Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/19.7T9SSB.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
IMPERATIVIDADE DA CONDIÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A densificação da estatuição do artigo 14.º do RGIT impõe a conclusão de que, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal ou à segurança social que preveja em alternativa pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão e optando-se depois pela suspensão da execução de tal pena, haver que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica, conforme superiormente decidido no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de setembro.
II - Os crimes tributários previstos apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – encontram-se fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, sendo que o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14.º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de desaplicação de lei expressa
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Sesimbra-J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, com o n.º 59/19.7T9SSB, foram os arguidos LDA, pessoa coletiva n.º …, titular do número de beneficiária da segurança social …, com sede …. e AAA, filha de (…) solteira, empregada de escritório, atualmente desempregada, (…), condenados nos seguintes termos:
A) A arguida LDA como autora material e na forma consumada e continuada de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2 do Código Penal e artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, e ainda p. e p. pelo artigo 7.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, na pena de 600 (seiscentos) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 3.000,00 (três mil euros);
B) A arguida AAA como autora material e na forma consumada e continuada, pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2 do Código Penal e artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, com sujeição à condição de, nesse prazo, a arguida proceder ao pagamento da prestação tributária devida, no valor total de € 63.969,17 (sessenta e três mil, novecentos e sessenta e nove euros e dezassete cêntimos), acrescida dos respetivos acréscimos legais, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.
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Inconformada com tal decisão, veio a arguida AAA interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“VI. CONCLUSÕES.
33 - Da interpretação conjugada do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e o artigo 51.º n.º 2, do Código Penal, resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
34 - Sabemos que o Tribunal “a quo” não se pronunciou concretamente sobre esta matéria, podendo dizer que se limitou a tomar como pressuposto que não devia ou não necessitava conhecer de tal matéria, fazendo-o por simples remissão para os pressupostos do artigo 50.º do Código Penal e depois sumariamente com meras afirmações, sem que delas fizesse qualquer juízo sobre a razoabilidade da condição imposta aplicando o artigo 14.º n.º 1 do RGIT.(vide neste sentido os Ac do TRE de 19.02.2013, AC TRL de 26.04.2014 e AC TRG de11.05.2015).
35 - Mas a verdade é que se impunha fazer esse conhecimento.
36 - Não o fazendo incorreu o mesmo tribunal numa omissão de pronúncia que consubstancia uma (invalidade) nulidade de sentença, pois deixou de pronunciar-se sobre uma questão que devia apreciar – cfr. Art.o 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
37 - Constatando-se a imposição a arguida/recorrente de uma pena de prisão declarada suspensa na sua execução, condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, dos valores indicados no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, à luz da jurisprudência recentemente fixada no Ac. do STJ de 8/2002, de 12-09, a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por omissão do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica».
38 - Esta omissão de pronúncia não pode ser suprida por esta via de recurso (mesmo por via do disposto no n.º 4 do Art.º 379.º do C.P.P.), pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição no que respeita a esta precisa questão omitida.
39 - A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao Tribunal de primeira instância para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, conhecendo-se nela da questão mencionada que o mesmo Tribunal deveria ter apreciado, e se necessário através da abertura do julgamento para realizar a prova adicional que habilite o Tribunal com a recolha tomada como omitida.
40 - Nos termos expostos, a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia quanto à não apreciação da questão mencionada (previsão e prognose do impacto actual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada a arguida), devendo o tribunal “a quo”, pelo mesmo Juiz, produzir uma nova sentença que dela conheça efectivamente, se necessário com a reabertura do julgamento para a produção dos meios de prova considerados suficientes e necessários para a consideração da situação sócio-económica actual e futura da arguida.
41 - Em julgar nula por omissão de pronúncia (art.º 379.º n.º 1 al. c) do C.P.P.) a nos sobreditos termos a sentença recorrida, nulidade que deve ser sanada com a prolação de nova sentença por parte do Tribunal recorrido se necessário com reabertura da audiência para produção de prova suplementar nos termos dos artigos 369.º e 371.º do Código de Processo Penal.”
Termina pedindo a declaração de nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º n.1 al. c) do Código de Processo Penal e a sanação de tal nulidade nos termos dos artigos 369.ºe 371.º do Código de Processo Penal.
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1) Veio a arguida, ora Recorrente recorrer da Douta Sentença condenatória, por discordar da medida da pena que lhe foi aplicada porquanto, o Tribunal “a quo” só pode impor o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resultaram existirem condições para que esta obrigação possa ser cumprida, e que ao não se pronunciar nesta matéria, tal omissão consubstancia a nulidade da Sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
2) Por força do artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena deverá ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo certo que toda a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, o que envolve uma proporcionalidade entre a pena e a culpa, exarando-se que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal.
3) À luz destes princípios, entendemos que a Douta Sentença recorrida doseou equilibradamente a pena aplicada à arguida.
4) A Douta Sentença, ora recorrida encontra-se bem fundamentada quanto à escolha da pena aplicada, não tendo deixado de se pronunciar em momento algum sobre qualquer questão sobre que cumprisse pronunciar-se.
5) Da prova produzida em julgamento, não vemos possibilidade de explicar os factos de forma diferente daquela que está consagrada na Douta Sentença recorrida;
6) Posto isto, e porque nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, dúvidas não temos de que o Tribunal “a quo” andou bem ao condenar a arguida nos moldes em que o fez;
7) A sentença condenatória está em conformidade com a prova produzida em julgamento, não padece de vícios nem nulidades e fez uma correta subsunção jurídica dos factos em apreciação, razão pela qual pugnamos pela sua manutenção.”
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Tendo tido vista do processo, a Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso, atendendo às conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação e considerando as questões de conhecimento oficioso, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir:
A) Determinar se a sentença recorrida enferma do vício de nulidade nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alíneas c) do Código de Processo Penal, por omissão do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica».
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II.II - A sentença recorrida.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados os seguintes factos:
“1) A arguida LDA, é uma sociedade comercial por quotas cujo objeto social é (…).
2) Em virtude do seu objeto social, a primeira arguida é contribuinte do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, com o número …. e, enquanto entidade empregadora, é responsável perante a Segurança Social pela entrega a esta entidade das contribuições devidas pelos trabalhadores e gerente em relação ao tempo em que estiveram ao seu serviço e deduzidas dos vencimentos pagos a estes.
3) O arguido BBB foi gerente da sociedade arguida desde a constituição da mesma e até, pelo menos, janeiro de 2015, apesar de, formalmente, só a tal cargo ter renunciado em 24/04/2015.
4) Durante o período em que manteve a gerência da sociedade arguida, competia ao arguido BBB a prática de todos os atos necessários à administração da mesma, designadamente, efetuar o desconto, nas retribuições dos respetivos trabalhadores, dos quantitativos legalmente devidos como quotizações para a Segurança Social, bem como o preenchimento e entrega das folhas de remuneração acompanhadas dos respetivos meios de pagamento desses quantitativos, que teriam como destino o Centro Regional de Segurança Social, cabendo-lhes, ainda, assegurar o pagamento efetivo das contribuições devidas a esta entidade.
5) A arguida AAA veio a assumir a gerência da primeira arguida a 25.05.2011, sendo que também à mesma competia a prática de todos os atos necessários à administração da mesma, designadamente, efetuar o desconto, nas retribuições dos respetivos trabalhadores, dos quantitativos legalmente devidos como quotizações para a Segurança Social, bem como o preenchimento e entrega das folhas de remuneração acompanhadas dos respetivos meios de pagamento desses quantitativos, que teriam como destino o Centro Regional de Segurança Social, cabendo-lhes, ainda, assegurar o pagamento efetivo das contribuições devidas a esta entidade.
6) Desde a data da constituição da primeira arguida, e em particular no período compreendido entre fevereiro e março de 2015, agosto de 2015 a janeiro de 2016 e maio e junho de 2016, a sociedade arguida exerceu, com regularidade, a sua atividade comercial, tendo ao seu serviço e sob a sua dependência laboral, para além dos seus gerentes, vários trabalhadores, designadamente, (………), os quais, na qualidade de trabalhadores por conta de outrem, estavam sujeitos à retenção na fonte das contribuições que deviam mensalmente ser entregues à Segurança Social.
7) Por esse motivo, os arguidos BBB pagavam, em representação da primeira arguida, mensalmente a tais trabalhadores as remunerações devidas a título de vencimento, delas deduzindo sempre as quotizações devidas por estes à Segurança Social, à taxa de 11%, relativa ao regime geral da Segurança Social dos trabalhadores por conta de outrem.
8) Os arguidos BBB e AAA, enquanto membros de órgão estatutário social da primeira arguida, gerente, deduziram, em representação da mesma, das respetivas remunerações as quotizações devidas à Segurança Social, à taxa de 11% relativas ao regime geral da Segurança Social dos membros dos órgãos estatutários sociais e entidades equiparadas.
9) Sucede que, nos meses de fevereiro e março de 2015, agosto de 2015 a janeiro de 2016 e maio e junho de 2016, a arguida AAA, por impossibilidade, dadas as dificuldades de tesouraria, decidiu não entregar à Segurança Social as quantias que efetivamente descontou das retribuições que pagou aos trabalhadores da primeira arguida, bem como as que descontou da sua retribuição e dos demais órgãos estatutários, optando por afetar esse dinheiro a outros fins.
10)Efetivamente, apesar de nos períodos supra referidos a arguida AAA, em representação da sociedade arguida, ter pago aos trabalhadores da primeira arguida os vencimentos devidos nesses período e de ter pago a sua própria remuneração enquanto gerente e de ter deduzido às mesmas os montantes correspondentes às contribuições devidas à Segurança Social, não entregou tais contribuições, no prazo legalmente estipulado, ou seja, até ao dia 20 do mês seguinte daquele a que respeita, como era sua obrigação, nem nos noventas dias subsequentes, nem em momento posterior.
11) Em concretização desse propósito, a arguida AAA procedeu ao desconto na retribuição dos trabalhadores da primeira arguida e à sua própria retribuição, e por conta das contribuições devidas à Segurança Social, nos termos dos quadros que seguem:
(…)
12)O valor global das contribuições efetivamente deduzidas das remunerações pagas aos trabalhadores da primeira arguida e ao gerente, administrada pelos arguidos e por eles exploradas, e não entregues à Segurança Social, no que respeita aos períodos temporais supra referidos, cifra-se em €63.969,17 (sessenta e três mil, novecentos e sessenta e nove euros e dezassete cêntimos).
13)Deste modo e como consequência da conduta descrita, a sociedade arguida obteve uma vantagem patrimonial indevida no montante global de €63.969,17, proveniente de quantias descontadas nas retribuições dos trabalhadores e gerente, a título de contribuições para a Segurança Social, quantia que integraram nos seus patrimónios e assim fizeram sua, em prejuízo da Segurança Social, utilizando-a na satisfação de outros encargos, em detrimento da Segurança Social, a quem tal importância deveria ter sido entregue, nos sucessivos prazos de pagamento voluntário, à qual acrescem os juros compensatórios respeitantes à mora no cumprimento da obrigação e decorrentes do atraso na entrega de tais contribuições.
14)No período de tempo compreendido supra, a sociedade comercial arguida teve atividade, obteve rendimentos e movimentou verbas e a arguida, pessoa singular, que exerceu funções de gerência, pagou os vencimentos aos trabalhadores da primeira arguida e dos órgãos estatutários, incluindo o seu próprio vencimento, aos quais deduziu as quantias devidas a título de quotizações para a Segurança Social.
15)Todavia, apesar de saber a arguida AAA, enquanto representante da sociedade arguida, que tinha a obrigação de entregar à Segurança Social as contribuições que efetivamente descontava a título de quotizações devidas à Segurança Social, dos vencimentos que mensalmente pagava aos funcionários da primeira arguida e aos órgãos estatutários, incluindo o seu próprio, a arguida decidiu não cumprir com tal obrigação, como podia e devia, optando por não entregar tais quantias à Segurança Social e integrá-las no património da sociedade arguida, bem sabendo que, desse modo, obtinha aquela uma vantagem patrimonial indevida e que, nessa medida, causava, como causou um prejuízo à Segurança Social, o que quis.
16)A arguida AAA não cumpriu, nos respetivos períodos de gerência, a obrigação que impedia sobre a primeira arguida de entregar tais quantias à Segurança Social, porque pretendia fazer da sociedade arguida tais importâncias.
17)A arguida AAA agiu, em todos os momentos, com vontade livre consciente, bem sabendo que o seu comportamento era e é proibido e punido pela lei penal, agindo sempre qualidade de representante legal da “LDA”, no interesse da sociedade arguida.
18)O comportamento supra descrito da arguida prolongou-se ao longo do tempo, através da prática de atos repetidos e reiterados, sempre por forma essencialmente homogénea e dentro do quadro da solicitação da mesma situação anterior, por dificuldades de tesouraria da sociedade arguida.
19) Os arguidos foram notificados, em 11.07.2019, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 53-A/06, de 29 de dezembro, aplicável, ex vi do artigo 107.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, para, no prazo de 30 dias, efetuar o pagamento das prestações em dívida e acima discriminadas, acrescidas de juros respetivos e da coima aplicável e, todavia, decorrido tal prazo, não procederam ao pagamento das quantias em dívida.
Das condições pessoais da sociedade arguida:
20)Foi constituída em 27.11.2007, tendo como objeto social (…)
21)O último registo de prestação de contas reporta-se ao ano de 2014.
22)Não tem registo de antecedentes criminais.
Das condições pessoais da arguida AAA:
23)Reside com dois filhos com 22 e 14 anos.
24)Encontra-se desempregada e, em agosto de 2021, recebeu subsídio de desemprego no valor de € 700,00 (setecentos euros), aproximadamente.
25)O filho de 22 anos exerce atividade profissional, encontrando-se a frequentar o curso de formação de Guardas ministrado pela Guarda Nacional Republicana.
26) Tem o 12.º ano de escolaridade.
27) Não tem antecedentes criminais registados.
2.2. Factos não provados com relevância para a decisão da causa
Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa.
Os restantes factos são conclusivos, respeitantes a matéria de direito ou repetidos, pelo que não foram elencados.”
Relativamente à determinação da medida da pena, e no que à economia do presente recurso releva, teceu o tribunal recorrido as seguintes considerações:
“(…) III – Da suspensão da pena de prisão
Dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Este artigo sofreu uma alteração, por força da Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, passando o seu n.º 5 a dispor o seguinte: “O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”
Na sua versão anterior, o n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal dispunha que “O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.”
Assim, tendo o legislador reduzido o período da suspensão para um a cinco anos, deixando de ser obrigatório que tal período tenha duração igual ao período estabelecido para a pena efetivamente aplicada, foi criado um regime mais favorável do que o anterior, pelo que será este considerado na situação aqui em causa, em conformidade com o disposto no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal.
Para que se possa aplicar este regime, é necessário que esteja cumprido o pressuposto formal: condenação prévia do agente em pena de prisão até 5 anos; e o pressuposto material: adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se impõem.
Por conseguinte, é pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes. Não se torna necessário que o julgador tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do arguido, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser alcançada.
As modalidades de suspensão da execução da pena são as seguintes: simples (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal), subordinada ao cumprimento de deveres (artigos 50.º, n.º 2, e 51.º do Código Penal) e /ou regras de conduta (artigo 50.º, n.ºs 2 e 3, e 52.º do Código Penal) e com regime de prova (artigo 53.º do Código Penal).
Nos termos do n.º 4 do artigo 50.º do Código Penal, a decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
No caso concreto, encontra-se preenchido o pressuposto formal para aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, porquanto foi aplicada ao/à arguido/a uma pena de prisão em medida não superior a cinco anos.
Relativamente ao pressuposto material, há a considerar que a arguida tem 47 anos de idade e não tem antecedentes criminais registados. Apesar de das suas declarações não se ter afigurado existir arrependimento pela sua conduta, nem interiorização da ilicitude da mesma, conclui-se que procede ainda um juízo de prognose favorável à reinserção social do/a arguido/a em liberdade e por isso, face à personalidade do/a mesmo/a, às condições da sua vida, à sua conduta posterior ao crime e às circunstâncias deste, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e merecer suspensão da execução da pena, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) anos.
Nos termos do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.”
Conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2006, processo n.º 06P1294:
“O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (arts. 103.º, n.º 1, e 104.º, n.º 3, da CRP), pelo que é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária e sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria seriamente comprometida, integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia”.
II - Por isso o jus puniendi de que o Estado se mostra detentor na luta contra os devedores de impostos e contribuições devidas à Segurança Social, quando aos credores particulares do Estado lhes é denegada igual tutela, enquanto figura incumpridora e em mora nas suas obrigações, não reveste qualquer tratamento chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios com dignidade constitucional sediados ao nível da igualdade dos cidadãos e da menor compressão dos direitos fundamentais - arts. 13.°, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP. (…)
IX - A exigência de pagamento da prestação tributária como condição da suspensão da execução da pena, à margem da condição económica do responsável tributário, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado - desligadamente de outros interesses a ponderar, ao invés do que sucede na sujeição a deveres como condição de suspensão da execução da pena, nos termos do art. 51.º, n.º 1, do CP - pelo interesse preponderantemente público a acautelar.
X - E semelhante inconsideração de possibilidade, pressuposta legalmente, mesmo assim tem sido havida como conforme à CRP porque a lei não exclui a suspensão, porque mesmo parecendo impossível a satisfação da prestação não é de excluir que, por mudança de fortuna, o devedor esteja em condições de arcá-la , porque só o incumprimento doloso determina a revogação, por fim porque sempre restam, em casos de dificuldades de cumprimento, alternativas, já que no regime rege o princípio rebus sic stantibus, norteado pelos princípios da culpa e da adequação.”
“O art.14º, nº1 do RGIT, ao impor a obrigatoriedade de a suspensão da execução da pena de prisão ficar condicionada ao pagamento das importâncias nele referidas, independentemente da situação económica do condenado, não é inconstitucional por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da necessidade e proporcionalidade da pena” – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-06-2013.
Destarte, pesem embora as condições económicas da arguida, indicadas pela mesma em sede de audiência de julgamento, a verdade é que, durante o período de cinco anos, no caso dos autos, nada nos pode levar a concluir que a mesma não consiga, no futuro e no decurso dos anos concedidos, proceder ao pagamento da quantia em causa.
O Tribunal determina, assim, que a suspensão fica subordinada ao cumprimento do seguinte dever:
- Entregar, no prazo de 5 (cinco) anos, à Segurança Social, o valor das contribuições/cotizações devidas, de € 63.969,17 (sessenta e três mil, novecentos e sessenta e nove euros e dezassete cêntimos) e acréscimos legais (…).
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II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Da nulidade da sentença por omissão por omissão do juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte da condenada, tendo em conta a sua concreta situação económica.
De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 379.º CPP, sentença nula é aquela que se encontra inquinada por vícios decorrentes ou do seu conteúdo ou da sua elaboração. Tal nulidade, ainda que não arguida em recurso, é de conhecimento oficioso, conforme decorre do nº2 do mesmo artigo.
No presente recurso alega a recorrente que:
“(…) 18 - A sentença proferida pelo Tribunal “ a quo “, padece de omissão de pronúncia sobre se a arguida AAA, terá, ou não, condições de efectuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que foi condenada pela pratica de crime de natureza fiscal, só podendo beneficiar daquela pena substitutiva, nos exatos termos do que dispõe o n.º 1 do Art.º 14.º do RGIT.
19 - Não foi cumprido pelo Tribunal “a quo”, o dever de investigação e (ou) pronúncia, sobre se a arguida terá, ou não, condições de efetuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão, uma vez que foi condenada por crime de natureza fiscal, só podendo beneficiar daquela pena substitutiva, nos exatos termos do que dispõe o n.º 1 do Art.º 14.º do RGIT.
20 - Desiderato que deveria ter realizado em obediência à doutrina agora fixada pelo Acórdão para fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012 de 12/9/2012, publicado no DR I.ª Série, n.º 206, de 24/10/2012.
.(…)
40 - Nos termos expostos, a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia quanto à não apreciação da questão mencionada (previsão e prognose do impacto atual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada a arguida), devendo o tribunal “a quo”, pelo mesmo Juiz, produzir uma nova sentença que dela conheça efetivamente, se necessário com a reabertura do julgamento para a produção dos meios de prova considerados suficientes e necessários para a consideração da situação sócio económica atual e futura da arguida.
(…)”
O vício da sentença sinalizado pela recorrente nos termos sobreditos, a verificar-se, consubstanciará a nulidade legalmente prevista no artigo 379º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal. Tal nulidade pressupõe que o tribunal se não tenha pronunciado sobre questões que deveria ter conhecido.
Vejamos se lhe assiste razão.
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Nos presentes autos foi a arguida recorrente acusada e condenada prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2 do Código Penal e artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, com sujeição à condição de, nesse prazo, a arguida proceder ao pagamento da prestação tributária devida, no valor total de € 63.969,17 (sessenta e três mil, novecentos e sessenta e nove euros e dezassete cêntimos), acrescida dos respetivos acréscimos legais, nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT.
As normas penais constantes do RGIT que sustentaram a condenação da recorrente dispõem da seguinte forma:
“Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”
Artigo 107.º
Abuso de confiança contra a segurança social
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º
2 - É aplicável o disposto nos n.os 4 e 7 do artigo 105.º
Artigo 14.º
Suspensão da execução da pena de prisão
1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.
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A temática da aplicação da condição da suspensão da execução da pena de prisão legalmente imposta pelo artigo 14º do RGIT relativamente aos crimes de natureza tributária e que agora constitui o objeto da nossa análise, tem merecido abundante tratamento jurisprudencial nos tribunais superiores, importando, antes de mais, convocar a jurisprudência obrigatória constante do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012 de 12 de setembro, com o seguinte conteúdo:
“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”
Radica o cerne da questão colocada pela recorrente, e na qual a mesma faz assentar a arguição da nulidade da sentença, na circunstância de aí se ter omitido o juízo de prognose acerca da satisfação por parte da condenada da condição legal fixada pelo artigo 14º do RGIT, tendo em conta a sua concreta situação económica, nos termos estabelecidos no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência que acabámos de citar.
A este propósito se pronunciou já amplamente a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, tendo-se formado entendimento, que subscrevemos – e que cremos ser maioritário – no sentido de a densificação da estatuição do artigo 14º do RGIT impor a conclusão de que, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal ou à segurança social que preveja em alternativa pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão e optando-se depois pela suspensão da execução de tal pena, haver que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica.
Dito de outro modo, tem vindo a entender-se que, pese embora se não questione o caráter imperativo da imposição da condição expressamente estabelecida pelo artigo 14º do RGIT, a articulação entre tal norma especial e a norma geral estabelecida no artigo 51º, nº 2 do CP para a imposição de deveres associados à pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão deixa ainda alguma margem de liberdade ao julgador, devendo o mesmo, aquando da imposição da condição prevista no artigo 14º do RGIT, ter em conta o princípio da razoabilidade previsto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, sendo que a desconsideração de tal princípio originará a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Por outro lado, a conclusão de que se não revela razoável impor ao condenado a mencionada condição deverá conduzir à alteração da escolha, previamente realizada, do tipo de pena a aplicar, optando-se pela aplicação da pena alternativa de multa, por se concluir que a opção pela aplicação da pena de prisão suspensa na sua execução subordinada à condição de pagamento da quantia em dívida, face ao juízo negativo de prognose do respetivo pagamento, não realiza de forma adequada as finalidades da punição. [1]
Tal posicionamento, corresponde ao entendimento formulado no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de setembro e encontrava-se, desde logo, plasmado no acórdão fundamento que esteve na origem da oposição de julgados (acórdão do STJ de 23.10.2003).
A idiossincrasia da situação dos autos – encontrando-se a recorrente condenada pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social previsto nos artigos 30.º, n.º 2 do Código Penal e artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias e punido apenas com pena de prisão (concretamente pena de prisão de um a cinco anos estatuída pelo nº 5 do artigo 105º e 107º, nº 1 do RGIT) – conduz-nos, porém, necessariamente, à apreciação e delimitação do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada em tal aresto, cabendo questionar se a mesma se aplica a todos os crimes tributários ou apenas aos que são punidos com penas alternativas de prisão e de multa.
Analisemos um pouco mais de perto a fundamentação do referido Acórdão do STJ Fixação de Jurisprudência, que passamos a transcrever parcialmente por se nos afigurar de primordial importância a sua leitura para compreensão do posicionamento aí fixado e da sua aplicabilidade à questão que nos ocupa. Aí se refere, entre o mais, e no que à referida matéria diz respeito, que:
“(…)No regime do RJIFNA, a partir de 1993, como agora no RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida; o n.º 7 do artigo 11.º daquele condicionava e o artigo 14.º, n.º 1, deste continua a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em falta e legais acréscimos.
Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.
(…)
Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP.
(…)
Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.
A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente. Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta?
(…)
A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.
Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.
(…)
A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção. Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.
Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.
Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.(…)”[2]
Tendo tal entendimento sido fixado em relação ao crime de abuso de confiança fiscal poderá colocar-se a questão de saber se o mesmo tem aplicação ao um crime de abuso de confiança contra a segurança social em causa nos presentes autos. A resposta a tal questão não poderá deixar de ser afirmativa, pois que ambos os crimes integram a categoria de crimes tributários, divergindo tão somente no que diz respeito ao seu destinatário: o Estado, no caso do crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º do RGIT e o Instituto de Segurança Social no caso do crime de abuso de confiança à segurança social previsto no artigo 107.º do RGIT.
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De acordo com o regime estabelecido no artigo 445.º do Código de Processo Penal, que regula a eficácia de decisão dos recursos extraordinários de fixação de jurisprudência, como é o caso do indicado Acórdão do STJ n.º 1/2003, concretamente nos termos do seu nº 3 “A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.”
Ora, não descortinamos qualquer divergência relativamente à jurisprudência fixada em tal acórdão e subscrevemos integralmente os argumentos expendidos na sua fundamentação, que, por clareza de exposição e atendendo à sua relevância para o caso dos autos, optámos por transcrever em parte. O que sucede é que a doutrina do AUJ não tem aplicação à situação dos autos por inexistência de um dos pressupostos básicos em que tal aresto faz assentar a solução final propugnada, qual seja o da estatuição para o crime de penas alternativas de prisão e de multa.
É, aliás, a própria fundamentação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que legitima tal conclusão, revelando-se absolutamente elucidativas das situações que pretende abranger, as seguintes passagens de tal aresto:
“(…) Em ambos os casos em causa está a questão de saber se ao condenar por crime de abuso de confiança fiscal, escolhida a pena de prisão e determinada a suspensão da respetiva execução, sabido que esta está subordinada sempre ao pagamento do imposto em dívida e acréscimos legais, o juiz deve ou não ponderar a capacidade do condenado em pagar a quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão e se a falta dessa ponderação gera nulidade por omissão de pronúncia.(…)
Em ambos os casos, em termos de subsunção jurídico-criminal da conduta de um e outro dos arguidos, foi considerado que tal omissão integrava um crime de abuso de confiança fiscal, tendo optado, uma e outra das decisões, perante a prevista alternativa pena de multa/pena de prisão, por aplicação de pena de prisão. Em ambos os casos, efetuada essa opção, e ultrapassado esse primeiro plano, foi considerado que na particular situação concreta submetida a juízo se impunha substituir essa decretada pena de prisão por pena suspensa na respetiva execução. (…)
A questão central em debate num e noutro dos processos em confronto gira em torno da questão de saber se, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal, que prevê, em alternativa, pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão, e optando-se depois pela substitutiva suspensão da execução de tal pena, o que acarreta face ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, incontornavelmente, necessariamente, a imposição de condição de pagamento da prestação em dívida e legais acréscimos, há que ponderar ou não a razoabilidade da condição imposta, na consideração de que, face ao concreto/real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, máxime, situação económica, será de exigir o cumprimento.(…)
(…) nos dois processos donde emergiram os acórdãos em oposição houve condenação dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho (…)”[3]
Afigura-se-nos, pois, que encontrando-se os crimes tributários previstos apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra[4] em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão. Por determinação de tal preceito legal – e independentemente da posição que entendamos assumir no plano dos princípios, com eventual relevância em sede de direito a constituir – atendendo a que nos crimes a que agora nos reportamos (nos quais se inclui o dos presentes autos), de natureza mais gravosa decorrente do valor mais elevado das quantias em dívida, o julgador não pode optar entre a aplicação da pena de prisão e da pena de multa, não lhe é conferida a margem de liberdade a que acima aludimos consubstanciada na realização do juízo de prognose acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica.
Outra não poderá ser, a nosso ver, a solução a adotar nas referidas situações, pois que, permitir-se a realização de tal juízo de razoabilidade em todos os crimes de natureza tributária – quer nos punidos alternativamente com prisão e multa, quer nos punidos apenas com pena de prisão – conforme tem sido defendido em alguma jurisprudência[5], conduziria à desaplicação de lei expressa nos casos em que, estatuindo o tipo legal apenas a aplicação da pena de prisão, o tribunal concluísse pela desrazoabilidade da imposição da condição atendendo à formulação de juízo de prognose negativo. Tal conclusão conduziria à solução, a nosso ver inaceitável, consubstanciada na aplicação, nos crimes de natureza mais grave, da suspensão da execução da pena de prisão sem sujeição à condição de pagamento imposta imperativamente pelo artigo 14º do RGIT.[6]
Ora, a não aplicação de normas legais de direito ordinário apenas encontra legitimação na sua natureza contrária à lei hierarquicamente superior à qual aquelas devem obediência, a Constituição da República Portuguesa. Sucede que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a confluir no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT, concretamente no que tange à interpretação segundo a qual a imposição da condição tem caráter imperativo e não depende da realização de qualquer juízo de razoabilidade por parte do julgador[7].
Tal como claramente se consigna no texto do AUJ nº 8/2012 relativamente aposição assumida pelo TC, “(…) O Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por na matéria reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.
As três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa, são: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena (dos Acórdãos n.os 256/03 e 427/08).(…)”.
Mais recentemente se pronunciou, de novo, o Tribunal Constitucional sobre a questão em apreço no acórdão n° 51/2020 de 16 de janeiro, relatado pela Conselheira Maria José Rangel Mesquita (citado pela Exmª. Srª. Procuradora junto desta Relação no seu parecer), reafirmando a posição já anteriormente assumida em vários arestos – em especial no acórdão nº 256/2003 aí citado e transcrito – que aqui se convoca e no qual podemos ler:
“(…)7. Defende o recorrente que a interpretação do «art. 14.° do R.G.I.T., devidamente conjugado com os arts. 50.° e 5l.° do C.P., no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão (…) deverá ficar obrigatoriamente condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e respetivos acréscimos legais, limitado ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, sem que o Tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição», «é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, ínsitos ao Estado de Direito Democrático e consagrados pelos artigos 2.°,13.° e 18.° da CRP».
O recorrente dá ênfase à impossibilidade de proceder a um juízo de prognose sobre a possibilidade da satisfação das condições impostas pelo artigo 14.º do RGIT, para criticar a opção legislativa de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida ao Estado em qualquer caso – aí incluídos os casos em que os arguidos não detêm os meios necessários para satisfazer essa condição.
Ora, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, em face de diversos casos, pela não inconstitucionalidade do artigo 14.º do RGIT. Desde logo, no Acórdão n.º 256/2003, em que o problema foi apreciado em face da jurisprudência constitucional sobre questões afins, o Tribunal Constitucional concluiu (cf. II – Fundamentação, n.º 10.8 e seguintes):
«(…) [P]odendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (supra, 10.6.), não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que “permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima”, veja-se Manso-Preto, “Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena”, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173).
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir (supra, 10.5.) –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra, 10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.»

Ora, este juízo é inteiramente transponível para o caso dos autos. Aliás, o recorrente não aduz qualquer argumento que motive a reapreciação desta posição, que foi reafirmada nos Acórdãos n.os 335/2003, 376/2003 e em diversas pronúncias posteriormente adotadas por este Tribunal (v., entre outros, os Acórdãos n.os 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias n.os 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016).

8. Sendo a norma objeto do presente recurso idêntica à apreciada nos arestos e decisões citadas e, no essencial, transponível para o caso dos autos a fundamentação do Acórdão n.º 256/2003, é igualmente de concluir no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso.”

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Aqui chegados, no que diz respeito à imposição da condição estabelecida artigo 14.º do RGIT, podemos assentar nos seguintes pontos:
- Tal imposição, sem que o tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação da condição, consubstancia uma opção legislativa que não atenta contra os direitos fundamentais do condenado e que não padece de inconstitucionalidade;
- Exige-se da parte do julgador a realização de um juízo sobre a razoabilidade da condição nos crimes tributários punidos alternativamente com pena de prisão ou de multa em que esteja em causa a suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, conforme superiormente decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 8/2012 de 12 de setembro publicado no DR, I série, n.º 206, de 24.10.2012, que fixou jurisprudência nesse sentido.
- Nos crimes tributários punidos apenas com pena de prisão, se o tribunal optar pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, encontra-se vinculado à aplicação da condição de pagamento da quantia em dívida, independentemente da situação económica do condenado ou do juízo de razoabilidade a que alude o artigo 51º do CP.
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Importa ter em conta que quando o artigo 14.º do RGIT foi aprovado já existia o atual artigo 51.º, n.º 2 do CP, o que suporta a interpretação de tal preceito no sentido de que a opção feita pelo legislador terá sido plenamente consciente, tendo assentado no entendimento de que, atendendo aos interesses em causa, o pagamento dos valores em dívida ao Estado pelo condenado constitui sempre uma exigência “razoável”, que se encontra numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins que a norma visa prosseguir.
No sentido em que agora decidimos, decidiram igualmente os acórdãos da Relação do Porto de 20.02.2013, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato e, mais recentemente, o acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2018, relatado pelo Desembargador José Adriano, no qual se consignou, com especial relevância para a questão que nos ocupa que:
“(…) De salientar que a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, publicado no Diário da República nº 206, Iª série, de 24/10/2012, no sentido de que «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronuncia.» não é aplicável no caso vertente, uma vez que a necessidade do juízo de prognose a que se refere o AFJ só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade.
Seguiremos neste aspeto muito de perto o Ac.R.Porto de 20/2/2013, proc. n.º 131/08.9IDPRT.P1, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato, por concordarmos inteiramente com o raciocínio no mesmo explanado: «O que resulta do acórdão [referindo-se ao AFJ n.º8/2012] é, antes, que, a prévia opção por pena de prisão suspensa na sua execução (com o que isso implica de obrigatória sujeição dessa suspensão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) em face da opção por outra pena (deve subentender-se, pena não privativa da liberdade), designadamente a pena de multa, está dependente de um juízo de prognose sobre a capacidade de o condenado pagar tais quantias, tendo em conta a sua situação económica presente e futura.(…)
O caso sobre o qual se debruçou aquele acórdão de fixação de jurisprudência respeitava a crime punível com prisão ou multa, tendo-se entendido que, ao ponderar a suspensão da execução da prisão e perante a incapacidade financeira do arguido, deveria o tribunal voltar ao momento anterior, da escolha da pena, reconhecendo não haver condições para tal suspensão, e optar, eventualmente, pela pena de multa, em vez da prisão.
Ora, tal procedimento não é possível no presente caso, por um lado, porque o crime fiscal aqui em causa, quando cometido por pessoa singular, é punível apenas com prisão, por outro, porque a suspensão da execução da pena já foi concedida sem que o arguido a tenha impugnado.
(…) Esta interpretação não só é admissível face à jurisprudência fixada pelo acórdão citado, como ela se impõe, sendo a única compatível com a redacção das aludidas normas. (…)”
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As explanações acima consignadas conduzem, inequivocamente, à conclusão de que, optando o julgador pela suspensão da execução da pena de prisão imposta ao arguido pela prática de crime tributário, é obrigatória a imposição da condição de pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, nos termos estabelecidos pelo artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.
Assim, subsumindo a situação em análise no recurso ao entendimento exposto, e pese embora a decisão da primeira instância não tenha formulado qualquer juízo sobre a possibilidade do pagamento da quantia imposta como condição da suspensão, nada tendo dito sobre a razoabilidade da imposição, não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia arguida pela recorrente, conquanto, tendo a mesma sido condenada pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2 do Código Penal e artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, não se encontrava o tribunal recorrido vinculado à realização de tal juízo de razoabilidade uma vez que, sendo tal crime punido apenas com pena de prisão (nº 5 do artigo 105º e 107º do RGIT), não se aplica à situação dos autos a jurisprudência fixada pelo AUJ nº 8/2012 de 12 de setembro.
Nesta conformidade, impõe-se considerar não verificada a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º n.1 al. c) do Código de Processo Penal, improcedendo totalmente o recurso, o que se decidirá.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, decidindo consequentemente manter integralmente a sentença recorrida.
Sem custas.
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)
Évora, 24 de maio de 2022

Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar
Gilberto da Cunha


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[1] Neste mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os seguintes acórdãos dos tribunais superiores, todos disponíveis em www.dgsi.pt: acórdão do STJ de 06.04.2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, acórdão da Relação de Coimbra de 20.03.2018, relatado pelo Desembargador Orlando Gonçalves; acórdãos da Relação de Évora de 13.07.2017, relatado pela Desembargadora Maria Isabel Duarte; de 16.10.2020, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso, de 14.07.2020, relatado pela Desembargadora Laura Goulart; acórdãos da Relação de Lisboa de 15.02.2018, relatado pela Desembargadora Filipa Costa Lourenço, de 05.03.2014, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo; acórdãos da Relação do Porto de 09.10.2019, relatado pelo Desembargador Nuno Pires Salpico e de 27.06.2018, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg.
[2] Negritos acrescentados.
[3] Negritos acrescentados.
[4] Imperatividade, aliás, expressa e claramente propugnada no AUJ 8/2012.
[5] Neste sentido decidiram os acórdãos da Relação de Lisboa de 26.02.2014, relatado pelo Desembargador Carlos Almeida, de 18.02.2016, relatado pelo Desembargador Calheiros da Gama e, mais recentemente, da Relação de Guimarães de 08.02.2021, relatado pela Desembargadora Teresa Cambra.
[6] Com vista à fixação de jurisprudência relativamente à concreta questão da necessidade de realização do juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, em todos os crimes de natureza tributária ou apenas nos que são punidos alternativamente com prisão e multa, foi recentemente interposto recurso para o STJ, tendo sido proferido o Acórdão do STJ de 27.01.2021, relatado pelo Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha que determinou que o recurso prosseguisse, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, 2.ª parte do CPP.
[7] Neste sentido decidiram os Acórdãos do TC nºs 335/2003, 376/2003 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias nºs 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt