Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1146/18.4T8FAR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
SANAÇÃO
VALOR PROBATÓRIO
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA PERICIAL
ACIDENTE DE TRABALHO
CULPA DA ENTIDADE PATRONAL
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A arguição extemporânea de uma nulidade processual no recurso interposto para a Relação, não permite o aproveitamento do ato, uma vez que a nulidade se considera sanada.
2- Numa situação de colisão entre prova testemunhal e prova pericial destinada a apurar se a sinistrada perdeu a visão, como consequência das lesões sofridas em acidente de trabalho, deve prevalecer a prova pericial, atendendo aos conhecimentos técnicos, qualificados e especializados dos médicos que observaram a recorrente, sendo certo que nenhuma das testemunhas revelou ter conhecimentos técnicos para apreciar a situação.
3- Verifica-se uma situação de responsabilidade agravada da empregadora, ao abrigo do artigo 18.º da LAT, quando se apure que a empregadora conhecia os riscos de um determinado produto químico, nomeadamente que no manuseamento da embalagem que o continha, tal produto poderia atingir os olhos da trabalhadora que estivesse a realizar tal ação e não implementou como medida de segurança apta e adequada a evitar tal risco, a utilização de óculos de proteção pela trabalhadora (sumário da relatora).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
B intentou a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra a Santa Casa da Misericórdia de … e …Seguros, S.A., pedindo que se condenem as RR. a pagar-lhe a quantia de € 750 000,00, bem assim a quantia de € 1 147,00, e a da pensão a que tem direito em virtude das sequelas com que ficou em decorrência do acidente de trabalho, sendo a responsabilidade agravada no caso da 1ª R..
Alegou, em breve síntese, que no dia 29 de fevereiro de 2016, quando exercia as suas funções profissionais por conta e ordem da 1ª R., abriu um recipiente de detergente, tendo sido, nesse momento, atingida pelo produto na face e olhos, o que lhe causou perda de visão, passando a depender de terceira pessoa para se deslocar e realizar as tarefas do dia a dia e a sofrer de muitas dores, desconforto e grande tristeza. Mais referiu que o acidente se ficou a dever a culpa da entidade patronal que tendo conhecimento da perigosidade do produto, não lhe facultou qualquer equipamento de proteção (óculos, máscaras ou luvas).
Citado o Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Faro, o mesmo deduziu pedido de reembolso contra a … Seguros, S.A., peticionando o pagamento da quantia de € 5 373,44, acrescida de juros vincendos, desde a notificação, alegando para o efeito que, em decorrência do acidente de trabalho, no período compreendido entre o dia 24 de agosto de 2016 e 21 de setembro de 2017, pagou à A. aquela quantia, a título de subsidio de doença.
Contestou a 1ª R., arguindo a sua ilegitimidade passiva, por ter a sua responsabilidade infortunistica transferida para a 2.ª R.. Adicionalmente, alegou que a perda da visão da A. nada teve que ver com o acidente, porquanto já anteriormente a sinistrada apresentava graves lesões nos dois olhos.
Acrescentou que o detergente não era composto por substâncias corrosivas, que no seu local de trabalho a A. não teve contacto com ácidos, que tinha implementadas boas práticas quanto ao modo de utilização dos produtos químicos usados na lavandaria, planos de higienização através de fichas técnicas e de segurança onde constavam as características e cuidados a ter no manuseamento dos produtos, indicadas por empresa especializada no aconselhamento e venda de soluções de limpeza, as quais a A. conhecia por lhe ter sido dada formação, por tais indicações se encontrarem expostas na lavandaria, estando ainda os produtos condicionados de forma individual e rotulados. Mais referiu que os produtos usados na lavandaria o são através de um sistema automático de doseamento pelo que o único contacto que existe com o mesmo é no momento da substituição da embalagem, altura em que se aconselha o uso de luvas e óculos de proteção. Concluiu que o alegado acidente, a ter existido, ocorreu por culpa da A.. Impugnou os alegados danos.
O Instituto de Segurança Social, I.P. deduziu, mais tarde, pedido de reembolso contra as RR., pedindo a condenação de ambas a pagarem-lhe a quantia de € 10 298,18 acrescida das pensões que se vencerem no decurso da ação, alegando para o efeito que, por ter sido considerada incapaz de forma permanente para o exercício da sua profissão, foi atribuída à A., em 30 de novembro de 2017, pensão de invalidez, no valor de € 500,73, com efeitos a partir de 22 de setembro de 2017.
Também a seguradora contestou o pedido formulado pela A., impugnando a extensão das sequelas, alegando que anteriormente ao acidente já a A. sofria de perda de visão bilateral, com amaurose do olho direito por trombose da artéria central da retina com atrofia ótica e glaucoma do olho esquerdo com trombose da artéria temporal inferir com escotoma arciforme superior. No mais, impugnou os danos invocados e suscitou incidente do valor da ação.
Com idênticos fundamentos, a seguradora contestou os pedidos formulados pelo Instituto de Segurança Social, I.P..
Procedeu-se ao saneamento do processo, tendo sido julgada improcedente a suscitada exceção dilatória da ilegitimidade passiva da 1ª R..
Selecionaram-se os factos já assentes, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
No que concerne ao suscitado incidente do valor da ação, fixou-se tal valor em € 751.147,30, sem prejuízo de, em decorrência do estatuído no artigo 120.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, se proceder à correção de tal valor.
Foi elaborado apenso para fixação da incapacidade para o trabalho, no âmbito do qual foi decidido que a A. se encontra afetada de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 3%, desde a data da alta, ocorrida em 24 de agosto de 2016.
Após a realização da audiência final, foi proferida sentença, com a seguinte decisão:
«Em face do supra exposto julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:
1. declaro que:
a) Bailó Jaló, em 29 de fevereiro de 2016, sofreu acidente de trabalho;
b) em decorrência do qual, após a alta ocorrida em 24 de agosto de 2016, ficou com incapacidade permanente parcial de 3%:
2. consequentemente:
a) condeno a … Seguros, S.A. a pagar-lhe o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 188, 72 (cento e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, atualmente de 4%, desde o dia seguinte ao da alta e até efetivo e integral pagamento;
b) condeno a …. Seguros, S.A. a pagar-lhe a quantia de € 32, 80 (trinta e dois euros e oitenta cêntimos) acrescida dos juros de mora, à taxa legal atualmente de 4%, desde o dia 19 de junho de 2019 e até efetivo e integral pagamento;
c) absolvo as RR. do demais peticionado pela A.
4. julgo improcedentes os pedidos formulados pelo ISS, I.P. e, consequentemente, absolvo as RR. dos mesmos.
(…)
Fixo o valor da ação em € 18 108,20 (cfr.art.120º do CPT, tabela anexa à Portaria 11/2000, 13/01 e art. 299º nº 2 do CPC). (…)»
Não se conformando com o decidido, veio a A. interpor recurso da sentença, extraindo das suas alegações, as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«Do valor da ação:
1. A A. e ora recorrente deduziu, na petição inicial, um pedido no valor de 751.147,30€
2. Na sentença recorrida foi fixado à ação o valor de 18.108,20€ nos termos do argo 120º do CPT.
3. A A. coloca em causa os valores que lhe são atribuídos na decisão proferida a qual não transitou em julgado.
4. Logo, deve aplicar-se a regra geral do argo 297º nº 1 do CPC e o valor da ação deverá ser o valor peticionado pela A.
Da incapacidade:
5. Foi atribuída à recorrente uma incapacidade permanente parcial de 3%.
6. A recorrente não aceita a IPP de 3%.
7. A recorrente ficou quase totalmente invisual como consequência do acidente de trabalho.
8. Os depoimentos gravados em audiência mostram que a recorrente deixou de fazer a sua vida normal e independente.
9. Ficou impossibilitada de realizar tarefas minuciosas que antes do acidente fazia, tais como coser e escrever.
10. Passou a depender da ajuda de terceiros e deixou de conseguir andar sozinha na rua.
11. As respostas dos Srs. Peritos presentes na junta médica são breves e não são compreensíveis nem do ponto de vista da medicina nem do ponto de vista do senso comum.
12. Os documentos médicos que a recorrente juntou à p.i. não apontam no sentido da alegada “cura”.
13. A Junta Médica não decorreu dentro dos parâmetros da legalidade, transparência e imparcialidade.
14. Não se cumpriram os princípios constantes do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no Processo 9778/2007-4, de 09-01-2008 (in www.dgsi.pt) nem dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo nº 44783 de 15 Junho de 2000 e nº 48335 de 7 Março de 2002.
15. Os Srs. peritos médicos não examinaram a sinistrada, não lhe permitiram falar, nem manifestaram interesse pelo seu caso clinico.
16. O auto não faz menção a quaisquer elementos clínicos concretos.
17. O auto da junta médica é excessivamente sintético.
18. O mesmo auto limita-se a reproduzir conclusões sem fundamento.
19. A recorrente não dispõe de qualquer informação sobre o Sr. perito que a representou nem houve qualquer contacto com o mesmo.
20. A recorrente desconhece a idoneidade do exame que lhe foi realizado.
21. A recorrente desconhece se existem porventura causas de impedimento de realização do referido exame, nomeadamente se eventualmente os mesmos Srs. Peritos já terão realizado algum serviço para a Ré Seguradora.
22. Esse desconhecimento consubstancia uma preterição de formalidades essenciais, que conduz à nulidade do ato, nos termos do argo 195º do CPC.
23. Deve ser declarada nula a realização da Junta Médica e respetivo auto, bem como os atos subsequentes.
24. A sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine a realização de novo exame por Junta Médica e, desta vez, com profissionais da especialidade de oftalmologia.
25. Deve ser revogado o despacho proferido concluso em 27/02/2020 (Refª 116095339) que declarou que a Autora, “após a alta ocorrida em 24 de Agosto de 2016 ficou afetada de IPP de 3%”.
Da perda de visão:
26. A sentença considerou não provado que a Recorrente tenha perdido a visão – facto não provado 1.
27. E fundamenta tal consideração com base no depoimento de diversas testemunhas.
28. Acontece que é precisamente com base no depoimento dessas mesmas testemunhas que concluímos que a Recorrente perdeu a visão.
29. A transcrição da gravação dos depoimentos é clara.
30. A prova produzida aponta no sendo inverso ao da decisão.
31. A sentença deve ser revogada de forma a que seja proferida nova decisão de acordo com o depoimento das testemunhas.
32. A sentença é nula nos termos do Argo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil.
Da responsabilidade da entidade patronal:
33. A sentença não considerou provada a responsabilidade da Ré entidade patronal.
34. E baseou esta conclusão no depoimento da testemunha O…, a qual ocupa um cargo de responsabilidade.
35. Mas esta testemunha explicou o elevado grau de dificuldade na substituição dos recipientes dos produtos corrosivos, tendo afirmado que chegou a ter que recorrer à ajuda de um martelo.
36. E admitiu que esse procedimento gerava o risco de a embalagem trepidasse e o líquido corrosivo transbordasse.
37. A gravação dos atos da audiência documenta esse depoimento.
38. A Ré entidade patronal não agiu de forma a evitar o risco, nos termos do Argo 15.º nº 2 da Lei nº 102/2009 de 10 de Setembro.
39. A entidade patronal contratou uma empresa a fim de garantir que estavam asseguradas as regras de segurança no trabalho.
40. Essa empresa recomendou o uso de luvas para o manuseamento dos produtos químicos existentes no sector em que a Recorrente laborava.
41. Não recomendou máscara nem proteção para os olhos.
42. Mas era obrigação da entidade patronal verificar que o equipamento recomendado não era suficiente.
43. O facto de se recomendar o mínimo não obriga a entidade patronal a proceder apenas de acordo com o mínimo e não a impede de fazer mais.
44. O representante (da) empresa que garantia a segurança no trabalho – Sr. J…, técnico - declarou em audiência que é a entidade patronal que deve avaliar se tem que tomar outras medidas além das recomendadas.
45. Deve concluir-se pela culpa da entidade patronal, revogando a sentença recorrida que a ilibou de qualquer responsabilidade e condenando-a a ressarcir a A. pelos danos sofridos.
46. A Ré seguradora é responsável nos termos do contrato que mantém com a entidade patronal.
Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida nos termos supra expostos.»
Contra-alegou a seguradora, concluindo que o recurso não merece provimento.
A 1.ª instância admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
No mesmo despacho, a 1.ª instância, fez constar o seguinte:
«Consigno que, tal como do auto decorre, presidi à junta médica, dela nunca me ausentei, pelo que, com conhecimento de causa, afirmo que o referido no art.15º das conclusões de recurso não corresponde ao que na mesma se passou.»
Após a subida do processo à Relação, foi observado o preceituado no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processe do Trabalho.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
Não foi oferecida resposta.
Mantido o recurso e dispensados os vistos, com a anuência dos Exmos. Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso sobre as quais importa decidir, são as seguintes:
1.ª Nulidade da sentença.
2.ª Nulidade do exame por junta médica e atos processuais subsequentes.
3.ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
4.ª Discordância com a IPP fixada.
5.ª Existência de responsabilidade agravada da entidade empregadora.
6.ª Valor da ação.
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III. Fundamentação de facto
A 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 29 de fevereiro de 2016, B… exercia funções sob as ordens, direção e fiscalização da Santa Casa da Misericórdia de …, com sede em ….
2. Auferia a retribuição anual de € 8 986,54.
3. À data a Santa Casa da Misericórdia de … tinha a sua responsabilidade infortunistica relativa a acidentes de trabalho da A. transferida para a … Seguros – Companhia de Seguros Reais, S.A. através da apólice 01628081, na modalidade de prémio variável, declarando o valor referido em 2.
4. O Centro Distrital da segurança social pagou a B… a quantia de € 5 373,55 relativa a subsidio de doença respeitante ao período compreendido entre 24 de agosto de 2016 e 21 de setembro de 2017.
5. O Centro Nacional de Pensões pagou à A. a quantia de € 10 298,18 a título de pensão de invalidez relativa ao período de setembro de 2017 a setembro de 2019.
6. No dia 29 de fevereiro de 2016, quando a A. exercia funções de ajudante de lar e abria um recipiente de detergente que era corrosivo para lhe inserir lança que o permitiria ligar à máquina de lavar foi atingida na face e nos olhos pelo produto.
7. Em decorrência do referido em 6. a A. sofreu queimaduras das pálpebras e córneas bilateralmente.
8. Após a alta, ocorrida em 24 de agosto de 2016, em decorrência do referido em 6., a A. ficou com entropion da pálpebra inferior esquerda – as pestanas renasceram com a extremidade virada para o interior do olho -, determinante de incapacidade permanente parcial de 3%.
9. O referido em 8. causa à A., pelo menos, grande desconforto.
10. A. despendeu a importância de 32,80€ a título de deslocações obrigatórias ao Tribunal e para realização do exame médico.
11. Desde o acidente a A. foi observada por profissionais de saúde.
12. Em data anterior a 29.02.2016 a A. já sofria de amaurose do olho direito por trombose da artéria central da retina com atrofia ótica e no olho esquerdo, glaucoma com trombose da artéria temporal inferior com atrofia ótica com escotoma arciforme superior.
13. Desde 2011 que a A. era seguida Centro Hospitalar de Faro para tratamento de glaucoma de ângulo aberto avançado.
14. A A. foi admitida ao serviço da R., Santa Casa da Misericórdia de …, por contrato de trabalho, escrito, celebrado em 11.01.2003, para desempenhar inerentes à categoria de ajudante de lar e centro de dia, tendo, cerca da um ano antes dos factos, ficado afeta aos serviços de lavandaria.
15. A R. entidade patronal sabia as características dos produtos usados na lavandaria.
16. Para manuseamento dos produtos de limpeza, a R. entidade patronal facultou à A. luvas.
17. Para o mesmo efeito a R. não facultou à A. óculos de proteção.
18. A A. conhecia as máquinas e utensílios, bem assim, a natureza dos produtos que eram por si utilizados no exercício das funções e a forma de manuseamento dos mesmos.
19. A A. sabia que a empregadora tinha implementados os “planos de higienização” juntos a fls.301 vº a 303 e 342 dos autos, onde constavam as características dos produtos, dosagens e meios de segurança ou equipamento de proteção individual a adotar.
20. Tal documentação tinha sido elaborada pela sociedade comercial certificada, denominada “… Produtos de Higiene, Lda.”, especializada no fornecimento e aconselhamento e venda de soluções integradas de limpeza e higienização profissional eficientes, tendo em conta as características e exigências individuais dos produtos, assim como os requisitos de segurança na sua utilização.
21. O plano referido em 19. no que à lavandaria respeita, indicava os produtos a usar, o modo de utilização, a quantidade de roupa a lavar em cada lavagem, aconselhando como equipamento de proteção individual adequado o uso de luvas.
22. A A. conhecia aquela ficha técnica e de segurança por ter recebido formação pela mencionada empresa, incluindo quanto à substituição de embalagens, mas também por se encontrarem expostas na lavandaria.
23. Os produtos existentes na lavandaria estão devidamente acondicionados, individualizados e rotulados com referência às suas características e perigosidade, através de imagens e símbolos.
24. Na lavandaria os produtos eram utilizados através de um sistema automático de doseamento, sendo que o único contacto com o produto ocorria quando a embalagem de produto era substituída na máquina altura em que, após quebra do lacre da embalagem a colocar, a trabalhadora inseria tubo/lança retirado da embalagem vazia e a colocava no bocal da nova embalagem.
25. Tal sistema automático visava o mínimo de contacto das trabalhadoras com os produtos.
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E julgou não provados os seguintes factos:
1. Em decorrência do referido em 6. dos factos provados a A. tenha perdido a visão.
2. Em decorrência do referido em 6. dos factos provados a capacidade de visão da A. oscile entre as sombras nos ambientes com mais luz e a escuridão nos dias de tempo nebuloso ou nos ambientes de pouca luz, nada conseguindo distinguir.
3. Em decorrência do referido em 6. dos factos provados a A. tenha passado a depender de terceira pessoa para se deslocar e para a realização de grande parte das tarefas da rotina diária.
4. Em decorrência do referido em 6. dos factos provados a A. tenha passado a sentir uma grande tristeza.
5. Em decorrência do referido em 6. dos factos provados a A. tenha que se submeter a uma cirurgia (transplante) por forma de eventualmente recuperar alguma capacidade de visão.
6. Em decorrência do acidente referido em 6 dos factos provados a A., em consultas, tratamentos e exames médicos, tenha despendido 1.147,30€ (mil cento e quarenta e sete euros e trinta cêntimos).
7. Por força do entrópion a A. tenha grandes dores.
8. Os detergentes usados pela R. causassem danos nas roupas.
9. A R. Santa Casa da Misericórdia desconhece que a A. tivesse problemas de saúde nos olhos.
10. A R. Santa Casa da Misericórdia tenha instruído a A. a usar óculos e máscara de proteção quando manuseasse produtos químicos.
11. O referido em 6. dos factos provados tenha ocorrido porque a A., por distração, não cumpriu as regras de segurança determinadas pela R. no manuseamento e substituição de produtos de limpeza.
12. A A. sempre tenha estado afeta à lavandaria.
13. A R. não tenha entregue à A. máscara.
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Ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, adita-se aos factos assentes, o seguinte facto, que resulta dos elementos dos autos, que não é controvertido, e que é relevante:
26- A A. nasceu em 24-01-1963.
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IV. Nulidade da sentença
A recorrente veio arguir a nulidade da sentença, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Alega, no essencial, que a prova produzida permite considerar demonstrado que a recorrente perdeu a visão. Logo, conclui, verifica-se a nulidade da sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão, porquanto a decisão que julgou que a recorrente não perdeu a visão fundamenta-se em depoimentos de testemunhas que afirmaram o contrário.
Analisemos a questão.
De harmonia com o normativo inserto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Na Constituição da República Portuguesa consagra-se no artigo 205.º, a obrigação de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente.
A fundamentação legalmente exigida visa dar a conhecer as razões de facto e de direito que o tribunal considerou e que originaram uma determinada conclusão que subjaz à decisão.
Daí que os fundamentos constituam as proposições em que assenta o silogismo da decisão.
Por isso, a sentença que enferma de vício lógico que a compromete é nula.
Todavia, este vício não é de frequente verificação. O mesmo só ocorre em situações em que se mostre claro que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto[2].
Dito de outro modo, para que se verifique tal vício tem de existir uma contradição lógica entre os fundamentos e a decisão tomada. Aqueles apontam num sentido e a decisão é tomada em sentido diverso ou divergente.
Ora, no caso vertente, foi considerado não provado que a recorrente tenha perdido a visão em decorrência do descrito no ponto 6 dos factos provados.
Na motivação da convicção, encontra-se a justificação para o decidido, que resultou da livre apreciação da prova – artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
A decisão de direito prossegue na lógica do decidido.
Por conseguinte, não se verifica qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.
Poderá a reapreciação da prova, que mais adiante será realizada, alterar (ou não) a decisão quanto ao facto respeitante à perda da visão da sinistrada em decorrência do acidente. Contudo essa é uma questão diferente e que só faz sentido no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, porque tal como a sentença se apresenta, não há fundamento para considerar verificada a situação que é apresentada pela recorrente para justificar a arguida nulidade.
Concluindo, julga-se improcedente a arguida nulidade da sentença.
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V. Nulidade da junta médica
Nas alegações e conclusões do recurso, é arguida a nulidade da junta médica realizada.
Tal nulidade emerge, segundo a recorrente, da circunstância da mesma não ter decorrido dentro dos parâmetros da legalidade, transparência e imparcialidade e por terem sido preteridas formalidades essenciais – artigo 195.º do Código de Processo Civil.
No despacho de admissão do recurso, ficou consignado pela Meritíssima Juíza a quo:
«Consigno que, tal como do auto decorre, presidi à junta médica, dela nunca me ausentei, pelo que, com conhecimento de causa, afirmo que o referido no art.15º das conclusões de recurso não corresponde ao que na mesma se passou.»
Vejamos!
É sabido que as nulidades podem ser processuais ou da sentença.
As nulidades processuais resultam de atos ou omissões que foram praticados antes de ser proferida a sentença, e que implicaram um desvio da tramitação prevista pela lei, podendo traduzir-se na prática de um ato proibido, na omissão de um ato prescrito na lei ou na realização de um ato que a lei prevê, mas sem o cumprimento do formalismo exigido.
Já as nulidades da sentença derivam de atos ou omissões que o juiz pratica na sentença e são arguidas e conhecidas pelo tribunal ad quem.
A arguição de nulidade processual deve ser apresentada perante o juiz do processo e, eventualmente, da decisão proferida sobre tal nulidade poderá haver recurso.
Ora, nos presentes autos, a recorrente ao arguir a nulidade do exame por junta médica está a arguir uma nulidade processual. E fá-lo, no âmbito do recurso interposto.
Será o tribunal de 2.ª instância competente para conhecer da arguida nulidade?
No Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2, págs. 513 e 514, escreveu o Prof. Alberto dos Reis, a propósito do Código de Processo Civil de 1876, o seguinte: “as nulidades de que o interessado tivesse conhecimento depois da publicação da sentença ou acórdão final, e que fossem anteriores a essa publicação, só poderiam ser apreciadas por ocasião do recurso interposto da mesma sentença ou acórdão. A razão deste desvio era a seguinte; entendia-se que, sendo as nulidades anteriores à sentença, a procedência delas podia ter como efeito a anulação da sentença e não se considerava admissível que o juiz tivesse o poder de anular a sua própria decisão”.
Contudo, a propósito do Código de Processo Civil comentado (com preceitos semelhantes aos atuais, sobre esta matéria), escreveu o Prof. Alberto dos Reis, no seguimento:
“O código atual não consignou este terceiro desvio, porque não aderiu à tese de que ao juiz não é lícito anular a sua própria sentença. Pelo contrário, depois de enunciar os princípios de que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666º), acrescenta que o julgador pode suprir nulidades, retificar erros materiais, esclarecer dúvidas e reformar a sentença quanto a custas e multa”.
Também o Código de Processo Civil atualmente em vigor, admite a possibilidade do juiz, mesmo depois de proferida a sentença (não transitada em julgado), apreciar as questões indicadas pela lei, nomeadamente suprir nulidades - artigo 613.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Proferida a sentença, apenas fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – n.º 1 do aludido artigo 613.º.
Deste modo, há que concluir que a apelante deveria ter reclamado a arguida nulidade processual perante o tribunal onde a mesma ocorreu (1.ª instância), no prazo legal.
Contudo, não o fez.
Assim, ao vir arguir a identificada nulidade processual em sede de recurso, verifica-se a erro na forma processual usada[3].
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-11-2005, Revista 04S4452, entendeu-se que embora a nulidade processual arguida nas alegações de recurso de apelação, não fosse a forma correta e, por isso, se verificasse um erro na forma processual usada, tal não invalidava, em princípio, que o ato processual que se quis praticar fosse aproveitado, se tal fosse possível, de harmonia com o princípio de economia processual, do qual se extrai uma regra de máximo aproveitamento dos atos processuais. Daí que se tivesse decidido, que os autos deveriam descer à 1.ª instância para que aí se conhecesse a nulidade processual invocada.
Todavia, para que seja possível o aproveitamento do ato, mostra-se necessário que a arguição da nulidade tenha sido feita atempadamente, ou seja, que a mesma não se encontre sanada.
De harmonia com o disposto no artigo 199.º do Código de Processo Civil, as nulidades previstas no artigo 195.º do mesmo Código (preceito onde se integraria a nulidade arguida no processo), devem ser arguidas:
a) Se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas e enquanto o ato não terminar;
b) Se a parte não estiver presente, por si ou por mandatário, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse tomar conhecimento, agindo com a devida diligência.
No caso dos autos, a recorrente esteve presente no exame por junta médica e foi notificada do resultado do exame por junta médica em 04-02-2020, ou seja, no mesmo dia da sua realização.
É certo que veio arguir a nulidade do exame por junta médica no recurso que interpôs da decisão que fixou a incapacidade, proferida no apenso A.
Sucede que também aí a arguição de nulidade processual é feita em sede de recurso e não de requerimento dirigido ao juiz do processo, e, além disso, o recurso foi interposto no dia 09-03-2020, pelo que tal arguição sempre seria extemporânea.
Tal recurso não foi admitido.
Quanto ao recurso da sentença, que agora se aprecia, o mesmo foi interposto em 13-05-2020.
Por conseguinte, quanto à arguição da nulidade processual, há muito havia decorrido o prazo legal de dez dias para que o vício do ato processual fosse invocado (cfr. artigo 149º do Código de Processo Civil).
Destarte, não tendo a identificada nulidade processual sido arguida tempestivamente, a mesma considera-se sanada.
E, estando a nulidade sanada, não é possível o aproveitamento do ato da sua arguição, por extemporâneo.
Sem embargo, sempre se dirá que dos elementos constantes do apenso para fixação da incapacidade resulta que a nomeação da perita da sinistrada foi feita ao abrigo do n.º 5 do artigo 139.º do Código de Processo do Trabalho, inexistindo quaisquer elementos objetivos que permitam suscitar a mínima dúvida sobre a idoneidade e imparcialidade da senhora perita, que prestou juramento legal. Ademais, consta do auto de exame médico que a Meritíssima Juíza a quo esteve presente a presidir à diligência, assim como se encontra registado que os senhores peritos observaram a sinistrada e consultaram os registos clínicos constantes do processo, sendo certo que não foi invocada a falsidade do auto de exame por junta médica.
Pelo exposto, nada indicia a existência de qualquer ilegalidade, ou falta de transparência e imparcialidade no decorrer do exame por junta médica, ou a preterição de qualquer formalidade essencial.
*
VI. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente impugna a decisão que julgou não provado o seguinte facto:
- Em decorrência do referido em 6. dos factos provados a A. tenha perdido a visão
(ponto 1 dos factos não provados).
Para justificar a sua discordância com o decidido, invoca os depoimentos prestados pelas testemunhas M…, T…, A…, V… e O….
Indica com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso e especifica qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a materialidade em questão.
Observado, assim, o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, nada obsta à apreciação e conhecimento da impugnação.
Ouvimos integralmente os depoimentos das testemunhas identificadas supra.
A testemunha M… referiu que antes do acidente a recorrente via, dando como exemplo que, por vezes, tinham dificuldade em ler o nome dos utentes do lar que estava escrito na roupa, porque já estava um pouco sumido, e perguntavam à recorrente qual era o nome escrito e ela lia e dizia-lhes. Também mencionou que tem convivido com a recorrente, após o acidente, e que se apercebe que ela não vê, pois quando vão ao café tem de lhe partir o bolo, porque ela não consegue ver para o fazer. Mais referiu que a recorrente foi contra uma porta de alumínio, porque não vê, embora não tenha esclarecido se presenciou tal situação ou se a mesma lhe foi relatada.
Em relação à testemunha T…, a mesma esclareceu que foi colega da recorrente, tendo trabalhado com a mesma na lavandaria do lar. Também mencionou que deixou de trabalhar para o lar antes do acidente. Referiu a testemunha que anteriormente ao acidente a recorrente tinha glaucoma na vista direita e que colocava umas gotas. Na vista esquerda, aparentemente não tinha nada, parecia ver bem, pois fazia todas as tarefas que a testemunha fazia, nomeadamente coser e escrever. Após o acidente, referiu que a recorrente deixou de ver e tem de ser ajudada e acompanhada pela filha ou por alguém. A própria testemunha já a tem acompanhado, quando a filha da recorrente não pode.
A testemunha A… foi colega da recorrente até julho/agosto de 2016. Desde então mantêm uma relação de amizade. Esclareceu a testemunha que, não obstante não trabalhasse na lavandaria do lar, ia ao local muitas vezes durante o dia de trabalho. Pelo seu conhecimento, a recorrente, antes do acidente, embora tivesse um problema num dos olhos, fazia o seu trabalho normalmente. Depois do acidente, a recorrente não via e pedia ajuda para tudo. Estava sempre dependente de outras pessoas. Não explicou a testemunha, com clareza, se estava a referir-se ao período imediatamente a seguir ao acidente até à data da alta, ou se pretendia referir-se ao momento atual (tendo, naturalmente, em conta a data da prestação do depoimento). O relato da testemunha suscitou-nos esta dúvida.
Quanto à testemunha V…, que foi colega da recorrente cerca de 14 anos, referiu a mesma que antes do acidente a recorrente tinha um problema no olho direito e necessitava de colocar umas gotas. Por vezes, pedia à testemunha para lhe colocar as gotas. No entanto, afirmou que a recorrente via normalmente e fazia uma vida normal, explicando que até faziam caminhadas em conjunto. Depois do acidente, apercebeu-se que a recorrente não consegue andar sozinha, tem de levar sempre uma pessoa com ela, senão cai. A testemunha acompanhou-a uma vez a Faro, para realização de um exame médico à barriga, e, segundo as suas próprias palavras, teve de a ajudar «a tirar as coisas dela todas», porque a recorrente não o conseguia fazer sozinha.
Finalmente, a testemunha O…, que é a encarregada geral e trabalha para a 1.ª Ré há cerca de 34 anos, referiu que é do seu conhecimento que antes do acidente a recorrente já tinha problemas num dos olhos e que colocava gotas no mesmo. Todavia, não se notava que a recorrente tivesse problemas de visão, pois escrevia e cosia roupa. A recorrente só lhe falou do acidente alguns dias ou uma semana após o mesmo ter ocorrido. Mencionou, ainda, que já tem encontrado a recorrente na rua e que esta demonstra ter dificuldades em ver, explicando-lhe que tem de andar sempre acompanhada e, de facto, a testemunha sempre a encontrou acompanhada.
Ora, a análise e conjugação da prova invocada pela recorrente, permite-nos concluir que, antes do acidente, a recorrente tinha problemas e doenças oculares.
O conhecimento revelado está de acordo com os factos demonstrados nos pontos 12 e 13 dos factos assentes e que são, respetivamente, os seguintes:
- Em data anterior a 29.02.2016 a A. já sofria de amaurose do olho direito por trombose da artéria central da retina com atrofia ótica e no olho esquerdo, glaucoma com trombose da artéria temporal inferior com atrofia ótica com escotoma arciforme superior.
- Desde 2011, que a A. era seguida Centro Hospitalar de Faro para tratamento de glaucoma de ângulo aberto avançado.
Após a ocorrência do acidente, as testemunhas, pelos contactos que foram tendo com a recorrente, aperceberam-se que a mesma dizia que não via e que necessitava de ser sempre acompanhada.
Todavia, estas testemunhas não revelaram ter conhecimentos de medicina, nem competência técnica, para estabelecerem um nexo causal entre o referido no ponto 6 dos factos assentes e a referida perda de visão.
Vejamos, então, o que a prova pericial produzida nos autos e os relatórios médicos juntos, nos permitem inferir quanto à materialidade que se analisa.
No exame médico singular realizado na fase conciliatória do processo, o perito do Gabinete Médico-legal, entendeu que a recorrente esteve afetada de incapacidade temporária absoluta no período temporal indicado pela seguradora e que a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 24-08-2016.
Quanto às sequelas derivadas das lesões sofridas em decorrência do acidente, identifica as seguintes: Face: entropion bilateral com opacidade bilateral da córnea e conjuntivite crónica (olho vermelho).
Enquadra tais sequelas no Capítulo V, n.º 1.4 da TNI, fixando o coeficiente de incapacidade permanente parcial resultante do acidente em 6%.
Igualmente identifica como sequelas sem relação com o evento: Face: amaurose bilateral de predomínio direito.
No exame realizado por junta médica, decidiu-se unanimemente que a recorrente apresenta como sequelas das lesões sofridas em consequência do acidente «entropion da pálpebra inferior esquerda». Considerou a junta médica que as referidas sequelas se enquadram no Capítulo V, n.º 1.4 da TNI, e que a mesma se encontra afetada de uma IPP de 3%.
Não resulta de qualquer dos exames periciais referidos a perda de visão da sinistrada em consequência do acidente.
Atentemos agora aos relatórios médicos que constam dos autos.
Consta dos autos um relatório médico elaborado pela oftalmologista Dr.ª V…, que acompanhava a recorrente desde data anterior ao acidente, referindo que à mesma foi diagnosticado glaucoma bilateral em 16-06-2015. Após o acidente foi observada em 23-06-2016, e, além do glaucoma, apresentava queratites extensas das córneas. Em 27-07-2016, encontrava-se melhor das queratites provocadas pelo trauma do ácido.
Mais adiante nos autos, foi apresentado outro relatório elaborado pela Dr.ª V…, em 24-08-2016, do qual consta que a recorrente se encontra curada das lesões provocadas pela agressão química, tendo-lhe sido dada alta pelo acidente. Aí se refere que a doença base da recorrente é o glaucoma pelo qual deve continuar a ser tratada.
Existe, também, um relatório elaborado pelo médico oftalmologista Dr. J…, do Centro Hospitalar do Algarve, datado de 14-07-2017, que refere que desde 2011 a recorrente é seguida por aquele hospital por apresentar «Glaucoma de ângulo aberto avançado». Também ali é referido que a utente foi submetida a cirurgia de catarata no olho esquerdo e fotocoagulação dos cílios por triquíase cicatricial, em 2017.
Igualmente, consta do processo um atestado médico de incapacidade multiuso que atribui 95% de incapacidade de natureza visual à recorrente, por doença natural.
Existem outros exames médicos documentados nos autos, mas não se extrai de nenhum deles qualquer possível relação causal entre o acidente e a perda de visão da recorrente.
Os elementos mencionados permitem-nos inferir que a recorrente sofre de doença ocular.
Antes do acidente, já sofria de amaurose do olho direito.
Tentámos compreender em que consistia tal doença.
De acordo com a pesquisa efetuada concluímos que a amaurose é um termo técnico para denominar cegueira[4].
Antes do acidente, a recorrente também sofria de glaucoma no olho esquerdo.
Pela pesquisa que efetuámos, concluímos que o glaucoma é uma doença ocular crónica e progressiva, que constitui uma das principais causas de cegueira a nível mundial[5].
Ora, depreende-se da prova realizada que a recorrente sofria, antes do acidente, e continua a sofrer, depois do mesmo, de doença ocular que provoca cegueira.
Os médicos oftalmologistas que observaram a recorrente não estabeleceram qualquer relação causal entre o acidente e a perda de visão da recorrente.
A única sequela que a prova pericial reconheceu como causada pelas lesões decorrentes do acidente foi a que se mostra prevista no Capítulo V, n.º 1.4 da TNI – Entrópio.
Entrópio significa o reviramento do bordo livre da pálpebra para dentro do olho[6].
Esta situação está descrita no ponto 8 dos factos provados.
Ora, os depoimentos testemunhais invocados pela recorrente não são suscetíveis de pôr em causa os conhecimentos técnicos, qualificados e especializados dos médicos que observaram a recorrente.
Não existe contradição nos relatórios médicos apresentados, nem divergência quanto às sequelas das lesões decorrentes do acidente, identificadas pelos exames periciais realizados.
Tudo ponderado, entendemos que tal prova pericial e os aludidos relatórios médicos, devem prevalecer sobre a referida prova testemunhal.
Por conseguinte, os depoimentos das testemunhas identificadas pela recorrente não constituem suporte probatório suficiente para considerar provado o ponto 1 dos factos julgados não provados.
Mantém-se assim o decidido pela 1.ª instância, julgando-se, em consequência, improcedente a impugnação.
*
VII. Incapacidade permanente parcial atribuída
No apenso para fixação da incapacidade, foi decidido que a recorrente ficou afetada de uma IPP de 3%, desde a data da alta, ocorrida em 24-08-2016, em consequência do acidente sofrido.
No recurso, a recorrente parece insurgir-se contra esta decisão.
Todavia, não vislumbramos qualquer razão para alterar o decidido.
Como já referimos anteriormente, não houve divergência entre o perito singular, que realizou exame na fase conciliatória do processo, e a junta médica, quanto à identificação das sequelas das lesões decorrentes do acidente e integração das mesmas na TNI.
A única discordância foi quanto ao grau de desvalorização arbitrado.
O perito do Gabinete Médico legal atribui 6% de desvalorização e a junta médica, por unanimidade, atribuiu 3%.
Nas duas perícias foi considerado e aplicado o fator de bonificação 1,5 – n.º 5, alínea a) das Instruções Gerais da TNI.
Não vislumbramos razão objetiva válida para divergir do parecer da maioria dos peritos.
Nessa medida, confirma-se a decisão da 1.ª instância que considerou a recorrente afetada de uma IPP de 3%, desde a data da alta, ocorrida em 24-08-2016, em consequência do acidente sofrido.
Improcede, pois, o recurso, quanto à questão analisada.
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VIII. Responsabilidade agravada da empregadora
Insurge-se a recorrente contra a sentença proferida, na parte em que foi considerado que não havia fundamento para responsabilizar a empregadora pela reparação do acidente, ao abrigo do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT).
Para melhor compreensão, transcreve-se o segmento da sentença em que a aludida questão foi apreciada:
«Nos termos do art.18º do mesmo diploma legal:
1 - Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que os responsáveis aí previstos tenham incorrido.
3 - Se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante do empregador, este terá direito de regresso contra aquele.
4 - No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por atuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes:
a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição;
b) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, compreendida entre 70 % e 100 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;
c) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, tendo por base a redução da capacidade resultante do acidente.”
Como já dissemos em sede de despacho saneador a atual previsão do art.79º nº3, onde se prevê que a entidade seguradora responde a título principal no que às prestações que seriam devidas caso não existisse atuação culposa respeita, permite, desde já concluir pela responsabilização da seguradora no que àquela pensão respeita.
Quid iuris quanto à entidade patronal?
No seguimento da jurisprudência maioritária de que são exemplo os Ac. STJ de 08/01/2013,proc.507/07.9TTVC.T.P1.S1, Ac.STJ de 15/11/2012, proc. 335/07.1TTLRS.L1.S1 e 28/11/2012, proc. 43/08.6TTVRL.1P1.S1, acessíveis in http://dgsi.pt/ a responsabilidade agravada da entidade patronal exige os seguintes requisitos cumulativos:
a) que se verifique um comportamento culposo da entidade patronal ou sobre a mesma impenda dever de observância de determinadas normas ou regras de segurança;
b) que, neste último caso, a entidade patronal, as não haja, efetivamente, observado, sendo-lhe imputável tal omissão e,
c) que se verifique uma relação de causalidade adequada entre a omissão ou o comportamento e o acidente.
Acresce que, na esteira do citado Acórdão de 28/11/2012 o nexo causal há-de ser encontrado de acordo com a teoria da causalidade adequada expressa no art.563º do Código Civil.
Assim parafraseando tal decisão “, «a orientação hoje dominante (…), consiste em só considerar como causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar. A ideia de causalidade fica assim restringida às condições que (…) apresentam aptidão ou idoneidade para a produção do dano. Causa será só a condição adequada a essa produção»[1]. (…) , “o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente (…) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercedam no caso concreto”, sendo que, no juízo de prognose, em “condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo de responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele”
(…) Importa, contudo, que se tenha presente que a teoria da causalidade adequada fornece critérios para determinação das causas juridicamente relevantes de um determinado evento, no contexto das condições que para o mesmo contribuíram.
Deste modo, o contributo causal de um determinado facto para um concreto evento é o ponto de partida para a eventual consideração do mesmo como causa adequada desse evento.
É nesse cenário que intervêm os critérios operativos fornecidos por aquela teoria para considerar que uma concreta causa é adequada, e, portanto, juridicamente relevante para a produção de determinado resultado.
Na verdade, como refere PESSOA JORGE, «só há que escolher a causa adequada entre as condições que, no caso se mostraram indispensáveis, no sentido de que o efeito não se ter produzido se elas não ocorressem»[2].
Deste modo, a adequação juridicamente relevante só opera a partir da demonstração do efetivo contributo causal para o resultado considerado, não sendo possível estabelecer a imputação de um efeito a uma causa abstratamente idónea à produção do mesmo sem se demonstrar o seu contributo causal efetivo no processo naturalístico de que resulta esse efeito.
(…) Por isso se diz que a afirmação de um nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes:
- a vertente naturalística, de conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano;
- a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstrato, como causa idónea do dano ocorrido.
Estas duas vertentes são cumulativas e, portanto, indissociáveis na tarefa de indagação do processo causal para efeitos da reparabilidade de um sinistro.
A adequação concreta – nexo naturalístico – entre o comportamento do agente e o efeito lesivo tanto pode ser firmada através da prova que tenha sido alcançada diretamente sobre a matéria, como pode ser indiretamente obtida por meio de presunções judiciais.”
Procurando, então, indagar da responsabilidade da entidade patronal importa atentar que, por força do disposto no art.15º da Lei nº102/2009, de 10 de Setembro (regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho):
“ 1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.
22 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a) Evitar os riscos;
b)Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;
c)Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;
d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
f) Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;”
Nos termos do estatuído no art.19º do mesmo diploma:
1 - O trabalhador, assim como os seus representantes para a segurança e para a saúde na empresa, estabelecimento ou serviço, deve dispor de informação atualizada sobre:
a) As matérias referidas na alínea j) do n.º 1 do artigo anterior;
b) As medidas e as instruções a adotar em caso de perigo grave e iminente;
c) As medidas de emergência e primeiros socorros, de evacuação de trabalhadores e de combate a incêndios, bem como os trabalhadores ou serviços encarregues de as pôr em prática. (…)”
O art.18º nº 1 al. j) respeita ao equipamento de proteção que seja necessário utilizar.
Por força do art.20º nº 1 do mesmo diploma “ o trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco elevado.”
Com relevo para a decisão, apurou-se que a R. não forneceu à A. óculos de proteção, que na lavandaria onde a A. exercia funções, à data dos factos, os produtos de limpeza eram utilizados através de um sistema automático de doseamento, visando-se o mínimo de contacto das trabalhadoras com os produtos e que o único contacto com o produto ocorria quando a embalagem de produto era substituída na máquina - altura em que, após quebra do lacre da embalagem a colocar a trabalhadora inseria tubo/lança retirado da embalagem vazia e a colocava no bocal da nova embalagem.
Mais se provou que empregadora, no que à lavandaria respeita, tinha implementado “plano de higienização” (junto a fls. 342 dos autos), onde constavam as características dos produtos e meios de segurança ou equipamento de proteção individual a adotar. Tal documentação tinha sido elaborada pela sociedade comercial “… Produtos de Higiene, Lda.”, especializada no fornecimento e aconselhamento e venda de soluções integradas de limpeza e higienização profissional eficientes, tendo em conta as características e exigências individuais dos produtos, assim como os requisitos de segurança na sua utilização.
Provou-se ainda que tal plano indicava os produtos a usar, o modo de utilização, a quantidade de roupa a lavar em cada lavagem, aconselhando como equipamento de proteção individual adequado o uso de luvas o que a R. facultou à A..
Provou-se também que a A. já trabalhava para a R. desde 2003, na lavandaria há cerca de um ano, conhecia as máquinas e utensílios, bem assim, a natureza dos produtos que eram por si utilizados no exercício das funções e a forma de manuseamento dos mesmos, as fichas técnicas, tendo recebido formação quanto aos cuidados a ter no manuseio dos mesmos que estavam devidamente acondicionados, individualizados e rotulados com referência às suas características e perigosidade sinalizada nos rótulos, através de imagens e símbolos.
Ora, a nosso ver, extrai-se do supra mencionado que a entidade empregadora socorrendo-se de entidade terceira, especializada no fornecimento e aconselhamento e venda de soluções integradas de limpeza e higienização profissional eficiente, adotou medidas preventivas dos riscos associados ao manuseio dos detergentes na lavandaria, informou e forneceu à trabalhadora o equipamento de segurança individual que aquela empresa lhe indicou como o mais adequado, proporcionou-lhe a formação relativa àquele manuseio e medidas de segurança e informou-a – através da publicitação do plano de higienização em local visível e da rotulagem das embalagens - das características, perigosidade e regras de segurança a adotar, cuidados que, a nosso ver, ainda que não tenha fornecido à A. óculos de proteção, não permitem concluir que o acidente se ficou a dever a um comportamento culposo da entidade patronal ou à omissão da observância de normas ou regras de segurança.
Não se aferindo a necessária culpa da entidade patronal, não podemos, pois, condená-la nos termos do disposto no art.18º do supra mencionado diploma o que inviabiliza a peticionada responsabilização por danos morais, bem assim, o arbitramento de pensão agravada.»
Desde já referimos que a 1.ª instância já fez as adequadas e suficientes considerações sobre a responsabilidade prevista no artigo 18.º da LAT, bem como sobre as normas de segurança e saúde que a empregadora estava obrigada a observar, pelo que, nessa parte, subscrevemos as considerações transcritas.
Quanto ao exigido nexo causal (causalidade adequada) entre a falta de observância das regras sobre a segurança e saúde no trabalho e a ocorrência do acidente, o mesmo também se encontra devidamente explicado, em termos teóricos, na fundamentação da sentença, remetendo-se para o que aí foi escrito sobre a matéria.
A divergência com o decidido opera-se na apreciação do caso concreto.
Infere-se da factualidade dada como assente que, na secção da lavandaria, os trabalhadores para substituírem a embalagem vazia do detergente da máquina de lavar roupa, tinham de quebrar o lacre da nova embalagem do produto e inserir o tubo/lança retirado da embalagem vazia e colocar o mesmo no bocal da nova embalagem.
Para o efeito, a empregadora facultou à recorrente, como equipamento de proteção individual, luvas.
Com arrimo nos factos assentes, é possível depreender que a empregadora conhecia a natureza dos produtos que eram utilizados e a sua perigosidade, bem como os riscos inerentes aos mesmos.
Aliás, na sua contestação, a empregadora veio alegar (v.g. artigos 42.º e 53.º) que os trabalhadores da lavandaria, nomeadamente a recorrente, estavam obrigados a utilizar luvas e óculos de proteção quando manuseavam produtos químicos, o que é revelador de que tinha conhecimento e consciência de que se o produto atingisse as mãos ou os olhos do trabalhador poderia causar-lhe danos na saúde.
Ou seja, a própria empregadora reconheceu que os óculos de proteção constituíam um equipamento de proteção individual apto a evitar possíveis danos provocados pelo manuseamento de produtos químicos, como o produto corrosivo que atingiu a face e os olhos da recorrente, no dia 29 de fevereiro de 2016.
E assim é, de facto!
Sobre a empregadora recaía o dever de assegurar todas as condições de segurança necessárias para garantir a segurança e a saúde da recorrente, no exercício das suas funções profissionais – artigo 15.º, n.º 1 da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro.
Para tanto, deveria identificar os riscos associados ao trabalho e às circunstâncias em que o mesmo era desempenhado e assegurar as medidas preventivas necessárias e suficientes para eliminar ou reduzir ao máximo os riscos ou a exposição aos mesmos – n.º 2 do aludido artigo 15.º.
No caso concreto, em que a trabalhadora estava sujeita ao manuseamento de uma embalagem que continha um produto químico, corrosivo, que poderia contactar com o seu corpo, nomeadamente, atingindo os olhos da trabalhadora, como veio a suceder, sem que tivesse sido fornecido equipamento de proteção adequado, como óculos de proteção, entendemos que a empregadora incumpriu as normas de segurança e saúde no trabalho que tinha de observar.
A circunstância de a empresa “… Produtos de Higiene, Lda.”, ter apenas aconselhado como equipamento de proteção individual adequado o uso de luvas, não afasta o incumprimento das normas de segurança e saúde no trabalho pela empregadora.
A insuficiência de tal medida de proteção é reconhecida pela própria empregadora, que veio alegar (mas não provou) que era obrigatório a trabalhadora usar, também, óculos de proteção.
No caso, se a empregadora tivesse obrigado a trabalhadora a usar óculos de proteção quando manuseasse a embalagem do produto químico, e tivesse facultado à mesma esse equipamento de proteção individual, tal medida seria adequada a evitar o acidente ocorrido, pois com altíssima probabilidade, o produto não teria alcançado os olhos da trabalhadora.
Por conseguinte, foi precisamente o incumprimento das regras de segurança pela empregadora que, com elevado grau de probabilidade, levou à ocorrência do acidente.
Mostram-se, assim, preenchidos os pressupostos da responsabilidade agravada da empregadora prevista no artigo 18.º da LAT.
Destarte, o recurso mostra-se procedente quanto à questão analisada.
O reconhecimento da responsabilidade da empregadora, a título agravado, pela reparação do acidente, importa, que se concretizem as prestações a que a mesma está obrigada.
Assim, considerando a retribuição anual auferida pela sinistrada, o grau de IPP fixado e o disposto nos artigos 18.º e 75.º da LAT, está a 1.ª R. obrigada a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 269,60 [€ 8.986,54 x 3%], desde 25-08-2016, com os respetivos juros moratórios, à taxa legal até efetivo e integral pagamento.
*
IX. Valor da ação
De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho, nos processos de acidente de trabalho, tratando-se de pensões, o valor da causa é igual ao do resultado da multiplicação de cada pensão pela respetiva taxa constante das tabelas práticas aplicáveis ao cálculo do capital de remição, acrescido das demais prestações.
Tratando-se de indemnizações por incapacidade temporária, o valor é igual a cinco vezes o valor anual da indemnização; tratando-se de indemnizações vencidas, o valor da causa é igual ao da soma de todas as prestações – n.º 2 do artigo.
Por sua vez, o n.º 3 do artigo prescreve que em qualquer altura, o juiz pode alterar o valor fixado em conformidade com os elementos que o processo fornecer.
Ora, atendendo a procedência parcial do recurso, e tendo em consideração o estipulado no aludido artigo 120.º e a Portaria 11/2000, de 13-01, impõe-se a alteração do valor da causa, em função da pensão a pagar pela empregadora.
Nesta conformidade, fixa-se à ação o valor de € 3.465,35 [€ 269,60 x 12,732 + 32,80].
O agora decidido prejudica a apreciação da última questão suscitada no recurso.
Concluindo, o recurso mostra-se parcialmente procedente.
*
X. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, condenando-se Santa Casa da Misericórdia de …, ao abrigo do artigo 18.º da LAT, a pagar à autora B… o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 269,60, desde 25-08-2016, com os respetivos juros moratórios, à taxa legal até efetivo e integral pagamento.
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Altera-se o valor da ação para € 3.465,35.
Custas pela apelada.
Notifique.
Évora, 24 de setembro de 2020
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
Moisés Silva
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Emília Ramos Costa; 2.ª Adjunto: Moisés Silva
[2] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, V, pág.141.
[3] Neste sentido, v.g. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2005, P. 04S4452, Acórdão da Relação do Porto, de 01-03-2010, P. 151/09.6TTGDM.P1 e Acórdão da Relação de Évora, de 18-10-2012, P. 1027/11.2TTSTB.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., por exemplo, https://www.infopedia.pt/dicionarios/termos-medicos/amaurose e https://dicionario.priberam.org/amaurose.
[5] Cfr., por exemplo, https://www.institutoderetina.pt/patologias/glaucoma/glaucoma/100/ e https://www.hospitaldaluz.pt/pt/guia-de-saude/dicionario-de-saude/G/122/glaucoma-o-que-e.
[6] Cfr., por exemplo, https://dicionario.priberam.org/entr%C3%B3pio e https://www.infopedia.pt/dicionarios/termos-medicos/entr%C3%B3pio?express=entr%C3%B3pio.