Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2095/16.6T8SLV.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 03/26/2020
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: I.- A reforma de 2013 suprimiu a fase de interrupção da instância, que era a antecâmara da deserção, pelo que, ocorrendo falta de impulso processual do exequente, a instância executiva extingue-se ope legis, ou seja, por mera força da lei, sem necessidade de despacho judicial.
II.- Tal como no processo declarativo, também na ação executiva se exige a verificação de dois prossupostos, um de natureza objetiva (seis meses de falta de impulso processual) e outro de natureza subjetiva (a imputação dessa falta de impulso ao exequente).
III.- Contudo, considerando os gravosos efeitos que decorrem da deserção da instância e em obediência ao princípio do contraditório (artº 3º/3, do CPC), não obstante a aparente automaticidade da deserção (artº 281º/5), deve o tribunal dar oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a questão, sob cominação de nulidade (artº 195º/1 e 2, do CPC).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Procº 2095/16.6T8SLV.E1


Decisão Singular


Recorrente: (…)


Recorrido: (…)

*
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Execução de Silves – Juiz 1, corre termos ação executiva para cobrança coerciva de quantia certa, proposta por (…) contra (…), tendo, com data de 12-12-2019, sido proferido o seguinte despacho:

Repetir diligências já frustradas não tem fundamento.
Notificada, a Exequente nada disse ou requereu ao Tribunal.
Estando o presente processo a aguardar o impulso processual da Exequente há anos, declara-se extinta a presente instância, por deserção, nos termos dos artigos 277.º, alínea c) e 81.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
Notifique-se.
Oportunamente, arquive-se.
*

Não se conformando com o decidido, a exequente recorreu do despacho, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2, do CPC:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que declarou extinta a instância, por deserção, nos termos dos artigos 277º, alínea c) e 281º, nº 5, do C.P.C.

2. Por requerimento da Exequente, apresentado nos autos em 21 de julho de 2017, foi requerida a penhora dos bens móveis que se encontrassem na residência do Executado e, ainda, a quota deste na sociedade (…) – Clínica Médica e Dentária, Unipessoal, Lda.

3. A Exequente, aqui recorrente, nunca foi notificada pela Sr.ª Agente de Execução, do resultado das requeridas diligências.

4. Em 19 de Novembro de 2019, foi proferido despacho, do qual constava, nomeadamente, o seguinte: “Qual o resultado das diligências requeridas pela Exequente a 21 de julho de 2017? Notifique-se a Sr.ª Agente de Execução para informar o processo.

5. Na sequência de tal despacho pronunciou-se a Sr.ª Agente de Execução nos seguintes termos:

“(…), Agente de Execução nomeada nos presentes autos vem, no seguimento da notificação, com referência 115008595, informar V. Ex.ª do seguinte:

A AE não procedeu à penhora da quota na sociedade “(…) – Clínica Médica e Dentária, Unipessoal, Lda.”, conforme requerido pela Exequente, uma vez que o Executado não é, nem nunca foi, titular de tal quota, conforme se verifica pela Certidão Comercial junta.

Relativamente à penhora de bens móveis na residência do Executado, as tentativas levadas a cabo na morada correspondente à Urbanização (…), Lote 8, -I, Alto da (…), em Portimão, revelou-se infrutífera, uma vez que o Executado nunca foi encontrado, assim como não foi encontrado na morada correspondente ao domicílio fiscal.

Das consultas às bases de dados disponíveis, resultam várias moradas do Executado, não tendo siso possível apurar qual delas corresponde à actual residência do mesmo, conforme se verifica pelos documentos juntos.

Não obstante, a AE vai tentar, uma vez mais, a realização da penhora de bens móveis no domicílio fiscal do Executado e, caso apure que o mesmo ali reside e seja oferecida resistência à realização da diligência, requererá oportunamente a Exa. o auxilio da força pública.”

6. A Exequente não foi notificada do teor do requerimento antecedente apresentado pela Srª Agente de Execução, sendo certo também que não havida sido, anteriormente, informada do resultado das diligências desenvolvidas pela Sr.ª Agente de Execução.

7. Subsequentemente a tal informação, sem que da mesma a Exequente tivesse sido notificada, e sem que o Tribunal aferisse se tal notificação havia sido concretizada, foi de imediato proferida a Sentença de que ora se recorre.

8. Para além disso, resulta da informação prestada pela Srª Agente de Execução que esta não concretizou a diligência requerida (penhora de bens móveis da residência do executado) na residência indicada pela exequente, e que consta do requerimento executivo.

9. Assim, se por um lado não foram desenvolvidas as diligências requeridas pela Exequente à Sr.ª Agente de Execução, por outro, sempre teria a Exequente que ser expressamente notificada do resultado daquelas outras desenvolvidas, o que nunca aconteceu.

10. Em face do sobredito não poderia o Tribunal a quo declarar extinta a instância, encontrando-se a sentença ferida de nulidade, constituindo uma decisão surpresa, expressamente proibida nos termos do artigo 3º, nº 3, do CPC.

Termos em que deverá a douta sentença recorrida ser revogada e, em sua substituição ser proferido despacho que ordene a notificação à Exequente da informação prestada pela Sr.ª Agente de Execução, assim se fazendo a costumada justiça.


*

Foram colhidos os vistos por via eletrónica.

*
Atendendo a que “...a questão a decidir é simples...”, nos termos previstos no artº 656º do CPC, o mérito do pleito irá ser apreciado e julgado mediante decisão singular do relator, a proferir de imediato.
*
A questão que importa decidir é a de saber se estão reunidos os pressupostos de que depende a deserção da instância.
*
A matéria de facto a ponderar e que resulta dos atos processuais praticados nos autos é a seguinte:
1.- Em 03-10-2016 foi proposta ação executiva para pagamento de quantia certa no valor de € 13.016,49.
2.- Em 12-10-2016 foram consultadas as bases de dados pela agente de Execução, designadamente:
- Segurança Social e Autoridade Tributária;
3.- na mesma data foram solicitadas penhoras das contas bancárias do executado.
4.- em 09-12-2016 foi consultada a Conservatória do Registo Predial;
5.- Em 21-12-2016 foi consultada a base de dados da Segurança Social.
6.- Em 28-12-2016 foi consultada o Registo Automóvel.
7.- Em 07-01-2017 foi consultada a Segurança Social e o Registo Comercial.
8.- Em 17-03-2017 a AE notificou o exequente nos seguintes termos:
Fica(m) V. Exa(s). notificado(s) para o término da FASE 1 nos autos em referência. Para o efeito refere-se abaixo, em informações complementares, o resultado das consultas efetuadas nos termos do artigo 749.º do Código de Processo Civil (CPC) ao registo informático das execuções e dos bens penhoráveis identificados ou do facto de não se ter identificado quaisquer bens penhoráveis.
No caso de terem sido identificados bens penhoráveis, a execução prossegue, sem prejuízo do disposto no 751.º do Código de Processo Civil, com a penhora desses bens exceto se, no prazo de 5 dias a contar desta notificação, o exequente:
a) Declarar que não pretende a penhora de determinados bens imóveis ou móveis não sujeitos a registo identificados;
Ou
b) Desistir da execução.
Não tendo sido encontrados bens penhoráveis, o exequente deve indicar bens à penhora no prazo de 10 dias, sendo penhorados os bens que ele indique.
*
Não tendo sido possível determinar a existência de bens penhoráveis, deve proceder à sua indicação no prazo de DEZ DIAS, nos termos do artigo 750º do Código do Processo Civil (CPC), requerendo o que tiver conveniente.
9.- Em 21-07-2017 o exequente nomeou os seguintes bens à penhora:
- (…) todos os bens móveis encontrados na residência do executado.
- Mais requer seja penhorada a quota titulada pelo executado, na sociedade “(…) – Clínica Médica e Dentária, Unipessoal, Lda.”.
10.- Em 19-11-2019 foi proferido o seguinte despacho:
Qual o resultado das diligências requeridas pela Exequente a 21 de Junho de 2017?
Notifique-se a Sr.ª Agente de Execução para informar o processo.
Notifique-se a Exequente de que, nada sendo dito ou requerido em 10 dias, a instância será julgada deserta.
11.- Em 26-11-2019 foram consultadas:
- A Segurança Social;
- A Autoridade Tributária;
- O Registo Informático de Execuções;
- Registo Comercial;
- Registo Automóvel;
- Pedidas penhoras de saldos bancários.
12.- Em 26-11-2019 a AE enviou notificação à exequente do seguinte teor:
Cara (…),
Envio pesquisas à SSocial e Autoridade Tributária.
Penhora de que bens?
13.- Em 26-11-2019 a AE informou o Tribunal como ordenado em 19-11-2019 do seguinte:
(…), Agente de Execução nomeada nos presentes autos vem, no seguimento da notificação, com Referencia 115008595, informar V.Exª do seguinte:
A AE não procedeu à penhora da quota na sociedade "(…) – Clínica Médica e Dentária, Unipessoal, Lda.", conforme requerido pela exequente, uma vez que o executado não é, nem nunca foi, titular de tal quota, conforme se verifica pela certidão comercial junta.
Relativamente à penhora de bens móveis na residência do executado, as tentativas levadas a cabo na morada correspondente à Urbanização (…), lote 8, 5º-I, Alto das (…), em Portimão, revelou se infrutífera, uma vez que o executado nunca aí foi encontrado, assim como não foi encontrado na morada correspondente ao domicílio fiscal.
Das consultas às bases de dados disponíveis, resultam várias moradas do executado, não tendo sido possível apurar qual delas corresponde à actual residência do mesmo, conforme se verifica pelos documentos juntos.
Não obstante, a AE vai tentar, uma vez mais, a realização da penhora de bens móveis no domicilio fiscal do executado e, caso apure que o mesmo ali reside e seja oferecida resistência à realização da diligência, requererá oportunamente a V. Exa. o auxílio da força pública.
ED
14.- Em 12-12-2019 foi proferido o seguinte despacho:
Repetir diligências já frustradas não tem fundamento.
Notificada, a Exequente nada disse ou requereu ao Tribunal.
Estando o presente processo a aguardar o impulso processual da Exequente há anos, declara-se extinta a presente instância, por deserção, nos termos dos artigos 277º, alínea c) e 281º, nº 5, do Código de Processo Civil.
Notifique-se.
Oportunamente, arquive-se.
***
Conhecendo.
A deserção da instância no processo executivo está prevista nos artigos 277º, al. c) e 281º/5, do CPC.
Considera-se deserta a instância executiva “independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
A reforma de 2013 suprimiu a fase de interrupção da instância, que era a antecâmara da deserção, pelo que, ocorrendo falta de impulso processual do exequente, a instância executiva extingue-se ope legis, ou seja, por mera força da lei, sem necessidade de despacho judicial.
“A negligência há de ser do exequente; por isso, se a paragem do processo se deve a falta de atos processuais do agente de execução, ela não é imputável ao exequente, porquanto este não é mandatário do exequente (cfr. o artigo 163º EOSAE), pelo que não causa extinção da instância por deserção.
Já a mera paragem do processo e ida à conta em consequência da execução se encontrar parada por culpa do exequente por mais de dois meses, não dita a extinção da execução” – Rui Pinto in A Ação Executiva, 2019, pág. 958.
Tal como no processo declarativo, também na ação executiva se exige a verificação de dois prossupostos, um de natureza objetiva (6 meses de falta de impulso processual) e outro de natureza subjetiva (a imputação dessa falta de impulso ao exequente).
Contudo, considerando os gravosos efeitos que decorrem da deserção da instância e em obediência ao princípio do contraditório, (artº 3º 3 do CPC), não obstante a aparente automaticidade da deserção (artº 281º/5) deve o tribunal dar oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a questão (Neste sentido, cfr. Ac. TRL de 26-07-2017, Isaías Pádua, Processo 522/05.7TBAGN.C1, que comina a ausência do contraditório com a nulidade artigo 195º/1 e 2, do CPC).

Delimitado assim o atual regime da deserção da instância, há que averiguar se, no caso dos autos, a execução esteve suspensa por mais de 6 meses por negligência do exequente.
Está provado que, em 21-07-2017 o exequente nomeou bens à penhora (facto 9).
Em 19-11-2019 foi proferido despacho a ordenar que se indagasse, junto da sra. Agente de Execução, qual o resultado das diligências por si desenvolvidas para penhorar os bens que haviam sido nomeados (facto 10).
Mas também ordenou a notificação da exequente para que, nada por ela sendo requerido em 10 dias, a instância seria julgada deserta (facto 10).
Deste pequeno excurso se conclui logo que o tribunal a quo não tinha, em 19-11-2019, conhecimento se os bens nomeados pela exequente haviam ou não sido penhorados porque procurou obter essa informação junto da sra. Agente de Execução.
Mas presumiu que este facto era do conhecimento da exequente, uma vez que no mesmo passo lhe concedeu 10 dias para nomear outros bens à penhora, requerer a venda dos bens penhorados, desistir da instância ou pedir a extinção da execução pelo pagamento, v.g. (só estas possibilidades se contêm dentro da expressão “nada sendo dito ou requerido em 10 dias”).
Mas os autos não demonstram que a exequente tivesse esse conhecimento, uma vez que nem o juiz, titular do processo, o tinha na data em que foi proferido o despacho.
Se nos autos nada documentava qual o resultado das diligências de penhora desenvolvidas pela sra. Agente de Execução, tal circunstância equivale a entender que também a exequente nada sabia sobre tais diligências.
Assim sendo, deveria o tribunal a quo aguardar pela resposta da sra. Agente de Execução e, se as diligências para penhora se tivessem revelado infrutíferas, então, sim, deveria a exequente ser notificada para dizer o que tivesse por conveniente acerca do prosseguimento da execução.
Decorridos que fossem 6 meses sem que a exequente desse impulso processual aos autos, podendo fazê-lo, ocorreria então a deserção da instância, sem necessidade de despacho judicial, desde que à exequente tivesse sido concedida a possibilidade de se pronunciar sobre a deserção.
Mas, como se referiu, não foi o que aconteceu, pelo que a apelação é procedente e o despacho deve ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução, com a notificação à exequente das informações prestadas pela sra. Agente de Execução.

Neste sentido, Ac. TRL de 10-01-2019, Pedro Martins, Procº 385/09.3TBVPV-A.L1-2:

I.- Se a exequente, representada por advogado, depois de notificada, pela AE, para tomar posição quanto a uma questão necessária para a penhora de um bem, nada diz durante quase 11 meses, pode-se concluir pela existência da negligência da sua parte em permitir o andamento do processo. Tanto mais se, depois disso, foi de novo notificada para vir aos autos requerer o que tivesse por conveniente, sob pena de extinção por falta de impulso processual e, depois de notificada do resultado das diligências inúteis que então requereu, de novo nada disse durante quase outros 6 meses, apesar de ter escrito que o iria fazer, só quebrando a inacção com a interposição do recurso do despacho que julgou a execução extinta por deserção (arts. 277/-c e 281/5, ambos do CPC).
II- Nem sempre as partes têm de ser notificadas para se pronunciarem sobre a eventualidade de se considerar que o seu comportamento revela negligência no andamento do processo; de qualquer modo, no caso, a exequente foi-o e nada disse quanto à questão, o que contribui para a qualificação do seu comportamento como negligente.
III- Tal como nem sempre há um dever de prevenção consubstanciado em dar conhecimento às partes da possibilidade da extinção da instância por deserção; o caso dos autos é exemplo de uma situação em que esse dever não existe, pois que a exequente, representada por advogado, não podia deixar de saber que a AE estava à espera de uma sua tomada de posição para poder dar andamento à execução.
IV- Apesar de a competência para verificar a extinção da execução (pois que apesar de ela ser automática e não depender de despacho, tem de ser comunicada, o que pressupõe a sua verificação) por deserção não competir, em primeira linha, ao juiz, mas sim ao AE, não se justifica que seja revogado um despacho judicial a constatar essa extinção, se o AE não o tiver feito entretanto.

***

Sumário:

(…)


***

DECISÃO.

Em face do exposto, julgo procedente a apelação e revogo o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução com a notificação à exequente das informações prestadas pela sra. Agente de Execução.
Sem custas.
Notifique.

***
Évora, 26-03-2020

José Manuel Barata (relator)