Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
442/16.0GGSTB.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IRRELEVÂNCIA
Data do Acordão: 05/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - O dever de obediência à ordem legítima para que o condutor se submeta às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool decorre da disposição do art. 152º do C. Estrada, que comina com desobediência simples a desobediência respetiva, sem necessidade de qualquer advertência ou cominação das autoridades de fiscalização do trânsito.

II - Mostrando-se preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº1 al. a) do C.Penal, independentemente do facto impugnado, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto concretamente deduzida pelo recorrente é irrelevante, pois mesmo que procedesse integralmente a solução jurídico-penal seguida na sentença recorrida em nada se alteraria, pelo que é inadmissível aquela impugnação por irrelevância.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum singular que correm seus termos no Juízo Local Criminal de Setúbal (Juiz 5) do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal o MP deduziu acusação contra PP, solteiro, pedreiro, nascido em 18/06/1973, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência do artigo 348.°, nº. 1, alínea a), e 69.°, n. 1, alínea c), do Código Penal ("ex vi" artigo 152.°, n. 1, alínea a) do Código da Estrada).

2- Realizada audiência de julgamento, o arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência do artigo 348.°, n. 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 152.°, n. 1, alínea a), do Código da Estrada, na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros), perfazendo o montante global de 390 (trezentos e noventa euros);

3. – Inconformado, o arguido vem recorrer da sentença condenatória, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«Em conclusão
1.Vem o presente recurso interposto da Sentença pela qual o Douto Tribunal a quo julgou procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público, assim, condenado o Arguido/Recorrente PP da prática de um crime de desobediência, em autoria material e na forma consumada, p.p. pelo artigo 348°, n. 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 152°, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada.

2. Da matéria de fato assente como provada que decorre do texto da Douta Sentença, entende o Recorrente que:

I- Os factos foram julgados incorrectamente, face à produção de prova realizada em sede de audiência de julgamento.

II- Da prova produzida não resulta que o recorrente tenha agido com o propósito de incorrer no crime de desobediência.

III. Decorre dos depoimentos prestados pelas testemunhas FT e FJ que os mesmos não foram consentâneos quanto aos procedimentos efectuados com vista à interceção da viatura conduzida pelo ora recorrente e no que tange à notificação de que o Recorrente incorria na prática de crime de desobediência caso não efectuasse o teste qualitativo do álcool no sangue.

IV-Só a testemunha FT afirmou que foi explicado ao ora recorrente que se recusasse a fazer o teste do álcool que incorreria em crime de desobediência.

V- Sendo que tal versão nunca foi confirmada pela testemunha FJ.

VI- As testemunhas, MM, e MA os quais prestaram um depoimento convergente, vieram confirmar, a primeira testemunha, que a expressão utilizada pelo Senhor Militar da GNR foi:

"Está bem. Então se o Senhor não quer fazer o teste, nós encontramo-nos em tribunal." E, a segunda, que em virtude de não se ter logrado a realização do teste qualitativo, os Senhores Militares devolveram os documentos ao ora Recorrente, dizendo que: "(, . .) as coisas não iriam ficar assim, (. .. )", nunca tendo referido que o Recorrente tenha sido advertido que incorria no crime de desobediência.

VII- Não se logrou provar que o Recorrente, à data da prática dos factos havia tomado consciência de um concreto dever a cumprir

VIII- Agindo, assim, com dolo, uma vez que apenas foi informado que caso não efectuasse o teste qualitativo, voltaria a encontrar os Senhores Militares no Tribunal, nunca tendo sido efectivamente notificado que incorreria em crime de desobediência.

Nestes termos e nos demais de direito, sem prescindir do Douto suprimento de V. Exas, deve o presente recurso ser apreciado em conformidade e, em consequência ser revogada a Sentença recorrida, sendo substituída por outra que confirme a absolvição do crime pelo qual o Recorrente foi condenado pelo Tribunal a quo.»

4. – Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da total improcedência do recurso.

5. - Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

6. - Transcrição (parcial) da sentença recorrida.
« 2.1. Factos provados

Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos [consignando-se que não se fazem constar quaisquer factos constantes da contestação porque se restringem a negar os que constam da acusação]:

1.No dia 11 de Dezembro de 2016, entre as 14h45 e 15h15, o arguido conduzia o veículo automóvel com a matrícula -HJ pela E.M. 533 sem que tivesse colocado o cinto de segurança;

2. Ao cruzar-se na referida via com uma viatura da GNR e tendo os militares FT e FJ vislumbrado o cometimento de tal infracção ao Código da Estrada, estes procederam imediatamente ao seguimento da viatura conduzida pelo arguido;

3. Tendo abordado o arguido, para acto de fiscalização, após este ter feito cessar a marcha da correspondente viatura numa estrada de terra batida existente junto à Rua da Escola Primária, em Lagameças, e logo após ter saído desse veículo;

4. Nesta referida fiscalização e por exalar um forte odor a bebidas alcoólicas, foi o arguido advertido que na qualidade de condutor teria que realizar teste qualitativo para detecção de álcool no sangue através do ar expirado;

5. Ao que logo respondeu que não realizaria qualquer exame por se encontrar na sua propriedade;

6. Perante tal conduta foi o mesmo advertido que incorria na prática do crime de desobediência caso recusasse submeter-se ao dito exame, ao que manteve a sua recusa;

7. Não obstante ter tomado plena consciência de tal ordem e de saber que lhe devia obediência, que a mesma lhe tinha sido regularmente comunicada e que emanava de autoridade competente, devidamente uniformizada e em exercício de funções, o arguido não lhe obedeceu e quis furtar-se à acção da justiça, não se submetendo ao teste de pesquisa de álcool no sangue quando bem sabia que havia sido visto a conduzir a dita viatura em via pública, assim faltando à obediência devida àquela ordem, o que quis e fez;

8. Agiu de modo voluntário livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal;

Mais se apurou com relevância que:
9. O arguido não tem condenações registadas no certificado de registo criminal que lhe respeita.

10. Vive com a companheira numa casa dos seus pais.

11. Exerce actividade laboral pela qual aufere mensalmente a quantia de € 500 a € 600.

12. A mulher do arguido não exerce actividade profissional.

13. O arguido tem o 6.° ano de escolaridade enquanto habilitações literárias.

14. O arguido é reputado como sendo uma pessoa trabalhadora e impecável.
*
2.2. Factos não provados
Com relevância para a decisão a proferir ficaram por demonstrar o seguinte facto [consignando-se que não se fazem constar quaisquer factos constantes da contestação porque se restringem a negar os que constam da acusação]: A viatura conduzida pelo arguido foi interceptado para acto de fiscalização.
*
2.3. Motivação de Facto
(…)
III. Fundamentação de Direito
3.1. Enquadramento jurídico-penal do tipo incriminador cuja prática é imputada ao arguido.

No tocante ao crime de desobediência imputado ao arguido, resulta do artigo 348.°, n. 1, alínea a), do Código Penal, que «quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples».

O tipo objectivo do supracitado crime é constituído pelo acto de falta à obediência devida, sendo apenas devida a ordem ou mandado emitidos por entidade competente para o efeito, regularmente comunicada ao sujeito destinatário. Nestes termos, «o crime de desobediência tanto pode ser cometido por acção como por omissão. No primeiro caso, dado que nenhum resultado faz parte da factualidade típica - pune-se a actividade que contrarie uma ordem ou mandado legítimos e tão-só isso ¬estaremos perante um crime formal. No segundo, sanciona-se o simples deixar de fazer aquilo que foi legitimamente ordenado ou mandado, independentemente das consequências ou do resultado: omissão pura».

Assim, são pressupostos deste tipo legal o incumprimento de uma ordem formal e materialmente legal, dimanada de autoridade competente, sendo certo que a ordem e advertência têm que ser validamente comunicadas por aquela e recebidas adequadamente por este e, bem assim, devendo a cominação da falta de acatamento da ordem resultar certificada legalmente como desobediência.

O tipo subjectivo deste ilícito criminal pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14° do Código Penal.
*
3.2. Subsunção dos factos ao tipo incriminador
Cumpre ter em atenção que o artigo 152.°, n.1, alínea a), do Código da Estrada, preceitua que «devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas, os condutores», sendo que o n. 5 inclusivamente estatui que a recusa de submissão a essas provas implica o cometimento de um crime de desobediência.

No caso em apreciação cumpre salientar que o arguido conduzia um veículo automóvel em via pública, a EM 533 e, posteriormente, a Rua da Escola Primária, ou seja, o arguido, por referência ao contexto de tempo mencionado na acusação pública, era condutor para o efeito da disposição enunciada no parágrafo antecedente, estando, por isso, onerado com a obrigação de se submeter à mencionada prova para verificação do estado de influenciado pelo álcool.

É de reter que é indiferente, no que tange à solução do caso concreto, o local em que o arguido é abordado pela autoridade policial, pois que se afere que é indubitável que conduziu na via pública e, ademais, é inequívoco que essa abordagem ocorreu precisamente na sequência de ter conduzido naquelas circunstâncias. Daí resulta plenamente aplicável o artigo 152.°, n. 1, do Código da Estrada, por via do respectivo artigo 2.°, n.1, sempre sendo de considerar que o n. 2 deste artigo alarga o respectivo âmbito de aplicação daquele diploma legal às vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público.

Ora, como se vinha dizendo, o arguido conduziu em via pública e, reitera-se, estava obrigado à realização do referido teste de pesquisa de álcool no sangue, o qual lhe foi, por isso, legitimamente ordenado por autoridade competente (militares da GNR), acontecendo que aquele se recusou a realizá-lo, sendo que a recusa resulta cominada por disposição legal como desobediência simples, sendo que em todo o caso PP foi advertido para tal consequência.

Ademais, o arguido actuou a título de dolo directo, tal como definido no artigo 14.°, n.1, do Código Penal.

Não resultam verificadas quaisquer causas de exclusão da culpa e/ou da ilicitude.
Impõe-se, pois, concluir pela procedência da acusação pública.
(…) »
Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso

II. Fundamentação

1. É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Cumprindo suficientemente os ónus impostos pelos nºs 3 e 4 do art. 412º nº3 do CPP, o arguido vem pôr em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto na parte em que julgou provado, sob o nº 6 da factualidade provada, que o arguido foi advertido que incorria na prática do crime de desobediência caso recusasse submeter-se ao teste qualitativo para detecção de álcool no sangue através do ar expirado, concluindo dever ser absolvido do crime de desobediência que lhe vem imputado, sem suscitar qualquer outra questão.

Sucede, porém, que a factualidade impugnada é irrelevante para o preenchimento do tipo legal de desobediência p. e p. pelo art. 348.°, n. 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 152.°, n. 1, alínea a), do Código da Estrada, pelo qual vem condenado, pelo que sempre aquela impugnação é igualmente irrelevante sendo, nessa medida, inadmissível.

2. Na verdade, começando pela questão substantiva, o crime de desobediência previsto no art. 348º do C. Penal é do seguinte teor, no que aqui importa:

“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

2. (…).

Significa isto, que o crime de desobediência ali previsto pressupõe que o dever de obediência incumprido tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição (al. a) do nº1); ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado (al. b) do mesmo nº1 do art. 348º do C., Penal.

No caso presente, é o artigo 152º do Código da Estrada que, depois de estabelecer no seu nº1 alínea a) que os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas, determina no nº3 que “as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência”, cominando, assim, com a desobediência simples a falta de obediência devida à ordem legítima para que o condutor se submeta às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool.

Deste modo, o dever de obediência à ordem legítima para que o condutor se submeta às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool decorre da disposição do art. 152º do C. Estrada, que comina com desobediência simples a desobediência respetiva, sem necessidade de qualquer advertência ou cominação das autoridades de fiscalização do trânsito.

3. Por outro lado, em face do descrito sob os nºs 4, 5, 7 e 8, da factualidade provada, que não são impugnados pelo recorrente, não se suscitam dúvidas de que a ordem foi legitimamente proferida e comunicada pelos militares da GNR no exercício das suas funções de fiscalização de trânsito, pelo que, independentemente do facto impugnado, mostram-se preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº1 al. a) do C.Penal, pelo qual vem condenado, tal como explicado na sentença recorrida.

Assim sendo, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto concretamente deduzida pelo recorrente é irrelevante, uma vez que a solução jurídico-penal seguida na sentença recorrida em nada se alteraria mesmo que procedesse integralmente, pelo que é inadmissível aquela impugnação por irrelevância, conforme temos entendido em situações similares.

Com efeito, os factos que o recorrente considere terem sido erroneamente julgados hão de respeitar a alguma das questões relativas à decisão sobre a culpabilidade a que se reporta o art. 368º do CPP, ou à determinação da sanção a que se refere o art. 369º, ambos do CPP, de modo que a procedência da impugnação determine solução diferente a dar a alguma dessas questões, para que a mesma possa considerar-se relevante. Como diz Damião da Cunha[1], “… o ponto de facto deve ter correspondência num «ponto» do dispositivo da sentença (nas questões que nela estão contidas). Pelo que (…) o «ponto de facto» que é impugnado (por ser considerado incorrectamente decidido) é aquele que, se tivesse sido correctamente decidido (na óptica do recorrente), teria conduzido à alteração da decisão (absolutória ou condenatória) ou à alteração da medida da pena.”.

4. Concluímos, pois, como referido supra, que sendo irrelevante a impugnação em matéria de facto, quer do ponto de vista da decisão da questão da culpabilidade, quer da determinação da sanção, que não é sequer suscitada na motivação de recurso, é a mesma impugnação inadmissível.

Assim sendo, uma vez que o arguido e recorrente não fundamenta o seu recurso em qualquer outra ordem de razões, improcede o mesmo totalmente.

III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, PP, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida – art. 513º do CPP e art. 8º nº5 do RCP

Évora, 7 de maio de 2019

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)

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[1] José Manuel Damião Da Cunha, “ O Caso Julgado Parcial. Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, p. 529