Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1778/22.6T8SLV.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – O requerimento para suspensão da execução previsto no art. 882º do CPC aprovado pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro não pode constituir título executivo enquadrável no art. 46º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma.
2 – Com efeito, trata-se de uma peça processual que se situa na tramitação do processo executivo em que se insere e cujas finalidades estão assinaladas nas próprias normas que a regulam.
3 – A sequência processual desse requerimento pode conduzir à extinção dessa execução ou à sua continuação, nos termos previstos na lei processual, mas não pode tal requerimento, cuja função processual é a suspensão da execução em curso, basear a instauração de uma outra execução.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A recorrente ZEMBE – DISTRIBUIÇÃO E SOLUÇÕES DE MATERIAL ELÉTRICO, LDA. instaurou contra o executado AA a presente execução para pagamento de quantia certa, pretendendo obter deste o pagamento da quantia de € 19 042,98 que alega ser-lhe devida.
Juntou documento particular que constituiria, no seu entender, o título executivo.
O requerimento executivo veio a ser liminarmente indeferido, dizendo o tribunal por um lado que de acordo com o disposto no art. 85º do Código de Processo Civil vigente, e pressupondo que estamos perante uma execução baseada em sentença, deveria o processo ser instaurado por dependência do processo onde foi proferida essa sentença, no tribunal onde correu esse processo, e por outro lado por a exequente se mostrar “desprovida de título executivo”.
Contra o decidido nesse despacho de indeferimento liminar reagiu a exequente através do presente recurso de apelação.
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II – O RECURSO
Os fundamentos do recurso estão sintetizados nas respectivas conclusões, que são as seguintes:
“1. O despacho de indeferimento liminar do Tribunal a quo peca por obscuridade e ininteligibilidade pois resulta do requerimento executivo indeferido, assim como da documentação junta com o mesmo, que o título executivo é um acordo de pagamento e não uma sentença homologatória.
2. Assim, a decisão do Tribunal a quo, decretando a incompetência por incumprimento do previsto no artigo 85º n.º 1 e 2 do C.P.C., peca por obscuridade e ininteligibilidade face ao requerido e demonstrado no requerimento executivo em apreço.
3. O Tribunal a quo parte de um pressuposto errado, na medida em que considera que “No que tange à execução de sentença (que nem sequer foi junta aos autos, repete-se)”, quando, na realidade, o título dado à execução se trata de um acordo de pagamento, enquanto documento particular, não lhe sendo, por conseguinte, aplicável a disposição legal em crise.
4. O despacho de indeferimento liminar em recurso deverá ser modificado em ordem a admitir o requerimento executivo como proposto no Tribunal competente.
5. O despacho de indeferimento liminar do Tribunal a quo peca ainda por decidir contra o Direito ao fazer uma incorreta aplicação das normas e princípios regentes da aplicação da lei no tempo em face da necessidade de protecção da confiança nas relações jurídicas,
6. Afastando indevidamente o reconhecimento do carácter de título executivo ao acordo de pagamento em apreço celebrado ao abrigo, concordância e na vigência do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961.
7. Assim a decisão do Tribunal a quo em recurso, de indeferimento liminar do requerimento executivo com base na falta de título executivo, deverá ser modificada em ordem a admitir o título executivo e o requerimento executivo rejeitado, e o prosseguimento da instância executiva respectiva.
8. Pelo exposto, mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, indeferido liminarmente o requerimento executivo, razão pela qual deverá a decisão recorrida ser revogada na íntegra e substituída por outra que admita liminarmente o requerimento executivo.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve ser concedido provimento ao recurso interposto pela Recorrente, devendo, em consequência, ser revogado o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento executivo.”
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III - OS FACTOS
Dos autos resulta o seguinte, que se nos afigura ser o que releva para a decisão a proferir:
1 - A exequente deu entrada no Juízo de Execução de Silves, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, do requerimento executivo sobre o qual incidiu o despacho recorrido, referindo como morada do executado um endereço em Portimão.
2 – Nesse requerimento a exequente indicou que o título executivo era “Outro título com força executiva”.
3 – E ali se explica que em 02.07.2004, no processo n.º 539/2002 que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, a ora exequente e o ora executado, juntamente com outra sociedade entretanto dissolvida, celebraram um acordo de pagamento em prestações nesse processo, que todavia não foi cumprido, e que foi junto em cópia como sendo o título executivo.
4 – O referido documento, depois junto em certidão, constitui um requerimento feito no indicado processo, uma execução ordinária, ao abrigo do art. 882º do Código de Processo Civil então vigente, com vista a obter a suspensão desse processo executivo “até ao pagamento integral pelos executados das prestações em causa”.
5 – Nos termos do referido art. 882º o requerimento encontra-se assinado pela exequente nesse processo (a ora exequente) e pelos executados (o ora executado e a sociedade Electro Pedra Mourinha), e previa o pagamento da quantia exequenda em prestações mensais iguais e sucessivas de €600, a partir de Julho de 2004, estipulando que a falta de pagamento de uma das prestações implicaria o vencimento de todas as restantes.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do mesmo CPC).
Assim, no caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso sintetizam-se nas seguintes:
a) Primeiro, a falada “obscuridade e ininteligibilidade” do despacho recorrido;
b) Segundo, a eventual “exceção dilatória inominada” referente ao desrespeito do art. 85º, n.ºs 1 e 2, do CPC;
c) Terceiro, a afirmada força executiva do documento apresentado como sendo título executivo.
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2 – Da eventual nulidade
Ao falar em obscuridade e ininteligibilidade da decisão recorrida a apelante parece estar a arguir uma hipotética nulidade da mesma, atento o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 615º do Código de Processo Civil em vigor.
Com efeito, com o novo CPC aprovado pela Lei nº 41/2013 passou a prever-se entre as causas de nulidade da sentença enunciadas no artigo 615º nº 1, sob a alínea c), a ocorrência de “…alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Porém, como se afigura pacífico, não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que podem constituir a nulidade em causa, mas apenas aquelas que tornem a decisão ininteligível, ou seja, impossível de entender, usando da normal diligência.
Ora a apelante mostra ter compreendido perfeitamente o sentido e o alcance da decisão que contesta, e contra ela e seus fundamentos argumenta nas suas alegações de recurso. Trata-se de uma decisão que indeferiu liminarmente o seu requerimento executivo, com os fundamentos que considerou pertinentes, e certa ou errada a mesma é perfeitamente compreensível.
Afigura-se, aliás, que o próprio recorrente não estava a pensar em nulidade ao expor a sua linha de argumentação, pois que em nenhum momento expressa essa arguição de nulidade, enquanto tal, e ao contrário apresenta os fundamentos jurídicos, baseados na sua interpretação do Direito aplicável, que do seu ponto de vista devem conduzir à revogação do decidido e à sua substituição por decisão oposta.
Por conseguinte, sem necessidade de mais considerações, rejeita-se a existência da falada nulidade.
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3 – Da “exceção dilatória inominada”
O tribunal recorrido considerou que “por força do disposto no artigo 85.º n.º 1 do Código de Processo Civil, é competente o Tribunal e processo onde correu a acção declarativa respectiva”, que “a Exequente não deu cumprimento a essa norma na medida em que deveria ter requerido a execução junto do processo onde foi proferida a sentença dada à execução e não directamente neste Tribunal, de modo a ser seguida a forma e o regime previstos no referido artigo 85.º n.º 2”, e que assim “estamos, pois, perante uma excepção dilatória inominada que não é passível de ser suprida”….
Neste ponto é forçoso reconhecer que assiste razão à recorrente, e que efectivamente o despacho recorrido labora em notória confusão, como resulta da sua confrontação com o próprio requerimento executivo e o documento que o acompanha.
Lendo o requerimento executivo, e verificando o documento apresentado, constata-se que em nenhum momento a exequente menciona uma acção declarativa, ou uma sentença homologatória, nem alude a uma execução de sentença.
Pelo contrário, especifica devidamente que o título que apresenta é um documento particular, um acordo de pagamento, que foi produzido no decurso de um processo executivo que correu contra o agora executado e outra. E isto mesmo se confirma pela análise do documento anexo.
Consequentemente, sendo o domicílio do executado em Portimão, a exequente requereu a execução junto do tribunal competente nos termos do artigo 89.º, n.º 1, do C.P.C. (ver ainda o Mapa III anexo ao DL n.º 49/2014, de 27 de Março - regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais).
Não existe qualquer “exceção dilatória inominada” como referido no despacho impugnado, e nisso tem razão a apelante, como defende nas suas alegações.
Veremos se tanto basta para determinar a revogação da decisão sob recurso, já que esta, embora por caminhos algo confusos, acabou por basear-se num fundamento que, a confirmar-se, é obviamente inultrapassável: o exequente apresenta-se desprovido de título executivo.
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4 – O pretenso título executivo
A recorrente pretende valer-se da norma contida no art. 46º do Código de Processo Civil vigente em 2004 na parte em que esta conferia força executiva a documentos particulares que entretanto a perderam perante o novo Código de Processo Civil agora em vigor.
Na realidade, o Código de Processo Civil em referência (DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), dispunha no seu art. 46º, al. c), que podiam servir de base à execução, além do mais, “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
Entende o recorrente que tendo o documento que apresenta sido produzido em 2004, e tendo força executiva face ao direito que então vigorava, também agora pode ser utilizado como título executivo.
Alega por isso, alongadamente, sobre a manutenção dessa força executiva apesar das alterações legislativas entretanto surgidas.
Lembra que o referido título executivo era à data em que nasceu título executivo válido, por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que era o Código de Processo Civil de então, e que a colocação em causa da validade actual do título executivo que o era com base na lei vigente à data da sua elaboração, em face do disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea b) do actual C.P.C., no qual passaram ser títulos executivos os reconhecimentos de dívida apenas quando constantes de documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, “consubstanciar-se-ia numa total desprotecção das partes de um acordo feito em concordância com a lei vigente à data da sua celebração, que conferiu ao credor título executivo válido à data, e que dispensava qualquer diligência posterior sobre a validade formal do documento para o reconhecimento da sua imediata exequibilidade”.
Ora não se duvida que também neste ponto o recorrente tem razão, e para o reconhecer nem se julga necessário lançar mão da abundante jurisprudência e doutrina que têm justificado a continuidade da força executiva dos documentos que a tinham face à lei anterior e a perderam face ao novo Código de Processo Civil.
Todavia, a aceitação da bondade da orientação jurisprudencial citada não implica de modo nenhum a procedência do recurso.
Com efeito, a pretensão do recorrente está condenada por um equívoco que vicia a sua argumentação desde o início. É que o documento em causa nunca poderia constituir título executivo, considerando o direito vigente em 2004.
Na realidade, não estamos perante um documento particular assinado pelo devedor e reconhecendo obrigações pecuniárias, nos termos previstos no art. 46º, n.º 1, a l. c) do CPC de então, mas sim perante uma peça processual, inserida na tramitação de uma execução então em curso e cuja finalidade está processualmente circunscrita ao fim assinalado na própria lei processual.
O art. 882º do CPC em vigor na data do documento em causa, e que regia essa matéria (requerimento para pagamento em prestações) tinha a seguinte redacção, que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março:
“1 - É admitido o pagamento em prestações da dívida exequenda, se exequente e executado, de comum acordo, requererem a suspensão da instância executiva.
2 - O requerimento para pagamento em prestações é subscrito por exequente e executado, devendo conter o plano de pagamento acordado e podendo ser apresentado até à transmissão do bem penhorado ou, no caso de venda mediante propostas em carta fechada, até à aceitação de proposta apresentada.”
Foi isso o que fizeram nesse processo de execução a exequente e o executado, como expressamente consignaram no documento em análise. O acordo de pagamento apresentado destinou-se a essa finalidade processual, a suspensão da instância executiva, e esgotou-se nessa função.
Como é evidente, na execução em causa existia título executivo, que a baseava desde a sua propositura (a apelante esclarece que se tratava de títulos de crédito), pelo que o acordo para pagamento em prestações destinado a suspender a marcha da execução não visava constituir um novo título de crédito a considerar no âmbito desse processo, e também não visava obviamente constituir título executivo a usar num outro qualquer processo executivo.
Para confirmar esta certeza basta verificar a sequência processual prevista nessa subsecção que regulava o pagamento em prestações da quantia exequenda (arts. 882º a 885º do diploma em questão).
Como se pode verificar:
A falta de pagamento de qualquer das prestações, nos termos acordados, importa o vencimento imediato das seguintes, podendo o exequente requerer o prosseguimento da execução para satisfação do remanescente do seu crédito” (cfr. art. 884º).
Entretanto, durante a suspensão, e na falta de convenção em contrário, mantinham-se as garantias reais já existentes, podendo, todavia, estabelecer-se outras adicionais, até ao pagamento integral da quantia exequenda (cfr. art. 883º).
E há que considerar ainda que contra a suspensão podiam reagir os restantes credores, requerendo a continuação da execução para satisfação dos seus créditos vencidos (art. 885º).
Em suma, o requerimento em apreço cumpre uma finalidade intraprocessual, e nisso esgota a sua função. Na sua sequência podia a todo o momento cessar a suspensão decretada, se fosse o caso, ou podia ao invés vir a chegar-se à extinção dessa execução, pelo pagamento.
Estamos perante uma peça processual com uma função legalmente determinada, situada no âmbito da execução em que surgiu.
O que não se pode de todo considerar é que estamos perante um título executivo enquadrável na al. c) do n.º 1 do art. 46º do CPC de então, como pretende a apelante.
Não sabemos, atenta a escassez dos elementos dos autos, o que aconteceu na instância executiva em causa (da certidão junta pela exequente consta que está em arquivo, e do requerimento executivo consta a afirmação de que terá falhado o pagamento das prestações acordadas, não se percebendo se a execução prosseguiu ou não, ou as razões por que não prosseguiu).
Porém, a conclusão supra apresentada (tal requerimento não constitui nem constituiu nunca título executivo) resulta irrefutável face às normas jurídicas expostas. O acordo de pagamento inserido no requerimento em análise tinha por finalidade a suspensão da instância da execução em curso, com vista ao pagamento da quantia exequenda (e por essa via alcançar a extinção da execução).
Se não fosse cumprido o acordo de pagamento, a execução continuaria, a requerimento do exequente. Mesmo nesse caso, o título executivo era apenas aquele em que tal execução se baseava, e não o acordo de pagamento inserido no requerimento para suspensão da execução.
Assim sendo, concorda-se com a decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo que o apelante veio impugnar, por faltar título executivo susceptível de basear a execução.
Nos termos do art. 726º do Código de Processo Civil agora vigente (Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título.
Julgamos que no caso é evidente, clara e insofismável a falta de título executivo.
Confirma-se, portanto, o indeferimento liminar que vem impugnado.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, julgamos improcedente a apelação, e, com os fundamentos que foram expostos, confirmamos a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 2 de Março de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso