Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2727/18.1T8STR-C.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Quando se consagra na sentença, como regra, a exclusão do rendimento mínimo da Recorrente da quantia equivalente a um salário mínimo nacional e meio (1,5 SMN), tal tem aplicação (nada se referindo em sentido contrário) também nos meses em que o rendimento da Recorrente incluir os subsídios de férias e de Natal.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2727/18.1T8STR-C.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório.
1. (…), divorciada, residente na Travessa dos (…), nº 48, (…), Abrantes, apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante.
Declarada a insolvência, foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e depois proferido despacho inicial, em cujo dispositivo designadamente se consignou:
“Perante o acima exposto, declaro que a exoneração do passivo restante será concedida findo o período de cinco anos.

Assim, durante esse período, o rendimento disponível que a devedora obtenha, em tudo o que exceder a quantia equivalente a um salário mínimo nacional e meio, se considera cedido ao Sr. Fiduciário, que será nomeado em seguida. Igualmente se considera como rendimento disponível para efeitos de entrega o correspondente a subsídios de férias e de natal que venham a ser recebidos pela insolvente.”


2. É desta decisão que a Insolvente recorre concluindo assim as suas alegações:
1 – O agregado familiar da Recorrente é composto pela própria e por dois filhos, ambos menores à data da propositura da ação: a (…), atualmente com 17 anos (atualmente com 18) e o (…) com 4 anos (atualmente com cinco);
2 – A Recorrente apresentou, na p.i., um núcleo de despesas, do agregado familiar e com ambos os filhos, que esgotam completamente e até ultrapassam, o valor do seu rendimento mensal;

3 – Despesas essas que não foram impugnadas por nenhum dos credores, nem intervenientes no processo, pelo que, devem os factos respetivos considerarem-se como provados, dado que o ónus da prova em contrário cabia ao Sr. Administrador da Insolvência ou aos credores, conforme entendimento jurisprudencial maioritário;

4 - Por outro lado, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não efetuou uma análise crítica dessas alegações, nem das provas documentais juntas pela Recorrente, pelo que, esses factos devem ser dados como provados;

5 – Por outro lado, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não teve em conta o padrão de vida familiar da Recorrente, mas teve mais em conta a satisfação dos direitos dos credores, não tendo sido tomado em consideração as despesas que a Recorrente tem com os filhos, as quais nem sequer foram analisadas;

6 – No caso concreto, justifica-se que, pelo menos 50% dos subsídios de férias e de Natal sejam disponibilizados à Recorrente, dado que se afiguram necessários a um sustento minimamente condigno da mesma e respetivo agregado familiar;

7 – De acordo com as regras da experiência comum, se a Recorrente esgota mensalmente o seu salário com os encargos básicos, e por vezes o mesmo não é suficiente, é manifesto que lhe faltam meios económicos para acudir a despesas com os filhos, em idade escolar e em fase de crescimento, nomeadamente a nível de material escolar, bem como para despesas extraordinárias que, infelizmente, surgem no dia-a-dia, nomeadamente com avaria de eletrodomésticos, doenças, entre muitas outras;

8 - Também se admite que o insolvente tem que ser, de alguma forma, “penalizado” durante o período da fidúcia, mas, há que atender ao caso concreto, sendo que esses subsídios mostram-se necessários a um sustento minimamente condigno da Recorrente e do seu agregado familiar, durante cada um dos doze meses do ano civil;

9 – O facto da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não ter efetuado uma apreciação detalhada de todas as vertentes dos encargos que a Recorrente tem e que justificou na p.i., não tendo os mesmos sido impugnados, faz com que falte o exame crítico a que no fundo alude o que, tudo conjugado, conduz à nulidade da decisão;

10 - Como tal, a decisão em causa deve ser revogada e substituída por outra que defira a pretensão da Recorrente, sendo fixado como rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título à devedora, com exclusão do rendimento mensal correspondente a um salário mínimo nacional e meio durante doze meses de cada ano, e ainda, o correspondente a 50% dos subsídios de férias e de Natal.

11 - Mostrando-se violados os artigos 574º, nº 2; 607º, n.º 2, 615 n.º 1, b), do Código de Processo Civil e artigos 238º, nº 3 e 239º, nº 3, do CIRE. JUSTIÇA!!!!”

Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.

II Objeto do recurso.
As conclusões da motivação do recurso delimitam o seu objeto (artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do CPC); vistas estas, são as seguintes as questões colocadas (i) impugnação da decisão de facto, (ii) se o montante para o sustento minimamente digno da recorrente e do seu agregado familiar deverá englobar 50% dos subsídios de férias e de Natal.

III- Fundamentação.
1- Factos

A decisão recorrida fundamentou-se nos seguintes factos julgados provados:

1. A Devedora reside em casa de familiares, a seu cargo tem dois filhos.

2. A devedora aufere mensalmente a quantia de € 620,00.

2. Direito

Se o montante para o sustento minimamente digno do agregado familiar da Recorrente deverá englobar 50% dos subsídios de férias e de natal.
Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, nos termos do art. 239º, nºs 1 e 2, do CIRE[1] (como o serão os demais artigos infra referidos sem indicação do diploma de origem) no qual determinará que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, denominado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário para os fins do artigo 241º do CIRE.
Findo o período da cessão (do rendimento disponível), será então proferida decisão sobre a concessão, ou não, da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (art. 244º) e, com o deferimento desta, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados (artº 245º), não abarcando a exoneração os créditos por alimentos, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários (artº 245º, nº 2).
A cessão temporária do rendimento disponível é, assim, uma condição da exoneração do passivo restante e representa, no equilíbrio dos interesses em presença, o esforço mínimo que a lei exige ao devedor para legitimar aos olhos dos credores a liberação definitiva quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, permitindo-lhe um «novo arranque» em termos económicos.
A lei dispõe sobre os critérios para o cálculo do rendimento disponível do devedor requerente da exoneração do passivo restante, são todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exclusão:
“a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor” – cfr. artº 239º, nº 3.
Para calcular o rendimento disponível do devedor, importa em primeiro lugar subtrair aos rendimentos que lhe advenham a qualquer título, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
A lei fixa, assim, um limite máximo para o que considera ser o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – três salários mínimos – mas não fixa um valor mínimo.
E este, buscando apoio no pensamento expresso pelo legislador noutros domínios deve partir do salário mínimo nacional, expressão, no domínio da lei ordinária, do princípio constitucional da retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência condigna [artº 59º, nº 1, al. a), da CRP].
A demanda casuística do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar deverá empreender-se, assim e em princípio, entre uma vez e três vezes o salário mínimo nacional, sendo o intervalo entre tais limites ajustado em função dos rendimentos do devedor, das despesas deste e do seu agregado, sendo o caso, e dos montantes mais ou menos avultados das dívidas cuja exoneração se visa obter.
No caso, prova-se que a Recorrente aufere um vencimento mensal de € 620,00, que tem a seu cargo dois filhos e que reside em casa de familiares.

Este o quadro factual que justificou, em 1ª instância, a exclusão do rendimento disponível da Recorrente do seguinte:

“(…) durante esse período, o rendimento disponível que a devedora obtenha, em tudo o que exceder a quantia equivalente a um salário mínimo nacional e meio, se considera cedido ao Sr. Fiduciário (…) Igualmente se considera como rendimento disponível para efeitos de entrega o correspondente a subsídios de férias e de natal que venham a ser recebidos pela insolvente.”

Segmento decisória que a Recorrente parece ter entendido, se bem vemos, por forma a excluir do rendimento disponível a totalidade dos subsídios de férias e de Natal e que a leva agora a pretender que tal exclusão incida apenas sobre 50% dos referidos subsídios.
Não cremos ser esta melhor interpretação.
A decisão recorrida consagra como regra a exclusão do rendimento mínimo da Recorrente da quantia equivalente a um salário mínimo nacional e meio (1,5 SMN), a qual tem aplicação (nada se refere em sentido contrário) também nos meses em que o rendimento da Recorrente incluir os subsídios de férias e de Natal, aliás, os únicos em que haverá efetiva cessão de rendimentos.
De facto, correspondendo o remuneração mínima garantida a € 600,00 (artº 2º, do D.L. nº 117/2018, de 27/12), uma vez e meia o seu valor importa em € 900,00, o que significa que nos meses em que a Recorrente recebe o seu vencimento em singelo (€ 620,00) não se verificará qualquer cessão de rendimentos; tal cessão só ocorre nos meses de recebimento os subsídios de férias e de Natal, meses em que o respetivo rendimento disponível, calculado de acordo com a sentença recorrida, será de € 340,00 [(620,00+620,00) – 900,00], pretendendo agora a Recorrente que tal quantia seja fixada em € 310,00 (620,00 x 50%).

A divergência colocada no recurso, ou seja o esforço económico que a decisão recorrida impõe à Recorrente para além daquilo que ela própria considera justo suportar para solver as suas dívidas – não se trata aqui, a nosso ver, de qualquer penalização, como se afirma no recurso, mas do pagamento de dívidas contraídas – expressa-se na quantia de € 60,00 anuais, assim comportando um valor diminuto no contexto da totalidade dos provados rendimentos da Recorrente € 8.680,00 (620,00 x 14).

E de tal forma diminuto que o juízo sobre o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, a nosso ver, não se altera em função dele, pois não será por dispor de mais € 60,00 ao fim do ano, a que corresponde € 0,16 diários, que o sustento da devedora e do seu agregado familiar será mais ou menos digno.

Ao considerar como rendimento disponível o que, em cada momento (inclusive nos meses de recebimento do subsidio de férias e de Natal), exceder a quantia correspondente a 1,5 SMN, a decisão recorrida afigura-se-nos ajustada.

Solução que se manteria válida ainda que se houvessem que provar as despesas do agregado familiar da Recorrente que, não obstante, por esta alegadas no requerimento em que deduziu o pedido de exoneração, não foram objeto de julgamento na 1ª instância; de facto, ainda que a decisão houvesse que ser anulada para a ampliação da decisão proferida sobre a matéria de facto (artº 662º, nº 2, al. c), do CPC), por forma a incorporar as alegadas despesas do agregado familiar da Recorrente e estas viessem a provar-se, como defende, não teriam qualquer influência no juízo antes formulado, razão pela qual, se julga prejudicado o conhecimento das questões de facto que a Recorrente suscita (artigos 608º, nº 2 e 663º, nº 2, ambos do CPC).

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

3. Custas

Vencida no recurso, incumbe à Recorrente o pagamento das custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.


IV. Dispositivo.
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 26 de Setembro de 2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho Mário Branco Coelho
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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo D.L. nº 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Leis 200/2004, de 18/8, 76-A/2006, de 29/3, 282/2007, de 7/8, 116/2008, de 4/6 e 185/2009, de 12/8 e pela Lei nº 16/2012, de 20/4.