação da prova.

Como lapidarmente se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/04/1998, “só existe erro notório na apreciação da prova quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum”. (vide BMJ 476, pág. 252) (negrito da peça)

“Se o tribunal valorar a prova contra todos os ensinamentos da experiência comum (…) incorre, inquestionavelmente, em erro na apreciação da prova.” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/10/1996 in www.dgsi.pt).

“O erro notório na apreciação da prova tem de substanciar-se em afirmações feitas pelo tribunal e dentro do contexto factual dado como comprovado e não comprovado, por modo a haver de um lado a afirmação que, posta em confronto com outra, evidencie situação que não pode ser harmonizada, tomando como referência os pontos da factualidade posta em confronto” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/01/1998, in www.dgsi.pt).

61 - Na verdade este só ocorre quando, sendo o erro tão ostensivo, tão patente e de tal modo crasso, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental.

62 - É que, segundo as regras da experiência comum nenhuma mãe que estivesse desconfiada da sua filha poder ser objecto de moléstias sexuais deixaria de estar vigilante ou permitiria e conseguiria suportar os factos que a C. declara ter observado. Nenhuma mãe, repita-se!

63 - O juízo expresso pelos julgadores foi, pois, manifestamente violador das regras da experiência comum.

64 - Em suma, ocorre o invocado vício do erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP.

65 - Não obstante todas as considerações supra expendidas, sem conceder minimamente e por imperativos de consciência profissional do signatário, impõe-se trazer perante V. Exas. um erro em que laborou o acórdão recorrido ao condenar o arguido pela prática de dois crimes como se estes estivessem entre si em concurso real.

66 - O recorrente vinha acusado da prática, em autoria material e com dolo directo, da prática dos seguintes crimes:

-um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma continuada, p. e p. no art. 165.º, n.ºs 1 e 2 e 30.º, n.ºs 2 e 3, todos do Código Penal, agravado nos termos constantes do art. 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;

- um crime de abuso sexual de menor dependente, na forma continuada, p. e p. no art. 172.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal, agravado nos termos constantes do art. 177.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal,

67 - Como se percebeu, metade da acusação que fabulava quanto à prática de actos sexuais, incluindo a cópula (e a perícia de fls. atestou que a B. era virgem…) e que sustentava a prática de crimes continuados, caiu.

68 - Todavia, ficou provada factualidade que o tribunal considerou subsumível à prática dos seguintes crimes

- um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal;

- um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelos arts. 165.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, aliena b) do Código Penal.

69 - Foram dadas como provadas duas condutas tidas como jurídico-penalmente relevantes, isto é, os factos que remontam ao ano de 2007 e os factos de 3 de Fevereiro de 2009.

70 - Porém, não foi o arguido condenado pela prática de crime continuado, nem tão pouco pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança ou dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz.

71 - Está-se em crer que, pura e simplesmente, o Colectivo não valorou a factualidade que dera como provada no ponto 5. como merecedora de censura jurídico-penal e, como tal, subsumível a um tipo de crime(s), sendo despiciendo, nesta sede, aflorar se tal terá sido ou não correcto do ponto de vista criminal.

72 - Temos assim que o recorrente foi condenado pela alegada prática dos factos vertidos nos pontos 6. a 8., os quais foram subsumíveis aos dois crimes em que foi condenado: o crime de abuso sexual de criança e o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

73 - O arguido vinha acusado de uma actuação continuada e, portanto, repleta de plúrimas acções, razão pela qual a acusação sustentou a prática dos dois aludidos crimes sob a forma continuada.

74 - Todavia, tendo a factualidade apurada reflectido apenas uma conduta, apenas uma acção (e, repita-se, não uma acção plúrima) que se esgota, como sustenta a factualidade que serve de base à condenação, nos factos ocorridos no dia 3 de Fevereiro de 2009, há que convir que não é juridicamente possível o concurso efectivo dos dois tipos de crime.

75 - Com efeito, estamos perante uma situação de concurso aparente entre o crime de abuso sexual de criança e o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência pois a conduta do arguido apenas pode ser subsumível a um dos crimes.

76 - Ora, o bem jurídico protegido em ambos os crimes é a liberdade e autodeterminação sexual.

È aquilo que se fala, na doutrina e na jurisprudência, como “unidade de acção”, justamente a situação de que tratam os presentes autos: “…será a questão de saber se, face à unidade de acção, existirá concurso efectivo (ideal) ou meramente aparente. (…) a verdade porém é que os bens jurídicos tutelados (…) coincidem no essencial e na sua quase integral extensão, pelo que ainda aqui parece ser a do concurso aparente a melhor solução.” (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 489).

77 - Na nossa mais autorizada jurisprudência, entre tanto outros doutos aresto, tem sido decidido pacificamente que:

“I - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

II - O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

III - A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.

IV - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

V - O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/05/2010, proferido no âmbito do Proc. n.º 474/09.4 PSLBS.L1.S1 in www.dgsi.pt).

78 - Dispõe o art. 30.º, n.º 1 do Código Penal que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

79 - Ou seja, o arguido apenas poderia ter sido condenado pela prática de um dos crimes, tendo assim o acórdão recorrido violado os princípios da culpa e da proporcionalidade.

80 - Foram assim violados os arts. 18.º, 30.º, n.º 1 e 71.º do Código Penal.

81 - Deve, pois, ser revogada a decisão proferida e substituída por uma outra que condene o arguido apenas por um dos crimes, designadamente pelo crime de abuso sexual de criança ainda que tendo em atenção a específica situação da ofendida para efeitos de determinação da pena (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 489).

O MP igualmente interpôs recurso do acórdão, acompanhado da devida motivação, no termo da qual formulou as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelos arts. 171, nº 1 e 177, nº 1, al. b) do C.P., e de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido pelos arts. 165, nº 1 e 177, nº 1, al. b) do C.P., nas penas parcelares de três e cinco anos de prisão, respectivamente e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão.

2. A pena única não se encontra conforme aos critérios estabelecidos na parte final do nº 1, do artº 77º, do Cód. Penal, que se mostra violada.

3. Sendo aplicável uma moldura penal de 5 a 8 anos de prisão, ponderando os factos na sua globalidade, nomeadamente,

4. A pouca idade da B. quando os factos se iniciaram e a perpetuação destes no tempo por cerca de dois anos,

5. A personalidade do arguido, distanciada de valores fundamentais e socialmente relevantes, levando-o a relacionar-se sexualmente com uma sua filha, que padece de um atraso de desenvolvimento, com dificuldades cognitivas significativas ao nível da linguagem, compreensão verbal, escrita e oral, que a impede de compreender o que a rodeia.

6. Circunstância de que o arguido se aproveitou para satisfazer os seus instintos sexuais, e ainda com aproveitamento do fácil contacto que mantinha com a B. e do ascendente que mantinha sobre a mesma, mantendo-se indiferente aos sentimentos daquela.

7. Agindo o arguido sempre contra a vontade de B. que, apenas por receio de contrariar o seu pai, e atendendo às suas limitações cognitivas se via incapaz de resistir às investidas do mesmo e sabendo que ao fazê-lo, a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexual, bem como no seu sentimento de timidez e de vergonha.

8. E tendo ainda em conta a circunstância de, no dia 03.02.2009, o arguido apenas não ter concretizado a cópula com a sua filha B. devido à intervenção da sua mulher, que surgiu no quarto, quando o arguido já tinha retirado o seu pénis erecto para fora das suas calças, e encontrava-se deitado sobre a sua filha, a desapertar o cinto das calças que ela trazia vestidas.

9. E em contraponto, a idade do arguido -actualmente com 58 anos- que ainda não é avançada e a ausência de antecedentes criminais registados.

10. A pena única a aplicar ao arguido deve fixar-se em seis (6) anos e seis (6) meses de prisão, que não pode ser suspensa na sua execução, por força do disposto no artº 50º, nº 1, primeira parte.

Nesta conformidade, deverão V.as Ex.as revogar o Acórdão recorrido e julgar como aqui preconizado.

Os recursos interpostos foram admitidos com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recurso interposto pelo arguido, formulando as seguintes conclusões:

1. O Acórdão recorrido não padece do vício de erro notório da apreciação da prova, a que alude a al. c), do nº 2, do artº 410º, do Cód. Proc. Penal porquanto do texto do Acórdão não é patente qualquer contradição nem a mesma ocorre por contraposição às regras da experiência comum.

2. Também não se verifica qualquer erro de julgamento, explicitando o Acórdão de modo sustentado, lógico e coerente os motivos pelos quais deu como provados os factos julgados assentes. No caso,

3. Consistem nas declarações da testemunha C. que os presenciou, corroboradas em grande parte pelas declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial, validamente lidas em julgamento e no testemunho da vítima B.,

4. Que se mostrou «…incapaz de reproduzir uma história que lhe é narrada mas não vivenciada, mesmo com recurso a questionamento directo, atendendo à baixa capacidade de retenção existente», como conclui o relatório de fls. 439 a 451, pelo que o relato dos factos que efectuou em julgamento deve considerar-se resultante da sua experiência pessoal e não de lhe terem sido ensinados por terceiros, pois nesse caso, as suas características pessoais não lhe permitiriam relatá-los.

5. Verificando-se agora que o arguido estava acusado da prática, entre outros, do crime de crime de abuso sexual de menor dependente, na forma continuada, p. e p. no art. 172º, n.º 1, e 30º, n.º1 e 2, todos do Código Penal, agravado nos termos do constante no art. 177º, n.º1, alínea a), do Código Penal e vindo a ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelos arts. 171, nº 1 e 177, nº 1, al. b) do C.P.,

6. Sem que o tribunal tenha cumprido o dever de comunicação da alteração da qualificação jurídica, imposto pelo artº 358º, do Cód. Proc. Penal, incorreu o Acórdão na nulidade prevista no artº 379º, nº 1, al. b), do C.P.P..

Por seu turno, o arguido respondeu à motivação do recurso interposto pelo MP, tendo formulado as seguintes conclusões (mantém-se a numeração original, em que o nº 14 aparece repetido):

1 - O Ministério Público entende que o recorrido deve ser condenado numa pena única seis anos e seis meses de prisão e, assim, não ser suspensa na sua execução por inadmissibilidade legal.

2 - Sem prejuízo do que se deixou expendido na alegação de recurso do acórdão condenatório, importa referir, desde logo, que o arguido foi incorrectamente condenado pela prática dos dois crimes de que vinha acusado, isto é, um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, e um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelos arts. 165.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, aliena b) do Código Penal.

3 - Foram dadas como provadas duas condutas tidas como jurídico-penalmente relevantes, isto é, os factos que remontam ao ano de 2007 e os factos de 3 de Fevereiro de 2009.

4 - Porém, não foi o arguido condenado pela prática de crime continuado, nem tão pouco pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança ou dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz.

5 - Temos assim que o recorrido foi condenado pela alegada prática dos factos vertidos nos pontos 6. a 8. (cfr. acórdão recorrido), os quais foram subsumíveis aos dois crimes em que foi condenado: o crime de abuso sexual de criança e o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

6 - O arguido vinha acusado de uma actuação continuada e, portanto, repleta de plúrimas acções, razão pela qual a acusação sustentou a prática dos dois aludidos crimes sob a forma continuada.

7 - Todavia, tendo a factualidade apurada reflectido apenas uma conduta, apenas uma acção (e, repita-se, não uma acção plúrima) que se esgota, como sustenta a factualidade que serve de base à condenação, nos factos ocorridos no dia 3 de Fevereiro de 2009, há que convir que não é juridicamente possível o concurso efectivo dos dois tipos de crime.

8 - Com efeito, estamos perante uma situação de concurso aparente entre o crime de abuso sexual de criança e o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência pois a conduta do arguido apenas pode ser subsumível a um dos crimes.

Ora, o bem jurídico protegido em ambos os crimes é a liberdade e autodeterminação sexual.

9 - È aquilo que se fala, na doutrina e na jurisprudência, como “unidade de acção”, justamente a situação de que tratam os presentes autos: “…será a questão de saber se, face à unidade de acção, existirá concurso efectivo (ideal) ou meramente aparente. (…) a verdade porém é que os bens jurídicos tutelados (…) coincidem no essencial e na sua quase integral extensão, pelo que ainda aqui parece ser a do concurso aparente a melhor solução.” (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 489).

10 - Na nossa mais autorizada jurisprudência, entre tanto outros doutos aresto, tem sido decidido pacificamente que:

“I - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

II - O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

III - A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.

IV - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

V - O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/05/2010, proferido no âmbito do Proc. n.º 474/09.4 PSLBS.L1.S1 in www.dgsi.pt).

11 - Dispõe o art. 30.º, n.º 1 do Código Penal que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

12 - Ou seja, o arguido apenas poderia ter sido condenado pela prática de um dos crimes.

13 - Assim, a decisão posta em crise não violou o disposto no art. 77.º, n.º 1 do Código Penal, conforme se sustenta na peça recursória.

14 - Violou, isso sim, os princípios da culpa e da proporcionalidade, ínsitos nos arts. 18.º, 30.º, n.º 1 e 71.º do Código Penal, conforme oportunamente explanado em se de recurso interposto pelo ora recorrido.

14 - Não obstante, e sem conceder minimamente e por mera cautela de patrocínio, ainda importa analisar as restantes conclusões do recurso, designadamente se o critério utilizado para determinação das penas parcelares (de três a cinco anos) e na fixação da pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, o qual afigura-se irrepreensível.

15 - Na determinação da pena concreta a aplicar, deve o tribunal atender a toda as circunstâncias, que não fazendo parte do crime, depuseram a favor do arguido ou contra ele (art. 72.º, n.º 2 do C.P.), tendo em conta os fundamentos filosóficos que estão subjacentes à aplicação de uma pena, mormente, a prevenção especial.

16 – “A medida da necessidade de socialização do agente é, pois, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vector mais importante daquele pensamento. Ele só entra em jogo porém se o agente se revelar carente de socialização”. (FIGUEIREDO DIAS, obra cit., pág. 108).

17 – Tal não é o caso do recorrente, devendo, pois ser negado provimeno ao temerário recurso interposto.

Tendo-lhe sido mos autos continuados com vista, a fim de emitir parecer sobre os recursos em presença, a Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação alegou que o acórdão recorrido se encontra ferido de nulidade, nos termos do art. 379º nº 1 al. b) do CPP, porquanto o arguido foi acusado da prática de um crime de abuso sexual de menor dependente, na forma continuada p. e p. pelo arts. 172º nº 1 e 30º nºs 1 e 2 do CP, agravado nos termos do art. 177 nº 1 al. a) do CP, e veio a ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelos arts. 171º nº 1 e 177º nº 1 al. b) do CP, sem que lhe tenha feita a comunicação dessa alteração da qualificação jurídica dos factos, prescrita pelo art. 358º do CPP.

Notificado para se pronunciar, o arguido secundou a posição assumida pela Digna PGA.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Antes de entrarmos na apreciação de qualquer das pretensões recursivas, cumpre conhecer da arguição da nulidade do acórdão recorrido, por parte da Digna PGA.

Em matéria de nulidades de sentença, dispõem os nºs 1 e 2 do art. 379º do CPP:

1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º -A e 391.º -F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 — As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.

O art. 358º do CPP é do seguinte teor:
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Confrontando o teor da acusação deduzida pelo MP contra o arguido, o qual, por economia de trabalho e de espaço, damos por reproduzido, confirma-se a divergência, detectada pela Digna PGA, entre a qualificação jurídica constante daquela peça processual e a que figura no segmento decisório do acórdão recorrido.

De igual modo, é possível constatar que, abstraindo daqueles que interessam apenas à determinação da sanção, os factos julgados provados pelo acórdão recorrido foram todos alegados em sede de acusação, pelo que a verificada divergência entre as qualificações jurídicas radica exclusivamente ao nível da aplicação e interpretação das normas de direito, não sendo resultado da prova de factos não articulados no libelo acusatório.

Finalmente, compulsados os autos, verifica-se que a detectada alteração da qualificação jurídica não foi comunicada ao arguido, nomeadamente, nos termos e para o efeito previsto nos nºs 1 e 3 do art. 358º do CPP.

A al. b) do nº 1 do art. 379ºdo CPP fere de nulidade a sentença que condene o arguido por «factos» diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia.

Tal formulação, numa interpretação da norma mais «agarrada» à respectiva letra, pode fazer crer que não seria nula uma sentença que condenasse o arguido por um crime diferente daquele por que vinha acusado, desde que essa divergência decorra apenas de uma diferente qualificação jurídica dos mesmos factos, ainda que não tenha sido efectuada a comunicação prevista no nº 3 do art. 358º do CPP, sendo que, em matéria de nulidades processuais, vigora o princípio da tipicidade, segundo qual a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só gera nulidade nos casos expressamente previstos (art. 118º do CPP).

Contudo, importa ter em atenção que o nº 1 do art. 32º da CRP estabelece que o processo penal assegura as mais amplas garantias de defesa, incluindo o recurso, e o nº 5 dispõe que o julgamento se subordina ao princípio do contraditório.

Tem-se entendido, de um modo geral, que os evocados princípios constitucionais do processo penal impõem que ao arguido sejam reconhecidas todas as possibilidades de se opor à acusação contra si deduzida, em ordem a evitar uma condenação injusta, tanto ao nível da matéria de facto, como no plano do direito, o que implica, além do mais, que lhe seja conferido o ensejo de discutir com efectividade os juízos jurídicos formulados pela entidade acusadora.

O pleno exercício pelo arguido das garantia s de defesa que lhe assistem tem como pressuposto lógico a estabilização do objecto processual logo que este tenha sido fixado pela acusação ou pela pronúncia, quando esta exista, objecto esse que, de acordo com o disposto nos arts. 283º e 308º nº 2 do CPP, se compõe obrigatoriamente de uma narrativa factual e de um certo enquadramento jurídico-penal dos factos narrados.

Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objecto processual tem de ser necessariamente excepcional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária, o que equivale a dizer, em concreto, dentro dos condicionalismos definidos pelos arts. 358º e 359º do CPP.

O texto da al. b) do nº 2 do art. 379º do CPP provem inalterado da versão original deste Código, aprovada pelo DL nº 78/87 de 17/2.

Por sua vez, o actual nº 3 do art. 358º do CPP, que torna extensivo à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação o regime de comunicação previsto nos nºs 1 e 2 desse normativo para alteração não substancial desses factos, não figurava na redacção original e foi introduzido pela Lei nº 59/98 de 25/8.

A referida reforma legislativa procurou fazer eco da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, que havia julgado inconstitucional a orientação interpretativa, segundo a qual seria lícito ao Tribunal, em sede de sentença, operar uma qualificação jurídico-criminal dos factos descritos na acusação diversa da que constava desta peça processual, em termos de poder sujeitar o arguido a uma pena mais severa, sem lhe dar conhecimento da alteração, nem lhe conferir a possibilidade de reorganizar a sua defesa em conformidade.

Neste contexto, afigura-se-nos razoável partir do princípio que o legislador da reforma do CPP aprovada pela Lei nº 59/98 de 25/8 disse menos do que o que queria, ao abster-se de harmonizar o texto da al. b) do nº 2 do art. 379º com a alteração introduzida no art. 358º, igualizando expressamente a consequência jurídico-processual cominada (nulidade de sentença), em caso de falta de comunicação ao arguido da alteração dos factos alegados na acusação e de ter sido omitida idêntica comunicação da alteração da qualificação jurídico-penal desses factos.

Tanto quanto sabemos, a jurisprudência dos Tribunais superiores vem-se orientando no sentido de considerar ferida de nulidade a sentença que condene o arguido com base numa qualificação jurídica dos factos diversa da constante da acusação, sem que a modificação lhe tenha sido comunicada e lhe tenha sido dada a oportunidade de dela se defender, podendo nós indicar como representativos dessa orientação, a título exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/5/12, proferido no processo nº 33/05.0JBLSB.C1.S1 e relatado pelo Exmº Conselheiro Dr. Armindo Monteiro, e os Acórdãos das Relações de Coimbra de 29/1/14, proferido no processo nº 720/12.2PBAVR.P1.C1 e relatado pelo Exmº. Desembargador Dr. Vasques Osório e de 14/5/14, proferido no processo nº 290/12.6TAACN.C1 e relatado pelo Exmº. Desembargador Dr. Luís Coimbra, e de Évora de 19/2/13, proferido no processo nº 1027/11.2PCSTB.E1 e relatado pelo Exmº. Desembargador Dr. Proença da Costa e de 3/6/13, proferido no processo nº 780/03.1GTABF.E1 e relatado pelo Exmº. Desembargador Dr. Alberto João Borges.

Dentro da mesma linha poderemos apontar o Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência de 25/6/08 (publicado em DR, 1ª série, nº 146 de 30/7/08), o qual firmou a seguinte orientação:

“Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do art.º 69 do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358 do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na al.ª b) do nº 1 do art.º 379 deste último diploma legal”.

De todo modo, parece-nos ser também de aceitação geral a ideia de que a comunicação da alteração da qualificação jurídica não é obrigatória nos casos em que o tipo de crime pelo qual o arguido venha a ser condenado constitua um «minus», em relação àquele pelo qual ele foi acusado – vd. nesse sentido, por exemplo, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 19/6/13, proferido no processo nº 607/11.0SMPRT.C1 e relatado pelo Exmº. Desembargador Dr. Correia Pinto e de 30-10-13, proferido no processo nº 440/11.0GBLSA.C1 e relatado pelo Exmº. Desembargador Dr. José Eduardo Martins.

Nesta ordem de ideias, poderemos assentar que a omissão da comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos no libelo acusatório e da concessão ao mesmo da oportunidade de reorganizar a sua defesa é geradora da nulidade da sentença prevista na al. b) do art. 379º do CPP, a menos que o crime da condenação constitua um «minus», em relação ao crime da acusação.

A questão que então se coloca é a de saber se o crime de abuso sexual de crianças, por cuja prática o arguido foi condenado, pelo acórdão recorrido, representa um «minus», relativamente ao crime de abuso sexual de menor dependente por que vinha acusado.

Em tese geral, pode dizer-se que um determinado tipo de crime constitui um «minus» em relação a outro, no caso em que os elementos constitutivos do primeiro estejam abrangidos pela tipicidade do segundo.

Tal é o que tipo de relação que se estabelece, por exemplo, de um crime simples para um crime qualificado, de um crime privilegiado para um crime simples ou de um crime cometido por negligência para o crime doloso que ofende o mesmo bem jurídico (seguimos de perto a posição de Maia Gonçalves, «Código de Processo Penal. Anotado e Comentado», 14ª ed., 2004, pág.696).

A problemática que de momento nos ocupa não deve ser confundida com a questão de saber se o crime de condenação é «menos grave», em termos moldura punitiva, que o crime da acusação, ainda que isso suceda, nos casos figurados.

Do ponto de vista da tutela das garantias do arguido, aquilo que interessa é que os elementos constitutivos do crime pelo qual ele tenha sido condenado estejam abrangidos na tipicidade do crime pelo qual tinha sido acusado e lhe tenha sido conferido o ensejo de se defender, em relação a todos eles.

Se tal não tiver sido assegurado, encontrar-nos-emos perante uma postergação ilegítima das garantias de defesa do arguido e logo geradora de nulidade da sentença, se a alteração não for devidamente comunicada, mesmo no caso em que ao crime da condenação seja cominada penalidade menos severa do que ao da acusação.

O crime de abuso sexual de criança é tipificado pelo art. 171º do CP:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

Por sua vez, o tipo criminal do abuso sexual de menor dependente é definido pelo nº 1 do art. 172º do CP:
Quem praticar ou levar a praticar acto descrito nos n.os 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

Antes de mais, importa verificar que o crime de abuso de menor dependente é punível com a mesma penalidade (prisão de 1 a 8 anos) que o crime de abuso sexual de crianças, na modalidade do nº 1 do art. 171º do CP, que, segundo o acórdão recorrido, o arguido terá preenchido, tendo ambos os ilícitos sido sujeitos à agravação da moldura punitiva cominada no nº 1 do art. 177º do CP, a saber um terço dos limites mínimo e máximo.

Um e outro crime têm como acção típica actos sexuais, sendo o elenco dessas condutas referenciado no nº 1 do art. 172º do CP mais amplo do que aquele a que se refere o nº 1 do artigo imediatamente anterior.

Qualquer dos crimes em confronto tem como sujeito passivo típico um menor, só que, no caso previsto no art. 171º do CP, está em causa uma «criança», entendendo-se como tal a pessoa que não tenha ainda completado, enquanto que o tipo do art. 172º do CP se reporta a outro escalão etário, os que tenham já ultrapassado os 14 anos, mas não tenham ainda atingido os 18, exigindo-se ainda, para o preenchimento do crime, que os menores se encontram numa determinada relação (educação e assistência), para com o agente activo.

Ambos os crimes são censuráveis apenas a título de dolo

Tudo visto, diremos que os dois tipos de crime em confronto apresentam um intenso grau de afinidade, mas ainda assim a totalidade da tipicidade objectiva do crime de abuso sexual de crianças não se mostra abrangida pela de crime de abuso sexual de menor dependente.

Assim, de acordo com o critério adoptado, não pode dizer-se que o crime de abuso sexual de crianças constitua um «minus» relativamente ao outro ilícito em causa.

Consequentemente, impunha-se que o Tribunal «a quo», antes de proferir o acórdão recorrido, tivesse cumprido, em relação à alteração da qualificação jurídica o disposto no nº 3 do art. 358º do CPP, pelo que, não o tendo feito, a decisão enferma da nulidade invocada pela Digna PGA.

Sobre os efeitos da declaração de nulidade dispõe o art. 122º do CPP:

1-A s nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.

2- A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.

3-Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

A nulidade agora detectada afecta necessariamente a validade do acórdão em que foi praticada e também de todo processado que se lhe seguiu, o qual se resumiu à tramitação do presente recurso.

Mais complexa será a questão de saber se a nulidade da sentença prejudica apenas a validade do acto decisório isoladamente considerado ou, pelo contrário, inquina a própria audiência de julgamento, no termo da qual aquele foi proferido.

Com efeito, existe uma íntima conexão entre a audiência de julgamento e a sentença, podendo dizer-se, com propriedade, que a segunda é o último acto da primeira

Contudo, somos de entender que as nulidades da sentença tipificadas no art. 379º nº 1 do CPP não acarretam necessariamente a invalidação da audiência de julgamento, tudo dependendo das características concretas do vício que tenha dado origem à nulidade.

No caso presente, a nulidade verificada não radica na produção da prova, antes emergindo da falta de comunicação pelo Tribunal ao arguido de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação e de lhe conferir a oportunidade de dela se defender.

Nesta ordem de ideias, torna-se possível salvaguardar a validade da audiência de julgamento, na medida em que seja possível a prolação pelo Exmº Colectivo de Juízes, que subscreveu o acórdão agora invalidado, de nova decisão, com a correcção da deficiência detectada.

Consequentemente, com vista ao suprimento da nulidade verificada, importa que aquele Exmª Colectivo de Juízes dê cumprimento integral ao disposto no art. 358º nºs 1 e 3 do CPP e profira novo acórdão.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Declarar nulo, nos termos do art. 379º nº 1 al. b) do CPP, o acórdão recorrida e todo processado subsequente;

b) Determinar, após trânsito em julgado, a baixa dos autos à primeira instância, a fim de ser proferido novo acórdão, com suprimento da nulidade detectada, nos termos preconizados supra.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 21/10/14 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)
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