Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
217/12.5GCSTR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS
Data do Acordão: 01/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A prolação das expressões, por arguido-marido a vítima-mulher, «tu és uma inútil! Não prestas para nada! Pensas que és alguém, mas não és ninguém! Sua cabra! Nenhuma mulher presta! Nenhuma mulher vale nada! São todas umas putas! Umas cabras!»; o pisar-lhe os pés dizendo «sai daí que eu quero mijar, o referir-lhe «não vales nada! És uma cabra! Uma puta' Agora vou dar-te um beijo; o agarrá-la e imobilizá-la em cima da cama, tentando beijá-la e manter relações sexuais com ela, puxando-lhe os cabelos; o telefonar-lhe dizendo: «tu sabes aquilo que estás a fazer? Olha que não nos vamos encontrar uma terceira vez; o enviar-lhe mensagens escritas referindo «não me apareças na frente, és uma doente e uma grande cabra» e «O meu coração está preto. Quem mexe no fogo, ou mija na cama ou queima-se. É como preferires. O tempo dirá. Por alma do meu pai e a saúde dos meus anjos, tu não te escondes o resto da vida», entre outros factos, praticados ao longo de quatro anos de relação, configuram maus-tratos físicos e psíquicos com o nível de intensidade ou a reiteração exigidos no artigo 152.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal:

1.No Processo Comum nº 217/12.5GCSTR da Comarca de Beja foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido A. como autor de um crime de violência doméstica do art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2 do CP, na pena de 3 anos e 1 mês de prisão suspensa na execução com regime de prova, e como autor de um crime de detenção de arma proibida do artigo 86º, nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006, na pena de pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 7,00 (multa global de € 1.050,00). Foi ainda condenado a pagar à assistente e demandante B. a quantia de € 4.500,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1- Da prova produzida no processo, não resulta que o arguido tenha cometido os crimes pelos quais foi condenado ou quaisquer outros - os factos provados revelam essencialmente episódios da vida conjugal do arguido e da assistente e da ruptura dessa relação, sem qualquer relevância criminal.

2- A prova testemunhal e documental produzida nos autos, o conhecimento geral e as regras da experiência e da normalidade do acontecer impõem que se altere a decisão da matéria de facto dada como provada nos pontos 3,4,5,6,8,9 a 13, 15, 16, 17, 18, 23, 28, 31, 33, 34 e 35.

3- A assistente não específica que tipo de palavrões foram ditos pelo arguido durante a viagem de carro no ano de 2008, enquanto ela atendia um telefonema do seu chefe, nem que se sentiu envergonhada e diz até que quando perguntou ao arguido o que se passava ele disse que tinha sido uma ultrapassagem e que ela não sabe se os mesmos lhe eram dirigidos.

4- O facto do ponto 3 - inócuo - a ser dado como provado terá que ser: "Durante o ano de 2008, estando a B. grávida, em dia não concretamente apurado e quando ambos viajavam de carro, o arguido conduziu de forma "agressiva" enquanto a queixosa atendia um telefonema do seu chefe, sem que se tenha apurado porque o fez. "

5- Da prova produzida na audiência de julgamento a respeito do facto dado como provado no ponto 4, nomeadamente do depoimento da própria assistente, resulta apenas que: "Durante o verão de 2010, encontrando-se a B. na segunda gravidez e estando a família de férias, após um jantar num bar da praia, a queixosa afastou-se com a filha para irem ver umas construções na areia, o arguido ficou a beber um whisky e, depois, pagou a conta, agarrou nas coisas e foi para casa, que se situava na proximidade, sem avisar a ofendida e não respondeu às chamadas que ela fez para o telemóvel dele," Pelo que, é apenas isso que pode ser dado como provado (apesar de absolutamente irrelevante para o caso em apreço).

6- Quanto ao ponto 5 dos factos provados, dos depoimentos do arguido, da assistente e da mãe desta resulta o relato de uma discussão familiar decorrente da recusa da filha em a cumprimentar o pai (arguido) com um beijo como faz habitualmente, quando estava na sala com a avó materna, e da qual não houve qualquer consequência relevante, muito menos, em termos criminais.

7- O ponto 5 dos factos provados deve ser eliminado e a manter-se só pode ter a seguinte redacção: "Em data não apurada após o nascimento da R., o arguido chegou a casa, vindo do trabalho e a C. estava na sala com a avó, estando também presente a queixosa. O arguido pediu à menor que o cumprimentasse com um beijo como fazia habitualmente. A menor recusou beijar o pai e ele agarrou-a ao colo exigindo um beijo. A menina recusou e ele insistiu. Ela começou a chorar e o arguido levou-a para o quarto e fechou a porta para falar com ela. A queixosa ficou à porta a dizer que abrisse a porta e deu pontapés na porta. O arguido abriu a porta e saiu.

8- A matéria constante do ponto 6 dos factos provados não pode ser dada como provada, pois nenhuma testemunha, nem sequer a mãe da queixosa, nem as empregadas domésticas do casal, referiram ter havido insultos entre o casal ou sequer diálogos agressivos.

9- A respeito do episódio do dia 28 de Abril de 2012, constante dos pontos 8 a 13 dos factos provados, a assistente disse na audiência de julgamento, essencialmente, que:

a) Nesse dia, foi para Lisboa, que telefonou ao arguido pelo caminho e ele não atendeu, que quando ela chegou ele não estava em casa. Quando ele chegou ela estava na casa de banho sentada na sanita, ele entrou e pisou-a, mas não diz se foi de forma propositada ou inadvertida e disse-lhe "sai daí que eu quero mijar", ela respondeu-lhe que se ele estava tão aflito fosse fazer ao quintal, e ele saiu.

b) Quando se preparava para se deitar discutiu com o arguido, entregou-lhe o intercomunicador para que este fosse alimentar a filha R. durante a noite (o arguido dava o biberão e mudava as fraldas à filha), agarrou na almofada e foi para o quarto de hóspedes;

c) O arguido seguiu-a, agarrou-a e imobilizou-a em cima da cama, tentando beijá-la e ter relações sexuais, ela recusou e gritou por socorro e o arguido foi-se embora;

d) Logo a seguir, o arguido foi ver se a filha C. estava bem e ela foi com ele;

e) Durante a noite, o arguido voltou ao quarto dela a dizer que queria sexo, ela pediu-lhe que se fosse embora e a deixasse em paz e ele foi.

10- A cena descrita não é um episódio de violência doméstica, mostra que perante a recusa da ofendida em ter relações sexuais com o arguido este aceitou essa recusa e foi-se embora, sem mais.

11- Os pontos 8 a 13 dos factos provados devem ser alterados no sentido da prova produzida, passando a ter o seguinte teor:

- Em dia indeterminado do final de Abril de 2012, a queixosa deslocou-se a Lisboa de onde regressou ao final da tarde;

- O arguido não estava em casa quando a queixosa chegou;

- Os dois discutiram e a queixosa pegou na almofada e dirigiu-se ao quarto de hóspedes;

- Quando a queixosa se preparava para se deitar, o arguido tentou beijá-la contra a sua vontade e ela gritou;

- Em consequência, o arguido deixou a queixosa no quarto onde se encontrava e foi deitar-se no outro quarto.

12- Nada do que foi dito na audiência de julgamento, pela assistente e pelas suas testemunhas, autoriza a que se dê como provado que a assistente tivesse razões objectivas para temer por si e pelas suas filhas e que isso a tenha motivado a sair de casa em 13/0612013, levando as filhas.

13- Não houve da parte do arguido actos que pudessem objectivamente fazer pensar que a segurança da assistente e das filhas estava em causa, ele não as ameaçou, nem teve para com elas qualquer comportamento violento, físico ou verbal, nem quando a ofendida se recusou a envolver-se intimamente com ele no dia 28/05/2012, limitando-se a aceitar essa recusa e a ir-se embora.

14- O facto 15 deverá, portanto, ser alterado e ter a seguinte redacção: “No dia 13 de Junho de 2012, a ofendida saiu de casa com as filhas. Diz que o fez porque tinha medo das atitudes do arguido e por sentir que a relação estava terminada. “

15- A matéria do ponto 18 não deve ser dada como provada, ou pelo menos, tem que ser alterada no sentido de que a conversa ocorreu durante um telefonema que a queixosa fez ao arguido, pois no seu depoimento a ofendida disse que o arguido nunca lhe telefonou, que a iniciativa dos telefonemas foi sempre dela.

16- A arma de fogo longa, semiautomática, de classe D, de marca Browning, com o número ilegível, de calibre 12, com cano liso com 70 cm detida pelo arguido, não estava apta a ser usada e não era do arguido, foi deixada na casa que ele comprou para o filho pelo anterior proprietário juntamente com outros bens, que o arguido guardou no caixote no casão onde a arma foi encontrada, para os entregar ao dono quando viesse buscá-los.

17 - O ponto 23 deve ser alterado complementando-se com a informação de que a espingarda em causa não estava apta a disparar e que não pertencia ao arguido.

18- O arguido não agiu, em momento algum, com intenção de mal tratar a ofendida, causando-lhe receio e fazendo-lhe crer que a poderia matar - a própria ofendida disse que de concreto nunca aconteceu nada que lhe causasse tal receio-, nem o bom nome e a saúde física da ofendida não foram postos em causa.

19- As ameaças referidas no ponto 17. terão sido feitas após a separação e não são mais que meros desabafos de um pai que não sabe das filhas, porque a assistente as levou consigo quando saiu de casa, sem lhe dizer nada, nem lhe dar qualquer noticia das mesmas durante vários dias ... Qualquer pessoa nessas circunstâncias diz que "faz e acontece", coisa muito diferente é querer efectivamente passar ao acto. O arguido queria apenas ver as filhas que tanto ama.

20- O ponto 28 dos factos provados deve ser eliminado.

2] - Na sequência do que atrás ficou dito, impõe-se retirar do facto 31 a expressão "Em virtude da actuação do arguido referida supra.”

22- A ofendida retirou os seus bens pessoais e das filhas antes de sair de casa, os quais foram transportados pelo pai da assistente numa carrinha emprestada, porque não cabiam no carro dele, impondo-se, assim a alteração do ponto 33, ficando com a seguinte redacção: "Nunca mais a arguida retomou à casa onde residia com o arguido."

23- Nada do que foi dito em julgamento permite concluir que a ofendida perdeu a auto-estima e o amor próprio, nem que se sentiu ou sente humilhada e envergonhada.

24- A ofendida estava infeliz e vexada, mas esses sentimentos não foram causa directa da actuação do arguido.

25- O ponto 34 deve ser alterado, passando a dizer apenas: "Fruto dos acontecimentos da sua vida em união de facto, a ofendida sentiu-se vexada e infeliz.

26- Mesmo sem a alteração da matéria de facto, não se pode concluir que o arguido tenha praticado os crimes pelos quais foi condenado.

27- A arma que estava na posse do arguido e da qual ele não tinha a respectiva licença, não era proibida e estava em mau estado de conservação, não sendo possível a sua utilização.

28- O arguido tem autorização para deter armas iguais àquela.

29- O arguido só não tinha, nem podia ter, a dita arma registada porque a arma não era dele.

30- O arguido não praticou, portanto, o crime de detenção de arma proibida pelo qual foi condenado.

31- Os episódios relatadas neste processo não demonstram que o arguido tenha praticado um crime de violência doméstica na pessoa da assistente - com quem ele viveu em união de facto durante 4 anos e de quem tem duas filhas -, são meros episódios da vida familiar de um casal que acabou por se separar.

32- O arguido não insultou a assistente, nem a ameaçou, nem a agrediu fisicamente, mesmo quando a ofendida recusou as suas carícias e ter relações sexuais, ele aceitou a recusa da ofendida e foi-se embora, sem mais.

33- Após a assistente ter deixado a casa do casal levando consigo as filhas sem dizer nada ao arguido durante dias, este foi à procura das filhas (não da ofendida) - como é de se esperar de um pai que gosta e se preocupa com as filhas- nessas circunstâncias, mesmo que o arguido tenha dito que se encontrasse a ofendida a matava, sem nunca ter posto em prática qualquer acto que sequer indiciasse que o viesse a fazer, não pode ser visto como uma ameaça à ofendida e muito menos às filhas, mas como um desabafo de um pai que não sabe das filhas.

34- Os comportamentos do arguido não se enquadram, portanto, no tipo legal de crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do artigo 152°, nº 1 e 2 do Código Penal, pois não podem considerar-se maus tratos físicos, nem psíquicos e muito menos castigos corporais, privações de liberdade ou ofensas sexuais.

35- Com este processo, a assistente pretende retirar definitivamente as filhas do convívio do pai (arguido).

36- Caso se entenda que o arguido praticou os factos que lhe são imputados e que os mesmos configuram a prática dos crimes pelos quais foi condenado, as penas aplicadas mostram-se excessivas, atenta a diminuta gravidade dos factos em causa e, como tal, as penas a aplicar sempre deverão ser reduzidas ao mínimo legal.

37- O arguido encontra-se perfeitamente inserido socialmente, os factos que lhe são imputados são de reduzida gravidade, pelo que, caso seja aplicada ao arguido uma pena de prisão, suspensa na sua execução, tal suspensão não carece nem deve estar sujeita a qualquer regime de prova.

38- Não tendo o arguido praticado qualquer crime contra a assistente e não tendo contribuído para qualquer alteração na saúde ou outros danos não patrimoniais na assistente - as quais resultaram das "paranóias que foi criando na sua cabeça (conforme refere a testemunha LM), não é devida à assistente qualquer indemnização.

39- Ainda que assim se não entenda, o montante indemnizatório arbitrado à ofendida é excessivo e desproporcional aos danos em causa, e como tal, sempre deve ser reduzido.

40- O tribunal a quo, não fez, portanto, boa apreciação da prova produzida nem do direito, tendo violado, entre outros, o Artigo 152º do Código Penal, dos artigos 32º e 86º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro e o Artigo 374º do Código de Processo Penal.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1 - O arguido A. foi condenado pela prática, como autor material, de 1 (um) crime de Violência Doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e n.º 2, na pena de 3 (três) anos e 1 (um) mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova assente em plano de reinserção social a elaborar pelos técnicos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em concurso efectivo, com 1 (um) crime de Detenção de Arma Proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual (RJAM.), na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo o total de € 1.050,00 (mil e cinquenta euros).

2 - Inconformado com o assim decidido, o arguido recorreu da sentença condenatória, alegando que a prova produzida em julgamento, conjugada com o conhecimento geral, as regras da experiência e o normal do acontecer, impunham decisão diversa da recorrida, porque os factos provados traduzem essencialmente episódios da vida conjugal do arguido e da assistente e da ruptura dessa vida em comum sem qualquer relevância criminal.

3 - Em jeito de questão prévia suscitou-se a inobservância do comando ínsito no art. 412º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal por parte do recorrente, quando formulou 40 (quarenta) conclusões escusadamente extensas e prolixas.

4 - Ainda que o recurso não possa ser rejeitado com fundamento na falta de concisão das conclusões, o recorrente deverá ser convidado a aperfeiçoá-las (art. 417º, nº 3 do Cód. Proc. Penal) de molde a observar o comando ínsito no art. 412º, nº 1 do Cód. Proc. Penal.

5 - O recorrente discorda da valoração feita pelo Tribunal a quo da prova produzida em audiência de julgamento.

6 - Mas a simples divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal firmou sobre esses factos, não pode - no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova (art, 127º do Cód. Proc. Penal) - servir de base à impugnação da matéria de facto.

7 - O exame crítico da prova feito pelo Tribunal a quo revela a boa apreciação que fez da prova indiciária, numa leitura de provas que, diremos nós, é possível e defensável, com o grau de convencimento desejável, e se apresentava como racional e lógica relativamente aos factos impugnados.

8 - Como se discorre da sentença e aí se desenvolve, a prova (referimo-nos especificamente à prova oral) dos factos impugnados resultou das declarações do arguido e da assistente, bem como do depoimento das testemunhas, sendo que a sentença explica porque é que essas provas convenceram o Tribunal. E fá-lo de um modo que, dentro de uma visão que também nos parece aceitável, é racional e lógica, de acordo com regras de experiência comum, do normal acontecer, que as particularidades do caso não levavam a afastar.

9 - Face ao exposto, é de concluir que o recurso não merece provimento, devendo ser julgado totalmente improcedente, em consequência do que a sentença deverá ser mantida, inclusivamente quanto às penas fixadas, que nos parecem perfeitamente ajustadas à gravidade dos crimes cometidos e às exigências de prevenção, quer geral, quer especial, que importa acautelar.”

A assistente respondeu também ao recurso, concluindo:

“1. A decisão sobre a matéria de facto controvertida reflectiu o resultado da conjugação dos vários elementos de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento e a séria reflexão e ponderação do Tribunal sobre o material probatório e sobre as suas incidências na factualidade controvertida.

2. Assentou numa análise crítica das provas e especificaram-se na sentença os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

3. Nenhum reparo ou censura merece a decisão proferida quanto à matéria de facto.

4. Os factos praticados pelo arguido, e que resultam da douta sentença, integram a prática do crime de violência doméstica, pelo que a sentença condenatória não merece, de igual modo qualquer reparo ou censura.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto manifestou-se no sentido da improcedência do recurso, nada acrescentando.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. O arguido e B. viveram juntos, como se fossem marido e mulher, durante cerca de 4 anos. Têm 2 filhas menores, a C., nascida a 16/7/2008, e a R., nascida a 27/l0/2010.

2. Residiram em Beja e, após Dezembro de 2011, passaram a residir na Rua…, em S. Matias.

3. Durante o ano de 2008, estando a B. grávida, em dia não apurado e quando ambos viajavam de carro, a ofendida atendeu um telefonema do seu patrão, tendo o arguido passado a conduzir de modo agressivo, proferindo insultos e envergonhando a ofendida.

4. Durante o Verão de 2010, encontrando-se a B. na segunda gravidez e estando a família de férias, o arguido afastou-se da companheira e da filha, não atendeu os telefonemas que a ofendida lhe fez e, sem aviso, dirigiu-se para casa, deixando as duas sozinhas na praia.

5. Em Novembro de 2011, o arguido agarrou bruscamente na filha C., exigindo-lhe que o beijasse, causando medo à denunciante e à menor.

6. Frequentemente, o arguido dizia à sua companheira: «tu és uma inútil! Não prestas para nada! Pensas que és alguém, mas não és ninguém! Sua cabra! Nenhuma mulher presta! Nenhuma mulher vale nada! São todas umas putas! Umas cabras!»

7. É entendimento do arguido que sempre que a menor Rita chora deve ser alimentada, pelo que quando a criança chora de noite, a ofendida deve ir alimentá-la.

8. No dia 28 de Abril de 2012, a ofendida entregou o intercomunicador ao arguido para que este fosse alimentar a filha durante a noite, o que este fez cerca das 4.00 horas.

9. No mesmo dia, ao final da tarde, na casa de banho da residência, o arguido pisou os pés da ofendida e disse-lhe: «sai daí que eu quero mijar!»

10. Os dois discutiram, tendo o arguido dito: «quem é que tu pensas que és para me entregares o intercomunicador e pensares que mandas alguma coisa!»

11. A ofendida dirigiu-se para o quarto de hóspedes, tendo sido seguida pelo arguido que lhe dizia: «não vales nada! És uma cabra! Uma puta' Agora vou dar-te um beijo!».

12. O arguido agarrou a ofendida e imobilizou-a em cima da cama, tentando beijá-la e manter relações sexuais com ela, puxando-lhe os cabelos.

13. A ofendida recusou, gritou por socorro e acabou por se conseguir libertar.

14. A ofendida foi assistida no Centro de Saúde, não lhe tendo sido observadas lesões, mas tendo sido verificado que estava emocionalmente muito debilitada e receosa de retaliações.

15. Por temer as atitudes do arguido e por sentir que a relação estava terminada, a ofendida saiu de casa em 13 de Junho de 2012, levando as suas filhas.

16. Durante o mês de Junho de 2012, o arguido disse a várias pessoas conhecidas da ofendida que a matava se a encontrasse, mais tendo dito que a ofendida era uma puta e uma cabra.

17. O arguido deslocou-se à Carregueira, local onde vive a ofendida e familiares da ofendida, para a encontrar e proferiu ameaças contra a vida da ofendida e familiar desta última.

18. Durante o mês de Junho de 2012, o arguido telefonou à ofendida, tendo-lhe dito: "tu sabes aquilo que estás a fazer? Olha que não nos vamos encontrar uma terceira vez!".

19. O arguido enviou mensagens escritas à ofendida, através do telemóvel nº 96…….., designadamente:

20. No dia 14 de Junho de 2012, às 6.23 horas, referindo: «não me apareças na frente, és uma doente e uma grande cabra».

21. No dia 21 de Junho de 2012, pelas 13.05 horas: «O meu coração está preto. Quem mexe no fogo, ou mija na cama ou queima-se. É como preferires. O tempo dirá. Por alma do meu pai e a saúde dos meus anjos, tu não te escondes o resto da vida».

22. No dia 19 de Setembro de 2012, o arguido tinha no casão …, em S. Matias as seguintes armas:

23. Uma arma de fogo longa, de classe D, de marca Baikal, com n° H…, de calibre 12, com 2 canos lisos, de 73 cm; uma arma de fogo longa, semiautomática, de classe D, de marca Browning, com o nº---PX09035, de calibre 12, com cano liso com 71 cm; uma arma de fogo longa, de marca Winchester, de classe D, com o nº---, de calibre 12, com cano liso com 71 cm; e uma arma de fogo longa, semiautomática, de classe D, de marca Browning, com o número ilegível, de calibre 12, com cano liso com 70 cm.

24. Na mesma data, o arguido tinha no escritório da sua residência, sita na Rua …, em S. Matias, um revólver, arma de fogo curta, de repetição, de marca Ruger, de classe BI, com o calibre 32 H&R MAG e com o nº---, com cano estriado, com o comprimento de 7,5 cm, municiado.

25. Tinha no mesmo local 53 munições de calibre 32 MAG, de marca 32 S& W; 50 munições de calibre 32, de marca Federal; 5 caixas de cartuchos, cada uma contendo 25 unidades, de marca «Melior - Super GT», calibre 12; e uma caixa contendo 25 cartuchos, de marca «Especial nº1», de calibre 12.

26. O arguido dispõe de autorização para detenção no domicílio n° ----, relativo ao revólver e às três armas de classe D, identificadas.

27. O arguido não dispõe de qualquer documento que lhe autorize a detenção da arma de fogo longa, semiautomática, de classe D, de marca Browning, com o número ilegível, de calibre 12, com cano liso com 70 cm.

28. O arguido agiu com intenção de mal tratar a ofendida, causando-lhe receio e fazendo-lhe crer que a poderia matar, ofendendo o seu bom-nome, prejudicando-lhe reiteradamente a saúde física e psíquica e sabendo que a ofendida era a sua companheira.

29. O arguido sabia que não era titular de qualquer autorização relativa à arma de classe D, de marca Browning, com o número ilegível, cujas características conhecia, sabendo que lhe era proibida a sua detenção, mas apesar disso tinha-a consigo.

30. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável das suas condutas.

Mais se apurou que:

31. Em virtude da actuação do arguido referida supra, a ofendida passou a viver em constante estado de angústia, tristeza e infelicidade.

32. Temendo, pela sua segurança, no temor de que o arguido atente contra a sua vida.

33. Nunca mais a ofendida retornou à casa onde residia com o arguido apesar de nela terem ficado todos os bens pessoais e das suas filhas.

34. A ofendida com toda a actuação do arguido sentiu-se vexada, desprezada, intimidada, humilhada, infeliz e envergonhada.

35. Perdendo a sua auto-estima e o seu amor-próprio em virtude da factualidade a que ficou sujeita.

36. O arguido é agricultor por conta própria desconhecendo-se o montante de rendimento anual uma vez que afirma ter prejuízos elevados.

37. O arguido reside sozinho em casa arrendada, pela qual paga € 150,00 mensais.

38. O arguido paga € 300,00 de pensão de alimentos.

39. O arguido tem encargos com empréstimos num total de € 25.000,00 a pagar em 5 anos.

40. O arguido não tem antecedentes criminais.”

Foram dados como não provados os factos seguintes:

“1. Nos primeiros meses do ano de 2012, o arguido em vários cafés do local, onde habitava com a ofendida, em voz alta e publicamente afirmava que ia expulsar a ofendida de casa, uma vez que ela não servia para nada e nem sexo lhe dava.

2. Em Maio de 2012, o arguido retirou à queixosa o veículo automóvel com que circulava, privando-a do uso de qualquer outro, apesar de na altura, ter várias carrinhas e jipes.

3. Com intenção de a impedir de sair de casa, de a isolar e impedir o contacto com quem quer que fosse.

4. A ofendida deixou de poder fazer as suas rotinas diárias e, inclusivamente, deixou de poder sair com as filhas a passear, levá-las a consultas ou vacinas.

5. Vendo-se obrigada a pedir um veículo emprestado à sua amiga D..

6. O arguido impedia o contacto da ofendida com os seus familiares dizendo-lhe a ela e às filhas, amiudadas vezes, que só iriam a casa dos avós se ele permitisse e quisesse.

7. Em virtude dos factos dados como provados, a ofendida temeu pela segurança das suas filhas e que o arguido atentasse contra a vida das próprias filhas.

8. A ofendida tem receio de andar sozinha na rua, no sítio onde reside, com medo de encontrar o arguido.”

E a motivação da decisão da matéria de facto teve a forma que segue:

“A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.
(…)
Concretizando:

O arguido negou a prática dos factos constantes da acusação, tendo procurado retratar a sua sua ex-companheira como uma oportunista, má esposa e má mãe, que engendrou tais factos tendo em vista impedir que o arguido mantenha uma relação parental com as filhas de ambos. Admitiu como provável que no dia 14 de Junho de 2012, às 6.23 horas, tenha enviado à ofendida a mensagem escrita «não me apareças na frente, és uma doente e uma grande cabra» e confirmou que no dia 21 de Junho de 2012, pelas 13.05 horas, remeteu à arguida a mensagem escrita «O meu coração está preto. Quem mexe no fogo, ou mija na cama ou queima-se. É como preferires. O tempo dirá. Por alma do meu pai e a saúde dos meus anjos, tu não te escondes o resto da vida». Afirma que tais mensagens se deverão ao facto da arguida ter desaparecido de casa levando as duas filhas do casal. Quanto à arma encontrada no casão da sua residência afirma que a mesma veio de uma casa que tinha arrendada juntamento com outros bens deixados pelo inquilino. Mais disse que esta arma está ferrugenta e o gatilho não mexe, não a tendo entregue à Polícia por ter receio de ter problemas.

O depoimento circunstanciado, sereno, claro e verosímil da assistente B., permitiu desde logo incutir no espírito do julgador a convicção de que os factos ocorreram, no essencial, como vertido na acusação pública e particular, e ainda no pedido de indemnização civil.

Acresce que a versão dos factos apresentada pela ofendida se mostrou corroborada pelas declarações das testemunhas da acusação pública e particular, nomeadamente:

AP, empregada doméstica do casal ofendida/arguido desde Fevereiro de 2012 até Agosto de 2012, disse que sempre considerou a relação entre o casal como normal tendo apenas visto uma vez a ofendida a chorar e em baixo e que esta falou em violência psicológica. Recorda-se de um dia em que a ofendida ainda estava em casa a filha R. ter ficado a dormir em casa da testemunha e a ofendida ter aparecido de manhã com a C. a chorar, afirmando ter sido vítima de violência por parte do arguido, tendo a testemunha se oferecido para ficar com a C., o que sucedeu. Mais disse que, após a ofendida ter saído de casa falou com esta por telefone e ela confidenciou-lhe que teve que fugir por uma questão de vida ou morte e que o arguido andava à procura dela e a persegui-la. Dias após a ofendida ter saído de casa afirma que estava na cozinha com o arguido e este muito alterado dizia "se a encontrar mato-a", pensa que na mesma altura também estaria a testemunha T. e outro senhor cujo nome não recorda. O seu depoimento afigurou-se espontâneo e sincero.

F., cabo da GNR de Beja, confirmou as diligências de busca e apreensão efectuadas à residência do arguido, e melhor documentadas nos autos, tendo afirmado que o arguido se mostrou colaborante.

MJ, pai da ofendida, desconhece a relação que existia entre o casal enquanto coabitaram porque não tinha muita relação com nenhum dos dois, nem frequentava a casa dos mesmos. Após a filha ter saído de casa do arguido acolheu-a em sua casa e sabe que o arguido andou pelos cafés da zona onde a testemunha vive à procura da ofendida e das filhas. Devido a estes factos afirma que comprou um veículo novo para a filha para que o arguido não a reconhecesse.

Prestou depoimento verosímil e confirmou o teor da conversa telefónica tida com o arguido em Junho de 2012.

Quanto ao teor desta conversa, por ter sido já objecto de julgamento no Processo n° --/12.0GAGLG a correr termos na Instância Local do Entroncamento cfr. certidão da sentença de fIs. 902 a 908,entendemos não nos pronunciar sob pena de violação do princípio "ne bis in idem",

O artigo 29°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa dispõe "que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime".

Muito sinteticamente diremos que o "ne bis in idem" tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo, por um lado tendo em vista assegurar a sua paz jurídica e configurando, de outro passo, uma limitação ao poder punitivo do Estado.

Ancorado na estrutura acusatória do processo que enforma o nosso processo penal, a proibição da dupla apreciação significa, numa primeira leitura, que ninguém pode ser julgado mais de uma vez e não, como por vezes é referido, que ninguém pode ser punido mais de uma vez. Por isso esta garantia constitucional deve ser vista como da proibição da dupla perseguição penal do indivíduo, estendendo-se, portanto, não apenas ao julgamento em sentido formal, mas, também, a qualquer outro acto processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, como seja o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público ou a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal e a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento criminal ou por desistência da queixa.

Assim, poder-se-á dizer que o princípio "ne bis in idem" consubstancia a proibição de um segundo procedimento criminal contra o mesmo sujeito pelos mesmos factos, ainda que inexista sentença transitada em julgado, como sucede com a sentença já proferida no Processo nº ---/12.0GAGLG a correr termos na Instância Local do Entroncamento, pelo que, entendemos não nos pronunciar quanto aos factos constantes da acusação pública e particular relativos à conversa telefónica entre o arguido e o pai da ofendida.

E., mãe da ofendida, afirmou que após a ofendida ter saído de casa lhe relatou os maus tratos psicológicos que sofreu por parte do arguido. Relatou-lhe ainda a tentativa de o arguido ter relações sexuais com ela. Mais depôs sobre o animus da ofendida após ter saído de casa do arguido.

MR, amiga da ofendida, mas não menos credível por isso, depôs de modo que se reputou seguro e coerente, tendo referido o estado de nervosismo e medo da ofendida quando lhe relatou que numa noite o arguido a tinha agarrado pelos pulsos e tinha que ir ao Centro de Saúde tendo a testemunha ficado a tomar conta das filhas da ofendida. Mais disse que após a ofendida ter saído de casa o arguido a contactou telefonicamente e ameaçou que se encontrasse a ofendida matava-a e também matava a mãe dela porque era culpada de tudo. Nesse telefonema chamou a ofendida de cabra, filha da puta e disse que a testemunha era igual a ela. A testemunha encontrou-se com a ofendida quando esta já estava a viver na Carregueira e encontrou-a apreensiva e fragilizada, com medo.

T., ex-sogra do arguido, prestou depoimento inócuo porquanto afirmou nada saber da relação do arguido com a ofendida, nunca tendo visto ou ouvido nada.

PM, primo da assistente, de modo preciso e circunstanciado, referiu que após a ofendida ter saído de casa, o arguido, na companhia de outro homem, foi a casa da testemunha à procura da ofendida e ameaçou esta e a mãe dela de morte, tendo a testemunha tentado acalmá-lo. A testemunha relatou à prima o sucedido e viu que esta estava muito abalada e aterrorizada, temendo pela vida.

G., amiga da assistente, relatou como em Junho de 2012 foi contactada pela irmã da assistente de quem era amiga solicitando ajuda porque a assistente estava a ser vítima de ameaças por parte do arguido. A testemunha disponibilizou-se para ajudar, facultando uma casa onde a assistente e as filhas estiveram umas semanas, bem como, roupa para ela e para a meninas. Durante este período esteve apenas uma vez com a arguida, que encontrou perturbada e amedrontada, com receio pelas filhas.

S., vizinho da assistente, relatou como em Junho de 2012 estava no jardim da sua casa quando viu o arguido a bater à porta dos pais da assistente com murros e pontapés tendo-o alertado para que estava ali uma campainha, o arguido foi-se embora e passados 40/45 minutos apareceu a GNR a quem a testemunha contou o sucedido. Depois disso, assistiu ao regresso da B. a casa dos pais e viu que esta estava muito transtornada, triste com receio do arguido por contraposição à pessoas activa que costumava ser.

LM, conhece a assistente há 15 anos, descreveu o arguido, como um homem machista, do qual não ficou com boa impressão, nos poucos contactos que teve com ele. Disse que acolheu a ofendida e as filhas na sua casa durante um mês e meio e achou-a destruída a nível emocional, paranóica, com muito medo, situação que se agravava quando a ofendida recebia mensagens ameaçadoras do arguido que a deixavam em pânico e que a testemunha leu. Depôs de modo convicto e seguro, que incutiu convencimento.

RF, prima da assistente, falou sobre o estado da assistente quando chegou à Carregueira, como esta estava aterrorizada, e como a ajudou a alugar uma casa, tendo dado o seu próprio nome para que o arguido não a localiza-se, tendo ainda comprado mobílias para a casa e ajudado com roupa porque a ofendida não tinha trazido nada de casa. O seu depoimento embora emotivo foi merecedor de credibilidade porque lógico e conforme à regras da experiência comum.

AP, funcionário do arguido, depôs quanto aos factos ao telefonema que o arguido efectuou para o pai da ofendida em Junho de 2012, após esta ter saído de casa, tendo referido que não o ouviu proferir qualquer ameaça apenas perguntando onde estavam as filhas porque as queria ver. Mais referiu que o arguido não é violento e trata bem as pessoas, quando o vê alterado vai-se embora. Afirma que a relação do arguido com as filhas é chegada.

CC, funcionário do arguido entre Junho de 2012 e Agosto de 2013, relatou que começou a prestar serviço para o arguido após a ofendida sair de casa, pelo que, não a conheceu. Afirma que costumava almoçar todos os dias com o arguido e as testemunhas T e Andrea e nunca ouviu o arguido proferir quaisquer ameaças contra a ofendida mas viu-o sim chorar porque não via as filhas.

No que se refere aos factos respeitantes à personalidade e conduta anterior e posterior do arguido, foi considerado o depoimento das testemunhas abonatórias:

- H., funcionária do arguido nos anos de 2011 e 2012,

- L., empregada doméstica durante a convivência marital do arguido e ofendida (após o nascimento da filha mais velha e antes do nascimento da filha mais nova),

- MM, trabalhou durante 7 ou 8 meses na casa do arguido/ofendida tendo cessado funções em Setembro de 2010,

- AP, funcionária do arguido desde Fevereiro do ano passado, e;

- MF, amigo de infância do arguido.

Saliente-se que o facto de as testemunhas de defesa referirem por diversas vezes que viam arguido e ofendida a darem-se muito bem em nada descredibiliza o depoimento da ofendida quanto à existência de agressões verbais, bem se sabendo que crimes como o dos autos são praticados por via de regra no seio do lar conjugal, resguardados de olhares alheios e encobertos por um sentimento de vergonha da vítima.

Neste sentido aliás, têm decidido os nossos tribunais superiores.

A título de exemplo pode-se ler no Acórdão da Relação de Guimarães de 09.05.20: "Na verdade, passou a constituir lugar comum sempre que estão em causa factos da natureza dos ora em análise - as mais das vezes, por motivos óbvios, levados a cabo fora do olhar de terceiros, num espaço confinado, normalmente no interior da habitação - a tentativa de desvalorizar as declarações da vitima, com a alegação da ausência de testemunhas presenciais seguida da conclusão, no mínimo precipitada, "de que se trata da palavra de um [vítima] contra a palavra de outro [agressor]. Argumentação que, evidentemente, não procede quando existem fim dados motivos para atribuir credibilidade àquela, em detrimento deste, como acontece no caso. "

O Tribunal tomou ainda em consideração o auto de notícia de fls. 3 a 9, auto de transcrição de fls. 43, autorização de simples detenção de fls. 48, autos de busca e apreensão de fls. 77 a 79 e 81 a 83, relatório fotográfico de fls. 134 a 136, exames e avaliações das armas apreendidas de fls. 175 a 186, certidões de nascimento de fls, 260 a 263, informação da TMN de fls. 273, certidão do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais com o nº ---/12.9TBGLG-A a correr termos no Tribunal Judicial da Golegã junta a fls. 442 a 636, informação sobre estado de conservação de armas de fls. 639, 654 e 668, factura de fls, 791 e 792, certidão de episódio de urgência de fls, 837 e 838, certidão de sentença do Processo nº ---/14.8GAGLG a correr termos no DIAP do Entroncamento de fls, 909 a 916 e certidão de sentença do Processo nº ---/12.9TBGLG-A a correr termos na Instância Central de Tomar, 2ª Secção de Família e Menores de fls, 917 a 922.

A partir dos factos dados como provados, por inferência e atendendo às regras da experiência comum, num processo lógico e racional, o Tribunal ficou convencido de que o arguido agiu consciente da reprovabilidade da sua conduta, que representou e quis praticar.

Para prova das condições económicas e pessoais do arguido a convicção do Tribunal alicerçou-se exclusivamente nas suas declarações as quais, embora evasivas, mereceram credibilidade.

No que concerne à ausência de antecedentes criminais teve-se em conta o Certificado de Registo Criminal de fls. 744.

No que se refere aos factos não provados, a convicção do Tribunal assentou na circunstância de não ter sido produzida qualquer prova que sustentasse, nesta parte, a versão constante da acusação particular.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes: (a) Impugnação da matéria de facto; (b) Enquadramento jurídico dos factos provados; (c) Determinação da pena e (d) Fixação do montante indemnizatório.

Nota prévia:
Começa por se consignar que o recurso não é passível de rejeição decorrente de um alegado (pelo MP) incumprimento do preceituado no art. 412º, nº1 do CPP. Optou-se, também, por não proceder a convite ao aperfeiçoamento.

Dispondo o art. 412º nº 1do CPP que a motivação dos recursos deve enunciar especificamente os fundamentos do recurso e terminar pela formulação das conclusões deduzidas por artigos em que o recorrente resume as razões do pedido, só quando estas forem formuladas de um modo conciso, demarcando sucintamente com precisão e clareza as questões a tratar, se podem considerar cumpridas as exigências contidas em tal preceito. Não sendo assim formuladas há que considerar não cumprido o estatuído no artº 412º nº 1 do CPP.

Este preceito tem carácter imperativo, e o seu incumprimento, após convite feito para correcção das conclusões de modo a ser observado o ali prescrito (convite considerado já como indispensável anteriormente à entrada em vigor das alterações ao CPP dadas pela Lei 20/2013- vd. designadamente Acórdão TC nº 43/99), é efectivamente sancionável com a rejeição total do recurso, ao abrigo dos arts 414º nº 2 e 420º nº 1 do CPP.

No entanto, reconhecendo-se a extensão e falta de concisão apontadas pelo MP às conclusões apresentadas pelo recorrente, mesmo assim é de aceitar que ainda cumprem, minimamente embora, as exigências do art. 412º, nº 1.

Nestas condições, dispensou-se o convite ao aperfeiçoamento e considera-se que a rejeição sempre se apresentaria como uma consequência manifestamente despropositada para as deficiências que se detectam na peça processual em causa.

Assim sendo, aceitam-se como válidas as conclusões supra transcritas, passando a conhecer-se do objecto do recurso.

(a) Da impugnação da matéria de facto
O recorrente pretende impugnar a matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 412º, nº 3 do CPP. Concentra a impugnação nos factos relativos ao crime de violência doméstica. Procedeu à indicação das provas em que funda a impugnação (por referência à prova gravada) e individualizou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, pelo que são de considerar como cumpridas as exigências formais de impugnação da matéria de facto.

Os pontos de facto especificados são os constantes dos factos provados na sentença sob os números 3,4,5,6,8,9 a 13, 15, 16, 17, 18, 23, 28, 31, 33, 34 e 35.

As provas especificadas consistem em excertos de declarações e depoimentos - que o recorrente ora transcreve, ora identifica por remissão para as gravações da prova.

Faz ainda uma breve referência ao estado da arma que integra o crime de detenção de arma proibida, com menção de auto que integra o processo.

Antes de avançar, lembra-se que o recurso da matéria de facto visa a reparação de erros de facto e não é um segundo julgamento, como se tem afirmado sem dissensão, na jurisprudência e na doutrina.

A Relação não reaprecia as provas na exacta medida em que o fez o tribunal de julgamento, o que sucede, desde logo, porque o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento (este decide sobre a acusação, aquele decide sobre a sentença), mas sobretudo porque a segunda instância não se encontra na mesma posição perante as provas – não dispõe de uma imediação total (embora tenha uma imediação parcial, ou seja, relativamente às provas reais e à componente voz da prova pessoal) e não interage com a prova pessoal (pois está impedido de a questionar directamente).

Existe, assim, uma impressão causada no julgador relativamente ao prestador da prova oral (nela assumindo, no caso, particular destaque o arguido e a ofendida) que a imediação em primeira instância possibilita a um nível mais elevado.

É certo que a Relação dispõe de alguma imediação com as provas, mas tem de aceitar-se que, no modelo de recurso plasmado no Código de Processo Penal, e sempre em interpretação conforme à Constituição, existirá uma margem de insindicabilidade na decisão do juiz de primeira instância, sobre a matéria de facto.

Olhando o presente caso, do confronto das razões do recurso com a decisão da matéria de facto da sentença (que inclui os factos provados e não provados e a sua explicação de acordo com as provas examinadas em julgamento), resulta que o recurso, mau grado a correcção abstracto-formal da argumentação desenvolvida, não pode proceder.

Tem assim razão o MP quando refere (secundado pela assistente) que “a simples divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal firmou sobre esses factos, não pode - no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova (art, 127º do Cód. Proc. Penal) - servir de base à impugnação da matéria de facto” e que “o exame crítico da prova feito pelo Tribunal a quo revela a boa apreciação que fez da prova indiciária, numa leitura de provas que, diremos nós, é possível e defensável, com o grau de convencimento desejável, e se apresentava como racional e lógica relativamente aos factos impugnados”.

Na verdade, olhando o texto da sentença, e fazendo-o ainda no confronto das razões do recurso, constata-se que o exame crítico da prova (a considerar até como motivação exemplar) responde a todas as objecções suscitadas no recurso, continuando a explicar suficientemente a decisão sobre a matéria de facto.

O recorrente ataca a decisão sobre os factos argumentando essencialmente que o tribunal assentou a convicção nas declarações da assistente, descurando as declarações do arguido; que as declarações do arguido terão sido, em parte, de negação, e em parte, explicativas dos factos por si admitidos como tendo ocorrido; que das declarações da assistente nem resultará a comprovação de todos os factos considerados como tal (pois ela não os terá relatado ipsis verbis da forma como foram descritos na sentença e nenhuma outra prova foi produzida, nessa parte, sobre eles).

A problematização enunciada no recurso (oposição de versões: declarações de vítima versus declarações do arguido, desacompanhadas de outras provas) não é nova, pois no âmbito da criminalidade que costuma ocorrer na reserva da vida privada e do lar, a prova possível consistirá predominantemente no depoimento das vítimas, como aliás se dá nota na sentença.

Porém, daqui não resulta que esta prova (por declaração de vítima) deva merecer, só por isso, uma credibilidade especial. Perante provas de sinal contrário – declarações do arguido versus declarações da vítima – o tribunal não está desobrigado de justificar uma maior credibilidade que estas tenham eventualmente merecido.

Assim sucedeu, no caso presente. A sentença responde a todas as objecções colocadas no recurso à formação da convicção da senhora juíza, e explica exemplarmente a credibilidade que mereceram as declarações da assistente. O exame crítico da prova enuncia todas as provas produzidas e examinadas em audiência, e avalia todas as particularidades dessa prova, fazendo concretamente jus à máxima de Stelle, de que “a prova é particularística sempre”.

Na verdade, em julgamento, no que respeita aos factos relativos à violência doméstica, foram apresentadas duas versões contrapostas dos factos, embora não absolutamente opostas e com pontos de coincidência: a do arguido, que negou os factos que agora impugna em recurso, admitindo outros que, por si só, não seriam suficientes para realizar o crime da condenação; e a da demandante, que a confirmou. Aceita-se que esta o tenha feito sem verbalização de uma reprodução ipsis verbis dos factos, tal como descritos nos provados da sentença. Mas essa reprodução ou cópia do discurso narrativo da assistente não se mostra obrigatória.

Do que se trata é sempre de aferir se os factos provados resultam realmente das declarações da ofendida e da restante prova produzida em julgamento, não estando o tribunal amarrado às expressões verbais utilizadas e às narrativas desenvolvidas pelas testemunhas.

E da audição das declarações da assistente, na sua globalidade, declarações corroboradas em muito pontos por outros depoimentos prestados em audiência, resulta efectivamente a demonstração dos factos considerados como provados. Corroboração por depoimentos de testemunhas, tendo constatado, umas, o modo como a assistente se ia apresentando, o seu estado psíquico, e outras, algumas das atitudes e acções do arguido, tudo conforme exame crítico da prova.

Em abstracto, nada impede que a prova dos factos da acusação assente nas declarações de ofendido/a quando opostas à versão do arguido e mesmo se desacompanhadas de outras provas corroborantes. A prova por depoimento de vítima é livremente valorada, também no eventual confronto com a prova por declarações de arguido. A lei não proíbe que possa, por si só, conduzir à condenação, pois não o reconhecer (contra legem) seria mesmo inviabilizar a perseguição de crimes que ocorrem na total privacidade – crimes não presenciados ou não testemunhados – em que o depoimento/declaração da vítima constitui muitas vezes a única prova possível dos factos da acusação.

Acontece que, no reverso, as declarações do arguido também não são, em abstracto, menos credíveis do que as da vítima. As declarações de arguido, reconhecidamente consideradas como um meio de defesa, corolário do direito a ser ouvido, a falar e/ou a não falar, são também um meio de prova. Foi esta a opção do legislador, na disciplina do art. 344º do CPP, por via do qual atribuiu à confissão efeitos de prova plena.

E aceitando-se que o arguido tenha um especial interesse no desenrolar do processo, há que reconhecer que tal interesse também se verifica do lado da vítima. Seria, pois, juridicamente errado justificar um eventual menor peso probatório das declarações de arguido (versus declarações do ofendido) com a ausência de juramento ou com um interesse pessoal no desfecho do processo. Do princípio do in dubio decorrerá também que ao arguido bastará fragilizar a prova da acusação, já que acusação e defesa não se encontram, no enfoque probatório, em situação de igualdade. Inexiste repartição de ónus de prova em processo penal.

Tem razão, pois, o recorrente em muitas das afirmações teóricas que desenvolve em recurso.

Mas destas não resulta que, no presente caso, seja visível que o tribunal se tenha afastado do cumprimento das regras e princípios de prova, particularmente dos relativos à apreciação, e que tenha dado credibilidade injustificada à versão da acusação. Ou seja, que tenha decidido de facto infundadamente.

Do que se disse resulta que o julgador, na decisão da matéria de facto, quando se depare com provas de sinal contrário e abstractamente de igual peso probatório, deve procurar outros elementos probatórios, corroborantes do facto controvertido da acusação. Na ausência destes (de outras provas corroborantes, directas, indirectas ou circunstanciais, porque inexistentes), terá então de justificar de um modo especial a verosimilhança da versão da acusação, se for caso disso. Fazendo-o, por exemplo, com base numa maior racionalidade da versão apresentada pela testemunha-vítima (de acordo com regras de lógica e de experiência comum), numa superior credibilidade (devidamente objectivada) merecida por esta, tudo sob pena de, não o alcançando, ter de fazer operar o princípio do in dubio pro reo.

No caso presente, o depoimento da vítima revestiu importância nuclear assumida, à semelhança, aliás, do que sucede noutros processos que tratam de criminalidade em contexto familiar, como dissemos. Os crimes de violência doméstica raramente são perpetrados sob o olhar de terceiros. Daí que esta possa surgir naturalmente no processo como a única fonte de conhecimento. Desta circunstância não derivam, porém, regras especiais de valoração de prova que conduzam a uma sobreavaliação injustificada de determinado depoimento, por contraposição a uma negação dos factos pelo arguido, como dissemos.

A livre apreciação da prova significa sempre ausência de critérios legais pré-fixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3). Não poderá tratar-se de uma convicção puramente subjectiva ou emocional, curando-se sempre de uma convicção pessoal mas necessariamente objectivável e motivável.

E essa objectivação encontra-se na motivação da sentença, formada e exteriorizada de um modo que não oferece nenhum reparo.

Dispensamo-nos de repetir um percurso de análise de provas que se mostra claro e coerente, sem saltos ou incongruências, e que não sai abalado por se ter afirmado, agora em recurso e contra o que se evidencia com clareza no acórdão, que a prova se teria baseado injustificadamente nas declarações da ofendida e que destas nem se retirariam alguns dos factos provados. Esta alegação não coloca o tribunal de recurso na posição de ter de repetir toda a justificação dos factos efectuada em 1ª instância, alias, já transcrita supra.

O depoimento da vítima foi efectivamente confirmativo dos factos provados, do modo como o tribunal os justificou. E referimo-nos aqui apenas aos factos provados, pois é disso que se trata na decisão sobre a impugnação da matéria de facto.

Assim, quando se diz em recurso, por exemplo, que nem a ofendida nem ninguém relatou os “insultos” referidos no ponto 3., pelo que não poderão ser considerados provados, recorda-se que o ponto 3. tem a seguinte redacção: 3. Durante o ano de 2008, estando a B. grávida, em dia não apurado e quando ambos viajavam de carro, a ofendida atendeu um telefonema do seu patrão, tendo o arguido passado a conduzir de modo agressivo, proferindo insultos e envergonhando a ofendida”.

Esta situação não configura, pois, uma discordância relativamente à decisão de facto, um “erro de facto”, mas é já uma apreciação de direito, sobre a relevância, ou não, do facto provado, da forma como se encontra descrito - de modo conclusivo (“proferir insultos”) e sem concretização das expressões efectivamente proferida. A esta questão se tornará, no ponto seguinte.

Em suma, as declarações da ofendida apresentaram-se ao tribunal como verosímeis e mereceram a credibilidade que lhes foi dada pelas razões que a sentença explica detalhadamente. A sentença revela que a julgadora esteve ciente das dificuldades decorrentes da existência de provas de sinal contrário, procurando uma corroboração das declarações da assistente e explicando um suporte em provas corroborantes dessas declarações, compreensivelmente primordiais.

O exame crítico da prova materializa as preocupações que se enunciaram como devendo estar presentes, e um concreto cuidado na apreciação de todas as provas no seu conjunto, dando aliás como não provados todos os factos que não lograram suficiente demonstração.

Seria fastidioso e inútil prosseguir com transcrições de excertos da motivação já reproduzida na íntegra, demonstrativa das razões porque o tribunal acreditou na versão da ofendida em detrimento da negação do arguido, declarações que se mostram corroboradas na parte relativa a muitos factos circunstanciais importantes e nunca desprezíveis em casos de crimes raramente presenciados por terceiros.

De tudo se conclui que a decisão de facto resiste incólume à impugnação efectuada no recurso. Impugnação que, como se disse, em grande parte imputa ao tribunal de julgamento uma avaliação de prova que não coincide com a realmente efectuada.

Constatando-se que não são detectáveis desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na sentença as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo sempre racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão da matéria de facto.

(b) Enquadramento jurídico dos factos provados
O recorrente impugna a decisão em matéria de direito. Fá-lo, em parte, na decorrência da impugnação da matéria de facto. Mas invocou também o erro de subsunção, e fê-lo relativamente aos dois crimes da condenação.

Assim, quanto ao crime de violência doméstica, referiu que os factos provados “revelam essencialmente episódios da vida conjugal do arguido e da assistente e da ruptura dessa relação, sem qualquer relevância criminal”. E quanto ao crime de detenção ilegal de arma, defendeu que “a arma de fogo longa, semiautomática, de classe D, marca Browning, detida pelo arguido, não estava apta a ser usada e não era do arguido”, “o arguido guardou-a no caixote onde a arma foi encontrada, para a entregar ao dono quando viesse buscá-la” e, além disso, tem licença de utilização de armas semelhantes a esta. Nas conclusões do recurso, e relativamente à matéria de facto dada como provada, refere ainda que “o ponto 23 deve ser alterado complementando-se com a informação de que a espingarda em causa não estava apta a disparar e que não pertencia ao arguido”.

Começando pelo crime de violência doméstica, é de reconhecer, em abstracto, a pertinência da problematização enunciada pelo recorrente.

Na verdade, os comportamentos a tratar aqui juridicamente, no âmbito do tipo violência doméstica, raramente se esgotam em actos claros, precisos, simples e bem circunscritos, de (anti)juridicidade evidente, exigindo-se do julgador uma peculiar compreensão da realidade que avalia.

Compreender aqui o episódio de vida que se julga, na correcta percepção do direito do caso, da função e dos limites da intervenção penal, sempre no insolúvel círculo lógico entre facto e norma de que fala Castanheira Neves, nem sempre se afigura evidente e fácil e exige, aqui, uma boa percepção do facto global.

O tribunal deve, assim, tratar a “questão de facto” ciente de que o tipo compreende situações de violência (familiar e/ou de proximidade) reveladoras de abusos de poder na relação afectiva, perseguindo-se os comportamentos degradantes da saúde física e/ou psíquica da pessoa que se encontra (ou tenha encontrado) em determinada posição, nessa relação.

Tem de fazê-lo ciente de que o direito penal, entendido sempre como “garante da liberdade” e não como “limite á liberdade”, não interfere nas opções livres de comportamento e nos modos livres de relacionamento entre pessoas adultas, e não tem como tarefa a imposição de padrões morais ou sociais de comportamento ou de modos de relação.

Perseguem-se apenas as condutas que atingem bens jurídicos, não prosseguindo o direito penal finalidades de educação social ou familiar.

A problematização do recorrente, não se revelando nesta medida despropositada, no campo da abstracção, não colhe no entanto, em concreto, no caso presente.

Na verdade, os factos provados realizam um crime de violência doméstica.

Na hipótese que releva aqui, o art. 152º pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (al/a), a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou um relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

No caso presente, identifica-se a especial relação entre agente e vítima, exigida pelo tipo, e isso não está em discussão.

Tratando-se de um crime de execução não vinculada, requer-se apenas que a conduta maltratante consubstancie actos ou omissões adequados, pela sua intensidade ou pela sua reiteração, a afectar a saúde física ou psíquica da vítima.

O conceito de “maus-tratos” inclui tanto os casos de “micro violência continuada”, caracterizados pela “opressão exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que, apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”, como “os actos que pelo seu carácter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima” (Nuno Brandão, na Revista Julgar, nº 12).

Os factos provados da sentença, que se desenrolaram ao longo de cerca de quatro anos, realizam o crime da condenação (mesmo desconsiderando agora o descrito no ponto 3. “proferindo insultos”).

Na verdade, a prolação das expressões «tu és uma inútil! Não prestas para nada! Pensas que és alguém, mas não és ninguém! Sua cabra! Nenhuma mulher presta! Nenhuma mulher vale nada! São todas umas putas! Umas cabras!»; o pisar os pés da ofendida, dizendo-lhe «sai daí que eu quero mijar!», o referir-lhe «não vales nada! És uma cabra! Uma puta' Agora vou dar-te um beijo!»; o agarrá-la e imobilizá-la em cima da cama, tentando beijá-la e manter relações sexuais com ela, puxando-lhe os cabelos; o telefonar-lhe dizendo: «tu sabes aquilo que estás a fazer? Olha que não nos vamos encontrar uma terceira vez!»; o enviar-lhe mensagens escritas referindo «não me apareças na frente, és uma doente e uma grande cabra» e «O meu coração está preto. Quem mexe no fogo, ou mija na cama ou queima-se. É como preferires. O tempo dirá. Por alma do meu pai e a saúde dos meus anjos, tu não te escondes o resto da vida», entre outros factos também provados, praticados ao longo de quatro anos, configuram maus-tratos físicos e psíquicos com o nível de intensidade e/ou de reiteração exigido no tipo.

Preenchidos estão, também, os restantes elementos típicos, do modo como se expôs já, incluindo o tipo subjectivo, pelo que não é detectável na sentença o erro de subsunção apontado.

O mesmo ocorre quanto ao crime de detenção de arma proibida.

O artigo 86° da Lei n° 5/2006 (que aprovou o RJAM), na redacção dada pela Lei n° 12/2011, de 27 de Abril, pune “1. Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo: (. .. ) c) Arma das classes B, BI, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada”.

Arma de fogo longa é qualquer arma de fogo com exclusão das armas de fogo curtas (art. 2°, nº 1, al. s)). São armas da classe D as armas de fogo longas semiautomáticas ou de repetição, de cano de alma lisa com um comprimento superior a 60 cm (art. 3º, nº 6, al. a)).

Dispõe ainda o art. 6° do RJAM que “I - As armas da classe D são adquiridas mediante declaração de compra e venda ou doação, 2 - A aquisição, a detenção, o uso e o porte de armas da classe D podem ser autorizados: a) Aos titulares de licença de uso e porte de arma das classes C ou D: b) A quem, nos termos da respectiva lei orgânica ou estatuto profissional, possa ser atribuída ou dispensada a licença de uso e porte de arma de classe D, após verificação da situação individual. 3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, mediante autorização especial do director nacional da PSP, podem ser autorizadas a venda, a aquisição, a cedência, a utilização, a detenção, a utilização, a importação, a exportação e a transferência de armas e acessórios da classe D a entidades privadas gestoras ou concessionárias de zonas de caçoa ou pesca, museus públicos ou privados, investigação científica ou industrial e utilizações em realizações teatrais, cinematográficas ou outros espectáculos de natureza artística, de reconhecido interesse cultural. 4 - As autorizações referidas no número anterior deverão ser emitidas no prazo máximo de 30 dias, salvo decisão fundamentada prorrogando o respectivo prazo.”

Ficou provado que o arguido detinha uma arma de fogo longa, semiautomática, de classe O, de marca Browning, com o número ilegível, de calibre 12, com cano liso com 70 cm, sem que fosse titular de qualquer documento que o habilitasse a detê-la, factos que sabia e quis.

As circunstâncias que alega em recurso (não ser o proprietário da arma e ter uma autorização para deter outra arma semelhante a esta) são, em concreto, indiferentes para a afirmação da tipicidade.

Trata-se de circunstâncias inócuas no caso para o preenchimento do crime, já que os factos provados realizam todos os elementos do tipo: o arguido detinha a arma, não estando autorizado a deter esta arma em concreto.

A detenção de arma é definida no art. 2º, nº 5, g) do RJAM, como “o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor”. A detenção de arma, enquanto conduta típica, podendo coincidir com a propriedade não se confunde com ela.

Inócua se apresenta também a invocada obsolescência da arma. Sendo logo certo que nada obstaria ao seu conserto, a circunstância alegada em recurso (de que não estaria em condições de funcionar) nem integra a matéria de facto provada, nem está em sintonia com o próprio exame feito à arma, aquando da sua apreensão. A fls. 182, consta expressamente do auto que a arma em causa “encontra-se em razoável estado de conservação e funcionamento”.

Por tudo, não se detecta nenhum erro de subsunção na sentença.

(c) Da medida da pena

O recorrente insurge-se contra a pena fixada dizendo que “as penas aplicadas se mostram excessivas atenta a diminuta gravidade dos factos”, que “deverão ser reduzidas ao mínimo legal”, que “o arguido se encontra perfeitamente inserido socialmente”, que “os factos imputados são de reduzida gravidade”, pelo que “caso seja aplicada ao arguido uma pena de prisão suspensa na sua execução, tal suspensão não carece nem deve estar sujeita a qualquer regime de prova”.

Começa por se consignar que os recursos (tanto em matéria de facto, como em matéria de direito) não são re-julgamentos da causa, mas sempre “remédios jurídicos”. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.

Daqui resulta que o tribunal da Relação deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação ou aplicação das normas e princípios legais e constitucionais que regem a pena.

A Relação não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal a quo enquanto componente individual do acto de julgar.

A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito aos princípios que norteiam a pena ou de um desvio nas operações de determinação impostas por lei. Não abrange, insiste-se, a determinação/fiscalização dum quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionado. Dentro desta margem de actuação, impõe-se reconhecer o acerto no processo aplicativo da pena patente na sentença.

Assim, não só o recorrente não invocou, em recurso, argumentos que, em concreto, se mostrem aptos a prosseguir o resultado pretendido, como a fundamentação da pena na sentença se revela correcta.

O processo de determinação da pena é uma actividade judicialmente vinculada.

No caso do crime de detenção de arma proibida, perante pena abstracta compósita alternativa (uma vez que o crime é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa de 10 até 600 dias de multa), o tribunal começou por justificar a escolha que fez, aplicando a multa num quadro legal de preferência abstracta por pena não privativa da liberdade.

Considerou e justificou que a multa era, no caso, suficiente para garantir as finalidades da punição.

Mostra-se também acertada a medida da pena, determinada à luz do quadro legal de referência, fixada mais próximo do seu mínimo e absolutamente respeitadora dos limites da culpa e observante das exigências de prevenção.

O mesmo se diga no caso da pena por violência doméstica, fixada também abaixo do ponto médio, após correcta ponderação das exigências de prevenção geral (bastante elevadas) e especial, não se vislumbrando desrespeito pelos limites da concreta culpa.

Seguiu-se a obrigatória ponderação da aplicação de pena de substituição, mostrando-se justificado o juízo de prognose favorável à ressocialização em liberdade, formulado na sentença.

Por último, justificou-se também, autónoma e adequadamente, o reforço da suspensão com um regime de prova, pois, como ali se disse, “in casu, a pena de prisão ora suspensa foi aplicada em medida superior a três anos impõe-se que a suspensão da execução da pena de prisão seja acompanhada de regime de prova, assente em plano de reinserção social adequado à situação do arguido, a elaborar pelos serviços de reinserção social, nos termos do disposto no artigo 53°, do Código Penal.”.

Da leitura da sentença resulta que o tribunal não ignorou as circunstâncias que o recorrente agora enuncia como motivos para a “descida” da pena. Não ignorou a sua primariedade (menciona-a expressamente, referindo até que dela decorreu a atenuação das exigências de prevenção especial) e ponderou devidamente a “gravidade dos factos”.

Não se detecta, pois, nenhum erro de direito na decisão sobre a(s) pena(s).

(d) Do montante indemnizatório
O recorrente insurge-se aqui dizendo que “o montante indemnizatório arbitrado à ofendida é excessivo e desproporcional aos danos em causa, e como tal, sempre deve ser reduzido”.

A assistente deduzira pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de €15.100,00.

O tribunal julgou parcialmente procedente o pedido e condenou o arguido/demandado civil a pagar à assistente/demandante civil, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 4.500,00, absolvendo-o do demais peticionado.

Na medida em que improcedeu o recurso da matéria de facto, a sindicância da decisão cível encontra-se circunscrita à quantificação da indemnização. O recorrente não discute os pressupostos da responsabilidade civil, sendo essa matéria de considerar estabilizada.

Assim, na parte que agora releva, após citação dos preceitos legais adequados e de doutrina de apoio, concluiu-se na sentença:

“Assim, nos termos conjugados do disposto nos artigos 496°, nº 3 e 494° ambos do Código Civil, o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e do lesado e a quaisquer outras circunstâncias que o caso suscite.

Finalmente, tendo presentes os critérios legais enunciados que presidem à determinação do quantum compensatório, nomeadamente, o dano causado à demandante nos termos dados como provados, a situação económica do demandado e o seu grau de culpa atentas as circunstâncias e o modo como ocorreram as ofensas, entende-se adequado fixar, não a quantia peticionada porque manifestamente excessiva, mas antes a quantia de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos com a conduta do demandado.”

Não se discordando dos itens que relevaram na quantificação dos danos, acrescenta-se que nessa mensuração releva ainda o período de tempo, medianamente longo, em que os factos se desenrolaram.

Deve ter-se ainda em conta o referente jurisprudencial e os valores atribuídos em casos semelhantes. Pois como se refere no acórdão do STJ de 02.03.2011 (a propósito da quantificação do dano morte) “não pode deixar de ser ponderado o que se decidiu em casos anteriores, relativamente semelhantes”, não sendo conveniente “alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos. Há que não perder a realidade económica e social do país. E é vantajoso que o trajecto no sentido de uma progressiva actualização das indemnizações se faça de uma forma gradual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos semelhantes”.

O valor fixado na sentença encontra-se próximo de montantes indemnizatórios que têm vindo a ser fixados para casos semelhantes, mostra-se adequado à concreta dimensão do dano causado à vítima (a sentença avaliou-o devidamente) e não se afigura incomportável para a capacidade económica do lesante (esta circunstância nem é referida em recurso).

Nenhum reparo merece, pois, a decisão, também na parte civil.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 19.01.2016

Ana Maria Barata de Brito

Maria Leonor Vasconcelos Esteves