Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
694/17.8T8BJA.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: CAIXA DE PREVIDÊNCIA
ADVOGADO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para as acções executivas através das quais a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores vise obter a cobrança das contribuições devidas pelos seus beneficiários.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 694/17.8T8BJA.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo Central Cível e Criminal de Beja
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) instaurou a presente acção executiva para pagamento de quantia certa contra (…), advogado, com vista à cobrança da quantia de € 98.684,61, correspondente a contribuições em dívida e juros de mora. Como título executivo, a exequente apresentou uma “certidão de dívida de contribuições” emitida pelo seu órgão dirigente.
O tribunal recorrido indeferiu liminarmente o requerimento executivo, declarando-se materialmente incompetente para a presente execução.

A exequente recorreu desse despacho, formulando as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.
2. Pois a CPAS, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,
3. A CPAS «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa...» (cf. Art. 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in "Direito da Segurança Social – Princípios Fundamentais Numa Análise Prospectiva").
4. A CPAS não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art. 97.º do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspectiva.
5. A CPAS não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.
6. Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores».
7. Mas além disso a CPAS não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social.
8. Pelo que a CPAS não deve ser qualificada como uma mera "entidade pública".
9. As contribuições para a CPAS não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões.
10. As contribuições para a CPAS assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário.
11. A este facto acresce que, nos termos do disposto no art. 80.º, n.º 4, do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário.
12. Nos termos da sentença recorrida, os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência.
13. Todavia, o n.º 2 do art. 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
14. No novo regulamento da CPAS, aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à CPAS sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças.
15. O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da CPAS, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direcção da CPAS. (doc.1)
16. E porque "não há direito sem acção", não resta à CPAS outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.
17. Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art. 20.º, n.º 1, da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos...»
18. Tendo em conta o princípio constitucional previsto no art. 20.º, n.º 1, da CRP que dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos...», a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 32/2002, de 19/02) e do n.º 2 do art. 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a CPAS e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no art. 20.º, n.º 1, da CRP, na medida em que, como vimos, levará a um verdadeiro "beco sem saída" pois a CPAS ficaria, dessa forma, sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários.
19. Pois, as dívidas à CPAS não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela AT, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito.
20. A sentença recorrida violou, assim, o art. 2.º, n.º 2, do C.P.C.; o art. 179.º, n.º 1 e 2, do NCPA e o art. 148.º, n.º 2, do CPPT; o art. 81.º, n.º 5, do RCPAS; a alínea o) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos legais é inconstitucional por violar o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais de direito e com o douto suprimento de V. Exas. deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue o Tribunal a quo, como competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente acção executiva, com o que se fará a acostumada Justiça.

O recurso foi admitido.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste último e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Está em causa saber se a competência material para a presente acção cabe aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos e fiscais.

A questão da competência material para as acções executivas propostas pela CPAS, contra os seus beneficiários, com o objectivo de cobrar as contribuições por estes devidas, tem, nos tempos mais recentes, vindo a ser suscitada com frequência nos nossos tribunais superiores, os quais a têm decidido, tanto quanto sabemos, de forma unânime, no sentido de considerar que tal competência cabe aos tribunais administrativos e fiscais. Nesse sentido decidiram os acórdãos da Relação do Porto de 20-06-2016 (processo n.º 6988/16.2T8PRT.P1), da Relação de Lisboa de 09-03-2017 (processo n.º 17398/15.9T8LRS.L1-2) e de 02.11.2017 (processo n.º 9354-16.6T8LSB.L1-8) e do Tribunal dos Conflitos de 27-04-2017 (processo n.º 037/16).
Aderimos a esta orientação jurisprudencial, pois os argumentos que a sustentam são, a nosso ver, irrefutáveis.
Resulta dos artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, 64.º do CPC e 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que a competência destes últimos é residual. Ou seja, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
O artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, estabelece que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. O artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estabelece que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. A alínea o) do n.º 1 deste último preceito legal dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Portanto, a resolução da questão da competência material para a presente acção está dependente da caracterização das relações que se estabelecem entre a CPAS e os seus beneficiários como jurídico-administrativas e fiscais ou, ao invés e como a recorrente pretende, como jurídico-privadas. Na primeira hipótese, aquela competência cabe aos tribunais administrativos e fiscais; na segunda, cabe aos tribunais judiciais.
Com vista a tal caracterização, comecemos por atentar nos artigos 1.º e 3.º do Regulamento da CPAS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/2015, de 29.06, dos quais decorre a natureza jurídica daquela. A CPAS, criada pelo Estado através do Decreto-Lei n.º 36550, de 22.10.1947, e então designada como “Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados”, é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, e visa fins de previdência e de protecção social dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores (artigo 1.º, n.º 1). Rege-se pelo seu Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (artigo 1.º, n.º 2). Tem por fim conceder pensões de reforma e subsídios por invalidez aos seus beneficiários (artigo 3.º, n.º 1), pode conceder subsídios por morte e de sobrevivência aos familiares dos seus beneficiários e outros subsídios de acordo com as disponibilidades anuais do fundo de assistência (artigo 3.º, n.º 2) e, em complemento dos benefícios referidos nos números anteriores, promove a celebração, com instituições de seguro, de contratos de grupo, com vista à cobertura de riscos dos seus beneficiários (artigo 3.º, n.º 3).
A CPAS é, assim, uma pessoa colectiva pública, que visa fins de previdência e de protecção social. Sendo a previdência uma das componentes do sistema de segurança social, é evidente que as instituições com fins de previdência realizam uma função de segurança social. É um subsistema de segurança social específico para determinados profissionais. São-lhe, por isso, subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as bases gerais do sistema de segurança social e a legislação delas decorrente. Assim se justifica que a CPAS esteja sujeita à tutela do Governo e goze das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência e das estabelecidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (artigos 96.º, n.º 2, 97.º e 98.º do Regulamento).
Sendo essa a natureza da CPAS e das suas atribuições, impõe-se a qualificação das relações que a mesma estabelece com os seus beneficiários como jurídico-administrativas e fiscais e não como jurídico-privadas. No âmbito dessas relações jurídicas, a CPAS actua no exercício de poderes de autoridade que a lei lhe confere e não no mesmo plano que os seus beneficiários, como se se tratasse de relações jurídicas entre entidades privadas.
Tendo as relações jurídicas que se estabelecem entre a CPAS e os seus associados natureza administrativa e fiscal, a competência material para o conhecimento dos litígios delas emergentes cabe aos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do citado artigo 4.º, n.º 1, al. o), do ETAF, e não aos tribunais comuns. Entre esses litígios incluem-se, naturalmente, os decorrentes da falta de pagamento das contribuições devidas pelos beneficiários da CPAS, que estão na origem das acções executivas tendentes à cobrança coerciva dessas mesmas contribuições e legais acréscimos. A confirmá-lo, o artigo 81.º, n.º 5, do Regulamento da CPAS, estabelece que a certidão da dívida de contribuições emitida pela direcção constitui título executivo e deve obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, sinal evidente de que é o processo de execução fiscal o meio próprio para se obter a referida cobrança coerciva, em termos idênticos aos estabelecidos para a cobrança coerciva das dívidas à segurança social. Se assim não fosse, não teria sentido a referida exigência legal de cumprimento dos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Mais, o citado artigo 81.º, n.º 5, do Regulamento da CPAS, demonstra que é errado o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, referido nas alegações de recurso, segundo o qual inexiste norma habilitante para propor execuções com vista à cobrança das contribuições em causa. O referido artigo 81.º, n.º 5, é a norma habilitante que a Autoridade Tributária e Aduaneira afirma não existir. Logo, nem sequer se coloca a questão, suscitada nas alegações de recurso, da inconstitucionalidade do entendimento sufragado pela decisão recorrida por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Conclui-se, assim, que os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para tramitar processos mediante os quais a CPAS vise a cobrança coerciva de contribuições devidas por beneficiários seus. A decisão recorrida não merece, pois, censura, devendo manter-se, com a consequente improcedência do recurso.

Sumário:

Os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para as acções executivas através das quais a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores vise obter a cobrança das contribuições devidas pelos seus beneficiários.

Decisão:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 22 de Março de 2018
Vítor Sequinho dos Santos (Relator)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura