Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
398/19.7GESTB- A.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
ERRO DA SECRETARIA
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 04/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Vigora em processo civil o princípio de que os erros ou omissões da secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.

II - Com o referido princípio visa-se, apenas e tão só, obviar a que as partes possam ver coartadas as suas possibilidades de intervenção e conformação processual em virtude de erros ou omissão da secretaria; não tendo a virtualidade de, por via desses erros ou omissões, atribuir às partes direitos ou faculdades que a lei lhes não confere ou que precludiram.

III - Não comportando o processo abreviado a fase da instrução, a circunstância do arguido, por lapso dos serviços do Ministério Público, ter sido notificado de que dispunha o prazo de 20 dias para, querendo, requerer a abertura da instrução, não impede o juiz de instrução de rejeitar o pedido apresentado, por inadmissibilidade legal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No âmbito dos autos com o NUIPC nº398/19.7GESTB, foi, em 6/11/2019., proferido o seguinte despacho (transcrição):

“ Registe e autue como instrução.
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Nos presentes autos, foi o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sob o estado de embriaguez p. e p. pelo Artigo 292° e 69°, nº 1, al. a) do C.P.

Os autos reportam-se a processo abreviado.
Ora, nos termos do Artigo 286°, n° 3 do C.P.P., não há instrução nos processos especiais, que incluem o processo abreviado, conforme livro VIII - título II do Código de Processo Penal.

Assim sendo, ao abrigo do Artigo 287°, n° 3 e 286°, n 3 do C.P.P., não admito o RAI, por inadmissibilidade legal da instrução.
Notifique e DN.
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Oportunamente, remetam-se os autos à distribuição, decorrido o prazo legal para recurso da presente decisão (apesar de não aberta a instrução).”
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Inconformado com a decisão, o arguido RR interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1 – O douto despacho ora em crise viola, pelos fundamentos supra expostos, o art. 157º n.º 6 CPC, aplicável ex vi art. 4º CPP devendo por consequência ser revogado, prosseguindo os autos sob a forma de processo comum.

Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso com todas as legais consequências, assim se fazendo justiça!
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela improcedência do mesmo e formulando as seguintes conclusões:

1. Interpôs o arguido RR recurso do douto despacho proferido a fls. 40 dos autos supra epigrafados, que, considerando reportarem-se estes a processo abreviado e não haver lugar a instrução nas formas de processo especiais (que incluem o processo abreviado), não admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo primeiro a fls. 35 dos mesmos autos, por inadmissibilidade legal da instrução, ao abrigo do disposto nos art.ºs 286.º, n.º 3, e 287.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal;

2. Em causa no presente recurso estará, no essencial, saber se era in casu legalmente admissível ao arguido RR lançar mão da abertura da instrução no âmbito de processo abreviado (o que se mostra vedado por lei, em face do preceituado no art.º 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) por ter sido feito constar das notificações da acusação então efectuadas pelos Serviços do Ministério Público que o referido sujeito processual teria semelhante possibilidade/faculdade legal (de reacção contra aquela acusação), tal devendo, em conformidade com o estatuído no art.º 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal, “aproveitar” ao mesmo arguido;

3. Salvo o devido respeito pela posição aqui sufragada pelo arguido RR, afigura-se-nos ser, em absoluto, insustentável o entendimento de que possa o lapso em que os Serviços do Ministério Público incorreram aquando dos procedimentos de notificação da acusação deduzida em processo abreviado ter a virtualidade de conceder ao mesmo sujeito processual o recurso à fase da instrução que a lei expressamente proíbe no art.º 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;

4. Efectivamente, dispondo o art.º 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que «[n]ão há lugar a instrução nas formas de processo especiais» e sendo cristalino, considerando a inserção sistemática dos preceitos legais referentes ao processo abreviado no mesmo diploma legal – vide os art.ºs 391.º-A a 391.º-G (Parte II, Livro VIII, Título II) –, que tal processo abreviado é uma dessas formas especiais, sempre será de concluir no sentido de que não consente/admite a lei [in casu, em face da existência das «provas simples e evidentes» a que aludem os n.ºs 1 e 3 daquele art.º 391.º-A] ante a dedução de acusação sob semelhante forma de processo a realização de instrução;

5. Sendo evidente terem sido então, por lapso, utilizadas “minutas” de notificação de acusação deduzida sob a forma de processo comum (aí se aludindo, sem mais, à correspondente acusação do Ministério Público nos termos do art.º 283.º do Código de Processo Penal) – cfr. fls. 31-32 –, não poderá tal facto “aproveitar” ao arguido RR, designadamente, para requerer a abertura da instrução;

6. Alicerçando o recorrente a sua argumentação no disposto no art.º 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal), segundo o qual «[o]s erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes», evidente é reportar-se semelhante previsão legal a situações diversas daquela aqui controvertida;

7. Isto porquanto foi, sim, o próprio legislador a entender que «[n]ão há lugar a instrução nas formas de processo especiais», sendo que não era, pois, ab initio, legalmente admissível ao arguido RR requerer, como sucedeu entretanto, a abertura de instrução, assim se concluindo, inequivocamente, no sentido de não ter o conteúdo inexacto das notificações aqui em apreço efectuadas pelos Serviços do Ministério Público acarretado, de modo algum, qualquer prejuízo para o mesmo arguido, mormente, o coarctar da possibilidade (in casu, legalmente inexistente) de lançar mão da fase da instrução;

8. Por último, sempre se refira ser incompreensível o peticionado, a final, pelo arguido RR, designadamente, quando pugna no sentido de que «prossigam os autos sob a forma de processo comum», sendo que foi deduzida pelo Ministério Público acusação em processo abreviado e que será, em absoluto, alheia a tal (à opção pela forma de processo abreviado) a questão ora controvertida no âmbito do recurso de que aqui se conhece, que se reporta à possibilidade, ou não, de, em face do teor das notificações da mesma acusação nessa sequência efectuadas, haver lugar a instrução (independentemente, claro está, do facto, incontroverso, de ser aquela última – instrução –, ante o disposto no art.º 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a contrario, legalmente admissível no processo comum).

Assim, e sendo certo que não sufragamos o entendimento ora sustentado pelo arguido RR, afigura-se-nos que não deverá ser dado provimento ao recurso interposto pelo mesmo sujeito processual.
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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não houve resposta ao Parecer.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice, a questão suscitada pelo arguido/recorrente traduz-se em saber se deve ser admitida a instrução.
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Apreciando
Alega o arguido, na motivação do recurso: “ (…)Os autos correm em processo abreviado;

Ora nos termos do art. 286º n.3 CPP não há instrução em processo abreviado.

Salvo o devido respeito, que é muito, tal fundamentação estaria inteiramente correcta se o arguido ora recorrente não tivesse sido expressamente notificado pela secretaria do seguinte teor:

De que foi deduzida acusação no Inquérito acima referenciado nos termos do art. 283º CPP, e que dispõe do prazo de Vinte Dias nos termos do art. 287º CPP, para requerer, caso queira, a abertura de Instrução.

Ora padecendo esta informação de erro, o certo é que nos termos do art. 157º n.º6 CPC ex vi art. 4º CPP “os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes” o que é manifestamente a situação sub judice, porquanto o recorrente confiou na informação que foi dada pela secretaria, agiu em conformidade e não pode ver-lhe limitado o seu direito de defesa em função do erro da secretaria.

E não se diga, salvo o devido respeito, que em nada são beliscados os direitos e a defesa do recorrente inexistindo instrução, tendo ele oportunidade para se defender no julgamento.

Com efeito, tal afirmação desconsidera toda a utilidade da instrução, remetendo esta fase processual para uma inutilidade impossível de aceitar, face aos princípios que enformam o nosso Direito Penal e ao legislado.”

Alicerça, assim, o recorrente a sua argumentação no disposto no art.º 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal), segundo o qual «[o]s erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes».

Vigora em processo civil o princípio de que os erros ou omissões da secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.

E é neste princípio que o recorrente, como já se disse, se baseia para fundamentar a sua pretensão.

Tendo a secretaria, erroneamente embora, notificado o arguido “De que foi deduzida acusação no Inquérito acima referenciado nos termos do art. 283º CPP, e que dispõe do prazo de Vinte Dias nos termos do art. 287º CPP, para requerer, caso queira, a abertura de Instrução.”, deverá, na perspetiva do arguido ser admitida a abertura de instrução.

Não cremos, porém, que lhe assista razão.

Com efeito, com o referido princípio visa-se, apenas e tão só, obviar a que as partes possam ver coartadas as suas possibilidades de intervenção e conformação processual em virtude de erros ou omissão da secretaria; não tendo a virtualidade de, por via desses erros ou omissões, atribuir às partes direitos ou faculdades que a lei lhes não confere ou que precludiram.

O relevante para aplicação do princípio em causa é que da atuação da secretaria não resulte, em circunstância alguma, prejuízo para a parte; que ela não veja negativamente afetada a sua posição processual em consequência do erro ou omissão da secretaria.

Ora, dispondo o art.º 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que «[não há lugar a instrução nas formas de processo especiais», considerando que os autos correm como processo abreviado e sendo cristalino, considerando a inserção sistemática dos preceitos legais referentes ao processo abreviado no mesmo diploma legal – vide os art.ºs 391.º-A a 391.º-G (Parte II, Livro VIII, Título II) –, que o processo abreviado é uma dessas formas especiais, sempre será de concluir no sentido de que não consente/admite a lei [in casu, em face da existência das «provas simples e evidentes» a que aludem os n.ºs 1 e 3 daquele art.º 391.º-A] ante a dedução de acusação sob semelhante forma de processo a realização de instrução.

Como bem referido pelo Mº Pº na resposta ao recurso, “sendo evidente terem sido então, por lapso, utilizadas “minutas” de notificação de acusação deduzida sob a forma de processo comum (aí se aludindo, sem mais, à correspondente acusação do Ministério Público nos termos do art.º 283.º do Código de Processo Penal) – cfr. fls. 31-32 –, não poderá tal facto “aproveitar” ao arguido RR, ora recorrente, designadamente, para requerer a abertura da instrução.”

Com efeito, no caso em apreço não se pode concluir que o recorrente tenha, em consequência de erro ou omissão da secretaria, sido prejudicado, sendo que a admissão da abertura de instrução na sequência da errada notificação efetuada constituiria, isso sim, um ilegítimo benefício, o que extravasa, em muito, o âmbito do invocado princípio processual.

Se de um erro de uma secretaria judicial não pode resultar a diminuição ou obliteração de qualquer direito processual, certo é, porém, que tal não se verifica se o erro se traduz no mero anúncio da hipótese de exercício de um direito inexistente, pois que, nesse caso, do erro não pode resultar a “vigência” desse direito.

A interpretação defendida pelo recorrente levaria a que, se praticada na sequência de uma notificação para o efeito, se aceitasse a abertura de instrução em processo especial como o abreviado, tal se afiguraria de uma inaceitabilidade evidente, por inexistência de disposição legal que o permitisse, excedendo o Tribunal os poderes que a lei lhe conferia, com manifesta violação do princípio da legalidade.

Na verdade, ao juiz pertence interpretar e aplicar a lei; mas o juiz está submetido às leis, decide como a lei ordena, é o executor e não o criador da lei e só não aplicará normas que infrinjam o disposto na Constituição da República Portuguesa ou os princípios nela consignados – art.º 204° da CRP.

Termos em que não merece censura a decisão recorrente, improcedendo o recurso interposto pelo arguido.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido RR, mantendo o despacho recorrido.

- Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 28 de abril de 2020
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Laura Goulart Maurício

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Maria Filomena Soares