Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
883/18.8T9PTG.E1
Relator: BERGUETE COLEHO
Descritores: DISPENSA DE PENA
REPARAÇÃO DO DANO
Data do Acordão: 06/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
1 - Não se tendo provado os factos constantes do pedido cível e, por isso, foi a demandada/arguida absolvida desse pedido, não ocorre qualquer dano que tenha que ser reparado.

2 - Assim sendo, nesse caso não se coloca a questão da reparação prevista na al. d) do nº 1 do artº 74º do Cód. Penal, nada impedindo que se aplique a dispensa da pena, verificados que estão os demais requisitos previstos no indicado artº 74º.
Decisão Texto Integral:
*

Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo Local Criminal de Portalegre do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, o assistente (…) deduziu acusação particular contra a arguida (…), imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal (CP) e de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do mesmo Código.
Mais deduziu, o assistente, como demandante, pedido cível contra a arguida, peticionando a sua condenação, no pagamento de € 3500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros legais até efectivo pagamento.
A arguida apresentou contestação, pugnando pela sua absolvição, e juntou documentos e arrolou testemunhas.
Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se:
Da parte criminal:
- julgar a acusação particular parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência,
- a) absolver a arguida da prática de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP, que lhe vinha imputado;
- condenar a arguida como autora material de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelos art. 181.º do CP, na pena de vinte dias de multa;
- dispensar a arguida de pena, ao abrigo do previsto no art. 74.º, n.º 1, do CP;
Da parte cível:
- julgar o pedido cível improcedente, por não provado e, em consequência, absolver a demandada de todo o peticionado.

Inconformado com a decisão, o assistente interpôs recurso, formulando as conclusões:
1 - Na primeira instância, o Tribunal condenou a arguida como autora material pela prática de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, na pena de vinte dias de multa;
2 - Contudo, decidiu dispensar a arguida de pena, ao abrigo do previsto no art.º 74.º, n.º 1 do CP, dispensa com a qual o assistente não concorda por entender que não estão preenchidos cumulativamente os requisitos previstos neste artigo, nomeadamente não foram reparados os danos morais sofridos pelo assistente;
3 - Decidiu também o Tribunal a quo julgar o pedido de indemnização cível improcedente, por não provado, e em consequência, absolver a demandada de todo o peticionado, decisão com a qual o assistente também não concorda, pois o mesmo foi ofendido na sua honra e consideração, com as mensagens e expressões proferidas pela arguida, que foram dadas como provadas e constantes nos factos provados n.º 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 da douta sentença de que se recorre, tendo-se sentido o assistente ofendido e humilhado, o que merece a tutela do direito e consequentemente deve ser a arguida condenada no pedido de indemnização cível formulado pelo assistente.
4 - A douta sentença padece de erro notório na apreciação da prova, por ter dado como não provada factualidade que, em nosso entender, deveria ter sido dada como provada.
5 - Em obediência, assim, ao estatuído no art. 412.º, n.º 2 do Código Processo Penal, vem apresentar as normas jurídicas violadas, bem como a impugnação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, indicando as provas especificas das quais deve resultar decisão diversa da recorrida.
6 - A douta sentença recorrida errou notoriamente na apreciação da prova, nos termos do art. 410º nº 2 alínea c) CPP.
7 - O Tribunal a quo deveria ter dado como provado os factos constantes das alíneas e) e h) do elenco da matéria de facto dada como não provada da sentença recorrida, com base nas declarações do assistente, gravadas no sistema integrado da gravação digital que iniciou pelas 14:39:02 e terminou pelas 15:03:35 da audiência de dia 15-10-2019.
8 - A arguida ofendeu dolosamente a honra e consideração do assistente.
9 - A arguida formulou um juízo falso e ofensivo contra o assistente.
10 - O assistente sentiu-se ofendido com a expressão falsa da autoria da arguida.
11 - A arguida agiu com dolo.
12- O assistente sofre profundamente com as expressões proferidas pela arguida.
13- A honra e consideração do assistente foram dolosamente afectados pela arguida.
14- A arguida tinha plena consciência que as expressões que proferiu através das mensagens que enviou ao assistente e que foram dadas como provadas pelo Tribunal a quo, eram objectivamente ofensivas da integridade moral do assistente.
15- A arguida sempre esteve consciente da ilicitude da sua conduta.

16- A douta sentença recorrida violou o artigo 74º do Código Penal ao dispensar a arguida da pena a que foi condenada, pois o instituto da dispensa da pena está, conforme decorre da lei, previsto para ilícitos de reduzida dignidade penal, em que a ilicitude do facto e a culpa do agente são diminutas e em que não se verifica a ocorrência de quaisquer danos ou se verifica a sua reparação integral pelo agente, conforme alíneas a) e c) do referido artigo.
17 - Tal não é, manifestamente, o caso dos presentes autos, atenta a gravidade das injúrias proferidas pela arguida contra o assistente.
18 - O que provocou danos morais ao assistente, que merecem a tutela do direito, devendo a arguida ser condenada a indemnizar o assistente pelos danos morais sofridos.
19 - O pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante funda-se na prática de factos ilícitos geradores de danos, factos ilícitos estes que foram dados como provados pelo Tribunal a quo.
20 - Assim, deve a arguida ser condenada no pedido de indemnização cível.
21 - A arguida com a sua conduta causou danos não patrimoniais ao assistente, devendo a mesma ser condenada no pedido de indemnização cível que foi formulado pelo assistente, no valor peticionado de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros).
22 - Ou se assim não se entender, deve a reparação judicial destes danos, ou seja, o montante indemnizatório ser fixado equitativamente, aplicando-se aqui a regra do art.º 566º do Código Civil.
23 - Pois nos termos do disposto no art. 566º, n.º 3 do Código Civil, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o Tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
24 - A douta sentença recorrida violou também o artigo 483º do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências se dignem suprir, deverá a douta sentença ora recorrida ser alterada, dando provimento ao presente recurso e condenando a arguida no pedido de indemnização civil formulado pelo assistente, bem como não dispensar a arguida da pena que lhe foi aplicada.

O recurso foi admitido.

Apresentaram resposta, concluindo:
- o Ministério Público:
1- A convicção do Tribunal recorrido foi a mais correcta, não sendo possível vislumbrar naquela qualquer erro de apreciação ou de raciocínio, qualquer asserção contrária às regras da experiência comum ou qualquer juízo ilógico, arbitrário ou contraditório, pelo que é manifesta a inexistência do apontado erro de julgamento à matéria de facto;
2- Com efeito, e como se impunha, na sentença foram analisados todos os elementos de prova de que dispunha o Tribunal, tendo sopesado os mesmos de modo conjunto, claro e objectivo, valorando-os à luz das regras da experiência comum (da lógica, da razão, da normalidade das coisas) e encontrando-se os seus raciocínios devidamente explicitados (sendo perceptíveis por qualquer cidadão comum);
3- A dispensa de pena a que se alude no artigo 186.º, n.º 3 do Código Penal, decorre da valoração dada pelo legislador, no âmbito dos crimes contra a honra (aplicáveis por isso a todos os crimes em que esteja em causa este bem jurídico) ao fenómeno da retorsão. Ou seja, “na reacção ilícita de agressão diante de uma agressão, também ela ilícita” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código penal, Lisboa, 2008, p. 386);
4- No caso em apreço entendeu o Tribunal a quo que “(…) a ilicitude e a culpa do agente são diminutas: a sua conduta surge como resposta de comportamento do próprio assistente, o qual reveste, em nosso entender maior gravidade do que o adoptado por aquela”;
5- Ficando demonstrado que as imputações injuriosas que configuram o crime pelo qual a arguida foi condenada decorreram como reacção ilícita a injúrias que também esta havia sofrido;
6- Por outro lado e no que concerne ao dano, escreveu-se na sentença recorrida que “(…) no caso em apreço, o assistente deduziu pedido cível, o qual, neste momento, não foi pago. Contudo, como melhor se explanará em seguida, tal pedido é improcedente, por não se terem provado os danos alegados. Não pode assim ser ressarcido por danos que não provou.”;
7- Por isso, bem andou, quanto a nós, o Tribunal em lançar mão do instituto da dispensa de pena a que se alude no artigo 186.º, n.º 3 do Código Penal.
Somos, pois, de parecer que o recurso interposto pelo assistente não deve merecer provimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

- a arguida:
1. No âmbito do Processo Comum Singular supra id., foi a arguida (…) condenada, pela prática de um crime de injuria p. e p. pelos art. 181º do Cód. Penal, tendo sido dispensada de pena e absolvida do pedido de indemnização civil.
2. Inconformado com o teor de tal decisão interpôs o assistente (…) o recurso a que se responde pedindo a não aplicação da dispensa de pena à arguida e a condenação no pedido de indemnização civil.
3. O assistente imputa ao Tribunal “a quo”:
a) erro notório na apreciação da prova, impugnando a decisão da matéria de facto por erro de julgamento no que respeita à discordância com a matéria de facto dada como não provada constante das alíneas e) e h);
b) violação do artigo 74º do Código Penal;
c) violação do artigo 483º do Código Civil.
4. Face às conclusões e motivações, os temas a dilucidar são: erro na apreciação da prova em consequência da matéria de facto dada como não provada e Violação do Princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º do CPP.
5. Quanto ao invocado erro na apreciação da prova cumpre referir que este erro existe quando se dá como provado (ou não provada) uma realidade que, à luz das regras da experiência, manifestamente, na apreciação do comum dos observadores, não podia ter acontecido (ou tinha de ter acontecido), nada tendo a ver com eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que o assistente entende que deveria ter sido proferida.
6. Constatando-se quer da motivação quer das conclusões que o assistente confunde erro com aquilo que ele pretende que se considere provado, pelo que a douta sentença recorrida não merece censura neste âmbito.
7. Quando à implicitamente invocada violação do princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127.º do C.P.P. e aí, se diz que «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente», obviamente sem prejuízo dos critérios gerais que atribuem à prova, valor probatório especifico ou hierárquico ou a proíbam.
8. Sucede, porém, que, no caso dos autos, resultou provado que arguida e assistente proferiram mutuamente expressões injuriosas, ademais provou-se que foi o assistente quem provocou a arguida proferindo-lhe expressões mais ofensivas e que as expressões proferidas pela arguida foram resposta àquelas proferidas pelo assistente.
9. Isto é, constata-se que o assistente contribuiu e participou de modo significativo para a ocorrência dos factos, denotando um comportamento indecoroso e revelando sempre uma postura de procura de confronto.
10. Ora, dispõe o nº 2 do artigo 186º do C. Penal, que, nos casos dos crimes contra a honra, como o cometido pela arguida, o Tribunal pode dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido, visando contemplar aqueles casos em que o próprio ofendido contribuiu de modo relevante para a produção da ofensa de que foi vítima, havendo, assim, falta de sustentáculo probatório para a determinação de um grau de responsabilidade por parte do agente que justifique a respectiva punição.
11. Tal é, precisamente o que sucede no caso dos presentes autos, em que de uma análise dos factos provados se constata ter existido envolvimento substancial por parte do assistente na criação do confronto verbal ocorrido com a arguida.
12. Pois, para além das cartas que o assistente enviou para o marido da arguida e dos telefonemas para o seu local de trabalho em que a apelidava de burlona, itens 15, 16, 17, 18 e 19 dos factos provados, também, «Através do telemóvel nº 926961654, o assistente enviou mensagens à arguida, a 20-12-2014, a 26-12-2014, a 26-12-2015 e entre 22-03-2018 e 17-09-2018 com o seguinte teor: tais como: “Já te disse meto te trotinete na cona elas estão se a cagar para ti pq me avisaram para”- “disse o caralho te foda (…) tu nem para bride Prestaser antes do fim de semana, não sou toto mais quero fazer mh vida já me foderam demais chega hoje tive mais uma prova não deixo”, “Senão puseres la segunda feira vais p.rua, vai levar no cu”, “Vai para o caralho (…) tu foste merda em tudo que conheci. Nem para broxe te queria para fideres MT menos…” …..; “não vales nada prefiria ir às acompanhantes de luxo sai mais honestas”, “Vai levar na cona para onde dizeste ir qd dizeste não ter ajudas ias eu vô aí e teus vizinhos vão saber”, “ “Estão todos ja avisados acerca de ti”, “Eu desejo todo o mal que me fizeram paguem todos ligados a ti no tribunal e no inferno lixar mais vida o caralho te foda”, Pensaram.me foderais se emganaram”, “Vai pagarem bem todos meteste nisto en tenhoesmo nojo de vocês dois da me vómitos gente como vocês fizeste roubar”, “Tenho nojo de vocês” – item 20. Dos factos provados.
13. Nestas circunstâncias, estipula a Lei que não se aplique, pura e simplesmente, uma pena, porque a mesma não se apresenta, perante as finalidades que deveria cumprir, como necessária (cfr. FIGUEIREDO DIAS, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, p. 314).
14. Relativamente aos requisitos para que este instituto possa ser aplicado, i.é, dispensa de pena previstos no artigo 74º do Código Penal, tal como refere a douta sentença que aqui nessa parte se transcreve «Embora as necessidades de prevenção geral sejam elevadas, a verdade é que a arguida não tem antecedentes, e o circunstancialismo que levou à sua conduta faz com que as necessidades de prevenção, no caso, fiquem satisfeitas com a dispensa de pena. Por outro lado, a ilicitude e a culpa do agente são diminutas: a sua conduta surge como resposta do comportamento do próprio assistente, o qual reveste, em nosso entender maior gravidade do que o adoptado por aquela. Resta apurar se o dano foi reparado. Ora no caso em apreço, o assistente deduziu pedido cível, o qual, não foi pago. Contudo, como melhor se explanará de seguida, tal pedido é improcedente por não se terem provado os danos alegados. Não pode assim ser ressarcido por danos que não provou».
Com efeito,
15. No que respeita ao pedido de indemnização civil o assistente não fez prova que a conduta da arguida lhe tenha causado angústia, ansiedade e mal-estar e que o mesmo tenha se sentido perturbado, humilhado e envergonhado, importando salientar, igualmente, o elevado grau de contribuição do próprio demandante para a ocorrência da discussão em que aquelas lhe foram dirigidas.
Pois,
16. Se atentarmos nas ofensas dirigidas pelo assistente à arguida ressaltam das mesmas uma linguagem mais agressiva, ofensiva e provocatória.
17. Nesse sentido o douto Tribunal “a quo” julgou dar como não provado que a conduta da arguida tivesse causado angústia, ansiedade e mal-estar ao assistente e que como consequência este se tivesse sentido perturbado, humilhado e envergonhado, resultando numa ausência de factos provados que consubstanciassem a existência de danos não patrimoniais provenientes da conduta da arguida.
18. Pois, a única testemunha arrolada pelo assistente apresentou versões dispares na fase de inquérito e na fase de julgamento, demonstrando um sentimento de animosidade pessoal para com a arguida, assim, como a postura do assistente em julgamento, também, retiraram a credibilidade ao seu depoimento.
19. Diz-nos as regras da experiência aos olhos do observador comum que o assistente ao ser capaz de utilizar as expressões referidas em 12. não ficou angustiado, ansioso, perturbado, humilhado e envergonhado com as respostas proferidas pela arguida, que embora censuráveis foram de uma linguagem menos grosseira e menos mal-educada que a sua.
20. Como tem vindo a referir o Tribunal Constitucional: «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção».
21. Assim, não se detecta qualquer patente irrazoabilidade na convicção probatória expressa pelo tribunal “a quo” com imediação a Senhora Juíza fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeu em detrimento de outros. Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as ilações extraídas na decisão quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugna o recorrente quanto aos pontos referidos no recurso.
22. Assim, também, nesta parte deverá improceder o recurso, mantendo-se a absolvição da arguida relativamente ao pedido de indemnização civil, não existindo a violação do artigo 483º do Código Civil, bem como, não existe a violação do artigo 74º do Código Penal relativamente aos requisitos para a dispensa de pena que se deve manter.
Pelo exposto nesta motivação, deverá ser declarado totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando aderir à argumentação oferecida na resposta apresentada pelo Ministério Público e no sentido da improcedência do recurso.
Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.
Dispensados os vistos e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in DR I-A Série de 28.12.1995.
Delimitando-o, reside em analisar:
A) - da impugnação da matéria de facto;
B) - da ausência de fundamento para a dispensa de pena.
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Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida:
“Factos provados:
Discutida a causa provaram-se os seguintes factos:
1. O assistente e a arguida tinham uma relação de amizade há cerca de nove anos;
2. A arguida enviou várias mensagens escritas do seu telemóvel, com o número (…), para o telemóvel do assistente;
3. No dia 07/08/2018, a arguida enviou mensagens ao assistente em que escreveu “Tu es ridículo e burro…”, “Es um velho ordinário”;
4. No dia 08/08/2018 a arguida enviou uma mensagem ao assistente em que escreveu “Tu è que não vales nada a ti é que ninguém te grama…”;
5. No dia 10/08/2018 a arguida enviou mensagens ao assistente em que escreveu “Tu es parvo…”, “Ah e deves estar pendurado na casa de alguém é so para isso que serves”, “Chulo es tu que andas a conta dos outros…”;
6. No dia 11/08/2018 a arguida enviou mensagens ao assistente em que escreveu “Vivemos do trabalho chular é o que tu fazes toda a vida fizeste”, “Isto à o que tu es coitado”;
7. No dia 12/08/2018 a arguida enviou mensagens ao assistente em que escreveu “Palhaco de merda”, “Tu es ma pessoa”;
8. No dia 13/08/2018 a arguida enviou uma mensagem ao assistente em que escreveu “A porcaria que vem de baixo è tao reles que não me atinge”;
9. No dia 16/08/2018 a arguida enviou mensagens ao assistente em que escreveu “Não perco o meu tempo com porcaria”, “Também tu foste a pior porcaria que apareceu na minha vida grande castigo”, “Estas maluco”;
10. No dia 24/08/2018 a arguida enviou uma mensagem ao assistente em que escreveu “O teu problema è que foste afectado da cabeça por isso è que arranjas confusão em todo o lado e as pessoas afastam se quando te conhecem melhor tu es ma pessoas”;
11. No dia 03/09/2018 a arguida enviou uma mensagem ao assistente em que escreveu “Ordinario es tu e velho…”
12. No dia 19/06/2018 a arguida enviou uma mensagem ao assistente em que escreveu “Tu è que roubas a tua mae a anos e agora como dava trabalho despachaste a para o lar pagas um valor e ficas com o resto por isso à que os teus irmãos não te suportam”;
13. A arguida pretendeu com a sua conduta e de forma intencional denegrir o bom nome, a integridade e reputação do assistente, o que efectivamente aconteceu;
14. A arguida bem sabia o significado de todas as palavras e expressões que proferiu contra o assistente;
15. A arguida agiu livre e com consciência de que a sua conduta era reprovável, bem como proibida por lei;
16. As mensagens que a arguida enviou ao assistente foram enviadas em resposta a outras que o arguido lhe enviava;
17. O assistente enviou três cartas, com a data de 27 de Maio de 2019, para o pai do filho da arguida, onde a apelida de vigarista, chantagista e que lhe “aparecia aqui de surpresa para me convencer dizia querer foder no fim de semana”;
18. Em carta também datada de 27 de Maio de 2019, dirigida ao pai do filho da arguida, com o mesmo teor e da qual apenas diverge as anotações manuscritas pelo mesmo, entregue na portaria do seu local de trabalho, no dia 16 de Agosto do corrente ano, no qual consta no endereço colocado no envelope, “(…)” e manuscrito na carta “…a ordinária me dizia mal de ti para não lhe contar o que a gente fazia nas fodas (…) e tua mulher se ofereceu para foder comigo outras vezes queria mais dinheiro”;
19. O assistente faz telefonemas para o local de trabalho da assistente apelidando-a de burlona;
20. Através do telemóvel n.º (…), o assistente enviou mensagens à assistente, a 20-12-2014, a 26-12-2015 e entre 22-03-2018 e 17-09-2018 com o seguinte teor: “Já te disse meto te trotinete na cona elas estão se a cagar para ti pq me avisaram para”, “disse o caralho te foda não disse nada disso e estares a escutar conversas e Cremi mas isso é normal e pinos tu nem para bride Prestaser antes do fim de semana, não sou toto mais quero fazer mh vida já me foderam demais chega hoje tive mais uma prova não deixo”, “Se não pusseres la segunda feira vais p.rua, vai levar no cu”, “Vai para caralho mais valia ter feito essa vida do que alguma vez te ter conheci tu foste merda em.tudo que conheci. Nem para broxe te queria para fideres MT menos não vales nada freteria ir às acompanhantes de luxo sai mais honestas”, “Vai levar na cona para onde dizeste ir qd dizeste não ter aludas ias eu vo aí e teus vizinhos vão saber”, “estão todos avisados acerca de ti”, “Eu desejo todo mal que me fizeram paguem todos ligados a ti no tribunal e no inferno lixar mais a vida o caralho te foda”, “Pensaram-me foder ais se emganaram”, “Vai pagarem bem todos meteste nisto eu tenhoesmo nojo de vocês dois da me vómitos gente como vocês fizeste roubar”, “Tenho nojo de vocês”;
21. O assistente fez uma denúncia da arguida à CPCJ do (…), por alegados maus tratos ao filho menor de idade;
22. A arguida trabalha, auferindo um salário mensal de €680,00;
23. Vive com o filho, actualmente com 14 anos, e com a irmã, em casa arrendada;
24. A arguida não tem antecedentes criminais registados.

Factos não provados:
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) A arguida pediu diversas vezes dinheiro ao assistente, que este lhe foi emprestando, numa quantia que ultrapassa os €10.000,00; b) Quantia essa que a arguida se comprometeu a devolver ao assistente;
c) No dia 12 de Maio de 2018 a arguida acusou o assistente de ter abusado sexualmente da sua mãe;
d) A arguida no dia 30 de Junho de 2018, em conversa telefónica, quando o assistente se encontrava no seu telemóvel junto à PJ de Lisboa proferiu a seguinte expressão “Tu até mataste a tua mãe”;
e) A conduta da arguida causou angústia, ansiedade e mal-estar ao assistente;
f) O demandante sempre cuidou bem da mãe, prestou-lhe toda a assistência de que a mesma necessitou;
g) As imputações que a demandada fez ao demandante de ter abusado sexualmente da sua mãe deixou o mesmo incrédulo e muito ofendido na sua honra, pois é uma pessoa séria, sempre teve grande estima e respeito pela sua mãe;
h) Em consequência da conduta da arguida o assistente sentiu-se perturbado, humilhado e envergonhado;
i) Tem passado muitas noites mal dormidas, pois acorda com frequência, revelando um sono muito agitado, acordando sobressaltado;
j) O demandante sentiu-se mal por diversas vezes, tendo necessidade de recorrer à assistência de uma psicóloga que o está a acompanhar;
k) A arguida não é devedora de qualquer quantia ao assistente.

Motivação:
(…)”
Apreciando:
A) - da impugnação da matéria de facto:
(…)
Assente deve considerar-se a matéria de facto fixada.

B) - da ausência de fundamento para a dispensa de pena:
Insurge-se o recorrente contra a dispensa de pena de que a arguida beneficiou.
Invoca, para tanto, que sofreu danos que devem ser reparados, pois, tal foi considerado como provado na douta sentença de que se recorre, considerando que o objectivo das palavras proferidas pela arguida foi o de humilhar e rebaixar o assistente enquanto pessoa e atenta a gravidade das injúrias proferidas pela arguida contra o assistente, bem como devido ao facto de ter havido danos morais sofridos pelo assistente, que não foram reparados.
A propósito, o Tribunal fundamentou:
Tal como requerido pela defesa, haverá que equacionar a aplicação do instituto da dispensa de pena (cfr. art.º 74.º do CP). Embora as necessidades de prevenção geral sejam elevadas, a verdade é que a arguida não tem antecedentes, e o circunstancialismo que levou à sua conduta faz com que as necessidades de prevenção, no caso, fiquem satisfeitas com a dispensa de pena. Por outro lado, a ilicitude e a culpa do agente são diminutas: a sua conduta surge como resposta de comportamento do próprio assistente, o qual reveste, em nosso entender maior gravidade do que o adoptado por aquela. Resta apurar se o dano foi reparado. Ora, no caso em apreço, o assistente deduziu pedido cível, o qual, neste momento, não foi pago. Contudo, como melhor se explanará em seguida, tal pedido é improcedente, por não se terem provado os danos alegados. Não pode assim ser ressarcido por danos que não provou.
Veja-se, em sentido semelhante ao aqui decidido, o acórdão proferido pelo Tribunal da relação do Porto, datado de 10-10-2012, disponível em www.dgsi.pt, no qual se pode ler: “Se a sentença considera que os danos invocados pelo demandante não são merecedores da tutela do direito, por ele ter concorrido para a produção do resultado, não faz sentido exigir, ao arguido, a reparação do dano para poder beneficiar do instituto da dispensa da pena.”.
Em face do que fica dito, entendo dispensar de pena a arguida”.
Vejamos.
A ideia político-criminal que preside à dispensa de pena, definida, conforme citação de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 314, como declaração de culpa sem declaração de pena, reside no carácter bagatelar da acção que, embora ilícita, culposa e punível, não justifica punição, à luz das finalidades previstas no art. 40.º, n.º 1, do CP.
Tem subjacente, pois, a falta de carência de punição.
E, nos termos do art. 74.º do CP, em situação em que o crime seja punível com pena de prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a 120 dias e se verifiquem, cumulativamente, os pressupostos de que (i) a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutos, (ii) o dano tiver sido reparado e (iii) se não opuserem razões de prevenção.
Em concreto, a medida abstracta do crime cometido (pena de prisão até três meses ou pena de multa até 120 dias) consente formalmente a dispensa de pena.
Por seu lado, a vertente da ilicitude e da culpa apresenta-se substancialmente mitigada pelo contexto em que a arguida actuou, tal como esta, na resposta ao recurso, sublinha ao reportar-se ao contexto imediato em que (as ofensas) foram proferidas e tendo em vista o e o contexto global ou relacional em que a arguida e o assistente se moviam, sendo que o fez em resposta a ofensas muito mais graves proferidas contra si e idóneas a provocar mais danos que os alegados pelo assistente.
Deste modo, a alegada gravidade dos factos, a que o recorrente alude, não pode ser avaliada de forma a abstrair-se do conjunto do que se provou, como que prescindindo de parte em suposto benefício de quem, afinal, como o recorrente, terá contribuído significativamente para a conduta da arguida.
E afigura-se que, atentando no que se referiu, apesar de o Tribunal não o ter mencionado, a dispensa da pena tem, também, acolhimento legal no art. 186.º, n.º 2, do CP (“O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido”).
Quanto à reparação do dano, o requisito, segundo Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 319, liga-se substancialmente, de um ponto de vista político-criminal, ao de que se não oponham exigências de prevenção, aludido na alínea c) do n.º 1 do mesmo art. 74.º, atentando em que se admite, designadamente, que as razões de prevenção especial, através da reparação, se não fazem já sentir ou, pelo menos, estão muito atenuadas.
Ora, se o Tribunal entendeu que “não se provou que dessa conduta tenham resultado danos com dignidade para merecerem a tutela do Direito”, o que não é minimamente infirmado, a suscitada reparação do dano não pode aceitar-se como requisito, se nem mesmo o objecto (o dano) dessa reparação não existe.
Tal como se fundamentou no citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.10.2012, no proc. n.º 1112/10.8PHMTS.P1, Não havendo obrigação (…) em indemnizar (…), também não existe (…) nenhuma reparação a fazer (…), não existindo por isso qualquer obstáculo à dispensa de pena.
No que tange às exigências de prevenção, já se vê que as exigências de prevenção especial são bem reduzidas, considerando, como o Tribunal explicitou, “- Não ter antecedentes criminais registados; - O contexto em que as mensagens foram enviadas e o comportamento do assistente, também ele altamente reprovável e passível de constituir crime contra a aqui arguida; - O facto da arguida ter admitido parte da factualidade, contribuindo de forma relevante para a descoberta da verdade; - A inserção social e profissional da arguida.
Já quanto às exigências de prevenção geral, assumem uma dimensão superior, mas, ainda assim, sem que inviabilizem a dispensa de pena, uma vez que, ponderados os factos, a declaração de culpa da arguida alcança o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico.
Aquilatados todos os factores, a dispensa de pena constitui adequada solução, sem merecer censura.
Uma última nota aqui fica:
Tendo-se feito constar do dispositivo da sentença (e decorrente da fundamentação ao nível da medida da pena) a fixação da pena de vinte dias de multa, o Tribunal veio, e bem como explicitado, dispensar a arguida da aplicação de qualquer pena.
Chamando à colação, com pertinência, Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 317, dir-se-á: A problemática (da dispensa de pena) desenvolve-se assim, exclusiva ou ao menos primacialmente, ao nível da consequência jurídica do crime, sem para tanto se tornar necessário lançar mão de uma imaginária operação de determinação da pena tendo zero como resultado.
Se se trata de uma declaração de culpa sem declaração de pena, e não obstante não prescinda dos legais critérios atribuíveis à pena, não se afigura, em rigor, que se deva, afinal, concretizar uma determinada pena.
Será incongruente fixar uma pena e, simultaneamente, dispensar de pena.
Isto para dizer que a sentença suscita a correcção no sentido de que:
- quer na fundamentação, quer no dispositivo, se elimina a referência expressa à “suposta” pena de “vinte dias de multa”.

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3. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e, assim,
- sem prejuízo da operada correcção, manter a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, com a taxa de justiça de 4 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
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Processado e revisto pelo relator.
9.Junho.2020
Carlos Jorge Berguete
João Gomes de Sousa