Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
98/17.2T8ALM.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A usucapião, que aproveita a todas as pessoas que possam adquirir, tem de ser judicialmente ou extrajudicialmente invocada para produzir os seus efeitos, e estes, após a sua invocação, retrotraem-se à data do início da posse, tudo se passando, como se o direito tivesse sido adquirido nesse momento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 98/17.2T8ALM.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Almeirim – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por (…) contra (…), a Autora veio interpor recurso da sentença proferida.
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A Autora pediu que o Réu fosse condenado a restituir-lhe, no prazo de 60 dias após a citação, os imóveis melhor identificados na alínea a) do segmento petitório, livres, devolutos de pessoas e bens e em bom estado de conservação e, bem assim, a pagar-lhe o montante anual de rendas já vencidas de € 6.600,00 referente aos últimos 5 anos, acrescida de juros de mora até integral e efectivo pagamento da indicada quantia, à taxa de 4%.
Mais peticiona a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização, no valor total de € 7.000,00, a título de prejuízos materiais e danos morais alegadamente por si sofridos.
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Para tanto, a parte activa alegou que era dona, legítima e única proprietária dos imóveis em causa, por os ter adquirido por partilha de divórcio por mútuo consentimento do seu ex-marido (…). Afirma ainda que o Réu ocupa esses prédios com fundamento na existência de um contrato-promessa de compra e venda celebrado com o seu ex-marido, contrato este que não assinou nem consentiu.
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Devidamente citado, o Réu apresentou contestação, na qual impugnou os factos alegados pela Autora, alegando ter adquirido em 4 de Outubro de 1988 a (…) os prédios objecto dos presentes autos, pelo preço global de € 49.879,79, tendo desde logo passado a explorar os referidos terrenos como se fosse proprietário dos mesmos.
O Réu apresentou pedido reconvencional contra a Autora, peticionando que fosse reconhecido o direito de propriedade que adquiriu, por usucapião, sobre os prédios rústicos em causa, condenando-se a Autora a reconhecer que é dono e legítimo possuidor, por os ter adquirido por usucapião, dos referidos prédios rústicos.
Por fim, requer a condenação da Autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor do Réu.
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Notificada da contestação apresentada, a Autora deduziu réplica, na qual, em síntese, impugnou ter o Réu uma posse pública e pacífica dos imóveis objecto dos presentes autos. Além disso, invocou a excepção dilatória de caso julgado e pugna pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé.
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Notificado da réplica apresentada, o Réu sustenta a improcedência da excepção dilatória de caso julgado.
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Procedeu-se ao saneamento e condensação da causa, tendo sido julgado improcedente a excepção dilatória de caso julgado.
Foram ainda fixados os temas da prova.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal «a quo» decidiu:
a) absolver o Réu de todos os pedidos deduzidos contra si;
b.i) reconhecer que o Réu, (…) é dono e legítimo possuidor, por os ter adquirido por usucapião, dos prédios rústicos sitos na Herdades dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, descritos na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob os n.ºs (…), (…) e (…);
b.ii) Condenar a Autora a reconhecer que o Réu é dono e legítimo possuidor, por os ter adquirido por usucapião, dos prédios rústicos sitos na Herdades dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, descritos na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob os n.ºs (…), (…) e (…).
c) Julgar totalmente improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé e, consequentemente, absolvê-la de tal pedido.
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e nas suas alegações continham as seguintes conclusões[1] [2] [3]:
1 – Autora é dona, legítima e única proprietária dos seguintes imóveis:
· Prédio rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por terra de pinhal e sobral, designado por Gleba nº, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…) da freguesia de Fazendas de Almeirim, na matriz é parte a desanexar do artigo 1º, secção NN a NN2;
· Prédio rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por terra de pinhal e sobral, designado por Gleba nº (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…) da freguesia de Fazendas de Almeirim, na matriz é parte a desanexar do artigo (…), secção NN a NN2;
· Prédio rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por terra de pinhal e sobral, designado por Gleba nº (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…) da freguesia de Fazendas de Almeirim, na matriz é parte a desanexar do artigo (…), secção NN e NN2 (cfr. documentos juntos aos autos, não podendo proceder os factos dados como provados e contraditórios com estes).
2 – A Autora Recorrente adquiriu os mencionados imóveis por partilha subsequente ao divórcio do seu ex-marido (…), homologado por sentença já transitada em julgado.
3 – O Réu Recorrido (…) ocupou os mencionados imóveis, alegando a existência de um contrato promessa de compra e venda celebrado com o ex-marido da Autora, o Sr. (…).
4 – Contrato esse que a Autora por si e de forma directa, nunca assinou, nem deu o seu consentimento uma vez que esse acto foi praticado pelo seu procurador e ex-marido sem lhe dar conhecimento, não obstante a procuração que tinha.
5 – Acresce, ao contrário das alíneas a) e b) dos factos considerados como não provados, se o contrato promessa fosse do conhecimento da Autora, o Réu teria provocado a execução específica do mesmo nos termos da Lei.
6 – Pelo que tais alíneas não podem ser consideradas como não provadas como o foram.
7 – Mesmo que se admita que o contrato seja válido, na sentença recorrida é dado como provado que o pagamento do preço tenha sido feito pelo Réu o que, a ter existido, com certeza que teriam sido apresentados documentos bastantes e comprovativos do mesmo, sendo que a própria sentença menciona existirem em sede de depoimento de testemunhas duas versões quanto à forma como o alegado pagamento tenha sido feito que, com o devido respeito, são antagónicas.
8 – Pelo que este facto deveria ter sido considerado como não provado.
9 – Posteriormente, o aqui Réu (…) instaurou acção de condenação contra a Autora (…) e o seu ex-marido o Sr. (…), que correu termos na Comarca de Santarém – Instância Local de Almeirim – Secção de Competência Genérica – J1 com o número 200/06.0TBALR, requerendo que fosse reconhecido o direito real de aquisição e transmissão dos vários imóveis.
10 – O Tribunal Cível decidiu julgar a acção totalmente improcedente e absolver os Réus, a aqui Autora Recorrente e o seu ex-marido, o Sr. (…), conforme sentença transitada em julgado em 25 de Junho de 2015, ou seja, ao Réu (…) nunca foi reconhecido qualquer direito de propriedade ou de usufruto sobre os citados imóveis.
11 – Não satisfeito com a mencionada sentença, posteriormente, o Réu (…), instaurou um procedimento cautelar comum junto do Tribunal da Comarca de Santarém – Instância Local de Almeirim – Secção Competência Genérica – J 1 que correu termos com o número de processo nº 111/16.0T8ALR, no qual requereu o reconhecimento do direito de propriedade sobre os mencionados imóveis por usucapião.
12 – Mas sem que a aqui Autora e Recorrente fosse parte nesses autos, ou seja, não foi Requerida, como deveria ter sido uma vez que a Autora era, pelo menos e na versão do primeiro processo judicial e tal como foi configurado pelo então Autor e aqui Réu, comproprietária dos imóveis.
13 – Processo do qual a Recorrente não foi parte.
14 – E, nos termos da Lei, era ao Autor a quem competia demandar a aqui Recorrente.
15 – Ainda para mais, quando sabia que a Autora tinha os imóveis que o Réu Recorrido pretende adquirir por usucapião, registados em seu nome!
16 – Facto do perfeito conhecimento do Réu Recorrido por força, repete-se dos autos que correram termos pelo Tribunal da Comarca de Santarém – Instância Local de Almeirim – Secção de Competência Genérica – J 1 que correu termos com o número de processo nº 111/16.0T8ALR.
17 – Pelo que é evidente e manifesta a intenção do Réu (…) em fazer seus os mencionados imóveis.
18 – Sendo certo que tem a posse dos mesmos mas posse que não poderá ser classificada como pública nem pacífica.
19 – Induzindo em erro e engano o Tribunal incluindo por onde correu termos o processo cautelar, tudo cfr. documentos de fls. … destes autos, procurando desta forma a obtenção para si de um enriquecimento ilegítimo, ilícito e prejudicando o património da Autora (…).
20 – Não é verdade que, a posse dos imóveis por parte do Réu, a mesma fosse pacífica e de boa-fé, prova disso são os recorrentes processos judiciais que têm existido e onde se discutiu o alegado direito de propriedade da Autora sobre os imóveis no processo que teve o seu início em 2006, contestado pela Autora e que teve vencimento.
21 – O Tribunal no procedimento cautelar mencionado e de fls. … destes autos, decidiu pelo reconhecimento como dono e legítimo proprietário por usucapião o aqui Réu (…) sobre vários imóveis, entre os quais os imóveis da Autora, fazendo tábua rasa de ao tempo os imóveis supra identificados também estarem registados em nome da Autora, facto como demonstrado a fls. … do seu perfeito conhecimento e que não podia olvidar.
22 – Decisão errada do Tribunal mas….
23 – Recorde-se a Recorrente não foi parte nesses autos e ….,
24 – Sentença que não lhe poderá ser oponível.
25 – A não ser por manifesta e evidente má-fé.
26 – O Réu provocou assim um prejuízo patrimonial de valor consideravelmente elevado à Autora, que teve de recorrer aos presentes autos para que o Réu proceda à entrega dos três imóveis à Autora.
27 – O Réu, por impossibilidade evidente, factual e demonstrada, nunca registou junto da competente Conservatória do Registo Predial, nem tinha como fazê-lo, os imóveis em seu nome, uma vez que, não possuía qualquer documento válido legalmente que o reconhecesse como proprietário dos mesmos.
28 – Por a posse dos imóveis em causa não ter sido pública nem pacifica por mais de 20 (vinte) anos mas, quanto muito e por dever de patrocínio, por 18 (dezoito) anos, ou seja, entre a data do contrato promessa de compra e venda, admitindo o mesmo como válido e a data de entrada em juízo no ano de 2016 (7 de Fevereiro de 2006) da acção instaurada pelo aqui Réu, entre outros, contra a aqui Autora.
29 – Pelo que os prazos da usucapião não tinham passado em benefício do Réu, como o demonstram as sucessivas acções judiciais, inclusive por si instauradas.
30 – Se eventualmente em algum momento já tivessem passado os prazos para que o Réu Recorrido pudesse ter adquirido os imóveis através da posse através do instituto da usucapião, nunca o fez.
31 – Ou melhor, quando o fez foi no pedido reconvencional junto com a contestação destes autos.
32 – Após o requerimento da Autora para que os imóveis lhe fossem entregues livres e devolutos.
33 – Pelo que era tarde demais!
34 – O Réu recorrido, ao contrário do escrito na sentença do Tribunal a quo, não ilidiu de forma plena e cabal a presunção do artigo 7º do Código do Registo Predial.
35 – Por outro lado, como legalmente admissível, poderia o Réu, se para tanto reunisse os requisitos legais admissíveis, ter feito uma Escritura de Justificação Notarial (usucapião) nos termos do artigo 116º do Código do Registo Predial e artigo 89º do Código do Notariado.
36 – A simples posse e exploração de um imóvel não significa a aquisição da propriedade do mesmo.
37 – Nem o facto de a real proprietária dos imóveis, a aqui Autora recorrente, não ser vista ou frequentar os seus imóveis, também não valida a perda do seu direito de propriedade.
38 – Não se perde a propriedade de um imóvel ou de uma coisa, só por não se ser visto no mesmo, antes pelo contrário.
39 – Até porque, repete-se, a questão da propriedade tem sido discutido pelo menos em sede judicial desde o ano de 2006.
40 – Ora, por todo o supra exposto, não pode proceder o raciocínio do Tribunal a quo, salvo melhor opinião, quando considera que o Réu é o proprietário dos imóveis dos autos pelo simples facto de explorar os mesmos e por a Autora Recorrente não ser vista regularmente nos imóveis de sua propriedade e que estão registados em seu nome.
41 – Por outro lado, consta da prova produzida que, segundo o depoimento da testemunha (…), e por seu conhecimento direito, diz que o Sr. (…), ex-marido da Autora, lhe havia dito que nunca recebeu qualquer montante do aqui Réu (…), cfr. prova grava e supra transcrita.
42. Assim sendo, considerando que no contrato de promessa de compra e venda o valor do sinal não foi pago, o mesmo contrato promessa foi incumprido pelo promitente-comprador, aqui Réu.
43 – Como tal, o mesmo nunca poderia ter sido considerado válido e servir de fundamento para os autos.
44 – Ainda acresce que, a exploração invocada dos terrenos pelo Réu (…) não corresponde à verdade.
45 – Uma vez que, durante a produção de prova do julgamento e como é referido na presente sentença que se recorre, todas as testemunhas ouvidas afirmaram saber que os prédios eram explorados pelos Srs. (…) e (…).
46 – Ou seja, não são explorados pelo aqui Réu e Recorrido (…).
47 – Pelo que, se houvesse alguém alegadamente com legitimidade e direito em invocar o direito de usucapião, seriam quem efetivamente explora os terrenos.
48 – Por todo o supra exposto, deverá ser considerado procedente o presente recurso da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
49 – A acção ser considerada procedente e, consequentemente,
50 – Ser a mesma modificada no sentido de considerar como legítima proprietária dos três imóveis em causa a aqui Recorrente (…) como consta das competentes certidões do registo predial e cadernetas prediais, tudo cfr. fls. (…) e não o Réu (…).
51 – E, consequentemente, ser o Réu, aqui Recorrido, condenado a restituir à Autora no prazo de 60 (sessenta) dias após o trânsito em julgado dos presentes autos os imóveis em causa.
52 – Ser igualmente condenado o Réu a pagar à Autora o montante anual de rendas já vencidas de € 6.600,00 (seis mil e seiscentos euros) correspondentes a uma renda mensal de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros) referente aos 5 últimos anos.
53 – Bem como igual valor mensal após a propositura da acção como feito o pedido na P. I. a fls…;
54 – Bem como ser a Autora indemnizada pelo Réu pelos prejuízos materiais que esta sofreu e que se computam em € 5.000,00 (cinco mil euros) e danos morais a estabelecer pelo Tribunal mas de montante não inferior a € 2.000,00 (dois mil euros).
55 – Serem as custas a cargo do Réu Recorrido.
56 – Tudo com as demais consequências legais.
Como é de Justiça».
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O recorrido apresentou resposta ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) erro de apreciação da matéria de facto.
ii) erro de direito na apreciação dos pressupostos constitutivos da aquisição por usucapião.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Da discussão da causa resultaram provados, com interesse para a decisão das questões enunciadas, os seguintes factos:
1) Encontra-se registada, pela Apresentação (…), de 2016/09/09, a favor de (…) a aquisição do prédio rústico denominado Herdade dos (…) – Gleba nº (…), composto por terra de pinhal e sobreiral, situado em Fazendas de Almeirim, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…).
2) Encontra-se registada, pela Apresentação (…), de 2016/09/09, a favor de (…) a aquisição do prédio rústico, denominado Herdade dos (…) – Gleba nº (…), composto por terra de pinhal e sobreiral, situado em Fazendas de Almeirim, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…).
3) Encontra-se registada, pela Apresentação (…) de 2016/09/09, a favor de (…) a aquisição do prédio rústico, denominado Herdade dos (…) – Gleba nº (…), composto por terra de pinhal e sobreiral, situado em Fazendas de Almeirim, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…).
4) No âmbito dos autos de inventário nº 108692-B/1993, foi acordado entre a Autora e (…) adjudicar os imóveis melhor descritos em 1) a 3) à Autora, acordo este homologado por sentença já transitada em julgado.
5) No dia 04 de Outubro de 1988, (…), por si e na qualidade de procurador de (…), na qualidade de 1.º Outorgantes, e o Réu, na qualidade de 2.º Outorgante, celebraram um acordo denominado “contrato de promessa de compra e venda”, nos termos do qual os primeiros prometeram vender e o segundo prometeu comprar, pelo preço de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), os seguintes prédios:
a) rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, que se compõe de terra de semeadura, vinha e pinhal, designado por Gleba nº (…), anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº (…), actualmente descrito na C.R.P. de Almeirim sob o nº (…);
b) rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, que se compõe de terra de pinhal e sobral, designado por Gleba nº (…), anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº (…), actualmente descrito na C.R.P. de Almeirim sob o nº (…);
c) rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, que se compõe de terra de pinhal e sobral, designado por Gleba (…), anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº (…), actualmente descrito na C.R.P. de Almeirim sob o nº (…);
d) rústico sito na Herdade dos Gagos, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, que se compõe de terra de pinhal e sobreiros, designado por Gleba nº (…), anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº (…), actualmente descrito na C.R.P. de Almeirim sob o nº (…);
e) rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, que se compõe de terra de pinhal e sobreiros, designado por Gleba nº (…), anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº (…), actualmente descrito na C.R.P. de Almeirim sob o nº (…);
f) rústico sito na Herdade dos (…), freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, que se compõe de terra de pinhal, designado por Gleba nº (…), anteriormente descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o nº (…), actualmente descrito na C.R.P. de Almeirim sob o nº (…).
6) Em 4 de Outubro de 1988, (…) entregou os prédios melhor descritos em 1) a 3) ao Réu.
7) O Réu entregou a (…) a totalidade do montante de € 49.879,79, correspondente ao preço acordado para a compra e venda dos imóveis referidos em 5).
8) A partir de 4 de Outubro de 1988, o Réu passou a utilizar e explorar retirando dos prédios melhor descritos em 1) a 3) os frutos ali produzidos, amanhando o prédio, ali instalando sistema de rega e, bem assim, instalação eléctrica subterrânea.
9) Nos prédios melhor descritos em 1) a 3) foram construídos dois furos para extracção de água, utilizada pelo Réu nas suas produções agrícolas.
10) O Réu edificou nos prédios melhor descritos em 1) a 3) dois armazéns agrícolas, em alvenaria, onde deposita materiais e ferramentas para a agricultura, máquinas e sistema de rega.
11) O Réu ou (…) e (…) – estes cumprindo instruções que lhes eram por aquele dadas – passou a amanhar os prédios melhor descritos em 1) a 3) desde que lhe foram entregues, regando-os a partir do poço/furo que ali existia e, bem assim, dos dois furos que ali mandou construir, quando entendia fazê-lo, da forma que bem queria e sem dar justificações ou satisfações a quem quer que fosse.
12) O Réu ou (…) e (…) – estes cumprindo instruções que lhe eram por aquele dadas – tem actuado da forma descrita em 8) a 11) à vista de toda a gente, como se dono fosse, sem nenhuma oposição de quem quer que fosse e sendo assim considerado pelos habitantes daquele local.
13) Os prédios melhor descritos em 1) a 3) encontram-se incluídos, anualmente, nos pedidos formulados pelo Réu e por (…) e (…) junto das entidades administrativas do Estado que regem a agricultura para atribuição de subsídios.
14) (…) e (…) solicitaram e contrataram, junto da "(…) – Electricidade de Lisboa e Vale do Tejo, SA", o fornecimento de energia eléctrica para os prédios melhor descritos em 1) a 3).
15) (…), nos anos de 2010 a 2015, celebrou com a "Cooperativa (…), Entreposto Comercial, CRL", contratos de mediação para fornecimento de batata para consumo, tendo a citada batata sido cultivada e retirada dos prédios melhor descritos em 1) a 3).
16) (…) requisitou junto da EDP fornecimento de energia eléctrica para os prédios melhor descritos em 1) a 3), com o consentimento do Réu.
17) Em 21 de Maio de 2015, no âmbito dos autos nº 200/06.0TBALR, que correram termos neste Juízo de Competência Genérica, foi proferida sentença nos seguintes termos: “(...), casado, vendedor ambulante, contribuinte fiscal n.º (…), residente na Rua de (…), Fazenda dos (…), Branca CCH, veio intentar a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra (…), divorciado, agricultor, contribuinte fiscal n.º (…), residente na Rua (…), n.ºs 1 a 6-A, em Paço dos (…), Almeirim, e (…), divorciada, doméstica, residente na Rua (…), n.º 16, Portimão peticionando que seja declarado que o A. é titular de um direito real de aquisição sobre 6 prédios rústicos, o qual prevalece sobre todos os direitos pessoais ou reais referentes à coisa que se encontrem registados posteriormente à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda e determinar a transmissão do direito de propriedade sobre os mesmos prédios a favor do A. Para tal alegou, em suma, que a 04/10/1988 celebrou com o RR. um contrato mediante o qual estes prometeram vender ao A. 6 prédios rústicos e estipularam que o preço para a transacção seria de esc. 10.000.000$00 (a que corresponderia actualmente a quantia de € 49.879,79), tendo o A. procedido ao pagamento da totalidade do preço até Agosto de 1989. Mais alegou, em síntese, que até à data da entrada em juízo da acção não havia sido outorgada a escritura de compra e venda, tendo o A. interpelado os RR. diversas vezes, o que nunca se prontificaram a fazer, tendo-se colocado numa situação de incumprimento definitivo. Citado, veio o primeiro R., em suma, impugnar que o A. tivesse procedido ao pagamento do preço dentro do prazo fixado, tendo assim incumprido o contrato. Mais impugnou que tivesse ocorrido qualquer interpelação, quer por escrito, quer verbalmente, não tendo o A. agendado qualquer escritura. Veio a segunda R. contestar invocando a nulidade do contrato por ter sido celebrado sem o seu consentimento e alegando desconhecer qualquer pagamento ou interpelação.(…) Pelo exposto, e tudo ponderado, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente a presente acção e, consequentemente: absolver os RR., (…) e (…) da totalidade do peticionado (...)”.
18) A sentença referida em 17) transitou em julgado em 24/06/2015.
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3.2 – Factos não provados[4]:
Com relevo para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
a) A Autora não deu o seu consentimento à celebração do acordo referido em 5).
b) O acordo referido em 5) foi celebrado sem (…) dar conhecimento do mesmo à Autora.
c) Os imóveis melhor descritos em 1) a 3), livres e devolutos, poderiam ser arrendados pela Autora por um valor mensal mínimo de € 550,00.
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4 – Enquadramento jurídico:
4.1 – Matéria de facto:
O recorrente manifesta a sua discordância com a matéria de facto apurada mas incumpre em toda a linha o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto inscrito no artigo 640º[5] do Código de Processo Civil.
Em abono da verdade, no essencial, apenas no artigo 79º[6] das alegações de recurso faz menção a qualquer suporte probatório gravado e depois, episodicamente, nas conclusões de recurso, faz apelo genérico a prestações probatórias, quando se manifesta contra o juízo decisório do julgador «a quo» quanto a questões como a do pagamento do preço e a do não decurso do prazo de usucapião, bem como ao não concordar com a factualidade referente ao tipo de posse exercida, como sucede exemplificativamente nos pontos 41[7] e 45[8] dessas conclusões. E o mesmo sucede quando pugna pela falta de poderes representativos na celebração do contrato promessa.
Não é assim minimamente perceptível quais são os pontos da matéria de facto que se encontram incorrectamente julgados, em que prova se apoia para afirmar a validade da sua proposta e qual o resultado final pretendido em termos de decisão de facto.
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Diz a exposição de motivos da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidireccional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, adiantar qual deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.
Actualmente, nos termos do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender,
deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Na realidade, tanto na motivação como nas conclusões de recurso a peça de recurso não cumpre integralmente as exigências legais e a jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça estabilizou na interpretação que «a inobservância deste ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica, como expressamente se prevê, no artigo 640º, nº 1, do NCPC, a rejeição do recurso, que é imediata, como se acentua na al. a) do nº 2 desse artigo.
Nesta sede, foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação a dirigir ao apelante. A lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (artigo 640º, nº 2)» [9] [10] [11].
Deste modo, o Tribunal «ad quem» está inibido de alterar a decisão de facto com base nos elementos probatórios gravados convocados no recurso, podendo, no entanto, modificar a decisão de facto a partir dos documentos juntos aos autos, se for o caso.
E o suporte documental convocado (registos prediais e decisões judiciais) não tem a virtualidade de promover qualquer alteração àquilo que foi decidido pela Primeira Instância, atenta a natureza específica da aquisição original por via da usucapião e as características das acções pretéritas ao nível do respectivo pedido e causa de pedir.
Deste modo, mostram-se assim consolidados todos os factos apurados pelo Tribunal de Primeira Instância.
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4.2 – Do erro de Direito:
4.2.1 – Considerações gerais sobre a aquisição por usucapião:
O direito real pode definir-se como a afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea aos fins das pessoas individualmente consideradas, caracterizando-se, assim, a relação de natureza real por um direito de domínio ou de soberania (total ou parcial) sobre a coisa em que incida, por um poder que todos os outros têm de respeitar [12] [13] [14] [15].
A recorrente contesta que estejam verificados os pressupostos conducentes à aquisição originária da propriedade (artigo 1316º do Código Civil) por via da usucapião. Dispõe o artigo 1287º do Código Civil que se entende por usucapião a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, que faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
Referindo-se à posse, Orlando de Carvalho [16] afiança que o que nela se homenageia, digamos, é menos a posse em si, do que o direito que a mesma indicia, que a prefiguração do direito a cujo título se possui. Donde a exigência, em qualquer sistema possessório, de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade.
Carvalho Fernandes salienta que «nos termos do artigo 1287º, a usucapião produz a aquisição, por efeito da posse, mantida durante certo tempo, do direito real a cujo exercício ela corresponde. A aquisição por usucapião é, assim, um efeito da posse reiterada de um direito real»[17].
A usucapião surge da união de dois elementos nucleares: a posse e o decurso do tempo. A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação de uma situação de facto, aparente, em situação jurídica, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.
A usucapião assenta, assim, na posse, ou seja, no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).
A posse é integrada por dois elementos: o corpus – seu elemento material – que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício; e o animus, que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
No dizer de Orlando de Carvalho[18] «não existe corpus sem animus nem animus sem corpus. Há uma relação biunívoca. Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa actuação de facto».
O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os elementos corpus e animus, que são definidores do conceito de posse, porquanto se só o primeiro se preenche verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.
Da intercepção entre a factualidade apurada com os elementos constitutivos da posse à luz do que dispõem os artigos 1251º e seguintes do Código Civil verifica-se que o Tribunal recorrido entendeu que existia fundamento para concluir que o terreno em discussão foi adquirido por via da usucapião.
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4.2.2 – Da boa fé e do tempo de exercício do direito real:
O Juízo de Competência Genérica de Almeirim entendeu que está demonstrado que, em 4 de Outubro de 1988, na sequência da celebração de um contrato-promessa de compra e venda, os prédios objecto dos presentes autos foram entregues ao Réu por (…) e daqui extraí que ocorreu uma traditio material dos prédios de (…) para o Réu.
Fundado na matéria descrita nos pontos 6 a 16 dos factos provados, o julgador «a quo» entendeu que os referidos actos de posse foram realizados sem oposição de ninguém e à vista de todos, que esta posse é pacífica e pública e a esse exercício possessório descrito ocorre, ininterruptamente, pelo menos, desde 4 de Outubro de 1998.
A celebração deste contrato promessa e o pagamento da totalidade do preço acordado para a compra e venda dos imóveis não obsta ao acionamento do instituto da aquisição originária e essa asserção decisória é correctamente interpretada na sentença recorrida, que procura amparo em contributos doutrinais[19] pertinentes à justa resolução do caso concreto.
No contrato-promessa de compra e venda de imóvel com tradição (válido ou nulo) presume-se que o promitente-vendedor exerce a posse correspondente ao direito de propriedade até à celebração do contrato definitivo, a não ser que se prove que a vontade das partes foi a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade[20].
Existem assim situações em que o promitente-vendedor logo abdica dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário em favor do promitente-comprador que passa, a partir de então, a agir sobre a coisa como dono (corpus) e com a intenção de actuar como titular do direito (animus), terá de se considerar que adquiriu uma verdadeira posse, que exerce portanto em nome próprio[21].
A jurisprudência mais autorizada entende que, em determinadas hipóteses, a posse exercida pelo promitente-comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa[22] [23] [24] [25].
Além da já mencionada posição de Pires de Lima e Antunes Varela, na doutrina este entendimento pode ainda ser buscado nas lições de Vaz Serra[26], Menezes Cordeiro[27], Calvão da Silva[28], Ana Prata[29], Gravato Morais[30], Durval Ferreira[31] e, bem assim, Menezes Leitão[32], embora este noutro enfoque ao valorizar diferentemente a simples tradição da coisa.
E, nesta hipótese jurisdicional, em face da argumentação fáctica apresentada na sentença recorrida, existe fundamento para concluir que, por via do contexto apurado, ao pagar integralmente o preço da venda, o possuidor encontra-se num desses casos excepcionais, quando inicia a prática actos de domínio sobre a coisa do tipo daqueles que são usualmente desenvolvidos por um proprietário,
Por se tratar de uma prova difícil [fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente], tanto no nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, como no precedente histórico do parágrafo 1 do artigo 481º do Código de 1867, o legislador estabeleceu uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).
Na opinião de Pires de Lima e Antunes Varela «justifica-se esta presunção, dado que é difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente; e este pode, inclusivamente, não existir. Cabe, portanto, àquele que se arroga a posse provar que o detentor não é possuidor»[33]
Em função das dissidências interpretativas existentes, o Supremo Tribunal de Justiça editou um Acórdão de uniformização de jurisprudência em 14/05/96[34], que firmou o entendimento que «podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa». Desde então, de modo pacífico, está marcadamente intuído que quem tem o poder de facto, ou o “corpus”, está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente. Esta linha de pensamento tem sido mantida por diversos arestos[35].
Na verdade, prescreve aquele dispositivo que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 1257º[36], conforme dispõe o nº 2 do artigo 1252º do Código Civil.
Estão, assim, preenchidos os elementos constitutivos da existência de corpus e de animus.
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Assim, neste momento, a questão judicanda resume-se a saber se existe um quadro de boa fé no exercício da posse e se se mostra decorrido o prazo para a aquisição prescritiva.
Relativamente à matéria da boa fé continua actual a lição de Pires de Lima e Antunes Varela. Estes autores afiançam que «a ignorância de que se lesa o direito de outrem (a ausência de má fé) resulta, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição: mas a lei não exige que assim seja sempre. O possuidor pode saber que o direito não é seu e estar convencido, apesar isso, de que, exercendo-o, não prejudica o verdadeiro titular. Ou pode mesmo estar convencido de que não existe nenhum direito de terceiro, que seja lesado com a sua posse»[37].
Quanto à tradição, segundo Menezes Cordeiro, nela «é possível isolar dois elementos: por parte do antigo possuidor, a acção de «dar», de transferir e, por parte do adquirente, a acção de «receber», de aceitar a transferência»[38].
Assim, confrontado com a entrega voluntária do dono e com o acto de aceitação da parte do promitente-comprador, não existe motivo para criticar o entendimento da Primeira Instância quanto à existência de posse de boa fé. Prevê o artigo 1296º do Código Civil que não havendo registo do título nem de mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé. E a regra geral é a de que a contagem do prazo se inicia a partir do momento da constituição de posse boa para usucapião.
Estamos assim perante um prazo de quinze anos e este período temporal já se mostrava perfectibilizado ao tempo da propositura da acção registada sob o nº 200/06.0TBALR, atendendo à data da efectiva entrega da propriedade por parte do promitente vendedor.
Mesmo que assim não fosse e se entendesse que a posse era de má-fé, o prazo constitutivo da usucapião também já se mostrava excutido, quando ocorreu a decisão de reivindicar por parte da titular inscrita no registo predial.
E aqui não pode ser invocada a existência de um passado de litigância com susceptibilidade para infirmar os efeitos da posse. Na realidade, os pedidos e as causas de pedir entre ambas as providências jurisdicionais eram distintas (acção nº 200/06.0TBALR). Naquela primeira acção era solicitado o reconhecimento de um direito real de aquisição e transmissão dos vários imóveis e o decaimento nessa pretensão não tem qualquer repercussão na posse ou na contagem do tempo necessário para usucapir. E a providência cautelar posterior não altera substancialmente a qualidade da posse.
Em função disso – e bem, o Tribunal «a quo» considerou que o Réu se encontra na posse desses terrenos, os quais se encontram registados a favor da aqui recorrente, por tempo suficiente à aquisição através da usucapião e a falta de poderes representativos na outorga da promessa de venda ainda que estivesse comprovada não afectaria minimamente o enquadramento jurídico efectuado.
Na realidade, através da posse tutela-se a exteriorização do direito, independentemente da averiguação sobre a sua titularidade, fundada em razões do valor económico e social autónomo do instituto e não na regularidade formal do itinerário negocial antecedente.
A usucapião, forma de aquisição originária do respectivo direito de propriedade, está na base de toda a nossa ordem imobiliária, valendo por si, em nada sendo prejudicada pelas vicissitudes registais. Nada podendo fazer contra ela o titular inscrito no registo[39].
E o titular aparente pode tornar-se titular verdadeiro se a sua situação se protrair por períodos demarcados por lei[40]. E, nesse contexto, os actos materiais desenvolvidos pelos filhos do Réu não turvam a posse do reconvinte, dado que estes são meros intermediários[41] e exercem meros actos de detenção em nome do adquirente originário.
Quanto à não utilização da justificação notarial prevista no artigo 116º do Código do Registo Predial, cumpre afirmar que esse não é um meio obrigatório ou exclusivo tendente à demonstração do direito sub judice.
Borges de Araújo confirma que «na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer. O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis»[42]
A escritura de justificação notarial, documento autêntico, constitui um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, permitindo aos interessados titular factos jurídicos relativos a imóveis que não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de forma escrita, como a usucapião ou a acessão.
Todavia, a par deste mecanismo jurisdicional, existe a acção comum que é igualmente idónea – e até mais segura para efeitos do comércio jurídico e da estabilidade das relações reais – a reconhecer a existência do fenómeno da usucapião.
Em adição, em termos substantivos e processuais, o pedido de reivindicação formulado pelo titular inscrito não é operativo para produzir efeitos suspensivos ou paralizadores da usucapião quando o tempo de posse do beneficiário da usucapião já tinha decorrido e se mostrava perfectibilizada (embora não declarada judicialmente) a aquisição prescritiva dos terrenos objecto do litígio.
Em suma, a usucapião, que aproveita a todas as pessoas que possam adquirir, tem de ser judicialmente ou extrajudicialmente invocada para produzir os seus efeitos, e estes, após a sua invocação, retrotraem-se à data do início da posse, tudo se passando, como se o direito tivesse sido adquirido nesse momento[43].
Os demais pedidos formulados não estão suportados em factualidade que permita julgar procedentes as pretensões de pagamento de rendas vencidas nos últimos cinco anos e da indemnização formulada, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
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V – Sumário:
1. A usucapião, que aproveita a todas as pessoas que possam adquirir, tem de ser judicialmente ou extrajudicialmente invocada para produzir os seus efeitos, e estes, após a sua invocação, retrotraem-se à data do início da posse, tudo se passando, como se o direito tivesse sido adquirido nesse momento.
2. Existem situações em que o promitente-vendedor logo abdica dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário em favor do promitente-comprador que passa, a partir de então, a agir sobre a coisa como dono (corpus) e com a intenção de actuar como titular do direito (animus).
3. Em termos substantivos e processuais, o pedido de reivindicação formulado pelo titular inscrito não é operativo para produzir efeitos suspensivos ou paralizadores da usucapião quando o tempo de posse do beneficiário da usucapião já tinha decorrido e se mostrava perfectibilizada a aquisição prescritiva dos terrenos objecto do litígio.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso apresentado, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas ao cargo da recorrente, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 28/02/2019

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Isabel Matos Peixoto Imaginário

Maria Domingas Simões

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[1] No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 137/97, de 11/03/1997, processo nº 28/95, in www.tribunalconstitucional.pt pode ler-se que a concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso e não como um entrave burocrático à realização da justiça.
[2] Por isso, o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida). Essas conclusões devem ser idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso, permitindo apreender as questões de facto ou de direito que o recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o Tribunal superior cumpre solucionar (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt).
[3] Não se ordenou a correcção das alegações ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 639º do Código de Processo Civil porque, infelizmente, na prática judiciária nacional, essa determinação acaba por não ter o resultado condizente com o teor da decisão de reformulação e com a intenção legislativa.
[4] A sentença recorrida deixou ainda consignado que «o Tribunal não teve em consideração quaisquer outros factos alegados na petição inicial ou na contestação por os mesmos consubstanciaram mera impugnação dos factos alegados pela Autora, conceitos de direito, factos conclusivos ou se mostrarem irrelevantes para a boa decisão da causa, em face da causa de pedir dos presentes autos».
[5] Artigo 640.º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
[6] (79) O (…) disse-me que comprou aquilo a um senhor das fazendas, ou pois o (…) começou a amanhar aquilo, diz que comprou aquilo ao (…), o (…) diz que nunca recebeu dinheiro nenhum do (…) …Eu falo com eles os dois, não tenho problemas nenhuns (...) – Gravação n.º 20180604103921_2705296_2871741, minutos 03:36 a 03:58.
[7] (41) Por outro lado, consta da prova produzida que, segundo o depoimento da testemunha (…), e por seu conhecimento direito, diz que o Sr. (…), ex-marido da Autora, lhe havia dito que nunca recebeu qualquer montante do aqui Réu (…), cfr. prova gravada e supra transcrita.
[8] (45) Uma vez que, durante a produção de prova do julgamento e como é referido na presente sentença que se recorre, todas as testemunhas ouvidas afirmaram saber que os prédios eram explorados pelo Sr. (…) e Sr. (…).
[9] Acórdão de 14/07/2016, in www.dgsi.pt.
[10] No mesmo sentido pode ser consultado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2016, in www.dgsi.pt, que sublinha que «para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640º, nº 1, alíneas a) e c), do CPC. Não tendo o recorrente cumprido o ónus de indicar a decisão a proferir sobre os concretos pontos de facto impugnados, bem andou a Relação em não conhecer da impugnação da matéria de facto, não sendo de mandar completar as conclusões face à cominação estabelecido naquele nº 1 para quem não os cumpre».
[11] Na esteira da mais avalizada jurisprudência [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2015, in www.dgsi.pt], também entendemos que «não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado».
[12] Pires de Lima, Lições de Direitos Reais, pág. 50.
[13] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pág. 351.
[14] Henrique Mesquita, Direitos Reais, pág. 10.
[15] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, pág. 72.
[16] Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 122, pág. 67.
[17] Lições de Direitos Reais, pág. 201-202.
[18] Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 122, pág. 104.
[19] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1987, páginas 6-7, defendem que «O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. (…) São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse».
[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/03/2017, in www.dgsi.pt.
[21] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/10/2015, in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/09/2012, in www.dgsi.pt.
[23] Esta posição pode ainda ser perscrutada nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/09/08 e de 12/03/09, in www.dgsi.pt.
[24] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2012, in www.dgsi.pt.
[25] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2015, in www.dgsi.pt.
[26] Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 109º-314 e ano 114º-20.
[27] Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed., págs. 76 e 77.
[28] Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11ª edição, pág. 231, nota 55.
[29] Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, págs. 832 e seguintes.
[30] Gravato de Morais, “Contrato Promessa em Geral - Contratos promessa em especial”, págs. 245 a 247.
[31] Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., págs. 473 e seguintes.
[32] Menezes Leitão, Direitos Reais, 4ª ed., pág. 123.
[33] Código Civil Anotado, vol. II, 2ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra 2011, pág. 8.
[34] Publicado no DR II série, de 24/06/96.
[35] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/1996 e de 10/11/2005, do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/12/2013 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/02/2014 e 16/12/2015, todos in www.dgsi.pt e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/97 e de 02/05/99, respectivamente, in CJ STJ, T5 – 37 e CJ STJ, T2 – 126.
[36] Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou, nos termos do citado artigo.
[37] Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição revista e actualizada – reimpressão (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 21.
[38] Direitos Reais, Lex, Lisboa 1993, pág. 524.
[39] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/11/2013, in www.dgsi.pt.
[40] Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 106.
[41] Artigo 1252.º (Exercício da posse por intermediário):
1. A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem.
2. Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º.
[42] Prática Notarial, 2001, pág. 339.
[43] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 602.