Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
252/12.3TMSTB-C.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INÉRCIA DAS PARTES
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não obstante poder afirmar-se que, em tese, ambas as partes têm interesse na resolução do seu litígio, o certo é que, na prática, quem acciona o meio judicial de composição desse litígio tem um interesse acrescido na sua resolução.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 252/12.3TMSTB-C.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Em processo de inventário, actualmente a correr termos em Secção de Família e Menores da Instância Central de Setúbal da Comarca de Setúbal, instaurado em consequência de dissolução do casamento havido entre (…), que aqui exerce funções de cabeça-de-casal, e (…), veio o tribunal de 1ª instância a proferir decisão, datada de 1/6/2016, a julgar deserta a instância, ao abrigo do artº 281º, nº 1, do NCPC (que prevê essa deserção em caso de falta de impulso processual, devido a negligência das partes, por mais de 6 meses), com a consequente extinção da mesma.

Essa decisão foi proferida na fase de relacionamento de bens e antecedida da dedução pela requerida de reclamação contra a relação de bens apresentada pelo requerente (a fls. 17-20), em que declarou protestar juntar documentos comprovativos respeitantes a duas alegadas dívidas comuns não relacionadas pelo cabeça-de-casal (cfr. fls. 127-130), e na sequência da qual foi o requerente notificado para relacionar os bens alegadamente em falta ou dizer o que se lhe oferecer sobre a matéria da reclamação (cfr. despacho de fls. 139), após cuja pronúncia (cfr. fls. 141-143) formulou o tribunal de 1ª instância despacho em que determinou a notificação da reclamante requerida para «juntar aos autos os documentos que protestou juntar» (a fls. 152, datado de 9/4/2015). Não tendo havido tal junção, determinou o tribunal de 1ª instância, em novo despacho (a fls. 153, datado de 11/6/2015), que os autos aguardassem a junção dos documentos em falta, «sem prejuízo do disposto no artº 281º CPC». A este despacho seguiu-se então a decisão declarativa da extinção da instância por deserção, com a seguinte redacção:

«Nos termos previstos nos arts. 281º, n° 1, e 277º, al. c), do Cód. Proc. Civil, declara-se extinta por deserção a presente instância em que [é] requerente e cabeça de casal (…) e requerida (…).
Custas a cargo do requerente e requerida na proporção de metade.
Registe e notifique.»

É desta decisão que vem interposto pelo cabeça-de-casal recurso de apelação, cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«I. O presente recurso vem interposto da Douta Sentença de fls. que declara a extinção da instância, por deserção, nos termos dos arts. 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c), do NCPC, condenando ainda em custas requerente e requerida na proporção de metade.
II. O regime do artigo 281.º, n.º 1, do NCPC, não pode ser aplicado, sem que as partes sejam expressamente notificadas para explicar por que razão não impulsionaram o processo, não bastando para isso uma mera advertência nos termos do disposto no artigo 281º do NCPC.
III. Não houve negligência das partes, nem o processo necessitava de aguardar impulso processual das mesmas para prosseguir.
IV. Na pior das hipóteses, a parte onerada com o impulso processual sempre seria a requerida – por ter sido esta quem, na Reclamação à Relação de Bens apresentada, protestou juntar documentos não o tendo feito – e não o ora recorrente, que foi quem requereu a partilha, na qual mantém interesse.
V. A Meritíssima Juiz do tribunal a quo podia, em alternativa, ter insistido na notificação da requerida para que esta procedesse à junção dos documentos que lhe havia sido ordenada, eventualmente sob cominação; decidir da reclamação apresentada pela requerida, resolvendo as questões suscitadas susceptíveis de influir na partilha, seguindo-se eventualmente a marcação da conferência de interessados (cf. artºs 1336º, 1349º, 1350º e 1352º do C.P.C, na redacção vigente à data da propositura da acção); ou, notificar ambas as partes para se pronunciarem sobre a eventual extinção da instância por deserção, face à não junção dos documentos por parte da requerida.
VI. Ao optar pela extinção da instância sem facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem, e sem emitir juízo sobre a sua inércia ou diligência, a sentença sob recurso contraria o princípio da economia processual, da equidade e a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, tal como prevista no artigo 2º do CPC, violando ainda, por erro de interpretação, o disposto na al. c) do artº 277º do CPC e o artº 1404º do mesmo diploma, este último artigo com a redacção antiga, vigente à data da propositura da acção.»

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do requerente apelante resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto do despacho recorrido, do ponto de vista da verificação da existência de fundamento para a prolação de tal despacho, em termos de considerar verificada nos autos uma situação de falta de impulso processual das partes determinante de deserção e consequente extinção da instância – sendo que, em caso negativo, se imporá a substituição do despacho ora impugnado por outro, que ordene o prosseguimento dos presentes autos e dê cumprimento aos trâmites processuais que forem legalmente devidos.

Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:

Estando assentes os elementos descritos no relatório, cabe, com base neles, aferir do acerto da prolação do despacho sob recurso, determinativo da extinção da instância por deserção, com fundamento em inércia processual das partes.

Como se disse, a decisão declarativa da extinção da instância por deserção, ora recorrida, foi precedida de uma notificação à requerida para «juntar aos autos os documentos que protestou juntar» (por determinação do despacho de fls. 152). E foi na sequência de uma temporização do processo para a junção desses documentos em falta, concedida pelo despacho de fls. 153, que entendeu o tribunal a quo que estava verificada uma situação de inércia processual das partes, fundante da deserção da instância.

Desde logo, é de estranhar que, estando a aguardar-se a junção de documentos que apenas a uma das partes caberia juntar, seja também afectada com a declaração de deserção a contraparte, a qual, naquele momento processual, não tinha qualquer ónus de impulso subsequente. E mais surpreende a solução sob impugnação quando a parte que tinha esse concreto ónus, naquele específico momento processual, era a parte requerida no processo – ou seja, a parte que não tinha tomado a iniciativa da instauração do processo –, assim penalizando quem, pela sua posição processual, revelara ter um interesse reforçado na resolução do litígio que opunha as partes.

Não obstante poder afirmar-se que, em tese, ambas as partes têm interesse na resolução do seu litígio, o certo é que, na prática, quem acciona o meio judicial de composição desse litígio tem um interesse acrescido na sua resolução. E essa evidência impõe uma leitura cum grano salis da menção legal à inércia ou negligência das partes. Para a verificação da fattispecie do artº 281º, nº 1, do NCPC, não basta a inércia de qualquer das partes, nem é necessária a de ambas as partes: importa é verificar, no concreto contexto do momento processual em curso, quais são os interesses processuais de cada parte e as suas incumbências específicas – e, nessa base, aferir da existência de uma relevante inércia processual. E daí a utilização, por parte do legislador, de uma expressão suficientemente abrangente, como a de «negligência das partes», para enquadrar as potenciais situações motivadoras da deserção da instância. Será, assim, natural que uma falta de iniciativa processual da parte demandante, por ter à partida um mais relevante interesse no prosseguimento dos autos, seja especialmente reveladora da inércia que o legislador pretende sancionar; e também será razoável, em regra, excluir a ocorrência dessa inércia quando a parte incumpridora de um qualquer ónus num específico momento processual é a parte demandada, em regra com um interesse bem mais difuso em relação a uma maior celeridade processual.

Ora, é esta última hipótese que se configura na concreta situação que se apresenta no presente recurso: cabia à parte demandada juntar determinados documentos, tendo sido notificada para tal por determinação do tribunal a quo, mas não o fez nos 6 meses subsequentes. Qual a razoabilidade de a parte demandante, que não tinha essa incumbência de junção de documentos, ser prejudicada pelo incumprimento da contraparte demandada (por via da extinção da instância que a própria parte demandante instaurou e quando é de presumir que mantém interesse na respectiva prossecução)? Crê-se que uma tal solução será seguramente desrazoável.

Aquilo que uma prudente gestão do processo aconselha, nestas circunstâncias, é que seja adoptada uma solução que não afecte a parte demandante e promova, de algum modo, o prosseguimento da tramitação processual adequada – e que poderá ser, v.g.: uma insistência junto da demandada pela apresentação dos documentos em falta (com uma conveniente cominação); a notificação da parte demandante para se pronunciar sobre a omissão da contraparte e requerer o que tiver por conveniente para promover o andamento do processo; ou a prolação de decisão sobre a reclamação contra a relação de bens com os elementos disponíveis; ou ainda qualquer outra solução congeminável, que se enquadre nos mesmos parâmetros prudenciais.

A este tribunal de recurso cumprirá reconhecer a impropriedade da decisão recorrida, determinativa da extinção da instância por deserção, por não verificação dos pressupostos de aplicação do regime do artº 281º, nº 1, do NCPC – o que se determinará infra. Porém, a escolha da solução mais ajustada vai já para além do objecto do presente recurso, na medida em que neste apenas tem cabimento discutir se havia ou não fundamento para a declaração de deserção. Tal escolha constitui já matéria que se inscreve na esfera dos poderes de gestão processual do tribunal a quo, ao qual incumbirá optar pela tramitação tida por mais pertinente.

Entende-se, assim, não haver razão para a prolação da decisão recorrida, determinativa da extinção da instância por deserção, e constituir incumbência do próprio tribunal a quo providenciar no sentido de promover o andamento do processo, através das necessárias iniciativas para que ocorra o que o tribunal entender ser o normal prosseguimento do processo, ao abrigo dos seus poderes/deveres de gestão processual (cfr. artº 6º, nº 1, do NCPC). Em conformidade, caberá determinar a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra que providencie pelo consequente prosseguimento dos autos, nos termos que forem entendidos pelo tribunal de 1ª instância como mais adequados.

Em suma: merece provimento o presente recurso – por se considerar que não havia fundamento substantivo para a prolação do despacho sob recurso, determinativo da extinção da instância por deserção –, devendo ser revogado o referido despacho, que será substituído por outro despacho que dê seguimento aos trâmites processuais próprios do estádio actual dos presentes autos de inventário, e nos termos que o tribunal de 1ª instância entender mais adequados.

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que dê seguimento aos pertinentes trâmites processuais, nos termos acima descritos.

Sem custas, por a requerida apelada a elas não ter dado causa (artº 527º, nos 1 e 2, a contrario, do NCPC).

Évora, 28 / 06 / 2017
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)