Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
164/17.4T9EVR.E1
Relator: ANA BRITO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Sendo a acusação formalmente válida – ou seja, passando na triagem das als a), b) e c) do n.º 3 do art. 311.º –, trata-se sempre de saber – no caso da alínea d) –, se ela “merece ser discutida”. Ou seja, se há razão para sujeitar a pretensão do Ministério Público a um debate público e contraditório em julgamento.

2 - Daí que o conceito de “manifestamente infundada” implique sempre um juízo sobre o mérito da acusação, que, embora formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando, por isso, o debate.

3 - É hoje incontroverso que, momento a que se refere o art. 311.º do CPP, o juiz não pode decidir do mérito da acusação por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efectuada pelo Ministério Público.

4 - A alínea d), do n.º 3 do art. 311.º do CPP não visa dar guarida a um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório, e que lhe permita antecipar para um momento processual anterior uma decisão que lhe cumpre proferir apenas em julgamento.

5 - O juiz é sempre livre de aplicar o direito (princípio da livre aplicação do direito), mas não pode é antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando esta for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.

6 - A matéria dos crimes contra a honra, a relevância penal de comportamentos ofensivos da honra e consideração pessoal, tem suscitado conhecida controvérsia doutrinária e jurisprudencial. E se os factos narrados na acusação podem, em abstracto, ser atentatórios de um bem jurídico não pode aquela ser considerada como manifestamente infundada em momento anterior ao julgamento.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo comum singular n.º 164/17.4 T9EVR, Tribunal de Comarca de Évora, foi proferido despacho em que a Senhora Juíza decidiu rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Púbico contra o arguido (…), por considerar que os factos nela descritos não constituíam crime.
Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:
“1. O despacho recorrido violou o disposto no artigo 311° n.º 2 alínea a) e n.º 3 alínea d) do CPP porquanto a rejeição da acusação fundamentada no juízo de que os factos descritos na mesma não constituem crime só pode ocorrer em situações em que se mostre evidente, claro, inequívoco e incontroverso que a factualidade em causa não é suscetível de enquadrar a prática de crime.
2. Se a possibilidade de o Tribunal ter uma interpretação jurídica dos factos diversa da que foi feita por quem deduziu a acusação não fundamenta a rejeição da acusação, sob pena de violação do princípio do acusatório, menos a pode fundamentar o juízo de valor formulado sobre os factos.
3. No caso em apreço tanto não é inequívoca e incontroversa a interpretação/valoração efetuada pela Mma Juíza recorrida que a própria, perante a acusação deduzida, seleciona factos que apresenta como passíveis de enquadrar a prática de crime de difamação e só afasta a verificação de tal crime após proceder a um raciocínio que, salvo o devido respeito, só lhe é permitido em sede de sentença e não de apreciação da acusação à luz do art. 311° do CPP.
4. Ao decidir como decidiu a Mma Juíza debruçou-se sobre o mérito da acusação, em violação do princípio do acusatório, já que apenas lhe era permitido concluir se a mesma padece ou não de vícios estruturais de tal modo graves que a destinam ao insucesso.
5. No caso dos autos, a acusação apresenta-se estruturalmente correta e as afirmações constantes da missiva nela transcrita - em particular as realçadas pela Mma Juíza no douto despacho recorrido - indiciam suficientemente a verificação de uma ofensa na perspetiva do preenchimento do crime de difamação imputado ao arguido, na medida em que colocam em causa a honra, bom nome, integridade moral e a reputação do ofendido no âmbito das funções que lhe estão confiadas enquanto guarda prisional.”
Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, pronunciando-se fundamentadamente no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Os presentes autos foram remetidos à distribuição para o efeito do disposto nos artigos 311.º e seguintes do CPP.
O artigo 311.º do CPP, que inicia o livro VII relativo ao julgamento, refere-se ao saneamento do processo, ou seja, ao conhecimento das questões que podem obstar à prossecução do processo. Caso nada obste, então será designado dia para a realização da audiência.
Dispõe este artigo:
« 1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n. o 1 do artigo 284. o e do n. o 4 do artigo 285. ~ respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente
infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime».
Portanto, aquando do saneamento do processo, e quando não tenha havido instrução, o juiz pode rejeitar a acusação se esta for manifestamente infundada e isso sucede quando ela não contiver a identificação do arguido, a narração dos factos, a indicação das normas legais ou das provas ou se os factos narrados não constituírem crime.
A acusação é condição indispensável ao julgamento, pois é nela que se fixa o objecto do processo. Daí que ela tenha que descrever, na integra, os factos imputados ao arguido e o crime(s) que esses factos configuram. Ou seja, a acusação tem que se bastar a si própria, de forma a suportar uma eventual condenação. Daí a rejeição da acusação quando isto não ocorra, ou seja, quando aquela acusação não possa determinar uma condenação. Naturalmente, esta sindicância restringe-se à análise da acusação em si própria.
Por outro lado, é pacifico que alínea a) do n. 2 do artigo 311.º do CPP inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária.
A circunstância do Tribunal entender que os factos descritos não integram a prática de um crime deve ser, naturalmente, casuística.
Vejamos.
Vem o Ministério Público deduzir acusação contra (…) quando na verdade o nome do arguido é (…), como resulta à exaustão dos autos.
Imputa-lhe a prática de um crime de difamação agravada, porquanto,
Em dia não concretamente apurado do mês de Janeiro de 2017, o arguido remeteu ao TEP de Évora missiva, onde proferiu as seguintes afirmações:
" ... Durante o mandato da Dr.ª (…) que saiu recentemente, a Dr. o trouxe consigo o Chefe Principal da cadeia com ela, o Sr.° (…).
Relativamente a esse senhor, pôs a munha vida em risco por diversas vezes e fui muitas vezes por informações que ele devia manter e não o fez.
Durante o tempo em que este EP tinha 3 ou 4 reclusos agora ... o que transformaram este EP em algo em que as regras não imperam e pela capacidade financeira que tinham, alguns guardas prestavam obediência quando se percebe que o chefe até a reclusos dava informações a munha vida começou a ficar em risco, mas como estava em regime aberto, todos têm que justificar um olho negro ou duas costelas ou dentes partidos.
Em Janeiro de 2016 como ia ser ouvido para a pulseira pedi para falar com o chefe como fiz com os restantes técnicos para ter noção do que podia esperar, o mesmo me começou peça 3 vez a relacionar com negócios de tráfico que terá que justificar e disse que o parecer era negativo e eu já tinha cozido quatro ou cinco pessoas.
Quando cheguei ao regime aberto fui recebido com extrema violência pq ele ... um recluso que eu tinha lá estado a contar certas coisas e nada disso se tinha passado, o pai telefonou para o pai e fui brutalmente espancado.
O Chefe (…) disse que o chefe ... era o braço direito dele mas desde então algo que eu poderia fazer para melhorar o ambiente, ignorei as retaliações eu sabem a que vinha nada tinha a temer, pq fazia o que me competia, mas como ele ficou às escuras pq não tinha olhos lá fora.
Em Junho de 2016 por causa da comida, sem comida o mesmo mudou-se regressa ao regime interno e aí sabia que a minha vida ser tomaria um inferno e tem sido, com violência física e psicológica, extorsões mas essas guardo para quando sair.
( ... )
Passados 3 dias de estar no regime comum, depois do fecho aconteceu algo inusitado, 5 guardas fizeram uma rusga à minha cela e com detector de metais a 1.0 vez que vi.
Não presenciei porque nos puderam ficar na cela e já quando todos os guardas iam a sair e já estava fora da cela, um disse que encontrou um telemóvel e sei que foi colocado, passado 3 dias, alias de 4 em 4 dias começaram-se a fazer rusgas só a mim o intuito era conseguirem um processo disciplinar para que a L.C. fosse indeferida, o ultimo processo foi por causa de um relógio de mesa-de-cabeceira e um cinzeiro!
Vários guardas mais velhos falaram comigo, me aconselharam a me dizer (…) muda de EP, (…) nós só fazemos o que ele manda entre outros.
Quando chegou o Sr. Director novo expus a situação então as rusgas acabaram mas deu indicações ao graduado da visitas (isto o chefe) para que fosse alvo de desnudamento sempre a assim tem sido até os guarda se sentem desconfortáveis porque me conhecem e sabem que sou um recluso tranquilo e não saio da cela, para o banho e para visitas, temo a minha segurança, a 2 ou 3 meses que tento falar com o novo director sem sucesso.
Esta semana um recluso tb vindo do regime aberto, matou-se nessa noite numa cela ao lado da minha e o próprio Chefe (…) insinuou que teria sido melhor eu, pq eu lhes dou trabalho e até eu sair nada mais teria direito a nada.
Fui colocado num local para cumprir uma pena, sou uma pessoa vulnerável e abuso de pessoas que têm a seu cargo pessoas consideradas vulneráveis é crime, exposição ao abandono, tortura, abuso de poder.
Sempre que informei a DGRS, a situação aqui piorou, a nível do EP, até os próprios guardas sentem que sou perseguido e a justificação alegadamente é a minha participação em negócios ilícitos, com tal pretendo acusar o Chefe (…) de difamação porque tem que provar iSSO.
Sinceramente cheguei ao ponto de rotura, sei que a DGRS é complacente até porque já criaram o posto de comissário para este chefe.( ... )"
Dispõe o artigo 180.º do Código Penal que,
1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
Por seu turno, o artigo 184º do Cód. Penal,
As penas previstas nos artigos 180.º 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n. o 2 do artigo 132.º no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.
A alínea l) do n° 2 do artigo 132.º abrange, como é sabido, os guardas prisionais.
Ora,
Olhando para a acusação, os únicos factos que vislumbramos poderem ser efectivamente tipificados como crime de difamação (ou bem assim de qualquer outro) seriam:
Relativamente a esse senhor, pôs a minha vida em risco por diversas vezes o chefe até a reclusos dava informações o mesmo me começou pela 3 vez a relacionar com negócios de tráfico que terá que justificar e disse que o parecer era negativo e eu já tinha cozido quatro ou cinco pessoas. matou-se nessa noite numa cela ao lado da minha e o próprio Chefe (…) insinuou que teria sido melhor eu, pq eu lhes dou trabalho e até eu sair nada mais teria direito a nada.
No crime de difamação o que está em causa é a ofensa à honra e consideração da pessoa visada.
Com efeito, protege-se a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas.
Temos sempre que ter presente que nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações susceptíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado.
Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Como se diz no perfeitamente actual acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/10/2004, em que é relator a Exma. Sra. Juiz Desembargadora Nazaré Saraiva, "Difamar e injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública - cfr. ac. da ReI. De Lisboa de 6.2.96, CJ I, 156.
No entanto, vem-se entendendo, unanimemente, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts 180.º e 181.º do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa (uma vez que os crimes de difamação e de injúria são crimes de perigo).
Como escreveu Beleza dos Santos «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...)." v. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92°, pág. 167.
Com efeito, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena - ob. cit. págs 165 e 166.
Aliás, nesta linha, decidiu o ainda actual Ac. da ReI. de Évora, de 02/07/96, onde se escreveu: «Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração" - cfr., CJ96, IV, 295.
Por outro lado,
A liberdade de expressão tem longínquas raízes históricas, surpreendendo-se na Constituição dos EUA, o primeiro texto legal a referir-se claramente a tal liberdade.
São cada vez mais frequentes os conflitos entre o direito à honra, bom nome e reputação, por um lado, e o direito de expressão do pensamento, por outro.
Numa sociedade democrática, a liberdade de expressão reveste a natureza de verdadeira garantia institucional, impondo por vezes, um recuo da tutela jurídico-penal da honra. Recuo, que tem que ser justificado por um correcto exercício da liberdade de expressão, aferido pelo interesse geral.
Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão, na mais ampla acepção do termo e o direito à honra e consideração, a solução do caso concreto, há-de ser encontrada através da «convivência democrática» desses mesmos direitos: i. é., consoante as situações, assim haverá uma compressão maior ou menor de um ou outro.
Diz ainda no Ac. TRE de 28-05-2013,
A análise do artigo 180.º (Difamação) do Código Penal português só pode fazer-se (e está dependente da leitura que se faça) à luz prevalecente do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra deve orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, realidade que é a expressa na ordem jurídica enformada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como o é a portuguesa.
Dito isto,
o que está em causa é uma situação entre um recluso e um guarda prisional.
Como é sabido, o meio prisional é um meio muito especifico, tendencialmente tenso, onde os guardas prisionais devem ter, e têm, uma formação especial para lidar com as situações que surgem no dia a dia.
Parece-nos legitimo concluir que, nas prisões, será sempre difícil equilibrar o binómio ordem e segurança, porque são frequentes as fricções geradas pela convivência forçada e em espaço reduzido, muitas vezes com poucos meios humanos.
Se é verdade que um dos deveres dos reclusos é "observar conduta correcta, designadamente para com os funcionários prisionais, outras pessoas que desempenhem funções no estabelecimento prisional, autoridades judiciárias, entidades policiais e visitantes;", é igualmente verdade que, tal como as forças de segurança, os seus guardas têm que estar preparados para uma certa animosidade que não é, diga-se, incomum.
Naturalmente que não nos podemos olvidar que expressões como as utilizadas pelo aqui arguido serão muito provavelmente frequentes, não só em conversas entre reclusos, como até em missivas dirigidas aos Tribunais.
Posto isto, entendo que as expressões utilizadas não são de molde a ser consideradas ofensivas por não conterem um juízo eticamente reprovável que mereça tutela penal, até porque se enquadram num contexto de "queixa" do recluso, e devem, a nosso ver, ser consideradas como um exercício de liberdade de expressão.
Como se disse, a interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra deve orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, pelo que, tendo em conta ademais o contexto em que os factos ocorreram, entendemos que os mesmos, embora deselegantes, não merecem efectiva censura penal.
Por fim,
Considerando que a rejeição da acusação pode ainda ter lugar por manifesta insuficiência de prova indiciária, sempre se dirá que, em inquérito, o arguido não prestou declarações, o alegado ofendido limitou-se a remeter para a queixa que apenas refere que as afirmações proferidas pelo arguido são falsas e atentatórias da sua honra, e em termos probatórios apenas nos cingimos à dita missiva ora em causa.
Não se recebe, pois, a acusação deduzida contra o arguido, por julgar que os factos em causa não constituem crime.”

3. De acordo com as conclusões do recorrente, que delimitam o âmbito do recurso, a questão a apreciar consiste em saber se a situação processual configurada nos autos representa um caso de “acusação manifestamente infundada” e, como tal, merecedora de rejeição judicial.
Dito de outro modo, cumpre apreciar se a acusação supra transcrita se enquadra na previsão da alínea d) do n.º 3 do art. 311.º do CPP.
Da resposta afirmativa decorrerá que o juiz de julgamento se conteve nos limites dos poderes de decisão que possui, no momento processual a que se refere o art. 311.º do CPP. Referimo-nos à margem de actuação que decorre das “dimensões orgânico-subjectiva e material” do princípio legal e constitucional do acusatório, princípio reforçado na reforma de 1998 (CPP anotado, Vinício Ribeiro, p. 879. Sobre a evolução e actual sentido da norma pode ver-se ainda o CPP anotado por Maia Gonçalves, que teve activa intervenção na versão actual do referido n.º 3).
Os casos de acusação manifestamente infundada encontram-se previstos nas três alíneas do n.º 3 do art. 311.º, cuja redacção (inexistente na versão originária do código) provém da Lei n.º 59/98.
Esta nova versão do art. 311.º fez caducar a jurisprudência anteriormente fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/93, no sentido de que a “acusação manifestamente infundada” incluía a rejeição por manifesta insuficiência de prova indiciária.
Actualmente, o único verdadeiro caso de “acusação manifestamente infundada” encontra-se na al. d) (do n.º 3 do art. 311.º do CPP) – “se os factos não constituírem crime” –, já que as situações previstas nas restantes alíneas – quando a acusação não contenha a identificação do arguido, a narração dos factos, as disposições legais aplicáveis ou as provas – configuram casos de nulidade de acusação (assim, Damião da Cunha, RPCC 18, 2 e 3, p. 211).
De todo o modo, sendo a acusação formalmente válida – ou seja, passando na triagem das als a), b) e c) do n.º 3 do art. 311.º –, trata-se sempre de saber – no caso da alínea d) –, se ela “merece ser discutida”. Ou seja, se há razão para sujeitar a pretensão do Ministério Público a um debate público e contraditório em julgamento (Damião da Cunha, loc. cit.,, p. 214).
Daí que o conceito de “manifestamente infundada” implique sempre um juízo sobre o mérito da acusação, que, embora formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando, por isso, o debate.
O objecto do processo delimitado na acusação, a acusação, compreende uma questão de facto e uma questão de direito, interligadas num “insolúvel círculo lógico” (na expressiva asserção de Castanheira Neves). Assim, a acusação compreende a descrição dos factos e a indicação dos crimes, ou seja, das normas legais aplicáveis.
É hoje incontroverso que, momento a que se refere o art. 311.º do CPP, o juiz não pode decidir do mérito da acusação por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efectuada pelo Ministério Público. E assim é, opostamente ao que se afirmou no despacho recorrido, caindo pois um dos fundamentos em que este se estribou.
Na verdade, da estrutura acusatória do processo decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto e do crime que imputa ao arguido. É ao acusador que cabe a iniciativa da definição do objecto de uma acusação. E, nesta tarefa, não pode ser nem ajudado, nem corrigido pelo juiz, sob pena de violação do modelo acusatório estruturante do processo penal português.
Este modelo impede que o juiz se desvie do seu lugar de terceiro imparcial e supra-partes, na tríade juiz-acusador-arguido. É a esta imparcialidade que também se refere o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e a estrutura acusatória do processo tem, como se sabe, garantia constitucional (art. 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa).
Numa abordagem inicial, dir-se-á então que a margem de actuação do juiz de julgamento, no momento em que recebe a acusação, se confinará necessariamente ao enquadramento jurídico dos factos tidos já como suficientemente indiciados pelo acusador público. Mas mesmo esta margem de conhecimento (sobre a questão de direito), limitada à valoração jurídica da factualidade imputada pelo Ministério Público a um arguido, não é irrestrita. Bem pelo contrário.
Os poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos. E o sentido da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12 de Junho de 2013 introduziu-lhes ainda maior compressão. Este acórdão uniformizador vai no sentido de “a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da interpretação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP”.
Neste acórdão, o Supremo discorre sobre e momento para o juiz decidir sobre a qualificação jurídica, afirmando que, “sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza”, esse momento é quando se encontra já a julgar o mérito do caso concreto. E que “cada autoridade judiciária terá de actuar no momento processual que lhe compete” (itálicos nossos).
Em voto de vencido em cuja argumentação nos revemos (a obrigação de acatamento das decisões respeita à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça e não à argumentação desenvolvida na fundamentação), considerou-se que no início da audiência “o tribunal pode corrigir a qualificação jurídica dos factos da acusação e da pronúncia se a correcção for instrumental de qualquer outra decisão que lhe caiba proferir”. Mas também não é essa a situação que ocorre aqui.
No caso sub judice, não está em causa uma apreciação jurídica dos factos do género “mera alteração de qualificação jurídica”, mas antes um juízo sobre a própria atipicidade da conduta imputada.
Esta hipótese – de atipicidade da conduta imputada – encontra-se contemplada na previsão do art. 311.º, n.º 3, al. d), e é fundamento legal expresso de rejeição da acusação, o que altera os dados do problema resolvido na uniformização de jurisprudência citada.
Contudo, à interpretação do sentido da norma aplicanda (a alínea d) do n.º 3 do art. 311.º do CPP) não é alheia a compreensão que se assuma do modelo do processo e da concreta delimitação da margem de actuação do juiz, nos moldes expostos, sendo úteis outros elementos de que o intérprete se possa ( e, logo, deva) pertinentemente socorrer.
Na verdade, o Ministério Público fixa o objecto do processo, e o objecto do processo é definido pela narração dos factos e a imputação de um tipo e de um número de crime(s). O juiz de julgamento está absolutamente impedido de mexer nos factos dessa acusação, no momento a que se refere o art. 311.º do CPP, e também relativamente impossibilitado de alterar a qualificação jurídica desses mesmos factos. Assim, e nesta segunda hipótese, não o deverá fazer, quando dessa alteração (da qualificação jurídica) não decorra, imediata e claramente, uma consequência que se repercuta, também imediata e claramente, no desenrolar do próprio processo.
A estrutura acusatória do processo impede que o julgador se confunda com o acusador. O que, ainda dentro da interpretação do acórdão de fixação de jurisprudência a que fizemos referência (restritiva dos poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento), mas também ainda ao encontro da visão desenvolvida no voto de vencido na parte que releva aqui, será “manifestamente infundada” apenas a acusação cujos factos narrados não constituam claramente crime.
Dito de outro modo, a alínea d), do n.º 3 do art. 311.º do CPP não visa dar guarida a um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório, e que lhe permita antecipar para um momento processual anterior uma decisão que lhe cumpre proferir apenas em julgamento.
O juiz é sempre livre de aplicar o direito (princípio da livre aplicação do direito), mas não pode é antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando esta for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
Ora, a posição defendida no despacho recorrido sobre o mérito da causa, e que levou à rejeição da acusação, não se apresenta desde já como clara e inequívoca. Ou seja, no presente caso, não se mostra evidente ou manifesta a atipicidade da conduta imputada, descrita factualmente na acusação. Pelo contrário, a decisão sobre a tipicidade envolve aqui, até, a ponderação sobre valores constitucionais em concreto conflituantes.
A matéria dos crimes contra a honra, a relevância penal de comportamentos ofensivos da honra e consideração pessoal, tem suscitado conhecida controvérsia doutrinária e jurisprudencial. E se os factos narrados na acusação podem, em abstracto, ser atentatórios de um bem jurídico, como sucede aqui, não pode aquela ser considerada como manifestamente infundada em momento anterior ao julgamento. Razão pela qual o despacho recorrido deve ser substituído por outro, que receba a acusação, sujeitando-a ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se depois, oportunamente e livremente, a questão de facto e a questão de direito, na sentença.
Daí que se acompanhe o parecer do Senhor Procurador-geral Adjunto nesta Relação, designadamente quando afirma que “a al a), do n.º 2, do artº 311.º, do CPP não inclui a possibilidade de a Acusação ser rejeitada por insuficiência da prova indiciária (nem sequer se podendo aquilatar se é manifesta, ou não, justamente por ser insindicável), sendo que tal questão é incontroversa desde a redacção que à norma foi conferida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, pondo fim a uma longa controvérsia jurisprudencial e doutrinária que, a esse respeito, se vinha desenrolando”, que “o Acórdão 101/2001 do TC considerou que “a norma do artigo 311.º,n.º3, do CPP, que veda ao juiz de julgamento a possibilidade de rejeitar a acusação manifestamente infundada por insuficiência da prova indiciária, no caso de não ter havido instrução, não viola as garantias de defesa do arguido e não atenta contra o princípio da presunção de inocência, nomeadamente por não proceder à inversão de qualquer ónus probatório em desfavor do arguido, não sendo por isso inconstitucional”, e que no caso presente, “ainda que tendo em consideração que se trata de uma exposição dirigida a um Tribunal por pessoa que se encontra detida e, consequentemente, a quem não poderá deixar de ser reconhecido um direito acrescido de reclamar, a factualidade descrita na Acusação, nomeadamente, o conteúdo da exposição que o Arguido dirigiu ao TEP, nela visando o Participante, Mário João Gameiro de Oliveira, constituirá, no mínimo, um caso de fronteira, decorrente da tensão invariavelmente presente entre, por um lado, a liberdade de expressão (aqui potenciado pelo direito de reclamar, nomeadamente, perante as instâncias judiciais, como foi o caso) e, por outro, o direito ao bom nome e à honra e consideração. E justamente por se tratar de um caso limite, a sede própria para dirimir o conflito será o julgamento, que não, precocemente, tomar posição, acolhendo um de entre vários entendimentos possíveis.”

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal em julgar procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que receba a acusação.
Sem custas.
Évora, 10.11.2020
(Ana Barata Brito)
(Leonor Vasconcelos Esteves)