Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1266/14.4JFLSB-B.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
JUSTO RECEIO DE PERDA OU DIMINUIÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A debilidade económica dos requeridos e a dedução da acusação e do pedido de indemnização civil não são critério que, por si só, justifique o arresto preventivo previsto no artº 228º do C.P.P., sendo necessária uma atuação dos requeridos no sentido de fazer desaparecer ou ocultar os respetivos bens com vista a inviabilizar a satisfação do crédito do requerente do arresto.

2 - Não sendo alegados factos concretos suscetíveis de permitir a conclusão de que os requeridos praticaram ou se preparavam para praticar atos tendo em vista o extravio ou a delapidação do respetivo património no que concerne às identificadas quotas em sociedades de forma a subtraírem tais bens à ação do credor que é o Estado, não pode concluir-se existir um justo receio de perda da garantia patrimonial, não devendo, assim, ser decretado o solicitado arresto preventivo.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

Nos autos nº 1266/14.4JFLSB o Ministério Público requereu o arresto preventivo contra os arguidos/requeridos (...) e (…), peticionando, além do mais, o arresto:

- da quota, no valor unitário de 100,00 euros, que o arguido (...) é titular na Sociedade (…);

- da quota no valor unitário de 4.750,00 euros que a arguida (...) é titular na Sociedade (…);

- da quota no valor unitário de 75.000,00 euros que a arguida (...) é titular na Sociedade (…).

O pedido nesse particular foi indeferido por decisão proferida em 22 de setembro de 2020, com o seguinte teor (transcrição):

“ DECISÃO

1.RELATÓRIO:

MINISTÉRIO PÚBLICO intentou o presente procedimento cautelar de arresto preventivo contra os arguidos

(...),;

e

(…)

requerendo o arresto dos seguintes bens e direitos:

a) da meação titulada e pertencente ao arguido (...) do prédio urbano para habitação situado na freguesia (…);

b) da metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pelo arguido (...) no Novo Banco com o n.º (…), n.º (…), n.º (…) e n.º (…);

c) da metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pelo arguido (...) no Bankinter com os números n.º (…);

d) da quota, no valor unitário de 100,00 euros, que o arguido (...) é titular na Sociedade (…).

e) da meação titulada e pertencente à arguida (...) do prédio urbano para habitação situado na freguesia da (…)

f) de metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pela arguida (…) no Novo Banco com os números n.º (…), n.º (…), n.º (…) e n.º (…)

g) de metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pela arguida (…) na Caixa Geral de Depósitos com o número (…).

h) de metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pela arguida (…) no Bankinter com o número n.º (…)

i) da quota no valor unitário de 4.750,00 euros que a arguida (...) é titular na Sociedade (…)

j) da quota no valor unitário de 75.000,00 euros que a arguida (...) é titular na Sociedade (…).

O Tribunal é absoluta, funcional e materialmente competente e o Ministério Público dispõe de legitimidade para requerer o arresto (cfr. arts. 119.º, n.º2 e 120.º, n.º3, ambos da LOSJ, com referência ao art.º 17.º do Cód. Processo Penal).

Não existem nulidades insanáveis, nem questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.

Não foi requerida a produção de diligência de prova no presente incidente (art.º 393º, do Código de Processo Civil ex vi artº 228º, do Cód. Processo Penal).

2.FUNDAMENTAÇÃO:

A) Factos

a) Factos indiciados:

1. Nos presentes autos investigou-se a atuação dos arguidos (…) e (…), Ld.ª tendo sido deduzida acusação pela prática dos crimes de corrupção ativa, p. e p. pelo art.º 374º, n.º 1, em articulação com o art.º 386º, n.º 1, als. b) e d), ambos do Código Penal e art.º 73º da Lei n.º 35/2014 de 20.06.2014, burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.º 217º, 218º, n.º 2, al.ª a) e 202º, al.ª b), todos do Código Penal e falsificação de documento, p. e p. pelos arts.º 255º, al.ª a), 256º, n.º 1, als. b), d) e e) do Código Penal.

2. Em consequência direta e necessária da conduta descrita na acusação conseguiram os arguidos obter um valor total de compensações indevidamente entregues pelo Estado Português de 763.234,00 (setecentos e sessenta e três mil duzentos e trinta e quatro) euros, que dividiram entre si em proporção não concretamente apurada.

3. Benefício este correspondente ao valor das comparticipações indevidamente processadas pelo SNS através dos respetivos serviços descentralizados do Estado, como se fossem devidas, causando prejuízo equivalente.

4. Foi deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado/Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, pedido de indemnização civil no valor de 763.234,00 (setecentos e sessenta e três mil duzentos e trinta e quatro) euros, enxertado na acusação.

5. O arguido (...) é titular de cinco contas bancárias das quais uma com saldo de 502,68 euros e outra com 22.527,57 euros, possui um imóvel sito em Coimbra correspondente ao valor (patrimonial) de 31.626,40 euros e uma quota na “Sociedade …” no valor de 100,00 euros;

6. A arguida (…) é titular de seis contas bancárias, uma das quais com 502,68 euros e outra com 22.527,57 euros, um imóvel sito em Coimbra no valor correspondente de 1.287,90 euros, uma quota no valor de 4.750,00 euros na Sociedade (…) e outra quota de 75.000,00 euros na “Sociedade …”.

7. Entre 2015 e 2019, os arguidos (...) e (…), pelo menos, alienaram:

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 22.09.2015 por 30.000,00 euros);

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 14.12.2015 por 12.000,00 euros);

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 21.03.2016 por 15.000,00 euros);

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 14.01.2018 por 5.000,0 euros);

- o veículo automóvel, marca Audi, matrícula (…) (venda em 16.10.2019);

b) Factos não indiciados

Não existe por ora factualidade não indiciada.

c) Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base nos documentos indicados na promoção do Ministério Público, a saber, a fls. 29 a 35, 74, 75, 86 a 90, 92, 96 a 112, 125, 136 a 166, 186 a 268, 350 a 354, 454 a 462, 466 a 500, 511, 513 a 557, 611,612, 827 a 833, 1014, 1015, 1486, 1486-A, 1572 a 1581, 1592 a 1629, 2008, 2009, os inquéritos NUIPCs 1754/16.8T9TMR e 578/15.4TELSB, relatório Pericial UPFC, relatório financeiro, apensos de Busca, apenso de exame aos telemóveis, apensos de intercepções telefónicas, apensos I a VIII, anexo I Proc. n.º 578/15.4TELSB, Apenso Correio Eletrónico, nas pastas Documentos 1 a 50 do Apenso de Busca II e no Apenso de Investigação Patrimonial e Financeira do GRA respectivos anexos e suportes, na parte em que interessam para a decisão a proferir.

Foram considerados ainda os autos de inquirição referenciados no despacho de acusação.

Em particular, a matéria de facto indiciada constante dos » nºs 1 a 4 decorre do teor do despacho de acusação/pedido de indeminização civil formulados pelo Ministério Público, atento nos elementos de prova indicados; » n.ºs 5 e 6 advém das certidões permanentes referentes ao prédio inscrito na CRP de Coimbra com o n.º 824, e às sociedades (…) e à informação remetida pelo Banco de Portugal aos presentes autos, bem assim ao Anexo E – Informações Bancárias; e » n.º 7, referente à alineação de imóveis/móveis registados em nome dos requeridos está documentalmente comprovada a fls. 54 a 62 verso, 420/422 e 64 e 417 do apenso de Investigação Patrimonial e Financeira do GRA respectivos anexos e suportes.

O tribunal abstém-se de produzir qualquer juízo sobre matéria de direito e conclusiva e factos não relevantes para a decisão a proferir.

B) DIREITO

Em sede de fundamentação de direito cumpre referir que:

O Código do Processo Penal prevê duas medidas de garantia patrimonial, ou seja, a caução económica (art. 227º) e o arresto preventivo (art. 228º), tendo ambas como finalidade processual garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou do pagamento de qualquer dívida, indemnização ou obrigação civil derivadas do crime.

Dispõe o artigo 228.º do Código de Processo Penal, “Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial”.

O arresto preventivo gizado no supracitado normativo constitui uma medida de garantia patrimonial atentatória da liberdade das pessoas em função das exigências cautelares que no caso de fazem sentir. O arresto é um meio de conservação da garantia patrimonial, que consiste na apreensão judicial de bens fundada no receio do credor de perder a garantia patrimonial do seu crédito. Enquanto providência cautelar, que é, visa combater o “periculum in mora”, isto é, o prejuízo decorrente da demora do processo judicial normal. Daí que, preventiva e temporariamente, acautele ao credor a garantia do seu crédito. O decretamento do arresto preventivo depende da probabilidade da existência do crédito e da existência de justo receio de que o devedor inutiliza, oculte, se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor.

Nos termos do disposto no art.º 391º e 392º do C.P.C. são pressupostos do procedimento cautelar de arresto (i) a existência de um direito de crédito; e (ii) o justo receio da perda da garantia patrimonial. Este segundo requisito está previsto no artº 391º nº 1 do CPC e no artº 619º do C. Civil e pressupõe a alegação e prova de um circunstancialismo que faça antever o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

Dispensa-se o requerente do arresto preventivo, ao abrigo do artigo 228.º, n.º 1, da prova do periculum in mora no caso de ter sido previamente fixada caução económica que não foi prestada.

Atenta a matéria indiciariamente provada afigura-se-nos claro que existirá o crédito do Ministério Público emergente do pedido de indeminização civil.

Quanto ao justo receio de perda de garantia patrimonial, está indiciado que o requerido terá vendido imóveis e automóveis que compunham o património durante o período da investigação até 2019.

Como se tem defendido, quer no plano jurisprudencial, quer no plano doutrinal, para a comprovação do justo receio da perda da garantia patrimonial não basta o receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, já que para ser justificado há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação [cfr., a propósito e entre muitos outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-1998, Colectânea de Jurisprudência, Tomo 1, p. 116].

No mesmo sentido discorre o Conselheiro ANTÓNIO GERALDES, Temas da Reforma de Processo Civil, vol. IV, 2.ª edição, Almedina, pp. 186-187, ao afirmar que «o justo receio da perda de garantia patrimonial (…) pressupõe a alegação e a prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo factual que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.»

De facto, constituindo a garantia patrimonial do crédito todo o património do devedor, existe justo receio quando o requerido se apressa a transferir bens do seus património e existem fortes indícios, pelo comportamento que está assumir, de que o requerido possa o dissipar – ou a permitir essa dissipação – dos bens ou valores que ainda residem no seu património ou que aí possam ingressar, obstando dessa forma a que o requerente, mesmo julgada que seja procedente a sua pretensão, consiga ver efectivado o crédito que lhe venha a ser reconhecido.

Ora, em face da matéria de facto considerada indiciada, afigura-se-nos existir o fundado risco de dissipação de activos, porque, por um lado, venderam bens imóveis a terceiros e, por outro, alinearam o automóvel registado em nome da requerida. Mantendo-se a conduta, a venda do único activo imobiliário privará, substancialmente, o ressarcimento do seu crédito. As contas bancárias encontram-se abrangida pelo risco de dissipação patrimonial, considerando, em igual modo, que a requerida dispôs de activos móveis (entenda-se o veículo de matrícula 46-IM-95), sem se encontrar o respectivo correspondente económico ou o sucedâneo. É o entendimento deste tribunal que, com a ligeira facilidade, os montantes pecuniários existentes nas contas bancárias, podem ser livremente transferidos e/ou levantados de forma a frustrar a tutela ressarcitória.

Ao invés, nada na factualidade indiciada permite inculcar minimamente que existem actos de dissipação dos direitos societários detidos pelos requeridos. Portanto, no que respeita a estes bens a medida de garantia patrimonial não se revela necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer (art.º 193.º, n.º1, do Cód. Processo Penal).

No respeitante ao arresto de bens comuns é inteiramente aplicável jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 5 de Dezembro de 2017, relatado por Carlos Berguete Coelho, no proc. n.º 411/16.0T9EVR-A.E1, admitindo a incidência do arresto preventivo na meação do património imobiliário comum, com a qual concordamos na íntegra.

Procede parcialmente a providência.

3. DISPOSITIVO:

Termos em que e em conformidade com o exposto decido:

- julgar parcialmente procedente por provada a providência cautelar de arresto preventivo e ordenar o arresto nos seguintes bens:

a) da meação titulada e pertencente ao arguido (...) do prédio urbano para habitação situado na freguesia da (…);

b) da metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pelo arguido (...) no Novo Banco com o n.º (…);

c) da metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pelo arguido (...) no Bankinter com os números n.º (…);

d) da meação titulada e pertencente à arguida (...) do prédio urbano para habitação situado na freguesia da (…)

e) de metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pela arguida (…) no Novo Banco com os números n.º (…);

f) de metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pela arguida (…) na Caixa Geral de Depósitos com o número (…);

g) de metade dos saldos das seguintes contas bancárias tituladas pela arguida (…) no Bankinter com o número n.º (…); e

- indeferir o demais requerido.


*

Sem custas, por delas estar isento o requerente Ministério Público – art. 539º, nº 1, do Cód. de Proc. Civil, aplicável ex vi art. 228º, nº 1, do Cód. de Proc. Penal; art. 4º, nº 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.

Valor: €763.234,00.


*

(…)”.

*

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso “do despacho exarado em 22 de setembro de 2020 (…) na parte em que decidiu não arrestar preventivamente as participações sociais que os arguidos (...) e (...) são titulares nas Sociedades (…), extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. O arresto preventivo constitui uma medida de garantia patrimonial que visa garantir a futura eficácia do confisco de vantagens do crime incidindo sobre património lícito dos visados, tendo como requisitos genéricos os previstos no art.193º do Código de Processo Penal e os específicos fumus commissi delicti (indícios da prática de crime e das vantagens decorrentes para os agentes) e periculum in mora (perigo de que as garantias de pagamento do valor correspondente às vantagens do crime faltem ou diminuam em função do decurso dos futuros trâmites processuais).

2. Entendeu o Mº Juiz não determinar o arresto preventivo de participações societárias dos arguidos por não se verificar o justo receio da sua perda, decisão que se considera desajustada por má interpretação e aplicação do disposto nos arts.228º, nº1 do Código de Processo Penal e 391º do Código de Processo Civil, uma vez que o processo já contém elementos que fazem fundadamente antever o receio de dissipação também destes ativos e consequente perda de garantias do crédito do Estado.

3. Para que exista justo receio da perda de garantias patrimoniais basta a previsão de que o devedor não se encontrará em posição de cumprir as suas obrigações no momento de vencimento do crédito ou em momento subsequente, seja porque o seu património é insuficiente, seja pela acentuada desproporção entre o montante do crédito que se visa acautelar e o valor do seu património ou porque este é de fácil ocultação/dissipação, segundo ponderação à luz do critério de um homem normal colocado na mesma posição.

4. No caso, entendeu o Mº Juiz aplicar um critério mais apertado, tratando de exigir sinais de início efetivo da dissipação das participações societárias que se pretendiam arrestar, por contraponto ao saldo das contas bancárias, critério que indo contra o sentido da providência de arresto preventivo, deveria ser substituído por outro menos falacioso que aferisse o risco global de inexistência de património dos visados para ressarcimento do crédito futuro e que, confirmando-se, determinasse o congelamento ou o aprisionamento de bens/direitos patrimoniais necessários, sem tratar de analisar meticulosamente o risco concreto e os contornos pormenorizados de dissipação de cada classe de bens existente na titularidade dos visados, desfigurando as razões e sentido desta providência.

5. A decisão em recurso fez errada aplicação da lei, por ser estanque e olvidar que as quotas em Sociedades Comerciais são igualmente de fácil alienação ou oneração (mesmo em comparação com imóveis / direitos a meação de imóveis) sendo que ao tornar desnecessária a sua conservação por arresto não refletiu corretamente sobre a situação global dos arguidos/requeridos, bem como sobre a insuficiência do seu património, a sua realidade económico-financeira, a elevada diferença entre o valor do património lícito conhecido e o valor do pedido de indemnização civil e a reconhecida tendência dos mesmos nos anos recentes para alienarem o seu património, sinal de um previsível esgotamento dos ativos e da futura dificuldade em cobrar o crédito.

6. Ao invés do decidido, os autos contém elementos que permitem fundamentar a suspeita que os arguidos requeridos se preparam para praticar atos de oneração ou alienação das participações societárias que conservam, sendo os seus últimos ativos, preenchendo o requisito do justificado receio da perda de garantia patrimonial do pedido de indemnização civil deduzido, o que é aferível pelas seguintes razões:

- conhecimento e consciencialização das possíveis consequências decorrentes da objetivação dos factos vertidos na acusação e do valor do pedido de indemnização civil formulado;

- natureza e transmissibilidade do património consubstanciado nos direitos societários;

- comprovada inexistência de outros ativos patrimoniais conhecidos na propriedade e posse dos arguidos/requeridos;

- fraca situação económico-financeira dos requeridos;

- acentuada desproporção entre o montante do crédito que se visa acautelar e o valor do património dos arguidos/requeridos (enquanto futuros devedores);

- modo de atuação recente dos arguidos/requeridos.

7. A consciência das consequências criminais e cíveis que poderão advir para os arguidos/requeridos potenciará um impulso de ocultação e diluição do restante património que ainda resta na sua esfera de propriedade, em ordem a salvaguardá-lo, máxime os direitos societários, não se compreendendo quais as reservas, os obstáculos ou as dificuldades na eventual transmissão de quotas societárias e que levaram o Mº Juiz de Instrução a concluir pela fraca possibilidade da sua alienação até ao desfecho do processo.

8. Na decisão em recurso não foi adequadamente sopesada a fraca solvabilidade e a inexistência remanescente de outros ativos patrimoniais conhecidos na esfera dos arguidos/requeridos, nem a global situação económico-financeira dos mesmos, concretamente atendendo aos seus rendimentos declarados desde 2011, à titularidade de um único imóvel já hipotecado na sua propriedade, à ausência de quaisquer registos automóveis, tudo manifestamente insuficiente para garantir o ressarcimento de 763.234,00, aliado à circunstância de se terem desfeito do seu património nos últimos anos, esvaziando-o.

9. Tal como também não o foi a situação económico-financeira conhecida dos restantes arguidos demandados no mesmo pedido de indemnização civil, em responsabilidade solidária, sendo que um se encontra em situação de insolvência, outro acompanha a atividade de gestão de uma Farmácia possuindo uma quota de 250,00 euros em Sociedade Comercial e a sociedade/arguida (…, Ldª) tem um capital social de 75.000,00 euros, o que deixa antever uma futura situação de grandes dificuldades na obtenção de meios financeiros e patrimoniais que respondam pelo ressarcimento daquele crédito e justifica que se lance e de imediato mão de todos e quaisquer ativos lícitos que se encontrem na titularidade dos requeridos de forma a salvaguardar a sua exequibilidade.

10. Na sua decisão, o Mº Juiz não ponderou na medida necessária nem atribuiu relevância concreta ao facto de o valor do crédito a acautelar com o arresto de bens, correspondente ao valor do pedido de indemnização civil formulado (763.234,00 euros), ser em muito superior ao valor do património encontrado na posse dos arguidos demandados em geral e de (…) em especial, sendo que mesmo preservando todos os ativos financeiros e patrimoniais existentes na esfera daqueles dois arguidos/requeridos ainda assim o credor Estado Português ficaria sem garantia de boa solvabilidade no valor de 597.100,94 euros.

11. É da conjugação destes fatores que se retira a conclusão do risco sério destes arguidos/requeridos poderem vir no curto prazo a desfazer-se das quotas societárias porquanto demonstram, na sua conjugação, e de acordo com as regras da experiência comum que é de todo aconselhável e se suscita tomar uma decisão cautelar imediata que leve ao arresto também doestes ativos de forma a reforçar a futura eficácia da condenação no pagamento do pedido de indemnização civil formulado no processo, assegurando-se a subsequente efetiva execução do que for decidido no final.

12. Mais entendeu o Mº Juiz de Instrução que os princípios da necessidade e da adequação, aplicáveis também e no caso às medidas de garantia patrimonial (art.193º, nº1 do Código de Processo Penal) não se verificavam, porquanto nada asseverava a efetividade ou a eventualidade de atos de dissipação dos direitos societários detidos pelos mesmos arguidos/requeridos.

13. O princípio da adequação implica ponderar a aplicação de medida de garantia patrimonial ajustada às exigências cautelares do caso e situação individual de cada arguido e o princípio da necessidade consiste em assegurar que a finalidade e o alcance da concreta medida constitui o meio menos oneroso para os direitos do arguido, sendo que a situação em apreço não se vê por qual meio, que não o arresto preventivo destes bens/direitos, poderia o Ministério Público salvaguardar e garantir a exequibilidade do pedido de indemnização civil deduzido com a acusação, não se descortinando medida alternativa menos onerosa ou mais ajustada, considerando as circunstâncias elencadas.

14. E o mesmo se terá de concluir quanto à proporcionalidade entre a requerida medida de arresto e o que se visa acautelar com a mesma, atenta a diferença entre os ativos conhecidos e o valo do crédito, situação que, tal como as anteriores, não foi, em nosso entender, adequadamente consideradas pelo Mº Juiz de Instrução na sua decisão, na qual fez coincidir estes princípios com os requisitos da medida, utilizando os mesmos argumentos utilizados para fundamentar a decisão de indeferimento.

15. Razões porque ao não decretar o arresto preventivo das quotas nas Sociedades Comerciais que os arguidos (...) e (…) são titulares, o Mº Juiz de Instrução violou e fez desajustada interpretação e aplicação das normas constantes dos arts. 193º, 227º nº1, al.a9, 228º nº1 do Código de Processo Penal em articulação com os arts.391º, nº1 do Código de Processo Civil.

Termos em que deve tal despacho ser revogado e substituído por outro que determine a aplicação da medida de garantia patrimonial de arresto preventivo das quotas nas Sociedades (…), nos exatos termos requeridos.

*

Por despacho de 8 de outubro de 2020 o recurso foi admitido, fixado regime de subida e efeito e ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação.

*

O Exmº Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

*

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

*

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir reside em saber se o despacho recorrido deve “ser revogado e substituído por outro que determine a aplicação da medida de garantia patrimonial de arresto preventivo das quotas nas Sociedades (…), nos exatos termos requeridos.”

*

Apreciando

Dos autos resultam indiciados os seguintes elementos, relevantes à decisão:

1. Nos presentes autos investigou-se a atuação dos arguidos (…) e (…, Ldaª” tendo sido deduzida acusação pela prática dos crimes de corrupção ativa, p. e p. pelo art.º 374º, n.º 1, em articulação com o art.º 386º, n.º 1, als. b) e d), ambos do Código Penal e art.º 73º da Lei n.º 35/2014 de 20.06.2014, burla qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.º 217º, 218º, n.º 2, al.ª a) e 202º, al.ª b), todos do Código Penal e falsificação de documento, p. e p. pelos arts.º 255º, al.ª a), 256º, n.º 1, als. b), d) e e) do Código Penal.

2. Em consequência direta e necessária da conduta descrita na acusação conseguiram os arguidos obter um valor total de compensações indevidamente entregues pelo Estado Português de 763.234,00 (setecentos e sessenta e três mil duzentos e trinta e quatro) euros, que dividiram entre si em proporção não concretamente apurada.

3. Benefício este correspondente ao valor das comparticipações indevidamente processadas pelo SNS através dos respetivos serviços descentralizados do Estado, como se fossem devidas, causando prejuízo equivalente.

4. Foi deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado/Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, pedido de indemnização civil no valor de 763.234,00 (setecentos e sessenta e três mil duzentos e trinta e quatro) euros, enxertado na acusação.

5. O arguido (...) é titular de cinco contas bancárias das quais uma com saldo de 502,68 euros e outra com 22.527,57 euros, possui um imóvel sito em Coimbra correspondente ao valor (patrimonial) de 31.626,40 euros e uma quota na “Sociedade José Cortesão, Unipessoal, Ld.ª” no valor de 100,00 euros;

6. A arguida (…) é titular de seis contas bancárias, uma das quais com 502,68 euros e outra com 22.527,57 euros, um imóvel sito em Coimbra no valor correspondente de 1.287,90 euros, uma quota no valor de 4.750,00 euros na Sociedade (…), Ld.ª” e outra quota de 75.000,00 euros na “Sociedade …l, Ld.ª”.

7. Entre 2015 e 2019, os arguidos (...) e (…), pelo menos, alienaram:

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 22.09.2015 por 30.000,00 euros);

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 14.12.2015 por 12.000,00 euros);

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 21.03.2016 por 15.000,00 euros);

- o prédio rústico inscrito na 1ª CRP de Coimbra com o n.º (…) (venda em 14.01.2018 por 5.000,0 euros);

- o veículo automóvel, marca Audi, matrícula (…) (venda em 16.10.2019).

Vejamos:

Dispõe o art.228ª do C.P.P., cuja epígrafe é “arresto preventivo”, em que radica o pedido formulado pelo Ministério Público:

«1 - A requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.

2 - O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante.

3 - A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo.

4 - Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado.

5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta».

A norma do processo civil, referida, é o art. 391º (art.406º CPC 1961), que enumera os fundamentos do arresto e que prescreve:

“1 - O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.

2 - O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.”

O art.º 228.º, n.º 1 do Código de Processo Penal diz-nos, assim, que «a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil.» Os fundamentos do arresto são os do art.º 391.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, de acordo com o qual «o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.»

O arresto é um meio de conservação da garantia patrimonial, que consiste na apreensão judicial de bens fundada no receio do credor de perder a garantia patrimonial do seu crédito.

Enquanto providência cautelar que é visa combater o “periculum in mora”, isto é, o prejuízo decorrente da demora do processo judicial normal. Daí que, preventiva e temporariamente, acautele ao credor a garantia do seu crédito.

Então, o decretamento do arresto preventivo depende da probabilidade da existência do crédito e da existência de justo receio de que o devedor inutilize, oculte, se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor.

Não estando, no caso, em causa a existência da aparência do crédito, a dúvida reside na existência, ou não, do fundado receio de perda da garantia patrimonial.

E o ónus da prova dos requisitos do arresto cabe, naturalmente, ao arrestante, uma vez que são factos constitutivos do direito que pretende fazer valer contra a parte contrária, só assim não sendo no caso de ter sido previamente fixada e não prestada caução económica.

No entanto, nem por isso deixa de ser necessário alegar e demonstrar factos dos quais resulte a necessidade da providência.

Por isso a lei, no art.392º do CPC (art.407º CPC 1961), impõe, no seu nº 1, que o requerente do arresto deduza os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado.

Impõe-se, então, saber em que consiste, o “justificado receio” que legitima o arresto preventivo, sendo certo que a formulação legal é ampla a genérica denotando, por isso, a intenção de abranger situações diversas em que se justifica a apreensão dos bens.

Assim, “: (….) II.Para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial a que aludem os art. 619º nº 1 do C. Cv. e 406º nº 1 do C.P.C. é necessário que se alegue e prove que o devedor já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração, relativamente ao seu património que, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita de que se prepara para subtrair os seus bens à acção dos credores.

III.Embora não seja necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efectiva mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda virá a ocorrer, não basta qualquer receio, sendo necessário, no dizer da própria lei, que o receio seja justificado. Significa isto que o requerente tem de alegar e provar factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjectivo, fundado em simples conjecturas, antes devendo basear-se «...em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva.»( Cfr. Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., 2ª ed., pág. 187) (cfr. Ac. TRL de 4-11-2009, in dgsi.pt)..

«O justificado receio de perda da garantia patrimonial – para efeitos de decretar o arresto de bens do devedor – tem que ser aferido com base em critérios objectivos e, portanto, terá que assentar em factos concretos que revelem ou indiciem uma real situação de perigo de insatisfação do crédito decorrente da inexistência de bens que por ele possam responder. A mera circunstância de o devedor não ter cumprido a obrigação a que está obrigado relativamente ao requerente do arresto e de ter a intenção de vender um ou mais imóveis (sendo uma sociedade imobiliária em cuja actividade esses actos se inserem) não é bastante para justificar o receio de perda da garantia patrimonial do crédito …» (cfr, Ac.TRG de 3-7-2012, in dgsi.pt).

«O critério da avaliação deste requisito [do receio justificado] não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor, isto é, em simples conjecturas, devendo antes basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselham uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva. O receio da perda da garantia patrimonial para ser considerado “justo” há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação … Tendo a requerida vários credores, um volume de negócios cada vez mais reduzido e não lhe sendo conhecidos outros bens para além da conta bancária, fica suficientemente indiciado o perigo de perda da garantia patrimonial»;

«À verificação do requisito do justo receio não basta qualquer receio, sendo necessário, no dizer da própria lei, que seja justificado, pelo que o requerente tem de alegar e provar factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjectivo, fundado em simples conjecturas. Uma simples chamada telefónica de alguém que não se identifica, a denunciar a intenção do requerido de transferir parte do dinheiro que recebeu como indemnização para outrem, não pode, isoladamente, suportar a existência de uma ameaça séria e justificada ao direito de crédito do requerente»( cfr. Acs.TRL de 15-11-2011 - de 25-2-2010, in dgsi.pt).

No caso vertente, quanto à existência do direito de crédito, atentos os factos alegados pelo Ministério Público, concretamente por referência para a acusação, está demonstrada a probabilidade da existência de um crédito por parte do Estado em relação aos arguidos, traduzido nas vantagens obtidas pelos mesmos com a alegada prática dos crimes pelos quais estão acusados.

Assim, está igualmente indiciado que o Estado é lesado, no montante alegado pelo Ministério Público, na medida que viu o seu património diminuído em face dos factos indiciariamente praticados pelos arguidos.

Para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial é necessário que se aleguem e provem factos concretos, objetivos, que demonstrem que o alegado receio é objetivamente fundado. Como defende Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª ed., pág. 465, nota 1, “não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjetivo. É preciso que haja razões objetivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular”.

Como decidiu o Ac. da R.Coimbra de 30/4/2002, proc. nº 1448/02, in www.dgsi.pt, “O justo receio de perda da garantia patrimonial do credor tem que assentar em factos reais, em índices apreensíveis pelo comum das pessoas, que mostrem que o alegado receio é objetivamente fundado. Para que seja decretado o arresto é indispensável que o devedor tenha praticado atos ou assumido atitudes que inculquem a suspeita de que ele pretende subtrair os seus bens à ação dos credores.”. Ou ainda como se lê no Ac.R.Lisboa de 4/11/2009, processo n.º3944/08.8TDLSB-B.L1-5, “(…) para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial a que aludem os art. 619º nº 1 do C.Cv. e 406º nº 1 do C.P.C. (actual art.391.º do C.P.Civil) é necessário que se alegue e prove que o devedor já praticou ou se prepara para praticar atos de alienação ou oneração, relativamente ao seu património que, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita de que se prepara para subtrair os seus bens à ação dos credores.

Com efeito, embora não seja necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efetiva mas apenas que haja um receio justificado de tal perda virá a ocorrer, não basta qualquer receio, sendo necessário, no dizer da própria lei, que o receio seja justificado. Significa isto que o requerente tem de alegar e provar factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjetivo, fundado em simples conjeturas, antes devendo basear-se “...em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como fator potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva.”( Cfr. Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., 2ª ed., pág. 187). No mesmo sentido, v., entre outros, Ac.R.Lisboa de 8/1/2019, processo n.º 12428/18.5T8LSB.L1-7, Ac.R.Lisboa de 2/4/2019, processo n.º959/11.2IDBGC-B.L1-5, Ac.R.Coimbra de 17/12/2012, processo n.º244/10.7JAAVR-B.C1, Ac.R.Évora de 11/4/2019, processo n.º 562/18.6T9EVR-B.E1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Revertendo ao caso em apreço, não resulta que o requerente do arresto tenha alegado e provado o justificado receio de perder a garantia patrimonial do crédito no concernente ao particular objeto de recurso, designadamente, que os arguidos praticaram ou preparavam-se para praticar atos de alienação ou oneração relativamente à parte do património cujo requerimento de arresto foi objeto de indeferimento, tendo em vista subtrair tais bens à ação do credor.

Alega o requerente, em suma, que o património dos requeridos apresenta debilidades para fazer face às respetivas obrigações, e conclui dizendo que tal circunstância admite o juízo de que, conhecedores da acusação deduzida e do respetivo pedido de indemnização civil a favor do Estado, os referenciados arguidos se desfaçam do património de que ainda são possuidores e o convertam em valor não detetável e insuscetível de vir a servir o propósito que subjaz ao pedido de indemnização civil formulado nos autos.

E, em síntese, considera que tais factos, associados à possibilidade de submissão a um julgamento resultante da dedução de acusação, permite a conclusão da possibilidade de que o património detido por cada um dos arguidos venha a ser dissipado por forma a que não venham, a final, a ser chamados para garantir o pagamento do pedido de indemnização civil deduzido nos autos.

Porém, ao contrário do que alega o requerente do arresto, a debilidade económica dos requeridos e a dedução da acusação e do pedido de indemnização civil não são critério que, por si só, justifique o arresto, sendo necessária uma atuação dos requeridos no sentido de fazer desaparecer ou ocultar os respetivos bens com vista a inviabilizar a satisfação do crédito do requerente do arresto.

Com efeito, remetendo para os fundamentos constantes do requerimento de arresto e analisando o mesmo, resulta a existência de um prejuízo patrimonial ao erário público. Porém, no que se reporta ao fundado receio de perda de garantia patrimonial, o Ministério Público, requerente, faz afirmações genéricas, conclusivas, não sendo alegados factos concretos suscetíveis de permitir a conclusão de que os requeridos praticaram ou se preparavam para praticar atos tendo em vista o extravio ou a delapidação do respetivo património no que concerne às identificadas quotas em sociedades de forma a subtraírem tais bens à ação do credor que é o Estado; não alega em relação a cada um dos requeridos as concretas atuações reveladoras de que praticaram ou estavam a preparar-se para praticar atos de alienação ou oneração daquele património de forma a concluir-se existir um justo receio de perda da garantia patrimonial.

Na verdade, estando o processo principal instaurado desde 2014, não há qualquer informação de publicitação daqueles bens com vista à sua venda, cedência ou oneração, ou seja, não há factos dos quais se possa extrair que os arguidos estão a organizar atos de venda, cedência ou ocultação daquele património, nada permite concluir que os requeridos, conhecedores da acusação e do pedido de indemnização civil deduzido, se desfaçam daquele património, pois o alegado trata-se de mera conjetura, de um juízo subjetivo, sem estar ancorado em factos concretos, pelo que o deferimento do arresto daqueles bens não obedeceria ao princípio da adequação e proporcionalidade.

E, como se sabe, não basta o receio subjetivo de ver insatisfeita a pretensão a que tem ou se julga ter direito; o que é decisivo é que o credor fique ameaçado de lesão por ato do devedor e seja razoável e compreensível o seu receio de ver frustrado o pagamento do seu crédito, ou seja, o receio, para ser considerado justificado (por exigência da lei), há-de assentar em factos concretos, que o revelem, à luz de uma prudente apreciação (Cfr. Cons. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas, Vol. I, p. 268).

É que, como já se disse, não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjetivo. É preciso que haja razões objetivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão do requerente, que os requeridos vão subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular, devendo a existência do “justo receio” resultar da interpretação de factos ou circunstâncias objetivas e concretas, não relevando para tanto as suspeitas tidas pelo credor, ou uma situação de desconfiança fundada tão só numa análise subjetiva da vivência do devedor.

Assim, correndo o ónus da prova dos requisitos do arresto por conta do requerente dele, naturalmente que a providência não podia ter sido decretada no particular sob recurso. Daí que nada haja a censurar à decisão recorrida na parte objeto do recurso, pois que tendo presente a lei e a interpretação que dela faz a doutrina e a jurisprudência, entendemos ser de manter a decisão recorrida, já que para além de não terem sido alegados factos dos quais resulte o perigo de perda da garantia quanto aos bens em causa - quotas em sociedades -, também não se mostram indiciados factos que indiciem esse perigo.

Por todo o exposto, não se encontra preenchido o requisito de justo receio de perda da garantia patrimonial para o decretamento do arresto preventivo das identificadas quotas em sociedades, pelo que, no que respeita a estes bens, e tal como referido na decisão recorrida, “(…) a medida de garantia patrimonial não se revela necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer (art.º 193.º, n.º1, do Cód. Processo Penal)”.

*

Decisão.

Face a tudo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

- Sem tributação.

*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 10 de novembro de 2020

-----------------------------------

Laura Goulart Maurício

----------------------------------

Maria Filomena Soares