Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
236/21.0GACTX.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
CRIME DE RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Atentando na matéria fáctica assente e considerando os elementos típicos dos crimes logo se alcança que os atos constitutivos dos crimes de ameaça não foram meros instrumentos de comissão do crime de resistência e coação sobre funcionário, pois que quer nos atos que configurariam as ameaças, quer nos que definiriam a resistência e coação sobre funcionário , ficaram delineadas atividades, atos conducentes à prática de ambos,– ameaças e resistência e coação sobre funcionário -, que deverão ser penalizados autonomamente, não se bastando o ordenamento jurídico com a punição de um só, pelo que por tais crimes, ameaças e resistência e coação sobre funcionário deverá o arguido/recorrente ser responsabilizado.
II. E isto porque não se deteta no comportamento do arguido/recorrente «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», não ocorrendo in casu a unidade de sentido de ilicitude típica que leva a concluir pela unicidade criminal, pelo que não merece censura a decisão do tribunal recorrido que concluiu pela existência de concurso efetivo entre os crimes de ameaça e o crime de resistência e coação sobre funcionário.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica do EE, foi o arguido AA submetido a julgamento em Processo Abreviado.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu julgar a acusação procedente e, em consequência, decide-se condenar o arguido AA pela prática, a 17 de Outubro de 2021, de:
a) 1 (um) crime de resistência e coacção sobre funcionário, sobre funcionário, previsto e punido pelos artigos 347.º, n.º 1, do Código Penal, lido em conjugação com o artigo 386.º, n.º 1, alínea a) e d) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
b) 3 (três) crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) e c), do Código Penal, por referência ao artigo 133.º e à alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal, respectivamente, na pena de 80 (oitenta) dias de multa para cada um;
c) realizando o cúmulo jurídico das penas fixadas em b), aplicar uma pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis), num total de € 960 (novecentos e sessenta euros).
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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto a não conformação do arguido, com a condenação pelos crimes de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelos artigos 347.º, n.º 1, do Código Penal, lido em conjugação com o artigo 386.º, n.º 1, alínea a) e d) do Código Penal e ainda, por três crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) e c), do Código Penal, por referência ao artigo 133.º e à alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal.
2. Entende-se que o douto Tribunal entrou em lapso manifesto quanto à apreciação de direito, quanto ao conceito de ameaça e ainda, quanto à existência em concreto de concurso aparente entre o crime de resistência e coação sobre funcionário e os crimes de ameaças.
3. A sentença que de ora se recorrer considera que: “a ameaça se caracteriza por ser um mal, futuro e dependente da vontade de quem exprime a ameaça.”, concluindo que, “exige-se que a ocorrência do mal esteja na dependência da vontade do agente, o que permite afastar o crime de ameaça do mero aviso com um facto que, ainda que constitua um mal, não depende da vontade do agente.”
4. Ora, se para a ameaça se caraterizar por ser um mal, futuro e dependente da vontade o arguido, não poderia o douto Tribunal ter considerado que a expressão “os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB” preenchia os requisitos do conceito de ameaça previsto no crime de resistência e coação sobre funcionário.
5. Em concreto, a ameaça dirigida aos militares da GNR e que supra se refere, apesar de ser um mal e futuro, não depende da vontade do arguido, estando antes, dependente da vontade de terceiros.
6. No decurso da Sentença condenatória é notória a distinção que o douto Tribunal faz de dois momentos, considerando duas condutas distintas por parte do arguido, com intuitos diferentes em cada um dos momentos.
7. Num momento inicial, na residência do arguido, deu o douto Tribunal provado que as ameaças proferidas pelo arguido contra os militares da GNR tinham como intuito impedir e obstaculizar a atuação dos referidos militares, que pretendiam imobilizar e deter o arguido.
8. Já num segundo momento, após terem algemado e transportado o arguido para o Posto da GNR e enquanto este estava a receber tratamento médico, este voltou a reiterar as ameaças, desta vez, já não com o intuito de impedir que os militares levassem a cabo atos inerentes às suas funções, mas antes de “forma gratuita”.
9. Acontece que, o arguido não se pode conformar com esta dualidade de intenções e intentos, uma vez que, a sua conduta tinha um único e comum objetivo, evitar a sua detenção.
10. O que se pretende, pois, impugnar, é a intenção considerada pelo douto Tribunal quanto às ameaças proferidas no segundo momento.
11. No caso, o arguido praticou o ilícito criminal de resistência e coação sobre funcionários, ao proferir ameaças dirigidas aos militares da GNR com o intuito de evitar ser algemado e detido, não só num primeiro momento, mas também no segundo, existindo, pois, uma única conduta típica.
12. Entende-se, pois, que no segundo momento quando o arguido reiterou as ameaças contra os militares da GNR fê-lo, precisamente pelo facto de serem agentes da Autoridade e estarem no exercício das suas funções.
13. Se a intenção real do arguido fosse ameaçar de forma gratuita- como consta da Sentença condenatória - ameaçaria toda e qualquer pessoa.
14. Além disso, a sentença que ora se impugna parece dar como completa a detenção do arguido no primeiro momento, quando sabemos que assim não é.
15. Ora, se num primeiro momento houve a imobilização e transporte do arguido, num segundo momento, foi efetivada a detenção já no Posto da GNR, uma vez que, só aí foi constituído arguido e lhe foram lidos os seus direitos e deveres enquanto tal.
16. A detenção do arguido só se completou em momento posterior à reiteração das ameaças dirigidas contra os militares.
17. O arguido em todos os momentos, tanto na sua residência como posteriormente no Posto da GNR proferiu ameaças graves contra os militares da GNR por forma a resistir a que estes funcionários do Estado praticassem ato relativo ao exercício das suas funções, que em concreto seria a sua detenção.
18. Assim sendo proferido o arguido ameaças dirigidas aos militares da GNR com o único objetivo de evitar a sua detenção, não poderia o douto Tribunal enquadrar a conduta continua do arguido em quatro crimes autónomos.
19. Isto porque, em concreto existe uma unicidade jurídica.
20.O douto Tribunal deu como consumado o crime de resistência e coação sobre funcionário no primeiro momento, quando o arguido ainda em sua casa proferiu ameaças graves contra a vida dos militares da GNR.
21. No entanto, autonomizou os crimes de ameaças agravadas, que entendeu ter-se consumado no segundo momento, já no posto policial.
22.Considerando o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo nº 27/07.1PACSC.L1-3- com contornos muito semelhantes aos dos autos- mesmo em momento posterior ao arguido ter sido algemado e transportado para o posto, ainda se enquadra no crime de resistência e coação sobre funcionário, as ameaças reiteradas pelo arguido dirigidas aos militares.
23.Isto porque, durante os dois momentos, a intenção do arguido é só uma, a oposição a que os agentes exercessem as suas funções, sendo o dolo do arguido sempre o mesmo: de oposição à sua detenção.
24.Tendo o arguido proferido em duas circunstâncias espaciais diferentes ameaças aos militares da GNR e existindo em ambas as circunstâncias um intuito idêntico – evitar a detenção – estamos perante um único crime de resistência e coação sobre funcionário.
25.Isto porque, a condenação do agente como autor de vários crimes pressupõe sempre que estes se encontrem em concurso efectivo, o que não se vislumbra nos autos.
26.Para se concluir pela unicidade ou pluralidade da ilicitude do comportamento do agente, “não bastará, pois, um mero trabalho sobre normas; há que recorrer a subcritérios fundamentais, tais como o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ ilícito-fim, o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da actuação global, de acordo com as particularidades de cada caso concreto. E estas particularidades do caso concreto decidirão, então, da premência de uns em detrimento de outros, podendo até acontecer que dois ou mais critérios convirjam em direcção ao mesmo resultado.”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no Processo nº 139/11.7PATVR.E1.
27.O comportamento do arguido preencheu dois tipos de crimes, e um deles, por detenção do arguido, ocorrendo no conjunto dos atos de resistência aos militares.
28.Olhando para a globalidade do acontecido, não pode deixar de se considerar que estas ameaças se integram num mesmo processo de descarga emocional do arguido, num episódio de vida unívoco espácio-temporalmente conexo, inequivocamente revelador da tal unidade de sentido do comportamento ilícito global.
29.As ameaças proferidas pelo arguido integram-se, sem destaque que lhe confira relevância autónoma, no crime de resistência e coação sobre funcionário.
30.Daí o dever concluir-se, que em concreto existe um concurso de crimes, sendo que o mesmo é meramente aparente, devendo a punição ser obtida não já à luz do art. 77º do Código Penal, mas na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante, ou seja, do crime de resistência e coacção sobre funcionário, que consumirá as ameaças.
NORMAS VIOLADAS:
Art. 30º, nº1 do CP;
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá o presente Recurso ser dado por procedente, e a sentença condenatória substituída por outra que condene o arguido apenas pelo crime de resistência e coação sobre funcionário.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pelo não provimento do mesmo, e formulando as seguintes conclusões:
1. No âmbito do processo nº 236/21.0GACTX, por sentença proferida no dia 17/10/2022, o arguido/recorrente AA foi condenado pela prática de 1 (um) crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelos artigos 347º, nº 1, do Código Penal, em concurso efectivo com 3 (três) crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alíneas a) e c), do Código Penal, por referência ao artigo 133º e à alínea l) do nº 2 do artigo 132º, do Código Penal.
2. Alega o arguido ter existido um lapso manifesto na apreciação de direito levada a cabo pelo Tribunal a quo, em virtude de, entre os mencionados tipos legais de crime, se verificar uma situação de concurso aparente e não efectivo como considerou aquele.
3. Admite o arguido ter proferido, em dois momentos distintos – primeiro, junto à sua residência e, depois, após se mostrar já concretizada a sua algemagem e imobilização, no Posto da GNR – ameaças agravadas contra os militares da GNR que intervieram na situação, alegando, no entanto, que aquela sua actuação teve sempre o único objectivo de evitar a sua detenção, pelo que, deverá considerar-se tratar-se de única conduta típica, que integra apenas o crime de resistência e coacção sobre funcionário (em concurso aparente com três crimes de ameaça agravada).
4. Não assiste razão ao recorrente uma vez não faz qualquer sentido que, no 2º momento, aquele pretendesse continuar a obstar a algo que já se mostrava concretizado, ou seja, a sua detenção.
5. De facto, o crime de resistência e coacção consumou-se ainda junto à residência do arguido, quando o mesmo ameaçou os militares da GNR com vista, aí sim, a impedir vir a ser detido, o que não conseguiu.
6. Após, mostrando-se a referida detenção já materialmente efectivada, o arguido formulou uma nova resolução criminosa e, não se conformando com aquele desfecho (a sua efectiva detenção) decidiu atentar contra a liberdade pessoal dos referidos militares, reiterando as ameaças que já antes havia proferido contra aqueles.
7. Assim, porque as actuações do arguido consubstanciam duas resoluções criminosas distintas e autónomas entre si, atentatórias de bens jurídicos distintos, devem as mesmas ser punidas a título de concurso efectivo, como o fez o Tribunal a quo, não tendo assim existido a violação de qualquer preceito legal, designadamente do disposto no artigo 30º, nº 1, do Código Penal.
8. A expressão “os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB”, dirigida pelo arguido aos militares da GNR, é integradora de uma verdadeira ameaça, porque, efectivamente, atenta a relação familiar/de proximidade (primos) entre aquele e os 3ºs que, alegadamente, iriam praticar os factos anunciados, os “ameaçados” acreditaram que a sua concretização dependia apenas da vontade daquele, concretizável através de um simples pedido àqueles seus familiares.
9. Por isso, bem andou o Tribunal a quo a considera-la para efeitos da condenação do arguido pela prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Assim, entende o Ministério Público, que deverá ser negado provimento ao recurso, por manifestamente improcedente, mantendo-se na íntegra o decidido na sentença recorrida nos precisos termos, assim se fazendo: JUSTIÇA!
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao Parecer.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente traduz-se em saber se existe, ou não, “ (…) um concurso de crimes, sendo que o mesmo é meramente aparente, devendo a punição ser obtida não já à luz do art. 77º do Código Penal, mas na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante, ou seja, do crime de resistência e coacção sobre funcionário, que consumirá as ameaças.”
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É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos e motivação (transcrição):
“A. Factos provados
1.. No dia 17-10-2021, por volta das 07h00m, os militares da Guarda Nacional Republicana CC (guarda n.º 2200132), BB (guarda n.º 2180388) e DD (guarda n.º 2200157), que se encontravam no exercício das suas funções, foram chamados a uma ocorrência (situação de violência doméstica) na Rua …., EE.
2. Aí chegados, compareceu o arguido (suspeito de ser o autor do dito, eventual, crime de violência doméstica), tendo afirmado não se ter passado nada.
3. Após contacto com a companheira do arguido, foi solicitada ao arguido a sua identificação, através de cartão de cidadão, ao que o mesmo se recusou, afirmando: “dou o b.i., o caralho”.
4. Após várias insistências pelos militares para lhe entregar a identificação, o arguido dirigiu as seguintes palavras à sua companheira: “a culpa é tua, vais pagar por isto, vou-te tirar a nossa filha”, tendo investido contra a sua companheira, procurando desferir um golpe no seu corpo com o seu braço direito.
5. Como não conseguiu atingir a sua companheira, por ter sido afastado pelo militar CC, o arguido empurrou o militar CC, enquanto lhe dizia: “tu a mim não me tocas, oh caralho”
6. Nessa sequência e face a tal comportamento violento manifestado pelo arguido, nomeadamente contra a sua companheira, os três militares tentaram manietar o arguido, a fim de procederem à sua algemagem e imobilização, de forma a impedir que este fosse um perigo para estes e para a sua companheira, no âmbito do dever de manutenção da ordem e da segurança e a proteção das pessoas e bens, com recurso, se necessário, à força e uso de técnicas de restrição e/ou imobilização ou mesmo algemas (artigo 3.º, n.º1, alínea a), b) e i) da Lei orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pela Lei n.º 63/2007, de 06 de Novembro).
7. Enquanto os três militares tentavam a sua imobilização, o arguido, com o intuito de impedir e obstaculizar que os referidos militares o conseguissem manietar e imobilizar, dirigiu aos três as seguintes palavras: “sois homens mortos”, “os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB”, “dou um dedo para te espancar homem a homem”, “mato-vos a todos”.
8. Expressões que eram idóneas a provocar medo e inquietação em qualquer pessoa e mesmo em membros das forças policiais, como provocou nos ofendidos, fazendo-os temer que este viesse a atentar contra a sua integridade física e vida e dos seus familiares e, subsequentemente, que os mesmos, movidos por tal receio e temor, não procedessem à sua imobilização, como era seu dever funcional.
9. Já após a algemagem e imobilização concretizada, depois de ter sido conduzido ao posto da GNR, o arguido, enquanto recebia tratamento médico pelos Bombeiros Municipais do EE, proferiu ainda palavras, nos mesmos termos acima descrito em 7.º, nomeadamente anunciando que, futuramente, lhes causaria a sua morte, que iria mandar os primos atrás do militar Fortunado e que apenas descansaria quando os matasse (aos três militares da GNR).
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10. O arguido sabia que CC (guarda n.º 2200132), BB (guarda n.º 2180388) e dd (guarda n.º 2200157), eram militares da GNR, bem como sabia que se encontravam, no momento, no exercício das suas funções.
11. Sabia ainda que estes, enquanto militares da GNR no exercício das suas funções, tinham o dever e função de manter a ordem, tranquilidade e paz, salvaguardando a integridade física de terceiros e dos próprios, bem como de proceder à sua detenção, com recurso à força, quando presenciassem a prática de um crime em flagrante delito, podendo para tal o imobilizar, conter e prender, com recurso à força física e algemas.
12. O arguido sabia ainda que as palavras melhor descritas eram adequadas a que os ofendidos temessem pela sua vida e integridade física, e dos seus, e que tal era adequado, como era seu propósito, a evitar ou dificultar a sua imobilização e retenção, por ser razoável que estes, impulsionados por tal receio, cedessem e se abstivessem de cumprir com os seus deveres, nomeadamente a sua algemarem e imobilização.
13. Mesmo assim quis agir e agiu da forma supra referida, com o intuito de, com as mesmas, provocar medo e inquietação nos 3 militares e, dessa forma impedir que os mesmos praticassem factos e deveres inerentes às suas funções.
14. Também num segundo momento, e já concretizada a sua imobilização, o arguido renovou a sua vontade, agora gratuita, de incutir medo e receio nos militares da GNR, ao proferir as palavras referidas em 9.º.
15. Ao atuar da forma supra descrita, o arguido quis anunciar aos ofendidos que, no futuro, atentaria contra a sua integridade física e vida, querendo e conseguindo provocar neles medo e inquietação, fazendo-os temer pela sua integridade física, liberdade e, mesmo, pelas suas vidas, bem sabendo que as expressões que lhes dirigia eram para tanto adequadas.
16. O arguido, em ambas as ocasiões, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei penal. O que quis, fez e conseguiu.
17. Na ocasião referida em 9 e 14, dos militares da GNR melhor identificados em 1, apenas o militar CC estava presente;
18. Os outros dois militares tomaram conhecimento daquelas expressões;
19. O arguido está neste momento desempregado, mas celebrou acordo verbal para, esta semana, começar a trabalhar como agricultor, 5 dias por semana, a receber entre € 35 a € 40 por dia;
20. Vive com a companheira, FF, em casa arrendada, pela qual pagam de renda € 220 por mês;
21. Ali vive ainda a filha do casal, com dois anos, e a filha de FF, já com 16 anos;
22. FF trabalha num supermercado;
23. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade;
24. Em 2010, o arguido começou a consumir cocaína;
25. Há cerca de 5/6 meses começou um tratamento no CAT de Santarém para tratar a sua adição àquele produto estupefaciente;
26. O arguido não consome desde que iniciou aquele tratamento;
27. Por acórdão proferido no âmbito do processo n.º 37/20.3GBTMR, por decisão de 2020/11/05 e transitada em julgado a 2020/12/07, o arguido foi condenado pela prática, a 2020/02/05, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 26.º, 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, por referência à alínea d) do artigo 202.º, Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
28. Por acórdão proferido no âmbito do processo n.º 118/18.3GBTMR, por decisão de 2021/07/26 e transitada em julgado a 2021/09/30, o arguido foi condenado pela prática, a 2018/03/16, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na pena única de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
B. Factos não provados
Com pertinência para a causa, inexistem factos não provados.
C. Motivação
A convicção do Tribunal fundou-se na consideração e articulação das declarações do arguido, da prova testemunhal e da prova documental carreada para os autos, à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
i. Assim, desde logo, o Tribunal considerou as declarações do arguido que reconheceu que, a 17 de Outubro de 2021, os agentes da GNR foram a sua casa, na sequência de uma discussão do arguido com a mulher, tendo estes agentes e o arguido interagido. Todavia, o arguido negou a prática dos factos que lhe são imputados.
Em síntese, de acordo com o arguido, quando o agente BB viu um vaso partido no chão, envolveu com o braço o pescoço do arguido e cada um dos outros agentes agarrou um braço do arguido, até que o agente BB deitou o arguido ao chão, tendo os agentes dito para o arguido não resistir e continuando o agente BB a apertar o pescoço do arguido. Ainda segundo o arguido, depois disto, os agentes levantaram-no e levaram-no para a esquadra. Além disso, disse o arguido que foi agredido pelos agentes da GNR enquanto estava no chão.
No que concerne à prova testemunhal, foram ouvidas as testemunhas CC, BB e DD (guardas da GNR que se deslocaram ao local), SFF (companheira do arguido), GG (filha da testemunha anterior) e HH (vizinha do arguido no momento dos factos aqui em causa).
No que concerne à prova documental, foram valorados o auto de notícia, de fls. 3 e 4, o verbete nacional de socorro, de fls. 11, e o certificado de registo criminal do arguido.
ii. Posto isto, relativamente à interacção do arguido e de CC, BB e DD, no dia 17 de Outubro de 2021, importa começar por referir que do conjunto das declarações do arguido e do depoimento dos guardas da GNR resulta que não há controvérsia quanto à localização espácio-temporal dos factos aqui em causa, quanto aos guardas da GNR terem ido a casa do arguido, quanto a o terem abordado e quanto a, mais tarde, o terem levado para o posto da polícia, bem como ao arguido saber que se tratavam de militares da GNR. A divergência das versões apresentadas centra-se na dinâmica da abordagem feita pelos guardas da GNR ao arguido, sendo que, em suma, enquanto o arguido refere que colaborou e que foram os guardas que o atacaram, os guardas referem que o arguido não colaborou e que usaram da força estritamente necessária para deter o arguido, já que este resistiu à detenção.
Lidos os factos dados como provados, resulta já que este Tribunal ficou plenamente convencido quanto a esta segunda versão, a qual decorreu de o Tribunal ter ficado persuadido quanto ao ocorrido na exacta medida dos relatos feitos pelos guardas da GNR. Isto em detrimento das declarações do arguido e das testemunhas FF e HH (a testemunha GG, como se verá, não assistiu aos factos). Os depoimentos dos guardas da GNR, além de serem coincidente entre si, mostraram-se seguros, consistentes e, pelo menos, aparentemente, não se observou qualquer animosidade relativamente ao arguido. Já a versão do arguido mostrou-se inverosímil e não encontrou suporte minimamente consistente nos depoimentos de FF e HH, depoimentos que não só passaram pelo relato de uma versão dos factos distinta da do arguido, como não foram coincidentes em diversos e importantes aspectos. Acresce que, relativamente ao depoimento de FF foi ainda patente que a mesma, à medida que foi depondo, foi alterando a sua versão dos factos e que tal não se deveu a pequenas correcções decorrentes do esforço de memória que a testemunha foi fazendo e que lhe foi permitindo recordar certos pontos com maior nitidez.
Vejamos com maior detalhe.
No que respeita aos depoimentos de CC, BB e DD, o primeiro predicado dos mesmos que justifica o Tribunal os ter reputado de credíveis foi a circunstância de os relatos terem, no global, sido coincidentes quanto à dinâmica e sequência dos factos.
Como se disse, os depoimentos destas testemunhas mostraram-se convergentes quanto ao relato feito e, sem prejuízo de estas testemunhas terem tido instantes em que, pela sua localização, não viam o mesmo (por exemplo, quando o agente CC estava à porta de casa do arguido, este atrás daquele e depois os restantes guardas, o que explica que, em alguns instantes, o campo de visão fosse diferente), criaram uma imagem idêntica quanto ao sucedido. Isto no que respeita à razão pela qual se deslocaram ao local; a quando chegaram ao local terem logo visto o arguido; ao pedido de identificação feito ao arguido e à sua recusa em a dar; à circunstância de se terem dirigido à porta da casa do arguido para tentar falar com a companheira do arguido, altura em que o agente CC ficou à frente da porta, de costas para o arguido, imediatamente atrás daquele; de, nesse contexto, o arguido ter ameaçado a companheira e de ter tentado passar pelo agente CC para chegar àquela, altura em que o guarda CC levantou o braço esquerdo, em sentido horizontal e ao nível do peito, para evitar que arguido passasse, ao que este o empurrou; de, perante isso, o agente BB, que estava atrás do arguido, o ter envolvido com os braços em torno do peito do arguido, ao que o arguido se atirou para o chão, caindo o agente BB no chão, por baixo do arguido, que continuava a resistir; à circunstância de o arguido ter resistido durante toda a actuação dos guardas da GNR; às ameaças que o arguido foi dizendo ao longo desta actuação; à sua condução ao posto da GNR; e ao facto de os agentes BB e DD terem deixado o arguido e o agente CC no Posto da GNR do EE e de terem ido embora.
Em segundo lugar, o relato dos agentes da GNR caracterizou-se por uma descrição espontaneamente detalhada e sequencial quanto ao sucedido, desde o início ao fim, bem como de, ao lhes serem feitas perguntas, terem respondido de forma clara e segura, sem qualquer hesitação e integrando os aspectos mencionados na meada dos acontecimentos inicialmente relatados. Ou seja, logo de início, ao lhes ter sido pedido para relatarem o que se passou, os guardas da GNR apresentaram um discurso pormenorizado e sequencial e, ao lhes serem feitas perguntas, não se verificou qualquer alteração da versão contada, mas apenas a densificação e clarificação de aspectos já inicialmente abordados.
Em terceiro lugar, os guarda da GNR tiveram depoimentos objectivos, nos quais não se verificou qualquer hostilidade para com o arguido. Acresce que estas três testemunhas apenas conheceram o arguido no âmbito profissional, não se vislumbrando qualquer razão para que os mesmos, inexistindo interacções anteriores com o arguido, tivessem adoptado a conduta que o arguido lhes imputa.
Em quarto lugar e interligado com a razão anterior, surge a circunstância de os próprios guardas da GNR terem referido a presença da companheira do arguido no local, de uma adolescente (a filha da companheira do arguido) e de outra pessoa do género feminino que pensam tratar-se de uma vizinha do arguido. Ora, se os guardas da GNR apenas conheceram o arguido no âmbito daquela ocorrência, se havia pessoas que estavam a assistir e se, pressupondo que o arguido, como o mesmo contou ao Tribunal, colaborou em tudo, não é minimamente crível que os três agentes da GNR decidissem atacar gratuitamente o arguido. Por um lado, se não o conheciam e se o arguido tivesse colaborado, não haveria razão para isso, muito menos para o fazer, segundo o arguido, apenas porque viram um vaso partido (é que, de acordo com o arguido, o agente BB teriam feito a manobra conhecida como «mata-leão» quando viu um vaso partido, pensa que para mostrar serviço). Por outro lado, havendo testemunhas, ainda menos provável é que fossem adoptar tal conduta.
Deste modo, a versão dos guardas é mais congruente e verosímil com o contexto em que os factos se inseriram do que a versão narrada pelo arguido. O próprio arguido explicou que tinha saído com a companheira e que estavam a chegar a casa, tendo nessa altura discutido. Ora, embora a circunstância de o arguido discutir com a companheira não signifique que o mesmo, a seguir, necessariamente se ia insurgir contra os agentes da autoridade, insultando-os e reagindo a uma detenção, a verdade é que este estado de exaltação sempre é mais compatível com esse tipo de conduta, do que a de três guardas da GNR que, sem conhecerem o arguido, do nada, decidirem agredi-lo e insultá-lo, ainda para mais à frente de possíveis testemunhas, como é o caso da companheira e vizinha do arguido.
Em quinto lugar, não se ignorando que o arguido ficou com algumas mazelas na sequência da detenção (relatadas pelo arguido e que encontram arrimo no verbete nacional de socorro junto aos autos), estas mostram-se compatíveis com as manobras relatadas pelos guardas da GNR. De facto, a escoriação do cotovelo direito e a dor na cervical são compatíveis com a queda do arguido no chão (por si causada, recorde-se, na versão dos guardas da GNR) e de, aí, ter sido tentada a sua algemagem, ao que este resistiu.
Em sexto lugar, a circunstância de os três guardas da GNR terem tido de intervir ainda que para deter uma só pessoa, mostra-se justificada pela dificuldade de algemar alguém que resiste, aspecto, inclusivamente, mencionado pela testemunha BB ao ser confrontado com esta questão.
Em sétimo lugar, no que respeita especificamente ao facto 9, por ter sido praticado apenas na presença do militar CC, verificou-se que, também neste conspecto, esta testemunha depôs de forma clara e concretizada.
Passando à versão do arguido, no que respeita especificamente à dinâmica da interacção com os guardas da GNR, como se disse, esta não se mostrou verosímil e não congregou o suporte da restante prova.
Por um lado, a versão do arguido é inverosímil por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque, segundo o arguido, teria sido o agente BB a fazer a manobra conhecida como «mata-leão». Ora, na audiência de julgamento, colocados o arguido e a testemunha BB lado a lado, verificou-se que o arguido é bem mais alto que aquela testemunha, de onde resulta que esta apenas conseguiria fazer tal manobra se o arguido estivesse de joelhos ou inclinado para trás. Assim, de forma objectiva, estando o arguido de pé, não se vê como poderia aquele guarda ter feito tal manobra. Em segundo lugar, pelas razões já acima aduzidas, não se vê a razão pela qual os guardas da GNR, que não conheciam o arguido, perante a colaboração deste com a abordagem daqueles, teriam gratuitamente decidido agredir o arguido, sobretudo quando os próprios guardas da GNR se aperceberam da presença de terceiros no local e que poderiam testemunhar quanto ao que quer que acontecesse.
Por outro lado, a versão do arguido não é sequer secundada pelas restantes testemunhas.
Neste ponto, importa deixar claro que, tratando-se de factos que ocorreram num curto espaço de tempo e já há cerca de um ano, seria compreensível e até expectável que as testemunhas já não recordassem alguns aspectos de forma definida, ou, até mesmo, que se verificasse alguma contradição quanto a questões pontuais e menores.
Todavia, aquilo que se verificou foram relatos completamente diferentes quanto ao sucedido, quer no que concerne às pessoas presentes, quer no que concerne ao momento em que cada uma dessas pessoas apareceu no local e interveio, quer quanto ao momento em que teria tido início a alegada agressão dos guardas da GNR ao arguido, quer quanto ao modo como esta foi perpetrada, quer quanto às manobras que foram realizadas, enfim, quanto a quase tudo. O único ponto em comum foi a evidente tentativa das testemunhas FF e HH terem sempre tentado isentar o arguido de qualquer responsabilidade.
Os exemplos mais ilustrativos da diferença das versões apresentadas prendem-se com as pessoas presentes no local, com o início da alegada agressão ao arguido e com as manobras, nesse âmbito, realizadas.
Disse FF que falou com um guarda da GNR na sala de sua casa, enquanto os outros dois estavam à porta de casa a falar com o arguido, sendo que a testemunha ouviu a filha do casal, que havia ficado com a vizinha II, a chorar, já que as casas são lado a lado e, nessa sequência, disse ao guarda que tinha de ir buscar a filha. Ainda segundo a testemunha, nisto, dirigiu-se a casa da vizinha, seguida por aquele guarda, entrou na da casa da vizinha II e saiu após breves instantes, pois a vizinha já estava com a filha ao colo, no corredor, sendo que quando saiu já os militares da GNR estavam a agredir o arguido. Mais disse que a testemunha HH chegou a casa da testemunha II quando FF lá estava.
Por seu turno, a testemunha HH referiu que ouviu o arguido e FFdiscutirem e que foi a casa destes, ao que o arguido veio até ao pátio apanhar um pouco de ar. Ainda segundo a testemunha, a mesma andava dentro e fora da casa do arguido para acalmar FF e o arguido, sendo que, quando estava dentro daquela casa, ouviu gritos e quando chegou cá fora já viu o arguido a ser agredido pelos militares da GNR. Além disso, disse que a filha do casal esteve sempre em casa, não referindo qualquer ida a casa da vizinha II.
Como se torna patente pela síntese desta parte dos relatos destas testemunhas, estes não são compatíveis entre si, nem com o relato do arguido.
Mas há outras diferenças.
O arguido afirmou que o guarda BB lhe fez a manobra «mata-leão» quando este viu um vaso partido, que caíram e que ao cair o arguido se conseguir virar. FF afirmou que viu o arguido no chão com um militar a puxar pelo pescoço do arguido e que depois o levantaram. HH afirmou que viu um dos guardas com a perna no pescoço do arguido e, perguntada pela defesa, disse que afinal podia ser com o pé no pescoço do arguido. Nunca tendo espontaneamente referido que viu algum dos guardas a envolver o pescoço do arguido com um dos braços, ao ser perguntado pela defesa à testemunha HH se viu isto, já disse que ao levantarem o arguido, primeiro o puseram de joelhos e que, nesse momento, é que um guarda, que descreveu como pequeno, pôs os braços à volta do pescoço do arguido, sendo até aí que a testemunha disse que aquilo não era necessário.
Se a descrição do arguido e de FF coincide quanto a um dos militares da GNR ter feito a manobra do «mata-leão» ao arguido, a verdade é que quanto ao demais a descrição dos factos já é díspar, uma vez que os locais em que ambos disseram estar quando aquilo aconteceu e que o antecedeu é diferente: segundo o arguido, este estava à porta de casa e FF dentro, sendo que nessa altura, o guarda BB o envolver com os braços por ver um vaso partido; já FF diz que estava na casa da vizinha II e que quando saiu o arguido já estava no chão a ser agredido.
Além de a descrição da dinâmica dos factos feita pelo arguido e por FF serem diversas em aspectos importantes, também cada uma destas é diversa da descrição feita por HH. Num primeiro momento, aquele precisamente em que descreveu os factos de forma livre, a testemunha não só não mencionou a manobra do «mata-leão». Além disso, a testemunha afirmou de forma peremptória que esteve com o arguido e com FF desde a chegada da polícia até ao momento em que levaram o arguido, contudo, o arguido referiu não saber exactamente em que altura é que as vizinhas (em que se integra a testemunha HH) chegaram, enquanto FF disse que esta chegou quando FF estava em casa da vizinha II.
Uma última nota para referir que a testemunha GG não assistiu aos factos, pelo que, nesta parte, nada pode confirmar nem infirmar qualquer das versões.
Posto isto, as contradições entre os depoimentos de FF e de HH e destas com as declarações do arguido traduziram-se em este não ter conseguido a corroboração da versão dos factos por si trazida a este Tribunal.
Uma nota para referir que a especificação que foi feita quanto a apenas o militar CC estar presente no segundo momento (factos provados 9, 17 e 18), já depois do arguido ter sido conduzido ao posto da GNR resultou da circunstância de da conjugação do depoimento dos três guardas ter resultado que, no posto da GNR ficou apenas aquele militar dois três que foram a casa do arguido, isto porquanto os restantes não prestam serviço naquele posto. Assim, este segundo momento foi só praticado na presença daquele militar, embora se tornado conhecimento dos restantes, como decorre da circunstância de terem tido conhecimento do auto de notícia e da descrição feita pelo militar BB.
Tudo ponderado, como se referiu, o Tribunal ficou convencido quanto ao sucedido na exacta medida do relato feito pelos militares da GNR, o que explica os factos provados 1 a 10 e 17 e 18.
iii. Uma palavra quanto aos factos relativos à intencionalidade por detrás da actuação do arguido, para explicar que toda a actuação do arguido apenas é compatível com a representação e intenção de o fazer. É que «o que se passa no íntimo de cada pessoa não é susceptível de percepção directa», pelo que o mesmo só se pode dar por provado «porque toda a acção que a pessoa praticou só se mostra fisicamente possível e socialmente compreensível, se tiver sido comandada por uma vontade que determinou a prática daqueles factos, revelando-se tais factos adequados a atingir o objectivo fisicamente verificado» - Alberto Augusto Vicente Ruço, Prova e Formação da Convicção do Juiz, Almedina, páginas 254 e 255. Isto explica os factos provados 11 a 16.
iv. No que concerne às condições socioeconómicas do arguido, o Tribunal teve em consideração as respectivas declarações, as quais se mostraram, neste ponto, seguras e imediatas, logrando o convencimento do Tribunal (factos provados 19 a 26).
Por fim, em relação aos antecedentes criminais do arguido, foi valorado o respectivo certificado de registo criminal (factos provados 27 e 28).”
*

Apreciando
- Do alegado concurso aparente de infrações
De acordo com o disposto no artigo 30.º do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efetivo, torna-se necessário, além de aferir da pluralidade de tipos violados ou da violação plúrima do mesmo tipo, recorrer ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas.
A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir:
. Um só crime, se tiver persistido o mesmo desígnio, a mesma resolução criminosa, isto é, se o dolo inicial se mantiver ao longo de todas as condutas;
. Um crime continuado se, existindo uma pluralidade de resoluções criminosas, elas se mantiverem dentro de uma “linha psicológica continuada” (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Sumários e Notas das Lições, 1975/76, 127) ou seja, aglutinadas por fatores externos que conduzem o agente à repetição da conduta;
. Um concurso de crimes, quando não ocorra nenhuma das anteriores situações.
A multiplicidade de vezes de preenchimento do tipo objetivo do crime conduz, em regra, à multiplicidade de crimes da respetiva natureza (artigo 30.º, n.º 1do Código Penal), mas tal multiplicidade deixa de ter tal efeito, não só nos casos em que se deva configurar um crime continuado (artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal), como naqueles em que a unidade de resolução – tipo subjetivo do crime – e a inexistência de violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, aliados à continuidade temporal das condutas, fazem com que a multiplicidade formal de violações do tipo criminal deva ser tratada como correspondente à comissão de um só crime.
Se se tratar de uma decisão assumida, deliberada, pensada uma única vez, e a partir de tal decisão não houver qualquer necessidade de renovar o processo de motivação, realiza-se um único tipo legal de crime - unidade jurídica de ação.
Uma unidade jurídica de ação que pressupõe que as condutas parcelares respondam a um só desígnio criminoso (unidade subjetiva) e realizem um único tipo legal de crime (unidade objetiva).
«(…) a ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objetiva e/ou objetiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global» ( Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, págs. 989 e 1015)”.
Vejamos, então, se, como alegado no recurso, existe “um concurso de crimes, sendo que o mesmo é meramente aparente, devendo a punição ser obtida não já à luz do art. 77º do Código Penal, mas na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante, ou seja, do crime de resistência e coação sobre funcionário, que consumirá as ameaças”, ou seja se os crimes de ameaça perderiam a sua dignidade jurídica de origem, se se tivessem esgotado como meio em relação ao crime de resistência e coação sobre funcionário.
A ser assim, estaria o agente do crime a atuar sob o mesmo dolo, e o crime seria o mesmo e um só, mesmo no plano estritamente naturalístico (cfr. Cuello Calón, Derecho Penal, I, 297).
Atentemos nos tipos legais em causa.
A reforma penal introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/09 veio acrescentar ao artº 347º um nº 2 e quanto ao nº 1 passou a dispor o seguinte:
“1.Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres é punido com pena de prisão até cinco anos”.
Passou assim a incluir como meio de execução deste crime também a ofensa à integridade física.
E mais recentemente pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, atualmente em vigor, mantendo a mesma redação, passou o crime a ser punido com “pena de 1 a 5 anos de prisão”.
No crime de resistência e coação sobre funcionário, o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do funcionário, que se quer protegida, pretendendo-se evitar que não funcionários ponham entraves à livre execução das intenções daqueles, tornando-as ineficazes.
Neste crime proíbe-se assim a interferência coatora na atividade funcional do funcionário, tendo a ação do agente como fim opor-se a que o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança exerçam as suas funções.
Ao nível da conduta do agente, ou seja, quanto aos meios de execução, trata-se de um crime de execução vinculada, em que o meio utilizado para atingir aquele fim tem de ser através de violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física.
Trata-se de um crime de dano, havendo de ocorrer uma lesão do bem jurídico, ocorrendo neste caso quando a ação do agente interfere na livre execução das intenções do funcionário.
E quanto ao objeto da ação é um crime de resultado ou material, havendo o resultado de ser objetivamente imputado à ação (“adequação” do resultado à ação) exigindo-se para a consumação como resultado que a ação violenta ou ameaçadora tenham atingido, de facto, o seu destinatário para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções.
Mas se é certo que o crime se consuma com a ação de resistência ou constrangimento, não é, contudo, necessário a prática do ato coagido pelo funcionário, enquadrando-se o ilícito nos chamados crimes de resultado cortado. Ou seja, não se exige que o agente impeça, de facto, o exercício da função pública, bastando que o agente se oponha com violência ou ameaça grave a este exercício.
O critério de avaliação do grau de violência ou de ameaça para se considerar preenchido o crime de resistência e coação sobre funcionário é aqui questão de grande pertinência.
Este critério há de acima de tudo assentar na idoneidade da violência ou da ameaça para perturbar a liberdade de ação do funcionário, podendo a violência não traduzir a utilização da força física.
Por “ameaça grave” há de entender-se aquela que se traduza num “mal importante”, que seja adequada a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante.
Conforme Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág 443) “a ameaça grave representa a forma mais grave de violência psíquica, que coincide com a prevista no artº 155º, nº 1 al. a)”, que prevê a agravação do crime de ameaça quando este for praticado por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos.
A este mesmo propósito refere Cristina Líbano Monteiro, no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, pág. 341, §9, Coimbra Editora 2001, que “tem de se considerar que os destinatários da coacção possuem, nalgumas hipóteses deste tipo legal, especiais qualidade no que respeita à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum (...). O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo legal não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afectar a liberdade física ou moral de acção de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário”. E dá um exemplo: “será natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar”.
Mas se é correta esta distinção tendo em conta a sensibilidade do coagido, não pode, no entanto, tratando-se de agentes da autoridade policial exigir-se para o preenchimento do tipo legal formas extremas de violência ou de ameaça contando com a especial preparação dos agentes, o que seria contraproducente tendo em conta os fins em vista. (cfr. AC. TRL de 9-03-2016, www.dgsi.pt).
“I – Para a integração do tipo de crime de resistência e coacção sobre funcionário, devem ser tido em conta, para além das circunstâncias em que os actos são praticados, as características do agente e as especiais qualidades do destinatário (v.g. se é agente policial, que normalmente se faz acompanhar de arma fogo); quanto a este último ponto, a idoneidade da violência há-de ser apreciada através de um critério objectivo-individual, pelo que, membros das forças de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios.
II – Assim, a relevância da violência para efeitos de preenchimento do tipo terá que ser sempre analisada em concreto, tendo em conta as efectivas capacidades e preparação do funcionário ofendido.
III – No caso, não obstante o agente da autoridade pública ser uma das pessoas com especiais qualidades para lidar com situações de “oposição” a uma detenção, a circunstância de o mesmo agente se encontrar sozinho perante o arguido, o nível de violência exercido (o arguido logrou empurrar o agente, deitando-o ao chão, provocando-lhe dores, apenas sendo possível dominá-lo pela acção de quatro pessoas, três das quais não detentores da qualidade de órgão de polícia criminal) e a manutenção de reiteração dos actos de violência permitem concluir que a conduta em causa foi idónea a obstaculizar de forma relevante a referida acção interventiva, encontrando-se, desta forma, preenchido o tipo de crime previsto no artigo 347.º do CP.” (cfr. Ac.TRC, de 18-05-2022, www.dgsi.pt)
O crime de resistência e coação sobre funcionário é um crime de execução vinculada, pois a lei exige que o fim típico procurado pelo agente, ou seja, opor-se a que a autoridade pública exerça as suas funções, seja alcançado pelos meios descritos no tipo legal, isto é, através de violência que pode assumir as modalidades de ameaça grave ou ofensa à integridade física, para além de formas de violência que não se reconduzam àquelas.
No crime de resistência e coação sobre funcionário, como resulta da sua própria inserção sistemática, o bem jurídico que a lei quis especialmente proteger é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e a liberdade de atuação do seu funcionário ou membro de força armada, posta em causa pelo emprego de violência ou resistência do agente arguido, não abrangendo, por isso, a tutela da integridade dos mesmos, como bem pessoal. (cfr.Ac.TRE, de 14/07/2020, www.dgsi.pt)
No âmbito da ação típica do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no art. 347.º, do Cód. Penal, constituirá violência todo o ato de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, não tendo a violência a que alude o artigo de ser grave e nem sequer tem de consistir em agressão física, bastando que exista uma simples hostilidade, idónea a coagir, impedir ou dificultar a atuação legítima das autoridades (cfr. Ac. TRP de 27-06-2012 e Ac. TRE de 18-02-2014, in www.dgsi.pt)
E, quanto ao crime de ameaça, dispõe o artº 153º nº 1 do Cód. Penal: «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».
Após a revisão de 1995 do CP, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera ação e de perigo. Deste modo, já não é exigido que a ameaça cause efetiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, pois, como resulta do estatuído no art 153º, passou a bastar que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Assim, enquanto no artº 155º nº 1 do CP/1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação.
Como refere o Prof. Taipa de Carvalho “O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou de intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado). (...) Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem se exige a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado)”.
Assim, para que ocorra o crime de ameaça não se exige que o agente cause ao ofendido receio, medo ou inquietação, exigindo-se apenas que a ameaça seja adequada a provocar medo, mesmo que no caso concreto o não venha a provocar (do mesmo modo que, se os provocar, mas a ameaça não se mostrar idónea para esse efeito, o crime não se mostra cometido). O crime de ameaça passou de crime de resultado a crime de perigo e deixou de ser exigível que a ameaça produza efeito no espírito do ameaçado.
E, quando se diz que o mal ameaçado tem de ser futuro, ou que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, tal significa simplesmente que não podem estar praticados quaisquer atos de execução do crime prometido, pois que, neste caso, estar-se-ia já diante de uma tentativa de execução do crime em causa, não suportando seguramente o conceito interpretações como a pretendida pelo recorrente.
“ (…) O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.
É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico. Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
(…)
Tudo depende da intenção do agente.
É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).
O que se exige é tão somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja suscetível de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa suscetibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.
Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante.
O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse suscetível de afetar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação…” (cfr. Ac. Rel. Guimarães de 18-5-2009, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, no concurso aparente, o campo de aplicação das normas em causa assemelha-se a dois círculos concêntricos, de forma que todos os elementos que cabem numa e noutras não podem ser apreciados duas vezes, enquanto que a especialidade do interesse tutelado pode ser determinante para desencadear a consunção, há que ponderar, face ao casuísmo naturalístico concreto, em que termos, partindo dele para realizar a qualificação jurídico-penal, se deve ter por preenchido aquele conceito com funcionamento daquela regra.
Como já supra dito no crime de resistência e coação sobre funcionário, o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do funcionário, que se quer protegida, pretendendo-se evitar que não funcionários ponham entraves à livre execução das intenções daqueles, tornando-as ineficazes, é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e a liberdade de atuação do seu funcionário ou membro de força armada, posta em causa pelo emprego de violência ou resistência do agente arguido, não abrangendo, por isso, a tutela da integridade dos mesmos, como bem pessoal, enquanto que no crime de ameaça, crime que se enquadra nos crimes contra a liberdade pessoal, o bem jurídico tutelado é a liberdade de ação e decisão, ali se abarcando a paz jurídica individual e o sentimento de tranquilidade e segurança pessoal.
Como bem refere o MP na resposta ao recurso ” (..) Conforme alega o recorrente, resulta da douta sentença recorrida que a actuação do arguido foi apreciada em dois momentos distintos, “(…) considerando duas condutas distintas por parte do arguido, com intuitos diferentes em cada um dos momentos”.
E bem andou o Tribunal a quo ao assim entender, como infra se explanará.
De facto, são dois os momentos e duas as resoluções criminosas do arguido, violadoras de bens jurídicos distintos:
1º - No local onde os agentes da autoridade foram chamados a intervir – residência do arguido, sita na Rua da Ponderosa, nº 34, Vale da Pedra, EE – onde este dirigiu diversas expressões de teor ameaçador àqueles, as quais “(…) tinham como intuito impedir e obstaculizar a actuação dos referidos militares, que pretendiam imobilizar e deter o arguido”, como o próprio reconhece em sede de alegações; e
2º - Já depois da sua algemagem e imobilização se mostrarem concretizadas e de ter sido transportado até as instalações do Posto da GNR, enquanto estava a receber assistência por parte dos bombeiros, o arguido voltou a dirigir-se àqueles militares, proferindo, em tom sério e ameaçador a seguintes expressões: “Sois homens mortos”, “Os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB”, “Dou um dedo para te espancar homem a homem” e “Mato-vos a todos”.
Alega o arguido/recorrente que a sua conduta teve sempre um único e comum objectivo – o de evitar a sua algemagem/detenção –, não podendo, portanto, ser feita a supra aludida distinção e devendo, ao invés, considerar-se que o seu comportamento integrou uma só conduta típica.
Acrescentando ainda que, ao contrário do que foi considerado pelo Tribunal a quo, não se pode dar como completa a sua detenção no “1º momento”, devendo antes considerar-se que a mesma só foi efectivada já nas instalações do Posto da GNR, quando se procedeu à sua constituição como arguido e lhe foram lidos os seus direitos e deveres nessa qualidade. Conclui, assim, que a sua detenção “só se completou em momento posterior à reiteração das ameaças dirigidas contra os militares”, as quais foram proferidas sempre “por forma a resistir a que estes funcionários do Estado praticassem ato relativo ao exercício das suas funções, que em concreto seria a sua detenção”.
Ora, não podemos concordar com o entendimento perfilhado pelo arguido, sendo antes de parecer que bem andou o Tribunal a quo ao distinguir os dois referidos momentos, uma vez que, de facto, cada um deles corresponde a uma resolução criminosa autónoma e com violação de bens jurídicos distintos.
Numa compreensão global da conduta do arguido, resulta não existir uma unidade de sentidos de ilicitude típica, se não vejamos:
Alega o arguido que “em toda a sua conduta o que sempre quis foi opor-se a que os agentes policiais exercessem as suas funções”, não devendo, porque o seu dolo foi sempre o mesmo, as ameaças agravadas que proferiu no “2.º momento” serem autonomizadas, mas antes integradas no crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Entendemos nós que a detenção do arguido se concretizou junto à sua residência, com a sua efectiva algemagem e imobilização, consumando-se ali o crime de resistência e coacção sobre funcionário.
No Posto da GNR já aquele se encontrava na condição de detido, sendo apenas necessário proceder à elaboração do respectivo expediente, em concreto, à sua constituição de arguido e sujeição a TIR, bem como à prestação de informação acercados seus direitos e deveres nessa qualidade.
Não compreendemos, assim, como é que o arguido alega que, já no Posto, reiterou as ameaças que já antes havia dirigido aos militares da GNR, com vista a evitar a sua detenção, uma vez que a mesma já se mostrava materialmente concretizada, faltando apenas formalizá-la, através da elaboração do respectivo expediente.
Assim, como bem entendeu o Tribunal a quo na sentença recorrida, não se conformando com o facto de, não obstante a sua actuação junto à residência, os militares da GNR terem prosseguido no cumprimento das suas funções, conseguindo concretizar a sua detenção, o que o arguido pretendeu no “2º momento”, foi reagir àquela situação e em concreto, atentar contra a liberdade pessoal daqueles, ameaçando-os de que, inclusivamente, iria retirar-lhes a vida. Não faz, pois, qualquer sentido que, neste momento, ele persistisse na sua intenção inicial de obstar a que aqueles efectivassem a sua detenção, uma vez que a mesma já se mostrava concretizada. De facto, as ameaças proferidas nesta altura, assumem um carácter autónomo relativamente às anteriores, não integrando já os actos destinados a impedir que os militares da GNR levassem a cabo as suas funções, procedendo, em concreto, à sua detenção, mas visando antes atentar contra a liberdade daqueles.
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Por outro lado, no que concerne ao facto de a expressão: “os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB”, dirigida pelo arguido a um dos militares das GNR, não poder ser considerada como “ameaça” para efeitos de condenação pelo crime de resistência e coacção, porquanto a mesma não é dependente da sua vontade, somos de parecer que:
É verdade que o preenchimento do tipo objectivo deste ilícito pressupõe que:
i) Exista um anúncio (ainda que implícito) ou a transmissão de uma mensagem de um mal (que constitua um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexualou contrabens patrimoniais de considerável valor);
ii) Que o agente pretenda infligir futuramente;
iii) O qual dependa da sua vontade; e que,
iv) O anúncio seja adequado a provar medo ou inquietação, ou que possaprejudicar a liberdade de auto-determinação da vítima.
Quanto ao elemento subjectivo, o agente tem de actuar com dolo, em qualquer uma das suas modalidades.
A questão levantada prende-se, pois, com saber se a conduta do arguido configura uma “simulação de ameaça” feita por terceiro.
Conforme defende Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 350, “(…) a resposta depende da relação entre o simulador e o terceiro. Se o simulador apresenta o crime a, supostamente, praticar pelo terceiro como dependente dele (simulador), a conduta (a simulação da ameaça) subsumir-se-á ao art. 153º, pois que uma tal conduta é susceptível de provocar medo ou inquietação e, por outro lado, a existência de uma verdadeira ameaça não exige a real dependência do “crime ameaçado” da vontade do agente, bastando que apareça ao ameaçado como dependente do ameaçador (…), nem pressupõe a intenção do agente de concretizar a ameaça, isto é, de praticar o crime objecto da ameaça. (…) Se, pelo contrário, o simulador apresenta o crime a, supostamente, praticar por um terceiro como independente dele, então já uma tal conduta não se pode configurar como ameaça, caindo, portanto, fora do âmbito do art. 153º. (…)”.
Ora, perfilhando este entendimento, a expressão: “os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB”, dirigida pelo arguido aos militares da GNR não poderá deixar de se considerar integradora de uma verdadeira ameaça, porque, efectivamente, atenta a relação familiar (primos) entre aquele e os 3ºs que, alegadamente, iriam praticar os factos anunciados, a mesma é apta a fazer crer aos “ameaçados” que a sua concretização depende apenas da sua vontade, concretizável através de um simples pedido àqueles seus familiares.
Nestes termos, considerando o supra referido, é manifesto que não assiste razão ao arguido/recorrente quanto ao alegado lapso manifesto na apreciação de direito da matéria dada como provada, designadamente quando o Tribunal considerou existir um concurso efectivo entre o crime de resistência e coacção sobre funcionário e os três crimes de ameaça agravada pelos quais foi condenado, não existindo assim qualquer violação do disposto no artigo30º,nº 1, do Código Penal e não merecendo a mesma, por isso, qualquer tipo de reparo. Por outro lado, também a expressão dirigida pelo arguido aos militares da GNR - “os meus primos vão atrás de vocês e da tua família BB” -, é, pelos motivos expostos, apta a integrar o conceito de ameaça, devendo, por isso, ser considerada para efeitos da condenação daquele pela prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário.”
Com efeito, atentando na matéria fáctica assente e considerando ainda os elementos típicos dos crimes logo se alcança que os atos constitutivos dos crimes de ameaça não foram meros instrumentos de comissão do crime de resistência e coação sobre funcionário, pois que quer nos atos que configurariam as ameaças, quer nos que definiriam a resistência e coação sobre funcionário , ficaram delineadas atividades, atos conducentes à prática de ambos,– ameaças e resistência e coação sobre funcionário -, que deverão ser penalizados autonomamente, não se bastando o ordenamento jurídico com a punição de um só, pelo que por tais crimes, ameaças e resistência e coação sobre funcionário deverá o arguido/recorrente ser responsabilizado.
E isto porque não se deteta no comportamento do arguido/recorrente “unidade de sentido social do acontecimento ilícito global”, não ocorrendo in casu a unidade de sentido de ilicitude típica que leva a concluir pela unicidade criminal, pelo que não merece censura a decisão do tribunal recorrido que concluiu pela existência de concurso efetivo entre os crimes de ameaça e o crime de resistência e coação sobre funcionário.
O recurso, é, pois, improcedente.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
- Condenar o recorrente em 3 UCs de taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 18 de abril de 2023

Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
J. F. Moreira das Neves