Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1199/12.9TBLGS-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: SEGURO DE VIDA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Uma cláusula geral, inserida num contrato de seguro que cobre os riscos de morte, invalidez absoluta e definitiva e incapacidade temporária para o trabalho, que exclui, do âmbito da cobertura morte, o “consumo de álcool, estupefacientes ou outras drogas não prescritas, ou em doses não prescritas, por qualquer médico”, não pode ser interpretada como excluindo a referida cobertura, nomeadamente, se o sinistro ocorrer quando a pessoa segura tiver consumido uma quantidade insignificante de álcool e nem sequer estiver a exercer uma actividade que possa ser afectada pelos efeitos desse consumo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1199/12.9TBLGS-A.E1

Relatório


(…) deduziu os presentes embargos de executado contra Banco (…), SA.

O embargado contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.

Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e controvertida.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que decidiu:

- Julgar os embargos parcialmente procedentes, absolvendo a executada/embargante do pedido de pagamento das quantias de € 200 a título de despesas com o preenchimento da livrança e de € 31,23 a título de imposto de selo sobre a livrança, bem como dos juros que se venceram sobre o capital vincendo desde a data de vencimento aposta na livrança que serve de título executivo até à data da realização da citação;

- O prosseguimento da execução para cobrança do montante correspondente à dívida de capital (€ 4.672,02) e das prestações vencidas e não pagas (€ 1.374,75), sendo os juros sobre o valor de € 4.672,02 devidos desde a data da citação para a execução.

A embargante recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1 – Por sentença proferida em 11/01/2017, veio o douto tribunal a quo proferir decisão que julgou, apenas, parcialmente, procedente a oposição à execução intentada pela opoente, ora recorrente, e, em consequência, absolveu a recorrente do pedido de pagamento das quantias de € 200 a título de despesas com o preenchimento da livrança e € 31,23 a título de imposto de selo sobre a livrança, bem como dos juros que se vencerem sobre o capital vincendo desde a data de vencimento aposta na livrança que serve de título executivo até à data da realização da citação e, por sua vez, determinou que os autos prossigam para cobrança do montante nela titulado a título de capital em dívida (€ 4.672,02) e prestações vencidas e não pagas € 1.374,75, sendo os juros sobre o valor de € 4.672,02 devidos desde a data de citação nos autos principais.

2 – Com o douto respeito que merece a supra referida decisão judicial, a mesma não apreciou correctamente a matéria de facto, nem interpretou e aplicou correctamente o direito, pelo que, se pugna pela revogação da mesma e, consequente, absolvição do pedido.

3 – O douto tribunal a quo considerou que a existência de um seguro de responsabilidade civil (seguro de vida) é fundamento de oposição à execução e que a cláusula contratual geral de exclusão de responsabilidade por morte é válida, não sendo absolutamente proibida, nos termos do disposto no artigo 18.º, alíneas a) ou b), do DL 446/85, 25/10.

4 – E que: “Atentos os riscos inerentes à condução de veículos automobilizados, entendemos que a causa para o sucedido – e na falta demonstração de outras – foi a condução em estado de embriaguez que, aliás, era superior à legalmente permitida. Desde modo, o sinistro ocorrido por motivo da condução culposa em estado de embriaguez é subsumível na cláusula de exclusão da responsabilidade constante da apólice objecto dos presentes autos que prova o contrato de seguro celebrado com a seguradora Cardiff.”

5 – Ora, a factualidade dada como provada, designadamente os pontos 13. No dia 11.06.2011, pelas 15h30, (…) encontrava-se a circular na EN 125, no sentido Lagos/Vila do Bispo, com o veículo de matrícula 41-(…)-84 (quesito 6.º da base instrutória); 14. Tendo, ao Km 15,620, saído da sua via de trânsito e entrado na via de trânsito contrária. (quesito 7.º da base instrutória; 15. (…) embatendo com a parte frontal do seu veículo na parte frontal esquerda do veículo de matrícula 66-92-(…). (quesito 8.º da base instrutória): 16. Quando do referido em 6. (…) circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro. (quesito 9.º da base instrutória), jamais permite concluir que o acidente que vitimou o segurado ocorreu devido à invasão da via de trânsito em sentido contrário e, sobretudo, à condução sob uma taxa de alcoolemia de 0,90 gramas por litro.

6 – O douto tribunal a quo não pode presumir que a causa do sinistro foi a condução em estado de embriaguez, nem que o sinistrado apresentava uma condução culposa em estado de embriaguez.

7 – A factualidade dada como provada não permite concluir a causa do acidente.

8 – A morte tem ser a consequência necessária da circunstância de o sinistro ter sido devido à condução por efeito do álcool.

9 – São inúmeros os riscos inerentes à condução de veículos, pelo que aproveitar a existência de uma taxa de alcoolemia para justificar um acidente é fazer uma presunção inaceitável.

10 – Aliás, o próprio Código da Estrada admite a condução sob o efeito de álcool.

11 – O ónus de prova da relação de causa efeito à recorrida, atendendo a cláusula de exclusão foi por si invocada.

12 – As testemunhas (…) e (…) referiram que a estrada se encontrava em obras no local do acidente à data do sinistro.

13 – A testemunha (…) referiu, ainda, que este com o sinistrado toda a madrugada e manhã, que o sinistrado não ingeriu quaisquer bebidas alcoólicas e que se encontrava doente da garganta e que tomava um xarope para a garganta.

14 – O tribunal a quo não apresentou quaisquer razões para desvalorizar o depoimento destas duas testemunhas, pelo que se impugna a falta de credibilidade das mesmas indicada pelo tribunal a quo.

15 – Neste sentido, o STJ proferiu um acórdão datado de 18/10/2012 que:

“O seguro o contrato pelo qual uma seguradora mediante retribuição pelo tomador, se obriga a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de um valor pré-definido, em função da realização de um determinado evento futuro e incerto – o risco – sendo a existência do risco essencial ao tipo legal, só se podendo atender aos riscos legalmente seguráveis, não sendo possível assumir riscos contrários à ordem pública.

II A Lei do Contrato de Seguro excluiu os riscos que implicam mera responsabilidade criminal porque intrinsecamente contrários à ordem pública, não sendo contrários a esta os contratos de seguro que garantam o risco morte, numa situação de alcoolemia quando a mesma não tenha sido a causa apurada do acidente.

III O que se mostra excluído dos contratos havidos com o falecido, não é a sua morte «tout court» enquanto risco ocorrido por o mesmo se encontrar a conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida no artigo 81º, nº 1, a qual constitui uma infracção muito grave nos termos do artigo 145º, nº 1, alínea l), este como aquele do CEstrada na redacção do DL 114/2004, de 03 de Maio, com as alterações introduzidas pelo DL 44/2005, de 23 de Fevereiro e pela qual aquele nunca poderia ser penalizado, atento o seu decesso, de harmonia com o disposto no artigo 127º, nº 1, do CPenal, mas a morte como consequência necessária da circunstância de o sinistro ter sido devido à condução por efeito do álcool, isto é, funcionando esta como causa adequada à produção do resultado.”

16 – Uma cláusula de exclusão interpretada no sentido de que a sua verificação está dependente da existência de uma taxa de alcoolemia é tornar uma cláusula de exclusão com uma extensão tão grande que faria com que a regra fosse a verificação da exclusão da responsabilidade pelas seguradoras, dado ser, legal e socialmente, sendo uma prática da sociedade, o consumo de bebidas alcoólicas.

17 – Interpretando-se a cláusula neste sentido, a mesma tem necessariamente de ser considerada absolutamente proibida nos termos do disposto no artigo 18º, als. a) e b) do Decreto-lei 446/85 (Cláusulas Contratuais Gerais).

18 – A excepção invocada pela recorrente devia ter procedido e, por sua vez, ser absolvida do pedido.

Nestes termos e nos mais doutos que Vª. Exªs. suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão nos termos supra referidos.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Se o facto que determinou a morte da pessoa segura se encontra abrangido por cláusula de exclusão constante do contrato de seguro.


Factualidade apurada


Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A exequente “(…) – Banco de (…) ao Consumo, S.A.” deu à execução uma livrança subscrita a seu favor pela executada (…) e por (…), emitida em 27.05.2012, no Porto, com data de vencimento em 16.06.2012 e importância de € 6.278,00 (seis mil, duzentos e setenta e oito euros) (facto assente A).

2. Na data de vencimento da referida livrança, a quantia nela titulada não foi paga (facto assente B).

3. No exercício da sua actividade, a exequente celebrou com a executada (…) e com (…) o acordo com o número (…), junto aos autos a fls. 12/13, cujo teor aqui se dá por reproduzido, datado de 02.11.2009, por via do qual concedeu àqueles um crédito no montante de € 6.767,18, para aquisição de um veículo da marca “Suzuki GSR 600”, do ano de 2009, com a matrícula 41-(…)-84, a restituir em 72 mensalidades, no montante de € 137,63 cada uma, acrescida de € 8,37 a título de prémio do seguro identificado em E., à taxa de juro nominal fixa de 12,980%, sendo a TAEG de 16,1% (facto assente C).

4. Para garantia do acordo identificado em C., os mutuários entregaram à exequente a livrança identificada em A., com os campos “importância”, “data de emissão” e “vencimento” por preencher, acompanhada de um documento assinado pelos mesmos, junto com o requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por reproduzido, a estabelecer os termos em que tais campos deveriam ser preenchidos (facto assente D).

5. Quando do referido em C. e no mesmo documento, o mutuário (…) subscreveu, na qualidade de tomador, a apólice de seguro número (…)/191, junta de fls. 14 a 16 e 26 a 28 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, da seguradora “(…) Assurance Vie”, para cobertura dos riscos de morte, invalidez absoluta e definitiva e incapacidade temporária para o trabalho, sendo a exequente beneficiária e mediadora do seguro, e sendo o capital seguro determinado por referência ao capital em dívida no contrato de financiamento identificado em C (facto assente E).

6. No acordo identificado em E. ficou acordado, além do mais, que:

a) o valor a pagar pelo segurador seria, em caso de morte, o capital em dívida que o tomador do seguro tivesse perante a entidade financeira à data da ocorrência do sinistro (33. Das cláusulas especiais);

b) em caso de ocorrência de um sinistro, o segurador pagaria o valor previsto nas condições especiais nos termos e durante o período aí definido (8. Das condições gerais);

c) ficavam excluídos os sinistros decorrentes de situações de afecção/situação provocada voluntariamente pelo tomador/pessoa segura/segurado (7.iv. das condições gerais);

d) ficavam excluídos da cobertura morte o consumo de álcool, estupefacientes ou outras drogas não prescritas, ou em doses não prescritas, por qualquer médico (31.1. das condições especiais) (facto assente F).

7. (…) faleceu no dia 10.06.2011 (facto assente G).

8. A executada comunicou à exequente e à seguradora referida em E o óbito de (…), na semana seguinte à respectiva ocorrência (facto assente H).

9. A executada e (…) pagaram à exequente todas as prestações do acordo identificado em C, vencidas até ao dia 10.06.2011 (facto assente J).

10. A executada pagou à exequente a prestação do acordo identificado em C vencida em Julho de 2011 (quesito 1.º da base instrutória).

11. A executada pagou à exequente 20 das prestações identificadas em C, no montante total de € 2.950,00 (quesito 2.º da base instrutória).

12. Quando do referido em 3. encontrava-se por pagar, por conta do acordo identificado em C.: i. € 4.672,02 a título de capital. ii. € 1.374,75 a título de prestações vencidas e não pagas e juros de mora (quesito 5.º da base instrutória).

13. No dia 11.06.2011, pelas 15h30, (…) encontrava-se a circular na EN 125, no sentido Lagos/Vila do Bispo, com o veículo de matrícula 41-(…)-84 (quesito 6.º da base instrutória).

14. Tendo, ao Km 15,620, saído da sua via de trânsito e entrado na via de trânsito contrária (quesito 7.º da base instrutória).

15. (…) embatendo com a parte frontal do seu veículo na parte frontal esquerda do veículo de matrícula 66-92-(…) (quesito 8.º da base instrutória).

16. Quando do referido em 6, (…) circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro (quesito 9.º da base instrutória).

17. (…) faleceu em consequência das lesões sofridas no embate referido em 8. (quesito 10.º da base instrutória).

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

1. A exequente fez cessar o acordo identificado em C por falta de pagamento das prestações (quesito 3.º da base instrutória).

2. Quando do referido em 3 encontrava-se por pagar, por conta do acordo identificado em C: € 200,00 a título de despesas da livrança identificada e € 31,23 a título de Imposto de Selo sobre a livrança.


Fundamentação


1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Nas conclusões 12 a 14, a recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto, invocando os depoimentos de duas testemunhas e censurando o tribunal a quo por não ter apresentado razões para os desvalorizar, pelo que “impugna a falta de credibilidade das mesmas indicada pelo tribunal a quo”.

O n.º 1 do artigo 640.º do CPC estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. A al. a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na al. b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Ora, é evidente que a recorrente não cumpriu qualquer destes ónus. Consequentemente, está vedado, ao tribunal ad quem, proceder a qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2 – Se o facto que determinou a morte da pessoa segura se encontra abrangido por cláusula de exclusão constante do contrato de seguro:

O seguro dos autos cobre os riscos de morte, invalidez absoluta e definitiva e incapacidade temporária para o trabalho. Ficou acordada a exclusão, da cobertura morte, do consumo de álcool, estupefacientes ou outras drogas não prescritas, ou em doses não prescritas, por qualquer médico. O tribunal a quo considerou que a morte da pessoa segura ocorreu em circunstâncias subsumíveis nesta cláusula de exclusão porquanto foi consequência de um acidente de viação em que aquela, conduzindo um veículo com uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro, saiu da sua mão de trânsito e invadiu a hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, aí embatendo, com a parte frontal do seu veículo, na parte frontal esquerda de um outro.

Contra este entendimento, a recorrente argumenta que interpretar a referida cláusula de exclusão “no sentido de que a sua verificação está dependente da existência de uma taxa de alcoolemia” seria atribuir-lhe uma extensão tão grande que “faria com que a regra fosse a verificação da exclusão da responsabilidade pelas seguradoras, dado ser, legal e socialmente, sendo uma prática da sociedade, o consumo de bebidas alcoólicas”. Interpretada neste sentido, continua a recorrente, tal cláusula de exclusão teria de ser considerada absolutamente proibida, nos termos das alíneas a) e b) do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10, que instituiu o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

Neste ponto, concordamos parcialmente com a recorrente. A redacção do segmento da cláusula de exclusão em análise (“Exclusões específicas: (…) Consumo de álcool, estupefacientes ou outras drogas não prescritas, ou em doses não prescritas, por qualquer médico”) permite uma interpretação amplíssima, que levaria, nomeadamente, a excluir a cobertura do seguro se o sinistro ocorresse quando a pessoa segura tivesse consumido uma quantidade insignificante de álcool e nem sequer estivesse a exercer uma actividade que pudesse ser afectada pelos efeitos desse consumo. Se fosse esse o sentido a atribuir ao referido segmento da cláusula de exclusão, esta seria nula nessa parte, não devido ao disposto nas alíneas a) e b) do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 446/85, que, como bem se referiu na sentença recorrida, nada têm a ver com a problemática dos autos, mas sim por ser contrária à boa-fé, nos termos dos artigos 12.º, 15.º e 16.º, al. b), do mesmo diploma legal, pois, com uma cláusula de exclusão tão ampla, o âmbito da cobertura do contrato de seguro acabaria por ficar de tal forma restringido que teria de se concluir que o objectivo que as partes visavam através da sua celebração ficaria, em boa parte, frustrado. Por essa via, romper-se-ia o próprio equilíbrio contratual, já que o tomador do seguro estaria obrigado a pagar o respectivo prémio a troco de uma cobertura em larga medida ilusória devido à inserção de uma cláusula de exclusão desproporcionadamente ampla. Dizemos desproporcionadamente porque a consecução do objectivo, inegavelmente razoável, de a seguradora não ser obrigada a realizar a prestação convencionada quando o sinistro resulte de uma conduta da pessoa segura que agrave anormalmente o risco da sua ocorrência, não requer a inclusão, no contrato, de uma cláusula de exclusão tão ampla, que excluísse da cobertura situações em que aquele agravamento do risco não existe ou é insignificante. No fundo, uma tal cobertura ficaria manifestamente aquém daquilo com que o tomador do seguro podia, em boa-fé, contar e, daí, a apontada nulidade da cláusula de exclusão no segmento em causa, embora, sublinhe-se, na estrita medida do excesso.

Não pode, pois, ser essa a interpretação do referido segmento da cláusula de exclusão. O resultado dessa interpretação seria de tal forma absurdo, como tentámos demonstrar, que podemos ter como certo que não foi ele o visado pelas partes através da celebração do contrato de seguro dos autos. Ou seja, aquele segmento da cláusula de exclusão não pode ser interpretado literalmente, antes requerendo uma interpretação restritiva. Neste ponto, temos de nos socorrer do disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 446/85, segundo o qual as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real. Assume aqui um papel fundamental o princípio da proporcionalidade, anteriormente aflorado. O referido “contratante indeterminado normal” interpretaria a cláusula de exclusão que vimos analisando no sentido de a mesma abranger apenas as hipóteses em que se verificasse um agravamento sensível ou anormal do risco de ocorrência do sinistro, ficando, assim, fora do âmbito dessa exclusão todas as hipóteses em que tal agravamento se não verifique, pois só nas primeiras a mesma exclusão tem razão de ser.

Não é tarefa nossa delimitar, à luz deste critério de interpretação, a fronteira do segmento da cláusula de exclusão que vimos analisando em toda a sua extensão. Aos tribunais cumpre decidir casos concretos e, sendo assim, apenas nos interessa situar os factos que ficaram provados neste processo dentro ou fora do âmbito da exclusão.

Como acima referimos, os factos provados relativos às circunstâncias em que o sinistro ocorreu resumem-se assim: A pessoa segura morreu em consequência do embate da parte frontal do veículo por si conduzido na parte frontal esquerda de um outro; esse embate ocorreu na sequência de o veículo conduzido pela pessoa segura ter saído da sua mão de trânsito e invadido a hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário; a pessoa segura exercia a condução com uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro.

A recorrente sustenta, resumidamente, o seguinte:

- Para que a cláusula de exclusão funcione, a morte tem ser a consequência necessária da circunstância de o acidente ter sido devido à condução por efeito de álcool;

- O ónus de prova desse nexo de causalidade incumbe à recorrida;

- Os factos provados não permitem concluir qual foi a causa do acidente, nomeadamente que essa causa foi a invasão, pelo veículo conduzido pela pessoa segura, da semi-faixa destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, ou a condução com uma taxa de alcoolemia de 0,90 gramas por litro;

- O tribunal a quo não pode presumir que essa causa foi a condução em estado de embriaguez, ou que a pessoa segura apresentava uma condução culposa em estado de embriaguez;

- São inúmeros os riscos inerentes à condução de veículos, pelo que aproveitar a existência de uma taxa de alcoolemia para justificar um acidente é fazer uma presunção inaceitável;

- O próprio Código da Estrada admite a condução sob o efeito de álcool.

A pessoa segura conduzia um veículo com uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro. Este facto é proibido e punido por lei, constituindo uma contra-ordenação estradal muito grave, nos termos dos artigos 81.º, n.ºs 1, 2 e 6, al. b), 136.º e 146.º, al. j), do Código da Estrada. Sendo este o tratamento legal dos factos em questão, é fora de dúvida que os mesmos se encontram abrangidos pela cláusula de exclusão inserida no contrato de seguro dos autos. A isso conduz a sua ponderação à luz do princípio da proporcionalidade e seria, seguramente, essa a interpretação que, da mesma cláusula, faria o “contratante indeterminado normal” referido no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 446/85. Por outras palavras, é perfeitamente compreensível, do ponto de vista do equilíbrio contratual, que a seguradora tenha querido excluir a sua responsabilidade pelo pagamento da prestação convencionada quando se verificasse um facto que, como a condução de veículo sob o efeito de álcool, agrava sensivelmente o risco de ocorrência do sinistro, e que, por seu turno, o tomador do seguro tenha aceite tal exclusão. Que aquele agravamento do risco de ocorrência do sinistro se verifica, é indiscutível. Caso contrário, careceria de fundamento a qualificação da condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 gramas por litro como contra-ordenação e, a partir de 1,20 gramas, como crime.

Argumenta a recorrente, como vimos, que o funcionamento da cláusula de exclusão depende da prova, pela recorrida, além da condução sob o efeito de álcool, de um nexo de causalidade entre essa condução e o acidente. Assim é, efectivamente. Se a condução sob o efeito de álcool não puder ser, no caso concreto, considerada causa da morte ocorrida num acidente de viação (imaginemos, a título de exemplo, que o condutor morre porque é atingido pela queda de uma árvore ou por um objecto projectado por outro veículo, ou porque o veículo que ele conduz é subitamente embatido por outro sem que lhe fosse possível evitar o embate ou, ao menos, minorar as consequências deste), não há fundamento para excluir a obrigação de pagamento da prestação convencionada por parte da seguradora, pois aquela condução, embora agravando, em abstracto, o risco de ocorrência da morte, acabou por nada contribuir, em concreto, para essa ocorrência.

Contudo, o referido nexo de causalidade ficou demonstrado no caso dos autos. Provou-se que a morte da pessoa segura resultou do embate frontal do veículo por esta conduzido num outro, que esse embate ocorreu na hemifaixa destinada à circulação de veículos em sentido contrário àquele em que a pessoa segura circulava, hemifaixa essa que esta última invadira sem que ocorresse qualquer facto que o impusesse, em violação do disposto no artigo 13.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, e que a pessoa segura tinha uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro. Perante isto, o que falta provar para concluir que o acidente resultou da condução sob o efeito de álcool? Nada, obviamente. É impossível ir mais longe na prova do referido nexo de causalidade. Nomeadamente, não é exigível que a recorrida prove que, se a pessoa segura não estivesse a conduzir sob o efeito de álcool, o acidente não teria ocorrido, pois trata-se de uma prova impossível, de uma verdadeira probatio diabolica. Considerando os factos que se provaram, não é possível deixar de concluir que o acidente de que resultou a morte da pessoa segura foi causado pelo facto de esta última conduzir sob o efeito de álcool. Verificou-se uma conduta, no mínimo, negligente da pessoa segura, ao passar a conduzir o seu veículo em contramão sem qualquer facto que o justificasse e quando aí circulava trânsito em sentido contrário, e, estando essa pessoa a conduzir sob o efeito de álcool, é forçoso concluir que tal facto contribuiu para a referida condução descuidada.

Decorre do exposto que se verificam os pressupostos do funcionamento da cláusula de exclusão inserida no contrato de seguro dos autos, pelo que a seguradora não está obrigada a efectuar o pagamento da quantia exequenda. Consequentemente, a recorrente encontra-se obrigada a pagar tal quantia à recorrida, devendo o recurso ser julgado improcedente e a sentença recorrida ser confirmada.

Sumário:

1 – Uma cláusula geral, inserida num contrato de seguro que cobre os riscos de morte, invalidez absoluta e definitiva e incapacidade temporária para o trabalho, que exclui, do âmbito da cobertura morte, o “consumo de álcool, estupefacientes ou outras drogas não prescritas, ou em doses não prescritas, por qualquer médico”, não pode ser interpretada como excluindo a referida cobertura, nomeadamente, se o sinistro ocorrer quando a pessoa segura tiver consumido uma quantidade insignificante de álcool e nem sequer estiver a exercer uma actividade que possa ser afectada pelos efeitos desse consumo.

2 – Se fosse esse o sentido a atribuir à cláusula descrita em 1, a mesma estaria ferida de nulidade, por ser contrária à boa-fé, nos termos dos artigos 12.º, 15.º e 16.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

3 – A cláusula descrita em 1 deve ser interpretada restritivamente, à luz do critério estabelecido no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 446/85, assumindo, neste domínio, um papel fundamental o princípio da proporcionalidade.

4 – Tendo a pessoa segura morrido, num acidente de viação, enquanto conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro, o funcionamento da cláusula descrita em 1 depende da prova, não só da condução sob o efeito de álcool, mas também da existência de um nexo de causalidade entre essa condução e o acidente.

5 – Julgando-se provado que a morte da pessoa segura resultou do embate frontal do veículo por esta conduzido num outro, que esse embate ocorreu na hemifaixa destinada à circulação de veículos em sentido contrário àquele em que a pessoa segura circulava, hemifaixa essa que esta última invadira sem que ocorresse qualquer facto que o impusesse, e que a pessoa segura tinha uma taxa de álcool no sangue de 0,90 gramas por litro, não pode deixar de se concluir que o nexo de causalidade referido em 4 ficou demonstrado.


Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

Évora, 13 de Setembro de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura