Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1698/19.1T8BJA.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE FACTO
ESSENCIALIDADE
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Há erro sobre a base do negócio quando as partes levam em consideração determinadas circunstâncias de carácter geral as quais, se sofrerem alterações, fazem com que o negócio perca o seu sentido originário e resulte em consequências distintas das inicialmente planeadas pelas partes e com que estas, razoavelmente, podiam contar.
2 – O erro sobre as circunstâncias constitutivas da base negocial poderá determinar a anulação total ou meramente parcial do negócio jurídico, bem assim como a simples modificação do negócio jurídico que reponha de forma equitativa a justiça interna do negócio que foi colocada em causa pelo erro.
3 – Se a informação, mesmo que prestada negligentemente, tiver causado um erro essencial, fundamentará um direito de anulação, em especial sempre isso resulta da conduta da contraparte.
4 – Num contrato de arrendamento rural destinado à implantação de um olival superintensivo a falta de acesso à água necessária à realização do regadio, a que acresce a não (prometida) existência de autorização para abate de árvores necessárias à regularização do terreno e posterior implementação das oliveiras, que seja imputável ao senhorio constitui um elemento particularmente importante, substancial, que ultrapassa os limites previsíveis da normalidade e isso traduz-se numa desconformidade que provoca uma perturbação no equilíbrio ou justiça interna do negócio ou gera uma frustração do seu escopo de tal modo grave que torna inexigível, à luz dos princípios da boa fé, o cumprimento do contrato, determinado a respectiva anulabilidade total.
5 – A medida do dano em caso de anulação do contrato, visa, prima facie, sem embargo da possibilidade de obtenção de indemnização, deixar o errante em situação tanto quanto possível idêntica àquela que estaria se não tivesse celebrado o contrato, dando aqui a lei interna particular enfâse à protecção do interesse contratual negativo, devendo o causador do erro suportar o risco causado ao outro declarante.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1698/19.1T8BJA.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Central de Competência Cível e Criminal de Beja – J4
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção proposta por “O (…), Lda.” contra “Casa Agrícola (…), Lda.”, a Ré veio interpor recurso da sentença proferida.
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A Autora pediu que fosse declarada a resolução do contrato de arrendamento rural celebrado entre as partes, por erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, ou, subsidiariamente, por alteração das circunstâncias[1].
Mais peticionou que a Ré fosse condenada a restituir à Autora a quantia de € 305.375,00, correspondente ao valor das prestações contratuais pecuniárias que cumpriu.
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Para tanto, a Autora invocou que é uma sociedade que se dedica, directamente e por intermédio de outra sociedade do grupo, à exploração de olival superintensivo e celebrou com a Ré o arrendamento rural em causa.
Para o desenvolvimento do projecto agrícola em questão seria imprescindível proceder ao abate das árvores que se encontravam dispersas pelo terreno e aceder à água proveniente do Alqueva para suprir as necessidades de rega.
Durante as negociações pré-contratuais, a Ré garantiu à Autora que o abate das árvores já estava autorizado pelo ICNF e que, além do mais, já existia autorização dos proprietários dos prédios vizinhos para a passagem de condutas.
A Autora celebrou o arrendamento com a Ré na convicção de que tais autorizações já estavam asseguradas, mas tal não correspondia à realidade.
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A Ré deduziu articulado de contestação em que impugna a factualidade alegada e a essencialidade dos elementos acima referidos para a celebração do contrato de arrendamento, exigindo o cumprimento do acordo celebrado.
A Ré deduziu ainda pedido reconvencional com o qual pretende que a Autora seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 413.062,50, sendo € 82.687,75 a título de indemnização pela mora no pagamento da renda vencida em 2019, € 165.375,00 a título de pagamento de renda vencida em 2020 e € 165.000,00 a título de reforço de caução, tudo acrescido de juros de mora legais (comerciais) vencidos desde a citação.
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Houve lugar a terceiro articulado de resposta.
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Foi realizada a audiência prévia em que foi feito o saneamento do processo, a enunciação dos temas da prova e das questões a decidir.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte conteúdo decisório:
(i) declarar a anulabilidade do contrato de arrendamento, celebrado entre a Autora “O (…), Lda.” e a Ré “Casa Agrícola (…), Lda.” nas qualidades de, respectivamente, arrendatária e senhoria, por documento particular datado de 27/11/2018, referente a uma parcela de terreno, com 245 hectares, do prédio rústico denominado “Herdade da Casa dos (…)”, sito na freguesia de Santa Clara do Louredo, concelho de Beja, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…) da Secção (…), criado por escritura de 04/01/2017 a partir do fraccionamento do prédio correspondente ao artigo (…), Secção (…).
(ii) condenar a Ré “Casa Agrícola (…), Lda.” a restituir à Autora “O (…), Lda.” o montante de € 305.375,00 (trezentos e cinco mil e trezentos e setenta e cinco euros).
(iii) julgar a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo-se consequentemente a Autora “O (…), Lda.” de todos os pedidos reconvencionais.
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e as alegações de recurso continham as seguintes conclusões:
«A. A A. intentou a presente ação, pedindo ao Tribunal a quo que declarasse a resolução do contrato de arrendamento rural que celebrou com a R. em 27.11.2018.
B. Para tanto alegou erro sobre a base do negócio, dizendo que celebrou o contrato convencida de que estavam garantidos o fornecimento de água ao arrendado pela EDIA, a autorização dos proprietários dos prédios vizinhos para passagem das condutas de ligação aos hidrantes H5.9 e H4.3 e a autorização do ICNF para o abate das árvores existentes no arrendado, quando na realidade não estavam.
C. Em alternativa, pediu a resolução do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias em que as partes basearam a vontade de contratar, pois a EDIA, a partir de determinada data, em 2019, por efeito do Despacho n.º 17/2019, de 26 de julho, deixou de ter autorização do Ministro da tutela para o fornecimento de água para rega de culturas permanentes, como é o caso do olival, fora do perímetro de rega da EDIA, ou seja, em regime precário.
D. A decisão recorrida acolheu as pretensões da A, declarando a anulação do contrato de arrendamento rural celebrado, com base em erro sobre a base do negócio, e condenando a R. a restituir tudo o que recebeu da A., apesar de ter dado como provado (erradamente) que esta só restituiu o arrendado em março de 2019, com o argumento de que a A. não tirara proveito do arrendado.
E. É desta decisão que a R. recorre, apontando de seguida os factos incorretamente julgados pelo Tribunal a quo, a prova produzida que impunha decisão diferente e o sentido que esta deveria ter.
Assim:
1 - A suposta garantia de fornecimento de água ao arrendado: Factos Provados 19 c), 22 e 25 F.
A decisão recorrida dá como provado o facto de “a A. ter celebrado o contrato na convicção de que a EDIA autorizaria à A. a utilização da água dos hidrantes H4.3 e H5.9 a título precário para serventia do terreno cedido”.
G. Ora, o próprio contrato é esclarecedor e não permite a conclusão que decorre da Sentença recorrida; com efeito,
H. A cláusula 7.ª, n.º 8 do contrato diz, expressamente, que “a arrendatária é a única responsável pelas diligências junto da EDIA com vista à obtenção da licença de fornecimento de água” e que “a Senhoria não assegura nem garante à arrendatária o fornecimento de água ao Prédio”.
I. Em face da clareza do texto contratual, não é aceitável que se faça tábua rasa do mesmo e que se dê prevalência à afirmação de meras convicções, para mais provindas da parte interessada, ou de pessoas com ela relacionadas (por parentesco, interesse económico ou dependência económica).
J. O anexo 3 do contrato, constituído pelo Ofício da EDIA de 24/10/2016, referente a uma autorização de rega a título precário do hidrante H4.3, não se destinava, evidentemente, a ilustrar a autorização do fornecimento de água ao arrendado, mas apenas a chamar a atenção para diversas condicionantes expostas naquele ofício que seriam aplicáveis também em 2019, como a autorização para irrigação por outras entidades que não a EDIA.
K. Esta conclusão parece evidente, pois o ofício é de 24/10/2016 e a autorização nele conferida só é válida por um ano; sendo de 2016 nunca poderia respeitar a um arrendamento celebrado em 2018, pois os contornos deste não eram então conhecidos, finalmente, diz respeito à rega de uma área de 230 ha, quando o arrendado tem 245 ha.
L. Assim, ao invés da decisão recorrida, deveria ter sido considerado provado:
“Era à A. que competia diligenciar a obtenção do fornecimento de água pela EDIA, o que a A. não fez”;
M. Por outro lado, a EDIA deixou de estar autorizada a fornecer água para rega de culturas permanentes, como a do olival, a novas explorações que o solicitassem, partir do Despacho n.º 17/2019, de 26 de julho de 2019, do Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural.
N. Não obstante, pelo menos até final do mês de Junho de 2019, a A. poderia ter obtido a autorização da EDIA, desde que, claro está, a tivesse solicitado.
O. Este facto foi confirmado pelo eng. (…), diretor coordenador da EDIA, em depoimento prestado como testemunha, na sessão da Audiência Final de 18/09/2020, cujo depoimento se encontra registado através do sistema de gravação digital entre as 10:13 horas e as 10:41 horas (vide gravação aos minutos 00:12:41, 00:13:29, 00:13:57, 00:14:05, 00:14:21 e 00:14:47, transcrita no artigo 62.º supra).
P. Em face do exposto, em vez do que ficou dito na Sentença quanto aos factos provados 19 c) e 25, deveria ter sido dado como provado:
“Era à A. que competia diligenciar a obtenção do fornecimento de água pela EDIA, podendo fazê-lo apenas até finais de junho de 2019, atendendo às restrições impostas pelo Despacho n.º 17/2019, de 26 de julho de 2019, do Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, o que, apesar de tudo, a A. não fez”.
Q. A inércia ou falta de diligência da A. na contratação do fornecimento de água junto da EDIA vai acarretar prejuízos enormes para a R., pois em vez de terra de regadio está condenada a ficar com uma propriedade de sequeiro.
2 - A suposta existência de uma autorização dos proprietários dos prédios vizinhos, à data da celebração do contrato, para a passagem das condutas de ligação aos hidrantes H5.9 e H4.3; factos provados 19 b) e 20 e 24
R. A Sentença recorrida dá como provado que:
“A A. celebrou o contrato com a R. na convicção de que a passagem das condutas para o transporte de água através dos prédios vizinhos já estava autorizada pelos respetivos proprietários” (facto provado 19, b)), que Aquando da celebração do contrato, …. A R. garantiu à R. que os proprietários dos prédios por onde as condutas teriam de passar tinham autorizado essa passagem (facto provado 20)
“A A. não chegou a requerer a autorização da EDIA, nem a celebrar com esta contrato de fornecimento, por aguardar que a R. lhe entregasse os documentos comprovativos da autorização dos proprietários dos prédios vizinhos para a instalação das condutas” (facto provado 24).
S. Começando pelo facto provado 24: resulta da prova produzida sobre esta matéria que, para contratar o fornecimento de água, a EDIA apenas exige (i) a existência de disponibilidade hídrica nos hidrantes e (ii) a prova da ligação do requerente à terra a regar, por exemplo um contrato de arrendamento rural.
T. A EDIA não exige quaisquer plantas com o desenho da passagem das condutas, nem qualquer prova da autorização dada pelos proprietários dos prédios de passagem das condutas.
U. É o que resulta do depoimento da testemunha mais autorizada na matéria, o eng. (…), técnico da EDIA responsável pelo bloco de rega em causa, cujo depoimento está registado através do sistema de gravação digital entre as 12:00 horas e as 12:30 horas, do dia 17/09/2020, aos minutos 00:04:18, 00:04:52, 00:05:07, 00:11:12, 00:11:44, 00:12:10, 00:12:18, 00:12:30, 00:12:31, 00:12:45, 00:12:52, 00:13:00, 00:13:23, 00:13:53, 00:13:56 e 00:13:59, transcrito no artigo 86.º supra.
V. A propósito deste mesmo assunto, considerando a prevalência do depoimento do eng. (…), responsável destes assuntos na EDIA, não pode deixar de acusar-se o verdadeiro perjúrio cometido pela testemunha (…), filho do dono da sociedade A., e em cujo depoimento o Tribunal a quo tanto baseou as suas convicções, ao dizer que a EDIA, numa diligência que fez junto dessa entidade, apesar de reconhecer a existência de disponibilidade hídrica, lhe negou o fornecimento ao exigir a prova do acordo dos proprietários dos prédios de passagem das condutas de ligação aos hidrantes.
W. Tal depoimento, prestado na sessão de 17/09/2020, encontra-se registado através do sistema de gravação digital, entre as 10:21 horas e as 11:36 horas, aos minutos 00:47:41, 00:47:49, 00:47:50, 00:48:00, 00:48:10, 00:48:11, 00:48:20, 00:48:21, 00:48:28, 00:48:29, 00:48:32, 00:48:34 e 00:48:39, transcrito no artigo 89.º supra;
X. Quanto à ligação das condutas ao hidrante H5.9, embora a obra de instalação coubesse à A., foi assumida contratualmente (cláusula 7.ª, n.º 3 do contrato) a existência de uma servidão de aqueduto constituída sobre o prédio onde se encontra o hidrante.
Y. Na verdade, tratou-se de um lapso, que passou despercebido tanto à R. como à A., que se explica pelo facto de, no acordo de partilha que celebrou com a mãe e com a irmã, terem sido constituídas várias servidões, tendo esse facto gerado confusão (v. doc. 3 junto com a contestação);
Z. Todavia, o incumprimento apenas colocou a R. em mora quanto à sua obrigação de constituir a servidão (artigo 805.º do CC).
AA. A A. deveria ter interpelado a R., fixando-lhe prazo para cumprir e, se assim o entendesse, e caso a servidão não fosse, entretanto, constituída, declarar a perda de interesse no contrato ou o contrato definitivamente não cumprido (artigo 808.º do CC).
BB. Salvo melhor opinião, a não constituição da servidão prevista no contrato não dava à A., só por si e sem mais, o direito de resolver o contrato.
CC. Em favor deste entendimento vai o depoimento da proprietária (…) daquele que seria o prédio serviente, onde se encontra o hidrante H5.9, a qual revelou total abertura para autorizar a passagem das condutas, à semelhança do sempre fez em casos idênticos, revelando também que nenhuma diligência foi feita pela A. junto dela com o intuito de obter a autorização para a passagem das condutas.
DD. A dita (…) é irmã de (…), sócio único da R., situação que certamente facilitaria um rápido entendimento.
EE. O depoimento de (…) foi registado através do sistema de gravação digital entre as 10:06 horas e as 10:12 horas, da sessão do dia 18/09/2020, do qual destacamos as passagens recolhidas aos minutos 00:01:04, 00:02:17, 00:02:32, 00:02:36, 00:02:40, 00:02:53, 00:03:21, 00:03:36, 00:04:03, 00:04:27, 00:04:38, 00:04:46, 00:04:48, 00:05:02. 00:05:05, 00:05:06, 00:05:11, 00:05:28, 00:05:30 e 00:05:32, transcrito no artigo 107.º supra.
FF. Quanto à autorização dos proprietários para passagem das condutas de ligação ao hidrante H4.3, o contrato é bem claro no sentido de que tal autorização deveria ser pedida pela A.; com efeito,
GG. De acordo com o previsto na cláusula 7.ª, n.º 5 do contrato, “a arrendatária moverá os seus melhores esforços para assegurar que é garantida a constituição de servidão de aqueduto que permita o transporte da água até ao arrendado ou, caso não seja possível constituir a servidão, que é autorizada a implantação de conduta para passagem da água ao arrendado”.
HH. Não ficam quaisquer dúvidas que era à A. (arrendatária) que competia desenvolver os contatos com os proprietários dos prédios vizinhos, com vista à constituição da servidão ou à obtenção da autorização para passagem das condutas.
II. Essa autorização não se adivinhava difícil, a avaliar pelos depoimentos do proprietário do prédio onde se encontra o hidrante em causa (…), e dos proprietários que já ligaram as suas terras ao mesmo hidrante, conseguindo a autorização de (…), concretamente, (…) e (…).
JJ. O depoimento de (…) encontra-se registado pelo sistema de gravação digital entre as 14:15 e as 14:36 horas do dia 17/09/2020, aos minutos 00:13:16, 00:13:36, 00:13:54, 00:13:59, 00:14:01 a 00:14.04, 00:14:33, 00:14:38, 00:14:39, 00:14:44, 00:14:51, 00:15:07, 00:15:11, 00:15:13 e 00:15:14, e é reproduzido no artigo 115.º supra.
KK. Embora resulte algo confuso o encadeado de perguntas e respostas, decorre do depoimento da testemunha que esta não tem qualquer posição pré-determinada que a levasse a opor-se ao pedido de autorização para a passagem da conduta de ligação ao hidrante H4.3.
LL. O depoimento de (…), proprietário da Herdade da (…), confinante com o arrendado, encontra-se registado através do sistema de gravação digital entre as 15:20 e as 15:35 horas do dia 17/09/2020, aos minutos 00:03:49, 00:04:07, 00:04:10 a 00:04:12, 00:06:20, 00:06:31, 00:06:46, 00:06:57 a 00:07:03, 00:09:28 a 00:09:32, 00:10:08 a 00:10:25, e é reproduzido no artigo 120.º supra.
MM. Resulta deste depoimento que, o proprietário (…) não teve qualquer dificuldade em conseguir a autorização de (…) para a passagem da conduta.
NN. O depoimento de (…) foi recolhido através do sistema de gravação digital entre as 09:45 e as 09:57 horas do dia 18/09/2020, encontrando-se a parte relevante gravada aos minutos 00:03:08 a 00:04:03, transcrito no artigo 122.º supra.
OO. Resulta deste depoimento que, a testemunha, em situação em tudo semelhante à da R., não teve qualquer dificuldade em obter o acordo dos proprietários vizinhos para a passagem da conduta de ligação ao hidrante H4.3.
PP. Decorre ainda deste depoimento que, a testemunha em questão aceitaria fazer uma derivação a partir da saída de água na sua propriedade para o arrendado, desde que, como é evidente, fossem feitas as adaptações necessárias ao consumo de cada uma das propriedades.
QQ. Em resumo, pelo menos quanto à ligação ao hidrante H4.3, a clareza do que se encontra estabelecido na cláusula 7.ª, n.º 5 do contrato não permitiria aceitar a alegação da A. de que estava convencida de que a ligação à conduta do hidrante H4.3 estava já autorizada pelos proprietários dos prédios confinantes.
RR. Assim, a decisão sobre as matérias dos factos provados 19. b), 20 e 24, deveria ter sido a seguinte:
Factos 19 b) e 20:
“Quanto ao hidrante H5.9, a R. não chegou a constituir a servidão prevista na cláusula 7.ª, n.º 3 do contrato, não tendo havido, porém, qualquer manifestação de interesse por parte da A. em que a R. a viesse a constituir, posteriormente à celebração do contrato;
“Quanto ao hidrante H4.3, nos termos da cláusula 7.ª, n.º 5 do contrato, era à A. que competia obter a autorização dos proprietários vizinhos para a passagem da conduta de ligação entre o arrendado e o hidrante”
Facto 24: “Sujeito à condição da existência de disponibilidade hídrica, para celebração de contrato de fornecimento de água, a EDIA apenas exige que o requerente demonstre um vínculo à terra a irrigar, que pode ser um contrato de arrendamento”.
3 – A suposta garantia de autorização para abate das árvores existentes no arrendado:
Factos Provados 19 a), 20 e 21
SS. A decisão recorrida considerou provado que a A. celebrou o contrato convicta de que o ICNF já tinha autorizado o arranque das árvores do arrendado e que o anexo 4 documentava aquela autorização.
TT. A Sentença deu também como provado que a R. garantiu à A. que o ICNF dera autorização para o arranque das árvores do arrendado.
UU. Com o devido respeito, perante os meios de prova disponíveis, o Tribunal a quo não decidiu bem.
VV. As únicas referências feitas no contrato a esta matéria são as das cláusulas 14.ª e 9.ª, 1, c).
WW. A referência da cláusula 14.ª destina-se a identificar o anexo 3, nos seguintes termos: “Ofício do ICNF de 07/03/2018 referente ao arranque de árvores no arrendado (cláusula 9.ª, 1, al. c))”.
XX. A referência feita na cláusula 9.ª, 1, al. c) consiste na autorização da R. ao abate de árvores pela A.
YY. A A. teve conhecimento do Ofício do ICNF ainda na fase das negociações (v. facto provado 21), tendo o mesmo sido de novo enviado à A., através do respetivo advogado, em 03/12/2018 (v. doc. 5 junto com a contestação).
ZZ. O conhecimento do arrendado (que a A. declarou ter) e a simples leitura do documento permite concluir que aquele Ofício do ICNF não respeitava às árvores existentes no arrendado, desde logo pela área de intervenção (150 ha e não 245 ha), motivo do abate (decrepitude e doença das árvores e não a implantação de olival) e número de árvores a abater (181 sobreiros).
AAA. Ou seja, do contrato apenas é possível concluir que a R. autorizou o abate das árvores do arrendado, nunca que o ICNF já fizera o mesmo.
BBB. O anexo 3 apenas tinha a finalidade de ilustrar um precedente ocorrido em área diferente da mesma propriedade e serviria para a A. argumentar, se necessário, junto do ICNF.
CCC. Aliás, se a A. tinha a autorização do ICNF por garantida, qual a razão da reunião que o Sr. (…) teve no ICNF com o técnico (…)?
DDD. Este facto resulta do depoimento da testemunha (…), cujo depoimento foi registado através do sistema de gravação digital entre as 09:58 e as 10:04 horas, do dia 18/09/2020, aos minutos 00:03:28, 00:03:52 a 00:04:10, transcrito no artigo 153.º supra.
EEE. A A. tem um funcionário dedicado (…) para tratar dos pedidos de abate de árvores junto do ICNF, o que tem feito relativamente a várias propriedades suas.
FFF. Decorre do depoimento daquele funcionário, enquanto testemunha no processo:
a. Que o Sr. … (sócio único ou dominante da A.) não é defensor do arranque de árvores, mantendo-as sempre que possível de pé nas terras que explora.
b. A certeza de que o ICNF autorizaria o arranque das árvores, caso o pedido tivesse sido apresentado.
c. A afirmação de que um pedido recente para abate de árvores numa outra propriedade do mesmo grupo, em Castro Verde, fora deferido sem dificuldades.
GGG. O depoimento de (…) está registado através do sistema de gravação digital entre as 10:06 e as 10:12 horas, aos minutos 00:17:44, 00:18:09 a 00:18:37 e 00:20:28 a 00:21:35, transcrito no artigo 159.º supra.
HHH. Também a testemunha (…), proprietário de prédio confinante com o do arrendado, deu nota de que também não teve qualquer dificuldade em obter do ICNF a autorização para o arranque de árvores na sua propriedade.
III. O referido depoimento está registado através do sistema de gravação digital entre as 09:45 e as 09:57 horas, do dia 18/09/2020, aos minutos 00:04:08 a 00:05:34, transcrito no artigo 162.º supra.
JJJ. Da prova produzida, a matéria dos factos provados 19 a), 20 e 21 teria de passar para os factos não provados, com a seguinte decisão:
“Não provado que, aquando da celebração do contrato ou nos termos do contrato, a A. tenha garantido à R. a autorização do ICNF para o abate das árvores existentes no arrendado”.
4 - A não entrega do arrendado pela R. à A., em Março de 2019 ou posteriormente: facto provado n.º 25.
KKK. O Tribunal a quo deu como provado que a R. entregou o arrendado à A., em Março de 2019 (facto provado 25, in fine). Ora,
LLL. Não existe nos autos qualquer prova deste facto: as testemunhas referidas na motivação da Sentença não se pronunciaram sobre este facto e, ao contrário do que diz a Sentença, existe nos autos prova documental inequívoca sobre o assunto.
MMM. Da carta enviada pela própria A. à R., em 20 de Junho de 2019, junta aos autos com a p.i. (doc. 21), deduz-se com facilidade que, pelo menos na referida data, a A. ainda se mantinha na posse do arrendado.
NNN. Acresce que, para haver entrega efetiva é preciso que haja também receção da coisa, sob pena de se tratar de abandono e não de entrega da coisa, o que a A. também não demonstra ter existido.
OOO. A decisão do Tribunal a quo quanto à matéria do facto provado 25 deveria ter sido: “Não provado que a A. tenha entregado o arrendado à R. em março de 2019”, e “Provado que, pelo menos em 20/06/2019, a A. ainda se mantinha na posse do arrendado”.
PPP. O facto de a A. não ter entregado o arrendado à A. impediu a R. de poder obter rendimentos daquela parte do prédio, razão pela qual a R., no caso de o Tribunal vir a declarar a resolução do contrato, o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio, sem conceder, não deverá ser condenada a restituir as quantias que recebeu da A.
5 – A Reconvenção
QQQ. A procedência do pedido reconvencional está, evidentemente, dependente da improcedência da ação, uma vez que, neste caso, o contrato de arrendamento rural continuará em vigor, com a consequente obrigação da arrendatária pagar as rendas.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, a Sentença recorrida revogada, e substituída por outra que:
a. declare o contrato de arrendamento rural em vigor;
b. Absolva a R. do pedido de restituição das quantias que recebeu ao abrigo do mesmo;
c. Declare procedente, por provado, o pedido reconvencional e condene a A. a pagar à R. a quantia de € 413.062,50 (quatrocentos e treze mil e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos)».
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Houve lugar a resposta. Este articulado de resposta foi desentranhado por apresentação extemporânea, conforme despacho datado de 15/01/2021. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
a) Erro na apreciação da matéria de facto.
b) Erro de julgamento na subsunção jurídica realizada. *
III – Dos factos apurados:
3.1 – Factualidade provada[2]:
Com relevância para a boa decisão da causa, mostram-se provados os factos seguintes:
1. A Autora é uma sociedade comercial anónima que se dedica à exploração de olival superintensivo, o que faz, quer directamente, quer através da sociedade “Terras de (…), Lda.”, de que a Autora é sócia, desenvolvendo tal actividade nas “Herdades de Monte dos (…), Quinta de S. (…) e Vale dos (…)”, sitas, respectivamente, nas freguesias de Castro Verde, Ferreira do Alentejo e Canhestros e Santa Vitória / Mombeja, e, ainda, nas "Herdades da (…) de Baixo e da (…).
2. A Ré é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social consiste na exploração agrícola, pecuária, florestal, cinegética e turística de prédios rústicos e mistos, próprios ou arrendados, bem como na compra e venda de bens imobiliários, rústicos, mistos e urbanos e na revenda dos adquiridos para esse fim e, ainda, no arrendamento, gestão ou exploração de bens imobiliários, próprios ou alheios.
3. Por acordo escrito outorgado em 27/11/2018 (doravante, abreviadamente, contrato), a Ré declarou dar de arrendamento rural à Autora, que, por sua vez, declarou tomar de arrendamento, mediante o pagamento de uma renda anual, uma parcela de terreno (doravante, abreviadamente, terreno cedido), com 245 hectares, do prédio rústico denominado “Herdade da Casa dos (…)”, sito na freguesia de Santa Clara do Louredo, concelho de Beja, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo (…) da Secção (…), criado por escritura de 04/01/2017 a partir do fracionamento do prédio correspondente ao artigo (…), Secção (…).
4. Ficou estipulado no número um da cláusula segunda do contrato:
«1. O arrendamento destina-se à implantação e exploração de olival, não lhe podendo ser dada outra utilização sem o prévio acordo escrito do Senhorio».
5. Estabelece o número um da cláusula terceira do contrato:
«1. O arrendamento tem a duração de 25 anos, com início a 1 de Janeiro de 2019, isto sem prejuízo de a Arrendatária entrar, na data da outorga do presente contrato, na posse do Arrendado».
6. Preveem os números um, dois, três, quatro, seis, sete, oito e nove da cláusula quarta do contrato:
«1. Anualmente, será pago o valor de 675,00 Euros por cada hectare arrendado, no valor total anual inicial de 165.375,00 (cento e sessenta e cinco mil, trezentos e setenta e cinco) Euros.
2. O valor total de renda a pagar será actualizável, anualmente, de acordo com a inflação registada pelo INE no ano anterior.
3. A renda é paga até ao dia 10 de Janeiro do ano a que respeitar.
4. A renda é paga por transferência bancária para a conta com o IBAN PT (…), do banco Millennium BCP.
5. (…).
6. Com a assinatura do presente contrato de arrendamento rural, a Segunda Contraente [Autora] entrega ao Primeiro Contraente [Ré] o montante de € 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil euros), a título de caução de futuras rendas.
7. Caso o contrato seja resolvido por motivos imputáveis ao Primeiro Contraente [Ré], este deverá devolver em singelo ao Segundo Contraente [Autora] a quantia entregue como caução, no prazo de 60 dias. Caso seja resolvido o contrato por motivos imputáveis ao Segundo Contraente [Autora], este perderá a quantia entregue a título de caução.
8. Em caso de mora superior a 30 dias, o Primeiro Contraente [Ré] poderá utilizar a caução para pagamento de rendas e ou juros que sejam devidos pela Segunda Contraente [Autora] ao abrigo do contrato de arrendamento rural, caso em que esta deverá reforçar, no prazo de 30 dias após interpelada pelo Senhorio para o efeito, a caução, até ao montante utilizado, até perfazer o valor referido no número 6 anterior.
9. Não sendo reforçada a caução nos termos previstos no número anterior, a renda considerar-se-á como não tendo sido paga.
A caução, caso não seja utilizada, será contabilizada e descontada no pagamento a fazer pela última renda de contacto, depois de devidamente actualizada, conforme o disposto na alínea 2 supra».
7. Dispõe a cláusula sétima do contrato:
«1. O Arrendamento é servido pelos seguintes hidrantes da EDIA:
H5.9 – A1 Bloco de Rega Beringel – Beja, freguesia de Santa Clara de Louredo;
H4.3 do Bloco de rega (…) e (…), a título precário.
2. Relativamente ao Hidrante H5.9, o consumo de água está limitado, entre outras, pelas condições em cada momento determinadas pela EDIA e, bem assim, pelos termos do acordo de partilha de água celebrado entre os proprietários dos prédios servidos pelo dito hidrante. Nos termos do referido Acordo, os prédios pertencentes ao Senhorio servidos pelo hidrante H5.9 têm direito à utilização exclusiva da água da boca H5.9 (b).
3. Tendo em conta que o Hidrante H5.9 fica situado em prédio que não pertence ao Senhorio, foi constituída sobre o mesmo uma servidão de passagem de água para o prédio pertencente ao Senhorio, estando ainda por fazer a obra de instalação da conduta e construção do abrigo da bomba de água e sistema elétrico, que deverão ser feitas à inteira responsabilidade da Segunda Contraente [Autora].
4. O consumo de água do hidrante H4.3 deverá ser feito nos termos autorizados pela EDIA e conforme o previsto no Ofício da EDIA 4027/CA/DIR/DEIR/BJ/16.
5. A Segunda Contraente [Autora] moverá os seus melhores esforços para assegurar que é garantida a constituição de servidão de aqueduto que permita o transporte da água até ao Arrendado ou, caso não seja possível constituir a servidão, que é autorizada a implantação de condutas para passagem da água até ao prometido Arrendado.
6. São da conta e responsabilidade da Segunda Contraente [Autora] as diligências e trabalhos a empreender, designadamente, junto da EDIA, com vista à obtenção da licença de fornecimento de água, construção e manutenção das infraestruturas necessárias ao estabelecimento da água.
7. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o Primeiro Contraente [Ré] não pode ser responsabilizado pela falta, corte ou limitação do fornecimento de água ao Arrendado, não podendo a Segunda Contraente [Autora] reclamar contra ele qualquer indemnização ou compensação por esse motivo.
8. De qualquer forma, o Primeiro Contraente [Ré] não assegura nem garante à Segunda Contraente [Autora] o fornecimento de água ao Prédio, competindo a esta a realização de todas as diligências e obras necessárias à obtenção daquele fornecimento, designadamente, através da ligação aos hidrantes da EDIA existente nas proximidades, ficando assim a Segunda Contraente [Autora] única responsável pelas diligências junto da EDIA com vista à obtenção da licença de fornecimento de água, pelo custo da construção e manutenção das infraestruturas necessárias ao fornecimento da água e, bem assim, por todos os custos da água fornecida ao Prédio, incluindo eventuais taxas de manutenção e/ou conservação, relativas á exploração agrícola desenvolvida no mesmo pela Segunda Contraente [Autora]».
8. Estipula ainda o número um da cláusula oitava do contrato:
«1. A Segunda Contraente [Autora] declara ao Primeiro Contraente [Ré] que:
Encontra-se legal e validamente constituída, em plena actividade e em vigor, tem plena capacidade para assumir e cumprir as respectivas obrigações previstas neste contrato;
a. Tem perfeito conhecimento do estado em que o Arrendado se encontra, designadamente em termos de infraestruturas, das aptidões do mesmo para a actividade agrícola, das condicionantes legais, das condicionantes ambientais ou de qualquer outra que possa existir ao desenvolvimento da cultura do olival, considerando que o mesmo se encontra em bom estado de conservação e em condições técnicas adequadas à realização da finalidade do presente contrato;
b. É da sua conta e risco a apresentação de qualquer projeto de investimento no IFAP;
c. Utilizará apropriadamente e com regularidade o Arrendado e usá-lo-á apenas para os fins estipulados no contrato de arrendamento rural;
d. Não realizará, sem o consentimento do Senhorio, investimentos em obras ou construções que alterem a natureza, a estrutura geofísica e as características essenciais dos prédios onde se encontra implantado o Arrendado».
9. Estabelece a cláusula nona do contrato:
«1. O Primeiro Contraente [Ré] autoriza que, a partir da presente data, a Segunda Contraente [Autora] proceda a todas as alterações no Arrendado e a todas as obras, investimentos e outras benfeitorias necessárias ou úteis naquele, para que possa concretizar-se o fim do contrato, autorizando, entre outras ações, as seguintes:
a) Exploração no Arrendado de olival, seja qualquer a sua modalidade de exploração;
b) Instalação no Arrendado, de quaisquer sistemas de rega, seja qual for a modalidade;
c) Toda e qualquer movimentação de terras, abertura de valas, abertura de caminhos, drenagens, camalhões, abate de árvores, instalação elétrica, subterrânea ou aérea, construções e demais obras que se mostrem necessárias à exploração a levar a cabo;
d) Todas as benfeitorias que se revelem necessárias e úteis, para a exploração a levar a cabo no Arrendado.
2. A Segunda Contraente [Autora] será exclusiva responsável pela obtenção de todos os licenciamentos e autorizações necessários às alterações que implementar, ficando igualmente responsável pelo pagamento das coimas ou multas que a sua eventual falta ocasione.
3. A Segunda Contraente [Autora] será igualmente exclusiva responsável pelo pagamento de todos os investimentos que levar a cabo nos arrendados e dos consumos de água, eletricidade ou outros que nos mesmos realizar».
10. Refere a cláusula décima quarta do contrato:
«O presente contrato inclui os seguintes anexos:
Anexo 1: Mapa identificativo do Arrendado (considerando B.);
Anexo 2: Fotografia aérea do Arrendado (considerando C.);
Anexo 3: Ofício da EDIA de 24.10.2016, referente a autorização de rega a título precário do hidrante H 4.3 (cláusula 7.ª n.º 1);
Anexo 4: Ofício do ICNF de 07.03.2018 referente ao arranque de árvores no Arrendado (cláusula 9.ª, n.º 1, alínea c)); e,
Anexo 5: Acordo com os restantes utilizadores em relação ao hidrante H 5.9 (cláusula 7.ª, n.º 1.)».
11. No acto de assinatura do contrato, a Ré entregou à Autora, que recebeu, o montante de € 165.000,00 a título de caução de futuras rendas e o montante de € 140.000,00 a título de compensação pela rescisão de anterior contrato de arrendamento.
12. O contrato foi assinado pelas partes sem os Anexos 4 e 5 aludidos na respectiva cláusula décima quarta, tendo então a Ré se comprometido a entregar os mesmos à Autora no dia seguinte, no que esta última confiou.
13. A Ré nunca chegou a entregar à Autora os referidos anexos, nem no dia seguinte à assinatura do contrato, nem posteriormente até à presente data, apesar de diversas insistências da Autora junto daquela.
14. A Autora celebrou o contrato com a finalidade de ampliar a exploração de olival superintensivo que já vinha desenvolvendo nas “Herdades da (…) de Baixo e da (…)”, contíguas ao terreno cedido, finalidade essa que a Ré conhecia.
15. O valor da renda anual aludido em 5, de € 675,00 por hectare, foi ajustado entre as partes tendo por referência os valores praticados para olival superintensivo.
16. Após a assinatura do contrato, a Ré iniciou trabalhos no terreno cedido para preparação da plantação do olival, o que fez com o mínimo de investimento possível em virtude de a Ré não lhe ter entregue os anexos 4 e 5 ao contrato.
17. Para a instalação e exploração de olival superintensivo no terreno cedido seria necessário:
a. arrancar as árvores que ali se encontravam dispersas.
b. que o olival beneficiasse da água do EFMA – Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva.
18. Uma vez que o terreno cedido não se encontrava dentro do perímetro de rega do aproveitamento hidroagrícola do Alqueva, o acesso à água proveniente do Alqueva teria de ser realizado através dos hidrantes H4.3 e H5.9, instalados em prédios vizinhos, tornando-se necessário instalar e fazer passar nestes últimos as condutas para o transporte da água.
19. A Autora celebrou o contrato com a Ré na convicção de que:
a. o “ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas” (doravante ICNF) já havia autorizado o abate das árvores existentes no terreno cedido;
b. a passagem das condutas para o transporte de água através dos prédios vizinhos já estava autorizada pelos respetivos proprietários;
c. a EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, S.A. (doravante EDIA), entidade gestora do EFMA, autorizaria à Autora a utilização da água dos hidrantes H4.3 e H5.9 a título precário para serventia do terreno cedido.
20. Aquando da celebração do contrato, não haviam sido dadas as autorizações referidas nas alíneas “a” e “b”, situação que se mantém até à presente data, apesar de a Ré ter garantido à Autora que as mesmas existiam.
21. Durante as negociações prévias ao contrato, a Ré remeteu à Autora fotografia da primeira página de um ofício do ICNF relativa a autorização de abate de árvores na «Herdade da Casa dos (…)», que a Ré pensou tratar-se da autorização aludida na alínea “a” do ponto 19, mas que veio a constatar posteriormente (já depois da assinatura do acordo) que aquele documento dizia respeito a outra parcela de terreno daquela mesma herdade.
22. No final de Fevereiro de 2019, a EDIA informou todos os beneficiários e potenciais interessados de que o fornecimento de água para rega a título precário para novas áreas localizadas fora da mancha de rega beneficiada só passaria a ser equacionado para a instalação de culturas anuais, deixando assim de ser autorizado o fornecimento de água a título precário para novas instalações de cultura permanentes, como é o caso do olival.
23. Até então, inexistia notícia de que a EDIA alguma vez tivesse negado a autorização de fornecimento de água para rega a título precário pelo facto de se tratar de cultura permanente.
24. A Autora não chegou a requerer a autorização à EDIA, nem a celebrar com esta entidade contrato de fornecimento, por aguardar que a Ré lhe entregasse os documentos comprovativos da autorização dos proprietários dos prédios vizinhos para a instalação das condutas.
25. As circunstâncias aludidas em 20 e 22 impedem a instalação e exploração de olival superintensivo no terreno cedido, razão pela qual, em março de 2019, a Autora entregou aquele à Ré.
26. Até ao dia 10/01/2019, Autora não entregou à Ré qualquer quantia por conta da renda relativa ao ano de 2019, no valor de € 165.375,00.
27. Em 10/05/2019, a Ré decidiu imputar a caução recebida aquando da assinatura do contrato (€ 165.000,00) àquela renda.
28. Em 01/12/2019, a Autora entregou à Ré a quantia de € 375,00 por conta da renda de 2019.
29. Até à presente data, a Autora não entregou à Ré qualquer montante por conta da renda anual vencida em 01/01/2020, referente ao ano de 2020.
*
3.2 – Factualidade não provada:
Com interesse para a decisão da causa, reputa-se não provado:
A) Que a quantidade de água debitada pelo hidrante H5.9 seria suficiente para satisfazer as necessidades de rega do olival superintensivo a instalar pela Autora; e
B) Que a Autora poderia fazer a ligação ao hidrante H4.3 exclusivamente através do prédio denominado “Herdade da (…) de Baixo”, de que a sociedade “Terras de (…), Lda.” é arrendatária.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Erro sobre a matéria de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
*
A sociedade recorrentes discorda da posição do Tribunal «a quo» quanto à consagração dos pontos 19 (a, b e c)[3], 20[4], 21[5], 22[6], 24[7] e 25 [8] dos factos provados e à não demonstração das alíneas dos factos não provados, sugerindo uma redacção alternativa à referenciada factualidade.
No essencial, a discordância relativamente às questões atinentes à questão da garantia de fornecimento de água ao arrendado estriba-se no texto do próprio contrato e na prestação probatória de (…). Relativamente à matéria do transporte da água dos hidrantes para o arrendado a decisão de facto deve ser alterada com base nos testemunhos de (…), (…), (…), (…) e (…). O desacordo relativamente à matéria do abate das árvores funda-se no ofício do ICNF de 07/03/2018 e nas declarações tomadas a (…), (…) e (…). Com a análise da carta datada de 20/06/2019 a recorrente visa demonstrar que o arrendado não foi entregue pela sociedade Autora.
Quanto ao ponto 19 dos factos provados, o Tribunal «a quo» firmou a sua convicção positiva no «escrutínio e confronto dos depoimentos das testemunhas (…), (…), (…), (…) e (…), todas conhecedoras do terreno e do negócio. Os seus depoimentos evidenciaram-se coerentes e complementares entre si, estando, por sua vez, em consonância com o teor do contrato de arrendamento de fls. 23 a 33, mormente as respetivas cláusulas sétima e décima quarta. Especialmente relevante foi, uma vez mais, o depoimento da testemunha (…), quer pela sua importante razão de ciência, quer pela forma pormenorizada e circunstanciada com que descreveu os factos em causa».
No que se reporta aos pontos descritos em 20 e 21 dos factos provados, o Juízo de Competência Cível e Criminal de Beja valorizou o depoimento da testemunha (…), «que asseverou que a Ré nunca entregou à Autora os documentos comprovativos das autorizações em questão, apesar das diversas insistências para tanto». E complementarmente em avaliação documental e no circunstancialismo negocial relatado pelas testemunhas (…) e (…). A este propósito são ainda convocados os testemunhos de (…), (…), (…) e (…).
Ficou vertido na decisão recorrida que a factualidade mencionada em 22 e 23 se tem por demonstrada «pelo teor dos documentos de fls. 64 a 72, que se relacionou com os depoimentos das testemunhas (…), trabalhador da EDIA, responsável pelo Bloco de Rega (…) e (…), onde se situa o hidrante H4.3, e (…), diretor-coordenador na EDIA, que, de um modo detalhado e verosímil relataram a política que vinha sendo seguida pela EDIA, as condições de autorização de fornecimento de água a título precário e a alteração de gestão dos recursos hídricos ocorrida em 2019».
Para prova dos factos descritos em 24 e 25, o decisor «a quo» firmou a sua convicção nos testemunhos de (…) e de (…), os quais não foram infirmados por qualquer outro meio de prova.
*
O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, posto que, a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[9] [10].
Ouvida toda a prova e analisados os demais meios probatórios presente nos autos, designadamente os documentos juntos à acção, cumpre fazer a análise crítica dos depoimentos e dos restantes meios de prova em ordem a aferir se existiu erro de julgamento relativamente à matéria de facto.
*
Relativamente à questão da essencialidade do acesso à água é particularmente impressivo a prestação probatória de … («o Sr. … é um agricultor de regadio e não de sequeiro, só tinha interesse se aquilo tivesse lá água» e «se não estivesse convencido que tinha lá água não tinha interesse na terra»). E esta percepção é retirada igualmente das diversas declarações prestadas em Tribunal. E as próprias regras de experiência ditam claramente que numa actividade deste tipo a água é um elemento essencial e que a produção agrícola se encontrava dependente da possibilidade de instalação de regadio. De modo, a avaliação feita pelo Tribunal de Primeira Instância é a processualmente correcta e os contributos a que recorreu para justificar a decisão são aqueles que se apresentam mais demonstrativos da realidade em discussão.
A avaliação crítica realizada pelo Tribunal da Relação de Évora quanto às palavras recolhidas a (…), (…) e (…) é coincidente nos seus traços directores com a convicção firmada pela 1ª instância. Interpelada a testemunha (…), não garantiu que autorizaria o acesso ao hidrante H4.3, antes afirmou que teria de se aconselhar do ponto de vista jurídico. Analisado o testemunho de (…), irmã do gerente da Ré e proprietária do prédio onde está instalado o hidrante H5.9, retira-se que a mesma também não concedeu autorização para acesso àquele hidrante. Nestes termos, a tese da existência de consentimento – ou da facilidade na sua obtenção – não merece a nossa aprovação.
A valia probatória do anexo III não viabiliza a alteração da decisão de facto nos termos propostos e não soluciona a questão basilar que é distinta. A autorização da EDIA é absolutamente inócua e o seu efeito prático apresenta-se como residual, pois, mesmo se o terreno fosse potencialmente beneficiário da operação de rega, sem autorização dos donos das propriedades onde se encontram os hidrantes não era possível aduzir a água necessária à exploração aqui em questão. Ou, noutra formulação, sem a constituição da servidão – ou de outra autorização especial de tipo obrigacional – em benefício do terreno onde seria implantada a exploração superintensiva a autorização para rega em precário por parte da EDIA não garantia o desenvolvimento de uma actividade agro-económica sustentável.
Temos assim por adquirido que, apesar da Ré ter assegurado à Autora que existiam autorizações para adução da água dos hidrantes H4.3 e H5.9 até ao arrendado – e tal retira-se claramente das cláusulas contratuais negociadas –, na realidade esse cenário não se verificou, sendo assim despicienda a circunstância da inquilina não ter solicitado à EDIA a referida licença. Aliás, essa prestação de serviços por parte da EDIA pressuponha a obtenção de documentação que nunca foi assegurada pela sociedade Ré. Na verdade, o terreno cedido não se encontrava dentro do perímetro de rega do aproveitamento hidroagrícola do Alqueva e a referida operação só teria sucesso, caso o transvase da água estivesse pré-garantido.
Embora esta matéria tenha uma forte componente natureza jurídica, a defesa da existência de uma mera situação de mora e da concessão de um prazo para a obtenção do acesso à água não é aqui compatível com o fim associado à contratação do arrendamento e aos pressupostos negociais em que o contrato estava sustentado. Aquando da celebração do contrato, não haviam sido dadas as autorizações para a passagem da água para o terreno arrendado. E, como tal, não se reconhece validade fáctica à alegação que a Autora só não obteve o fornecimento de água da EDIA por não o ter solicitado e que, em função disso, a inviabilidade da operação de rega é imputável ao locatário.
Quanto à adução de água, a sociedade recorrente pugna que a formulação fáctica é deficiente, uma vez que, na sua perspectiva, seria necessário quanto ao facto provado 19 b) que se demonstrasse «se o contrato continha alguma declaração ou garantia que justificasse a convicção da Autora» e quanto ao ponto 24 «se o motivo avançado pela Autora para não pedir o fornecimento de água à EDIA era, ou não era, admissível à luz do contrato». Todavia, o decisor «a quo» responde claramente a essa questão e ela corresponde ao pensamento silogístico contido no juízo anulatório contido na sentença recorrida. Esta matéria será mais adiante debatida aquando da discussão do aspecto jurídico da causa, sendo certo que a leitura dos factos apurados não deverá ser executada de forma isolada mas integrada num contexto que insere a matéria referida nos pontos 12, 13, 18 e 20 da factualidade apurada e na própria interpretação do enunciado contratual (cláusulas sétima e décima-quarta). Existe uma diferença substancial, e não meramente semântica, entre a possibilidade de acesso à água de regadio e a não celebração de um contrato de fornecimento com a EDIA.
Quanto ao facto provado 22, a leitura integrada entre o teor dos documentos referidos na decisão de facto e os testemunhos de (…) e de (…) também não justificam uma resposta distinta.
A matéria do abate das árvores existentes está ancorada no contributo assertivo da testemunha (…) e na sua descrição das negociações mantidas com o gerente da Ré, bem como no texto contratual que revela o compromisso de junção de documentação emitida pelo ICNF.
A problemática da autorização foi confirmada pela testemunha (…), funcionário da Autora. Aliás, as diligências efectuadas pela testemunha estão correctamente identificadas na sentença recorrida, quando esta afiança que «após assinatura do arrendamento e em virtude de a Autora não dispor do documento de autorização que a Ré disse que entregaria como anexo àquele contrato, se deslocou ao ICNF para se certificar da existência de tal autorização, tendo então constatado que a mesma não existia». Confrontada toda a prova, o Tribunal da Relação de Évora entende igualmente que, na perspectiva de construção do juízo de facto, a garantia da possibilidade de abate das árvores existentes no terreno era igualmente determinante para a intenção de contratualizar o arrendamento e que inexistem suportes probatórios convincentes que permitam imputar o insucesso de tal operação a qualquer comportamento negocial ou pós-negocial da sociedade Autora.
A recorrente reclama contra a data fixada na sentença relativamente ao momento da entrega do arrendado, sugerindo que a mesma ainda não se processou, dado que isso exigiria a «recepção pela senhoria, materializada, normalmente, na assinatura de um termo de entrega e recepção». Em primeiro lugar, a entrega da coisa não exige uma metodologia de actuação como aquela que é proposta nas alegações de recurso e ademais a lei, a doutrina e a prática judiciária não prescrevem a existência de uma formalidade ad substantiam, podendo a devolução ser comprovada por confissão, testemunhas ou qualquer outro meio probatório. Depois, existe até uma contradição intrínseca nos seus termos quando se afirma que a sociedade recorrida não está na posse ou, sequer, detém o imóvel e, ao mesmo passo, com base num escrito, se propõe a alteração da data apurada para, pelo menos, Junho de 2019. Por último, lida a referida carta, datada de 20/06/2019 – documento digitalizado n.º 19 junto com a petição inicial –, da mesma apenas se retira um entendimento diverso relativamente ao incumprimento contratual e o referido suporte escrito não permite infirmar a data referida na decisão de facto.
Apesar de a recorrente caracterizar algumas das declarações prestadas como falseadoras da realidade as mesmas não de destacam negativamente, em termos de credibilidade, do sentido genérico da prova produzida. Ademais, aquilo que perpassa é que, apesar de fidedignos, sérios e sustentados, parte dos testemunhos convocados nos trechos transcritos surgem descontextualizados e, nalguns pontos, estão desfasados da linha orientadora das prestações de prova havidas. Todavia, estes depoimentos não têm a virtualidade de infirmar o sentido decisório prosseguido pela Meritíssima Juíza de Direito na elaboração da decisão de facto.
Dito tudo isto, quanto a qualquer um dos pontos controvertidos, a prova produzida – e agora convocada para promover a modificação da decisão de facto – não impõe decisão diversa. Aliás, recorrentemente este colectivo de Juízes do Tribunal da Relação de Évora tem vindo a assumir o entendimento de que a alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova[11]. E isto não acontece na presente situação.
Aliás, a decisão faz a correlação entre os depoimentos prestados e a restante prova, sempre que tal se mostra necessário para optar por um bloco probatório em desfavor de outro e a descrição efectuada é claramente suficiente para perfectibilizar os comandos legais destinados a salvaguardar a reconstituição do pensamento do julgador.
A fundamentação adoptada é séria, rigorosa, tecnicamente diferenciada e completa. E, por isso, à luz dos contributos doutrinais editados a este respeito [12] [13] [14] [15] [16] [17] [18] [19] [20], interligando a resposta do Tribunal e as exigências expressas na lei a decisão em causa é perfeitamente adequada às exigências impostas pelo n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
Deste modo, face ao estatuído no n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, a decisão de facto corresponde à realidade processualmente adquirida e não existe motivo para a alterar.
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4.2 – Erro de julgamento na subsunção jurídica realizada:
4.2.1 – Do erro viciante da vontade das partes:
Menezes Cordeiro ensina que «por força do contrato estabelece-se, entre as partes, uma relação de confiança. Essa relação de confiança, derivada da boa fé, constituiria as partes em deveres mútuos, nomeadamente tendentes a não permitir defraudar a crença pacífica do parceiro contratual num decurso, sem incidentes, da relação negocial».
Isto radica naquilo que Canaris denomina por dever de protecção unitário e passa por uma consagração de deveres específicos de protecção alheios no âmbito do dever de prestar, de forma a proteger as pessoas afectadas por qualquer atentado doloso ou negligente que coloque em crise direitos e interesses relevantes legalmente protegidos.
O negócio jurídico apenas pode desempenhar as suas funções quando a vontade, que se manifesta através da declaração negocial, se formou de uma maneira esclarecida, assente em bases correctas, e livre, sem deformações provindas de influências exteriores. Se a vontade não se formou esclarecida e livremente, ela está viciada. Na sequência do vício, que fere a vontade, também a declaração negocial, em que esta se manifesta, fica viciada[21].
Na sentença sob censura está escrito que «para que a Autora pudesse instalar e explorar um olival superintensivo em toda a extensão do locado, como era inequivocamente o seu fito, seria imprescindível (i) proceder ao abate das árvores que se encontravam dispersas pelo terreno (para assim se criarem os alinhamentos característicos do olival superintensivo) e (ii) aceder à água proveniente do Alqueva para suprir as necessidades de rega.
Nesta senda, ficou estipulado entre as partes, na cláusula sétima do contrato, que o locado era servido (e não que «poderia vir a ser servido») pelos hidrantes da EDIA H4.3 e H5.9, instalados em prédios vizinhos pertencentes a terceiros, competindo à Autora (tão-só) solicitar o fornecimento de água à EDIA e instalar as condutas para o transporte da água.
De facto, durante as negociações pré-contratuais, a Ré garantiu à Autora que o abate das árvores já estava autorizado pelo ICNF e que, além do mais, já existia autorização dos proprietários dos prédios vizinhos para a passagem de condutas. A Autora celebrou, pois, o arrendamento com a Ré na convicção de que tais autorizações já estavam asseguradas, o que, todavia, não correspondia à realidade, conforme veio ulteriormente a constatar.
Posto isto, afigura-se cristalino que a Ré assentou a sua vontade em contratar, nos termos em que o fez, pressupondo ou representando – erradamente – que as autorizações do ICNF e dos proprietários dos prédios vizinhos eram certas e seguras. E, dada a configuração e desiderato do negócio, é manifesto que tais aspetos correspondem a pontos nevrálgicos do contrato».
Adicionalmente, após discorrer novamente sobre a necessidade de acesso à água, o julgador afirma ainda que «a Autora formou a sua vontade em arrendar o terreno à Ré baseando-se numa previsão – rectius, na manutenção de um status quo – que afinal se alterou, contendendo com um elemento basilar do negócio: a possibilidade de acesso à água proveniente do Alqueva. E, conforme acima aflorado, a ocorrência de uma circunstância futura falsamente representada pelo declarante no momento da celebração do contrato é suscetível de ser enquadrada no erro sobre o objeto do negócio».
Do conspecto factual apurado e da interligação entre a causa de pedir e pedido podemos concluir que, efectivamente, no processo negociatório, a sociedade Autora fundou a sua vontade de contratar no facto de lhe ter sido comunicado que tinha acesso à água necessária para promover o desenvolvimento do olival e que estava autorizada a possibilidade de arrancar as árvores existentes no terreno.
Tanto o uso da água para a rega do olival a implantar no arrendado, como o arranque das árvores para a sua plantação e exploração eram absolutamente determinantes e decisivos na intenção de contratar.
A água seria obtida a partir dos hidrantes H 5.9 e H 4.3 e a sociedade senhoria garantiu que existia autorização dos proprietários dos prédios onde estes se encontram instalados para a passagem das correspondentes condutas.
Todavia, estes pressupostos estruturais, que eram conhecidos do legal representante da sociedade Ré, não se verificavam e a sociedade Autora pediu a anulabilidade do contrato de arrendamento com base no instituto do erro sobre a base do negócio.
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Em tese genérica, na caracterização de Manuel de Andrade o erro-vício consiste na ignorância (falta de representação exacta) ou numa falsa ideia (representação inexacta), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu[22].
Para Ana Filipa Antunes o erro-vício é um vício na formação da vontade, contemporâneo da celebração do negócio e consiste no desconhecimento ou falsa representação de uma circunstância, de facto ou de direito, passada ou presente relativamente ao momento da emissão da declaração negocial e que determinou a celebração do negócio ou, pelo menos, a celebração naqueles termos. A vontade real e a declarada são coincidentes, mas a vontade é mal formada atendendo ao erro. Numa palavra, a vontade não se formou em termos esclarecidos. Há uma divergência entre a vontade real (o que se quis, a vontade efectivamente formada e exteriorizada pelo declarante) e a vontade conjectural ou hipotética (aquela que teria sido manifestada se não fosse a interferência do erro no processo de formação da vontade)[23].
O erro é usualmente definido como uma convicção falsa a respeito dos factos ou do direito existente no momento da conclusão do contrato, sendo as modalidades de erro (erro-vício, erro na declaração e erro na transmissão da declaração regulados entre nós nos artigos 247.º, 250.º e 251.º do Código Civil) submetidas ao mesmo regime, partindo do regulamento padrão do erro na declaração e equiparando-se-lhe a disciplina dos restantes institutos.
Se a declaração negocial consiste numa decisão volitiva, precedida, no plano psicológico, de uma deliberação em que o possível autor se representa o negócio e o seu circunstancialismo, se nessa representação faltam elementos ou existem elementos que não correspondem à realidade (ignorância ou falsa representação) ocorre erro[24].
Sumariamente, o erro-vício ou erro-motivo traduz-se num erro na formação da vontade e do processo de decisão e existe quando ocorre uma falsa representação da realidade ou a ignorância de circunstâncias de facto ou de direito que intervieram nos motivos da declaração negocial, de modo que, se o declarante tivesse perfeito conhecimento das circunstâncias falsas ou inexactamente representadas, não teria realizado o negócio ou tê-lo-ia realizado em termos diferentes.
Sobre a temática geral do erro pronunciam-se, entre outros: Guilherme Moreira[25], Manuel Andrade[26], Galvão Telles[27], Ferrer Correia[28], José Tavares[29], J. Baptista Machado[30], Carlos Mota Pinto[31], Rui Alarcão[32], Castro Mendes[33], Oliveira Ascensão[34], Ferreira de Almeida[35], Rodrigues Bastos[36], Carvalho Fernandes[37], Menezes Cordeiro[38], Heinrich Ewald Höester[39], Pais de Vasconcelos[40] [41], Pinto Monteiro[42], Paulo Mota Pinto[43] [44], Ribeiro Mendes[45], Carneiro da Frada[46], José Alberto Vieira[47], Pedro Nunes de Carvalho[48] e Costa Gonçalves[49].
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No ensino de Carlos Mota Pinto o erro sobre a base do negócio é descrito com uma «representação mental duma das partes, reconhecida e não contestada pela outra parte, ou a representação comum aos vários interessados no negócio acerca da existência ou da ocorrência de determinadas circunstâncias, sobre a base das quais se constrói a vontade do agente»[50].
Na doutrina de Carvalho Fernandes «a base do negócio é constituída por aquelas circunstâncias que, sendo conhecidas de ambas as partes, foram tomadas em consideração por elas na celebração do acto e determinaram os termos concretos»[51].
Na formulação de Pires de Lima e Antunes Varela, «há erro sobre a base do negócio quando a falsa representação incide sobre circunstâncias (pretéritas, presentes ou futuras) em que as partes fundaram a decisão de contratar»[52].
A base do negócio será, então, uma representação de uma das partes, conhecida pela outra e relativa a certa circunstância basilar atinente ao próprio contrato e que foi essencial para a decisão de contratar[53].
Quanto aos requisitos, são enunciados a essencialidade do erro (a essencialidade do erro tem de ser encarada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro)[54] (o seu carácter determinante para a declaração do errante, em si mesma ou nos seus elementos fundamentais)[55], a desculpabilidade ou escusabilidade do erro (não é justo permitir a uma parte que foi, ela mesma, a causa principal do erro anular o contrato com fundamento neste, a não ser que a outra parte tenha sido, pelo menos, igualmente culpada)[56] e a transparência objectiva da essencialidade do erro (a outra parte conhecia ou devia conhecer o erro e era contrário à boa-fé deixar o declarante em erro).
Terá de haver acordo quanto à essencialidade. Todavia, como adianta Menezes Cordeiro, relativamente à base do negócio, esse acordo é dispensado, bastando o conhecimento das partes[57], entendimento que é aceite pela jurisprudência nacional desde sempre[58]. Todavia, a essencialidade tem de ser encarada sob o aspecto subjectivo do errante, e não de qualquer outro[59]. E basta que o erro seja uma concausa da declaração, para aquele declarante, apreciada subjectivamente e em concreto[60] [61].
É relevante saber se o erro foi o factor determinante da declaração negocial emitida – essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – e se o destinatário da declaração conhecia ou devia conhecer essa essencialidade. Porém, e como se deixou acima vincado, e é apontado na doutrina como requisito imprescindível para que ocorra erro relevante nas circunstâncias susceptíveis de comprometer o equilíbrio da relação negocial estabelecida torna-se necessário que se verifique uma essencialidade do erro.
Há assim que proceder a um juízo hipotético sobre a vontade negocial que o contraente teria tido e, no caso de erro, avaliar que tipo de declaração teria sido emitida ou se seria viável manter o negócio privados daqueles elementos essenciais.
Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida isto significa que «o negócio, sem tal erro, não se tivesse realizado ou se realizasse noutros termos, que as partes não celebrassem o contrato ou o celebrassem com diferente conteúdo»[62].
Depois de debater com profundidade a matéria do erro sobre a base do negócio, de se pronunciar sobre os elementos típicos do instituto e de elaborar o silogismo judiciário com base na factualidade apurada, o Tribunal «a quo» conclui que, relativamente à obtenção de água a partir dos hidrantes situados nas proximidades, o consentimento dos proprietários dos prédios vizinhos para a passagem de condutas não estava ainda assegurado. Mais adiantando que, «aquando da celebração do arrendamento rural, a Autora fez uma falsa representação de circunstâncias presentes e futuras, relativas a aspetos essenciais do negócio conhecidos da Ré, e que, ademais, a manutenção de tal contrato redundaria num manifesto desequilíbrio negocial, afetando com gravidade a sua justiça interna, pois obrigaria a Autora a entregar à Ré durante 25 anos uma renda anual de € 165.000,00, apesar de totalmente gorada a concreta finalidade para a qual o negócio foi gizado. A exigência do cumprimento do negócio configuraria, pois, uma flagrante violação do princípio da boa-fé».
Do texto contratual retira-se claramente que ambas as partes contratantes reconheceram a configuração da relação locatícia e o papel destes elementos de produção (terra e água) como elementos centrais da motivação negocial.
Há erro sobre a base do negócio quando as partes levam em consideração determinadas circunstâncias de carácter geral as quais, se sofrerem alterações, fazem com que o negócio perca o seu sentido originário e resulte em consequências distintas das inicialmente planeadas pelas partes e com que estas, razoavelmente, podiam contar[63].
Na situação vertente, face à utilização pretendida e à finalidade económica do contrato ajustado, na decisão de contratar por parte da sociedade arrendatária, é inequívoco que ocorreu um erro essencial, determinante e com os requisitos legalmente previstos. Aderimos assim totalmente ao raciocínio expresso na sentença recorrida e ao subsequente juízo de anulação do contrato de arrendamento com base no instituto do erro, que pode ser subsumido quer à base do negócio, quer ao seu objecto.
Deste modo, torna-se incontroverso que o arrendatário actuou num quadro negocial baseado no erro sobre a base do negócio[64] [65], embora com pontos de intercepção com o erro sobre o objecto do negócio, que assume aqui semelhante preponderância, tal como salienta Paulo Mota Pinto[66] [67]. Na concepção de Menezes Cordeiro, no erro sobre o objecto não está em causa, apenas, a identidade do objecto, mas as suas qualidades e, particularmente, o seu valor. Revelam, também, as qualidades jurídicas do objecto. Além disso e numa interpretação correcta e da maior importância, o “objecto” abrange o conteúdo do negócio[68]. Carvalho Fernandes complementa esta afirmação dizendo que «quanto à modalidade de erro referida no objecto negocial, deve aceitar-se que ele abrange tanto o objecto material como o jurídico (conteúdo)»[69].
A demonstração dos factos integradores da essencialidade e respectiva cognoscibilidade, por constituírem requisitos de relevância do erro e fundamento da anulabilidade do negócio (artigos 251.º e 247.º, ambos do Código Civil), constitui ónus de quem invoca o erro, face ao disposto no artigo 342.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Na situação vertente, provou-se a essencialidade do erro e decorre inequivocamente da posição assumida pela sociedade Autora que, se tivesse previsto um contexto fáctico semelhante ao verificado, o contrato de arrendamento nunca teria sido formalizado.
E, aliás, de acordo com as regras da experiência e da normalidade social, esta é um entendimento que qualquer observador medianamente diligente retiraria relativamente à celebração de um arrendamento rural para instalação de um olival superintensivo em que o inquilino fique privado do acesso a água e não tinha sido obtida autorização para abate de árvores que surge como necessária a fazer a modelação geométrica típica dos olivais.
Em suma, trata-se de um erro que inquina a formação da vontade negocial, que condiciona o declarante, porquanto este criou previamente o convencimento sobre determinada condição ou facto e pautou o seu comportamento em função desse factor, evento ou acontecimento querido, essencialidade que o outro contraente também conhece e que é causa de anulação[70].
Isto é, se a informação, mesmo que prestada negligentemente, tiver causado um erro essencial, fundamentará um direito de anulação. Ou seja, sempre que a falta representação daqui resultante for essencial, o errante deve poder anular o contrato, pois não só não estava adequadamente informado, como isso resultou da conduta da contraparte.
O erro sobre as circunstâncias constitutivas da base negocial poderá determinar a anulação total ou meramente parcial do negócio jurídico, bem assim como a simples modificação do negócio jurídico que reponha de forma equitativa a justiça interna do negócio que foi colocada em causa pelo erro.
Neste caso, o projecto agrícola em causa tinha uma componente de regadio em que o acesso à água surge como elemento fundamental e intransponível para a respectiva implementação e a dita divergência é, no caso concreto, particularmente importante, substancial, ultrapassando os limites previsíveis da normalidade[71] e que implica uma incompatibilidade com a faculdade de redução, modificação ou reconversão do negócio ou aplicação das regras de equidade em ordem a salvaguardar a vigência do acordo celebrado.
Estamos assim num caso em que não se justifica a anulação parcial do contrato, tendo em conta as circunstâncias, não é razoável manter a parte restante do contrato[72]. E, além do mais, do ponto de vista processual, essa possibilidade não foi colocada pela parte contrária em sede de pedido reconvencional.
Como bem defende a Meritíssima Juíza de Direito daqui se extrai que o declarante incorre em erro sobre a base do negócio quando faz uma representação psicológica inexacta acerca de circunstâncias, de facto ou de direito, determinantes para a formação da sua vontade em contratar nos moldes em que o faz, que se traduza numa desconformidade que provoque uma perturbação no equilíbrio ou justiça interna do negócio ou gere uma frustração do seu escopo de tal modo grave que torne inexigível, à luz dos princípios da boa fé, o cumprimento do contrato.
Estamos num quadro de incumprimento definitivo por perda de interesse do credor na prestação, a que se associa uma conduta manifestamente incompatível com o cumprimento por parte do senhorio e, assim, a consequência do referido vício é a anulação do contrato ao abrigo da disciplina precipitada no artigo 289.º[73] do Código Civil.
Isto implica, na lição de Menezes Cordeiro, que realize uma operação de liquidação. Isto é, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, nos termos desse mesmo preceito[74].
Esta factualmente certificado que a sociedade Autora esteve em poder do locado entre a data do contrato (27/11/2018) e Março de 2019 (data da entrega, conforme se extraí da parte final do facto identificado sob o n.º 25).
Aqui chegados, duas opções restariam: a restituição à Autora da quantia correspondente à soma dos montantes que esta lhe entregou em execução do contrato inválido ou o arrendatário teria direito à remuneração do tempo em que a sociedade recorrida teve disponibilidade sobre o objecto do arrendamento ou qualquer outra das componentes patrimoniais negociadas.
Na primeira hipótese a sociedade Autora fará seu o montante de € 305.375,00 (trezentos e cinco mil e trezentos e setenta e cinco euros) previamente transferido para empresa recorrente e na segunda o pedido reconvencional teria de ser julgado parcialmente procedente, com a consequente entrega (rectius, não devolução) proporcional da renda mensal acordada, da caução ou de outra compensação económica que seja devida.
O Juízo de Competência Central Cível e Criminal de Beja decidiu que não seria devida à sociedade Ré qualquer contrapartida pelo gozo do prédio, em consequência da anulação do negócio. Fundou esta opção na circunstância de o locado nunca ter estado «apto a ser utilizado para a finalidade pretendida pela Autora, o que a Ré, aliás, sabia».
E de toda a conjuntura negocial, face até à circunstância de se estar perante um erro induzido pela contraparte, a solução encontrada pela Primeira Instância é justa e não merece censura, porquanto a indisponibilidade sobre o objecto contratual não é imputável à sociedade recorrida e o risco da transferência material de um terreno inapto para os efeitos contratualizados deve ser assacado na esfera patrimonial do locador.
Devido ao envolvimento da contraparte na origem do erro, na senda daquilo que é defendido por Paulo Mota Pinto, afigura-se que esta situação não merece a protecção habitualmente concedida aos locadores. Isto é, se o errante suporta o risco do desconhecimento e da não cognoscibilidade do seu erro pela outra parte, deve também o declaratário suportar o risco de causar um erro ao declarante, ainda que sem culpa[75].
A medida do dano em caso de anulação do contrato, visa, prima facie, sem embargo da possibilidade de obtenção de indemnização, deixar o errante em situação tanto quanto possível idêntica àquela que estaria se não tivesse celebrado o contrato, dando aqui a lei interna particular enfâse à protecção do interesse contratual negativo.
O dever de restituir é recíproco, mas a invalidade do negócio tem de ser compatibilizada com a manutenção dos deveres de segurança, de informação e de lealdade que acompanham qualquer obrigação, por força da boa fé. A interacção entre a boa fé e o investimento de confiança realizado pelo arrendatário ditam aqui que a devolução deve ser determinada de acordo com o critério formulado na decisão recorrida.
Deste modo, decide-se manter a decisão impugnada, julgando-se improcedente o recurso interposto.
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A responsabilidade tributária pelo desfecho do presente recurso está sujeita às regras contidas no artigo 527.º do Código de Processo Civil e o respectivo pagamento será assegurado pela apelante.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se manter a decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso interposto.
Custas a cargo da apelante nos termos e abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 11/02/2021
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário

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[1] Em sede de audiência prévia a Autora procedeu à inversão da ordem dos pedidos formulados na petição inicial, conforme referências 1657057 e 31088280.
[2] A sentença recorrida deixou consignado que «não se levou à decisão sobre a matéria de facto a alegação vertida nos articulados de natureza conclusiva, instrumental ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa».
[3] (19) 19. A Autora celebrou o contrato com a Ré na convicção de que:
a. o “ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas” (doravante ICNF) já havia autorizado o abate das árvores existentes no terreno cedido;
b. a passagem das condutas para o transporte de água através dos prédios vizinhos já estava autorizada pelos respetivos proprietários;
c. a EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva, S.A. (doravante EDIA), entidade gestora do EFMA, autorizaria à Autora a utilização da água dos hidrantes H4.3 e H5.9 a título precário para serventia do terreno cedido.
[4] (20) Aquando da celebração do contrato, não haviam sido dadas as autorizações referidas nas alíneas “a.” e “b.”, situação que se mantém até à presente data, apesar de a Ré ter garantido à Autora que as mesmas existiam.
[5] (21) Durante as negociações prévias ao contrato, a Ré remeteu à Autora fotografia da primeira página de um ofício do ICNF relativa a autorização de abate de árvores na «Herdade da Casa dos (…)», que a Ré pensou tratar-se da autorização aludida na alínea “a.” do ponto 19, mas que veio a constatar posteriormente (já depois da assinatura do acordo) que aquele documento dizia respeito a outra parcela de terreno daquela mesma herdade.
[6] (22) No final de Fevereiro de 2019, a EDIA informou todos os beneficiários e potenciais interessados de que o fornecimento de água para rega a título precário para novas áreas localizadas fora da mancha de rega beneficiada só passaria a ser equacionado para a instalação de culturas anuais, deixando assim de ser autorizado o fornecimento de água a título precário para novas instalações de cultura permanentes, como é o caso do olival.
[7] (24) A Autora não chegou a requerer a autorização à EDIA, nem a celebrar com esta entidade contrato de fornecimento, por aguardar que a Ré lhe entregasse os documentos comprovativos da autorização dos proprietários dos prédios vizinhos para a instalação das condutas.
[8] (25) As circunstâncias aludidas em 20 e 22 impedem a instalação e exploração de olival superintensivo no terreno cedido, razão pela qual, em Março de 2019, a Autora entregou aquele à Ré.
[9] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 435-436.
[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/12/2020, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[11] Por todos, podem ser consultados os acórdãos de 30/01/2020, 13/02/2020, 04/06/2020, 08/10/2020 e 03/12/2020, disponíveis na plataforma www.dgsi.pt.
[12] Alexandre Pessoa Vaz, Direito Processual Civil, Almedina, Coimbra, 19988, págs. 211-241.
[13] Gonçalves Salvador, Motivação, Boletim do Ministério da Justiça n.º 121, págs. 85-117.
[14] Oliveira Martins, Justiça Portuguesa, n.º 29, pág. 49.
[15] Gonçalves Pereira, Poderes do juiz em matéria de facto, Justiça Portuguesa, n.º 32, pág. 81.
[16] Miguel Corte-Real, O dever da fundamentação da decisão judicial dada sobre a matéria de facto, Vida Judiciária, n.º 24, pág. 22-24.
[17] Michele Taruffo, Note sulla garanzia constituzionale della motivazione, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, n.º 55, págs. 29-38.
[18] Cláudia Sofia Alves Trindade, A prova de estados subjectivos no processo civil: presunções judiciais e regras de experiência, Almedina, Coimbra, 206, págs. 317-225.
[19] Marta João Dias, A fundamentação do juízo probatório – Breves considerações, Julgar n.º 13, Janeiro de 2011.
[20] José Manuel Tomé de Carvalho, Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português, Julgar 21, Setembro-Dezembro 2013, remetendo aqui para as demais referências bibliográficas ali contidas sobre este assunto.
[21] Heinrich Ewald Höerster, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra 2000, pág. 567.
[22] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 9ª reimpressão, Coimbra, 2003, pág. 233.
[23] Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Porto 2014, pág. 592.
[24] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/04/2014, in www.dgsi.pt.
[25] Guilherme Moreira, Instituições do Direito Civil Portuguez, I, Parte geral, 1907.
[26] Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª reimpressão, Coimbra, 1974.
[27] Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, 2002.
[28] Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Almedina, Coimbra, 2001.
[29] José Tavares, Os princípios fundamentais do direito civil, vol. II, Coimbra, 1928.
[30] J. Baptista Machado, Acordo Negocial e erro na venda de coisas defeituosas, Boletim do Ministério da Justiça n.º 205 (Abril 1972).
[31] Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, 1985.
[32] Rui Alarcão, Breve Motivação, Boletim do Ministério da Justiça n.º 138.
[33] Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, AAFDL, Lisboa, 1995.
[34] Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, vol. II, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003.
[35] Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Almedina, Coimbra, 1992.
[36] J. F. Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas, Viseu, 1969.
[37] Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 5ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010.
[38] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Parte Geral – Negócio Jurídico, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017.
[39] Heinrich Ewald Höester, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, reimpressão, 2000.
[40] Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, 2010.
[41] Pedro Pais de Vasconcelos UNIDROIT – interpretação do Contrato (comparação entre as regras UNIDROIT e as regras do Código Civil Português), Themis, ano I, n.º 2, 2000.
[42] António Pinto Monteiro, Erro e Vinculação Negocial, Coimbra, 2002.
[43] Paulo Mota Pinto, Requisitos da relevância do erro, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, Vol. IV (novos Estudos de Direito Privado, Almedina, Coimbra, 2003.
[44] Paulo Mota Pinto, Falta e vícios da vontade – O Código Civil e os regimes mais recentes, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006.
[45] A. Ribeiro Mendes, Os vícios de consentimento na formação do contrato (comparação da regulamentação constante dos “princípios dos Contratos Comerciais Internacionais” do UNIDROIT com acolhida no Código Civil Português).,
[46] Manuel Carneiro da Frada, Erro e incumprimento na não conformidade da coisa com o interesse do comprador, O Direito, ano 121º, 1989.
[47] José Alberto Vieira, Negócio Jurídico. Anotação ao Regime do Código Civil (Artigos 217.º a 295.º), Coimbra Editora, Coimbra, 2006.
[48] Pedro Nunes de Carvalho, Considerações acerca do erro em sede de patologia da declaração negocial, Revista da Ordem dos advogados, Abril 1992.
[49] Costa Gonçalves, Erro obstáculo e erro vício. Subsídios para a determinação do alcance normativo dos artigos 247º, 251º e 252º do Código Civil, AAFDL, Lisboa, 2004.
[50] Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pág. 515, nota 3.
[51] Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 3ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 163.
[52] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra 2010, pág. 236.
[53] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Parte Geral – Negócio Jurídico, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 868.
[54] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/01/1972, in BMJ 213-188.
[55] Paulo Mota Pinto, Falta e vícios da vontade – O Código Civil e os regimes mais recentes, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra 2006, págs. 476.
[56] Autor e obra citada, pág. 479.
[57] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Parte Geral – Negócio Jurídico, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 869.
[58] Neste sentido, encontram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/11/1977, Boletim do Ministério da Justiça n.º 271, págs. 190-195, do Tribunal da Relação do Porto de 07/05/1994, em Colectânea de Jurisprudência XIX-II-187-190 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/05/1994, também consultável na Colectânea de Jurisprudência ano XIX-III-81-86.
[59] Paulo Mota Pinto, Requisitos da relevância do erro, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, Vol. IV (novos Estudos de Direito Privado, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 72.
[60] Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra, 1985, pág. 508.
[61] Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 5ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, pág. 154.
[62] Carlos Ferreira de Almeida, Erro sobre a base do negócio, Cadernos de Direito Privado n.º 43, Julho/Setembro de 2013, pág. 5.
[63] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2015, disponível em www.dgsi.pt.
[64] Para Inocêncio Galvão Telles, Erro sobre a base do Negócio Jurídico, in Estudos em Homenagem ao Professor Raúl Ventura, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, pág. 42, a lei ao pretender acautelar as situações em que o erro recaia sobre a base do negócio «[quer] inscrevê-lo num círculo conceptual mais restrito e mais exigente apenas o admitindo em situações particularmente relevantes em que a sua invocação se justifique à luz da boa fé. Pode assim dizer-se que há erro sobre a base do negócio quando o erro verse sobre circunstâncias determinantes da decisão de contratar que, pela sua importância, justifiquem, sem mais, segundo os princípios da boa fé, a invalidade do negócio. Isto, pois, independentemente de o declaratário conhecer ou dever conhecer a essencialidade, para o declarante, das aludidas circunstâncias e, por maioria de razão, sem necessidade das partes se mostrarem de acordo quanto a essa essencialidade».
[65] Na lição de Castro Mendes a ideia central no erro sobre a base do negócio é «a de um erro bilateral sobre condições patentemente fundamentais do negócio jurídico».
[66] Paulo Mota Pinto, Requisitos da relevância do erro, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, Vol. IV (novos Estudos de Direito Privado, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 106-107, refere este autor que «não se pode, efectivamente, negar esta semelhança entre casos de erro-vício e de erro na declaração. E talvez se pudesse mesmo impugnar a justificação de uma regulamentação do erro que distingue para efeitos de tratamento jurídico o erro na declaração e o erro-motivo, chegando, desse modo, a, atendendo a tal semelhança, equiparar o seu regime totalmente».
[67] Esta proximidade é reconhecida por Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, Vol. II, Parte Geral – Negócio Jurídico, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 870, quando se refere à aplicação do regime comum ao erro.
[68] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. II, Parte Geral – Negócio Jurídico, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 858.
[69] Carvalho Fernandes, obra citada, pág. 213.
[70] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/06/2002, in www.dgsi.pt.
[71] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, consultável em www.dgsi.pt.
[72] Paulo Mota Pinto, Falta e vícios da vontade. O Código Civil e os regimes mais recentes, Comemoração dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 485.
[73] Artigo 289.º ((Efeitos da declaração de nulidade e da anulação):
1. Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
2. Tendo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efectiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento.
3. É aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes.
[74] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Parte Geral – Negócio Jurídico, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 935-936.
[75] Paulo Mota Pinto, Requisitos da relevância do erro, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, Vol. IV (novos Estudos de Direito Privado, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 116-117).