Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
463/21.0T8MMN-G.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Recolhidos elementos que o justifiquem, o juiz pode determinar oficiosamente a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa mesmo em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência.
II – Em defesa da legalidade, o Ministério Público pode requerer a intervenção do juiz com vista à abertura do incidente de qualificação da insolvência nos casos em que o juiz ex officio o deva fazer.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 463/21.0T8MMN-G.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. Por apenso ao processo de insolvência em que foi declarada insolvente (…), Lda., veio o Ministério Público, em representação da Administração Tributária, requerer a abertura “oficiosa” do incidente da qualificação da insolvência como culposa.
Alegou, em resumo, que “até à presente data nenhum credor, nem o Administrador da insolvência suscitou a questão da (eventual) qualificação da insolvência como culposa, encontrando-se já decorrido o prazo para o efeito” mas que o juiz pode, oficiosamente, declarar aberto o incidente desde que o processo contenha os elementos suficientes, como no caso se verifica.

2. Os credores e o Administrador da insolvência, notificados do requerimento, ficaram em silêncio.

3. Seguiu-se despacho no qual, designadamente, se consignou:
(…) no caso dos autos, o Ministério Público pede a declaração de abertura do incidente pleno de qualificação da insolvência, alegando que o juiz o pode fazer oficiosamente. Não apresentou alegações, nem indicou as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação e não apresentou esse requerimento no prazo de 15 dias após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º.
Quanto à iniciativa do juiz para declarar a abertura do incidente pleno de qualificação da insolvência, o Tribunal subscreve na íntegra os fundamentos acima transcritos do Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão supramencionado. Fora do caso previsto no artigo 39.º do CIRE não é legalmente ao juiz declarar oficiosamente a abertura do incidente de qualificação de insolvência (logo, do incidente pleno).
Acresce que é o Ministério Público que está a desencadear a apreciação da questão, pelo que, ainda que o Tribunal tivesse entendimento diferente, a verdade é que a iniciativa processual sempre estaria a ser do Ministério Público e não do juiz.
Por fim, e ainda que se pudesse considerar que o requerimento do Ministério Público consistiria nas alegações a que alude o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE (eventualmente sujeitas a um convite ao aperfeiçoamento), a verdade é que (…) o requerimento apresentado é extemporâneo e legalmente inadmissível face à natureza perentória do prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE.
Por outro lado, a declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência oficiosa, por iniciativa do juiz, apenas está prevista nos casos de incidente limitado, nos termos dos artigos 39.º e 191.º do CIRE, não sendo já possível atuar nesses termos, uma vez que a sentença foi proferida em 12-10-2021, não tendo aí sido declarado aberto o incidente limitado de qualificação da insolvência.
Por todo o exposto e ao abrigo das supracitadas normas – artigos 39.º, 188.º, n.º 1 e 191.º do CIRE – indefere-se liminarmente o requerimento apresentado pelo Ministério Público, por inadmissibilidade legal e extemporaneidade, recusando o Tribunal a requerida abertura do incidente pleno de qualificação de insolvência.”

4. O Ministério Público recorre deste despacho e conclui assim, a motivação do recurso:
“A. Em 06.10.2022, o Ministério Público expôs ao tribunal a existência de factos significativos que poderiam sustentar a declaração de abertura de incidente de qualificação da insolvência por iniciativa do juiz.
B. E, uma vez que nenhum interessado, nem o Sr. Administrador de Insolvência suscitou qualquer questão quanto à qualificação da insolvência como culposa, tal não obstava a que o juiz o fizesse “ …por sua própria iniciativa, e desde que o processo contenha elementos suficientes para a suportar, decidir a abertura” (cfr. Carvalho Fernandes, Luís A. e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição Atualizada, Quid juris, págs. 687 e 688, anotação 8).
C. Invocou para tanto que tal possibilidade – no silêncio dos interessados e do Sr. Administrador de Insolvência – decorre do poder oficioso do juiz consagrado no artigo 11.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como da lógica processual, porquanto “Desde logo, se o juiz, pode numa fase precoce do processo – momento da declaração da insolvência - optar por abrir o incidente, não se vê porque recusar esse poder no quadro do artigo 188.º, numa altura em que, a própria marcha possa ter revelado factos significativos …”, bem como “Ora, se bem avaliarmos, o poder de, (…) mandar prosseguir o incidente justifica, só por si, que não fique vinculado a não abrir o incidente quando ninguém alegou nada.” (idem).
D. Nesse requerimento – o qual não estava sujeito à disciplina do artigo 188.º do CIRE – o Ministério Público elencou apenas alguns factos significativos no sentido de justificar a intervenção oficiosa do juiz, a saber:
i) “O aqui administrador de insolência teve dificuldades no acesso à informação contabilística a qual deu entrada apenas em 24.01.2022, sendo que, a entidade foi declarada insolvente a 13.10.2021”;
ii) “O aqui AI deslocou-se junto do referido terreno onde viu que apenas existe o terreno virgem, tenso este apenas sofrido uma terraplanagem de nivelamento de terras. Pela contabilidade se apura existirem várias faturas de arquitetura de valores elevados, serviços que não passaram do papel”;
iii) “De referir ainda transferências/levantamentos pelo gerente da insolvente (…): (…) não obstante existirem outras transferências para o gerente referentes possivelmente a salários, apuraram-se, pelo demonstrado, milhares de euros em transferências.”;
iv) “… a autora celebrou um contrato de arrendamento urbano no nome da sociedade insolvente para fins habitacionais para a morada do gerente e do seu agregado familiar, onde aqui a insolvente (…), Lda. suportaria uma renda mensal de 2.100,00 (anexo i).”.
E. Terminou o Ministério Público solicitando a declaração de abertura do incidente ex officio.
F. O tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento apresentado por inadmissibilidade legal e extemporaneidade, recusando a requerida abertura do incidente pleno de qualificação de insolvência, justificando que “a declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência oficiosa, por iniciativa do juiz, apenas está prevista nos casos de incidente limitado, nos termos dos artigos 39.º e 191.º do CIRE, não sendo já possível atuar nesses termos, uma vez que a sentença foi proferida em 12-10-2021, não tendo aí sido declarado aberto o incidente limitado de qualificação da insolvência”.
G. Afigura-se-nos que a circunstância de nenhum credor, nem o Administrador de Insolvência ter suscitado a questão da (eventual) qualificação da insolvência como culposa, tal não significa que não se possa nos autos apreciar a questão da natureza culposa da insolvência, declarando-se a abertura do respetivo incidente.
H. Tal será sempre possível, oficiosamente pelo juiz, em face do disposto no artigo 11.º do CIRE e se os autos contiverem os elementos necessários que justifiquem essa declaração.
I. Um entendimento contrário será reduzir um poder que a lei parece atribuir ao juiz.
J. Desde logo, se num momento prematuro do processo – momento da declaração da insolvência – o juiz pode optar por declarar aberto o incidente, poderá, por maioria de razão e pela lógica do sistema legal, fazê-lo ainda que mais tarde e no quadro do artigo 188.º do CIRE, por nessa altura a marcha do processo já revelar factos significativos que justifiquem essa declaração.
K. Limitar o poder do juiz de declarar a abertura do incidente apenas ao momento da declaração da insolvência significa que, posteriormente a esse momento, o juiz estará sempre dependente da alegação dos interessados, o que não parece ser essa a ratio do legislador.
L. O poder judicial vai além desse momento inicial do processo e para tal entendimento concorre o elemento literal do n.º 1 do artigo 188.º, parte final – que confere o poder ao juiz de decidir da não abertura do incidente ainda que essa seja a posição manifestada pelos interessados.
M. A qualificação da insolvência não pode ser considerada como algo que se encontra na disponibilidade dos interessados particulares.
N. A este propósito já se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão n.º 616/16.3T8VNF-E.G1, de 30.05.2018, que entendeu que “1. Preenchidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz, pode determinar ex officio, mesmo em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência, a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa;”.
O. O requerimento do Ministério Público foi essencialmente expositivo, relevando a existência de factos significativos que poderiam sustentar a declaração de abertura de incidente de qualificação da insolvência por iniciativa do juiz, o que legalmente é possível.
P. Por esse motivo, não se encontrava sujeito a qualquer prazo nem tinha de obedecer ao disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE.
Q. Por estes motivos deveria o tribunal a quo ter decidido no sentido de declarar aberto, ex officio, incidente de qualificação da insolvência, por tal ser legalmente admissível ao abrigo do artigo 11.º do CIRE.
Termos em que deve ser conferido provimento ao recurso, alterando-se a decisão recorrida.
V. Exas., porém, decidirão conforme for de Direito e de Justiça!”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir: i) se o juiz pode, ex officio, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa, em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência, ii) se é tempestivo o requerimento de abertura do incidente da qualificação da insolvência apresentado pelo Ministério Público.

III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida assentou nos seguintes factos:
- A sentença de declaração de insolvência foi proferida em 12-10-2021;
- Foi dispensada a realização da assembleia de aprovação do relatório na sentença proferida;
- Em 07-01-2022 foi apresentado o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, contudo do mesmo constava que o Sr. Administrador de Insolvência “encontra-se a aguardar informações por parte do técnico oficial de contas (…)”;
- Em 14-02-2022 foi proferido despacho a determinar a apresentação pelo Sr. Administrador de Insolvência de relatório atualizado.
- O relatório atualizado veio a ser apresentado no dia 31-03-2022 (ref. 3226341).
- Nessa mesma data de 31-03-2022, o Sr. Administrador de Insolvência deu conhecimento do relatório atualizado aos credores e ao Ministério Público (cfr. email junto a 31-03-2022, ref. 3226738).
- O requerimento em apreciação foi apresentado pela Digna Magistrada do Ministério Público em 06-10-2022 (mais de seis meses depois do dia 31-03-2022).

2. Direito
2.1. Se o juiz pode, ex officio, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa, em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência
A decisão recorrida recusou abrir o incidente de qualificação da insolvência “por inadmissibilidade legal e extemporaneidade”; a respeito da primeira casa de indeferimento consignou: “a declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência oficiosa, por iniciativa do juiz, apenas está prevista nos casos de incidente limitado, nos termos dos artigos 39.º e 191.º do CIRE, não sendo já possível atuar nesses termos, uma vez que a sentença foi proferida em 12-10-2021, não tendo aí sido declarado aberto o incidente limitado de qualificação da insolvência”.
O Recorrente discorda e argumenta: “se num momento prematuro do processo – momento da declaração da insolvência – o juiz pode optar por declarar aberto o incidente, poderá, por maioria de razão e pela lógica do sistema legal, fazê-lo ainda que mais tarde e no quadro do artigo 188.º do CIRE, por nessa altura a marcha do processo já revelar factos significativos que justifiquem essa declaração” (conclusão J).
Apreciando.
O incidente de qualificação da insolvência destina-se a apurar (sem efeitos quanto às causas penais – artigo 185.º do CIRE[1]) se a insolvência é fortuita ou culposa.
A qualificação da insolvência como culposa origina sérias consequências jurídicas para as pessoas afetadas, como sejam a inibição para administrarem patrimónios de terceiros, a inibição para o exercício do comércio, a inibição do desempenho de determinados cargos, por períodos determinados, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, a condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, a condenação a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente, a inaplicabilidade do regime de exoneração do passivo restante – artigos 189.º, n.º 2 e 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE.
Na versão do CIRE resultante das alterações do DL n.º 200/2004, de 18/08 (1ª alteração), o incidente tinha caráter obrigatório, a sentença declaratória da insolvência determinava sempre a abertura do incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado.
“Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:
(…)
i) Declara aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º;
(…)” – artigo 36.º do CIRE, na versão do DL n.º 200/2004, de 18/08.
Aberto – necessariamente – o incidente na sentença declaratória da insolvência, seguia-se a tramitação prevista do artigo 188.º do CIRE, segundo a qual até 15 dias depois da realização da assembleia de apreciação do relatório, qualquer interessado podia apresentar alegações escritas indicando razões da insolvência culposa (n.º 1), o administrador da insolvência apresentava parecer fundamentado e concluído com uma proposta, identificando, se fosse o caso, as pessoas que deviam ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa (n.º 2), os autos iam com vista ao Ministério Público para se pronunciar (n.º 3) e o juiz decidia pela insolvência fortuita ou pela indiciação da insolvência culposa, caso em que determinava a notificação do devedor e citação dos indigitados afetados pela qualificação da insolvência como culposa para se defenderem (n.ºs 4 e 5), aplicando-se à posterior tramitação do incidente o procedimento previsto nos artigos 132.º a 139.º do CIRE.
Após a Lei n.º 16/2012, de 20/4 (7ª alteração ao CIRE) o incidente da qualificação da insolvência deixou de ter caráter obrigatório; o juiz, na sentença declaratória da insolvência, declara aberto o incidente da qualificação (apenas) nos casos em que disponha de elementos que o justifiquem.
“1 - Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:
(…)
i) Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º.
(…)” – artigo 36.º do CIRE.
Por efeito desta nova redação também o artigo 188.º do CIRE, sofreu alterações por forma a prever – após a Lei n.º 9/2022, de 11/1 (16ª alteração) – designadamente:
O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes” – artigo 188.º, n.º 1, do CIRE.
No expresso dizer da lei, o juiz declara aberto o incidente de qualificação em dois momentos: oficiosamente, na sentença declaratória da insolvência, caso disponha de elementos; a requerimento, do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, se o julgar oportuno, após a assembleia de apreciação do relatório ou, dispensada esta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º.
Daqui retirou a decisão recorrida, apoiada em jurisprudência que anotou[2], que a tramitação do incidente só pode iniciar-se oficiosamente com a declaração da insolvência [artigo 36.º, n.º 1, alínea i), do CIRE] e que, mais tarde, só o administrador da insolvência ou algum interessado pode impulsionar o incidente.
Solução que, adiantando, não se acompanha, por não deixar explicada –resulta das alegações do recurso e concorda-se – a razão pela qual a lei conferiria ao juiz o poder/dever de iniciar o incidente na fase inicial do processo – quando declara a insolvência – e lhe retiraria tal faculdade numa fase posterior do processo em que, por princípio, se encontrará melhor habilitado a formar uma opinião sobre a real situação – e culpa – do insolvente.
É certo que, em regra, a lei não confere ao juiz poderes de iniciativa processual, o juiz é chamado a resolver o conflito depois do pedido de uma das partes e de assegurar a defesa à outra parte (artigo 3.º, n.º 1, do CPC).
A atribuição de poderes oficiosos de iniciativa processual ao juiz terá, necessariamente dir-se-á, justificação em interesses de ordem pública – no caso, o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado – mas uma vez atribuídos esses poderes, como no caso se verifica, eles tendem a manter-se, segundo os princípios gerais, até à decisão da causa [artigo 613.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 17.º do CIRE], o que significa, com as necessárias adaptações, que os poderes de abertura do incidente de qualificação da insolvência atribuídos ao juiz na sentença em que declara a insolvência se esgotarão no momento em que declarar aberto o incidente e não antes, a menos que a lei expressamente dispusesse o contrário.
O que não faz.
Da leitura do artigo 188.º do CIRE, nomeadamente, do seu n.º 1, resulta que o juiz, se o considerar oportuno, isto é – tal como interpretamos – se julgar procedentes as alegações do administrador da insolvência ou qualquer interessado requerente, declara aberto o incidente de qualificação da insolvência; não resulta que não o possa fazer ex officio.
Assim,
Carvalho Fernandes e João Labareda: “É, porém, de crer que, apesar da falta de alegações, o juiz possa, por sua própria iniciativa, e desde que o processo contenha elementos suficientes para a suportar, decidir a abertura”.
E justificam.
“Desde logo, se o juiz pode, numa fase precoce do processo – momento da declaração da insolvência –, optar por abrir o incidente, não se vê porque recusar esse poder no quadro do artigo 188.º, numa altura em que, a própria marcha possa ter revelado factos significativos – e até com valor próprio e autónomo, como sucede com o previsto no artigo 83.º, n.º 3 – e indiciadores da culpa, que nem sequer eram facilmente percetíveis àquela primeira data.
De resto, como ficou dito, dispondo agora o juiz de uma segunda oportunidade para avaliar a situação, em conformidade com a disciplina do n.º 1 deste artigo 188.º, normal será que prescinda de decidir logo na primeira, pelo que limitar o seu poder de abertura do incidente à alegação de interessados pode até ter um efeito perverso.
Por outro lado, é indiscutível, à vista da parte final do n.º 1, que o juiz não tem de seguir o entendimento manifestado nas alegações dos interessados, podendo, sem dúvida, decidir pela não abertura do incidente apesar do que for sugerido e requerido. Não se vê nenhum motivo sério para que essa liberdade só ocorra quando o resultado seja favorável aos potenciais afetados pela qualificação da insolvência. É que a questão da qualificação não é, nem pode ser, considerada como algo que se situa no estrito âmbito dos interesses particulares e, nessa medida, no âmbito da disponibilidade.
Acresce que (…), o legislador alterou o atual n.º 5 – anterior n.º 4 – no sentido de, mesmo coincidindo os pareceres do administrador e do Ministério Publico na proposta da qualificação da insolvência como furtuita, o tribunal não ficar vinculado a ela, ainda que, se decidir em conformidade, a decisão seja irrecorrível.
Ora, se bem avaliarmos, o poder de, mesmo nessa situação particular, mandar prosseguir o incidente justifica, só por si, que não fique também vinculado a não abrir o incidente quando ninguém alegou nada.
Finalmente, não pode deixar de se ter presente o poder oficioso do juiz consagrado no artigo 11.º.”[3]
Também assim Soveral Martins: “No entanto, e apesar de nada o indicar no artigo 188.º, n.º 1, não parece estar afastada a possibilidade de o juiz, oficiosamente, abrir o incidente de qualificação se não o fez na sentença de declaração de insolvência. Com efeito, se o podia abrir naquela fase mais precoce, por maioria de razão deve poder fazê-lo se o processo, numa fase mais avançada, apresenta elementos que o justifiquem.”
Respondendo a esta primeira questão, dir-se-á, pois, que recolhidos elementos que o justifiquem, o juiz pode determinar ex officio, a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa mesmo em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência.[4]
O recurso procede quanto a esta questão.

2.2. Se é tempestivo o requerimento de abertura do incidente da qualificação da insolvência
A segunda questão colocada no recurso prende-se com a extemporaneidade do requerimento apresentado pelo Ministério Público.
A decisão recorrida considerou o requerimento destinado à abertura do incidente de qualificação extemporâneo, porquanto apresentado, em 6/10/2022, mais de seis meses depois da apresentação, em 31/3/2022, do relatório (atualizado) a que se reporta o artigo 155.º, n.º 1, do CIRE.
O Recorrente não questiona as datas, mas discorda da solução no entendimento que o requerimento que apresentou “foi essencialmente expositivo, relevando a existência de factos significativos que poderiam sustentar a declaração de abertura de incidente de qualificação da insolvência por iniciativa do juiz, o que legalmente é possível” e, “por esse motivo, não se encontrava sujeito a qualquer prazo nem tinha de obedecer ao disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE” [conclusões O) e P)].
Como já referido, após a assembleia de apreciação do relatório ou, em caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, a lei permite ao administrador da insolvência ou qualquer interessado, alegar por escrito o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, alegações que devem ser apresentadas no prazo perentório de 15 dias após a referida assembleia ou junção do relatório [artigo 188.º, n.º 1, do CIRE].
Prazo que, apesar de perentório, pode ser prorrogado até ao limite de seis meses “quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado” [nºs 2 e 3 do artigo 188.º do CIRE].
Decorridos, porém, os referidos prazos, o direito de os interessados requererem a abertura do incidente, a nosso ver, preclude; assim resulta, se bem vemos, da Lei n.º 9/2022 (16ª alteração do CIRE) ao afirmar a natureza perentória do prazo (n.º 1 do artigo 188.º do CIRE).
A questão colocada no recurso não é exatamente esta, o que se defende é que o requerimento, por meramente expositivo, não estava sujeito a prazo.
Pondo de parte alguma contradição que esta argumentação, a nosso ver, comporta – uma mera exposição não é sinónimo de requerimento e só este, por definição, gera deferimento ou indeferimento – releva dizer que o Ministério Público representa no processo de insolvência interesses de credores que lhe estejam legalmente confiados [artigo 20.º, n.º 1, do CIRE] mas também exerce, como é próprio do seu Estatuto, funções de defesa da legalidade democrática [artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2019, de 27/8].
E no exercício destes seus deveres funcionais – é, aliás, por esta razão que lhe é sempre aberta vista, no incidente da qualificação, para se pronunciar sobre o parecer do administrador da insolvência e as alegações interessados (n.º 7 do artigo 188.º do CIRE) – é-lhe permitido, a nosso ver, em defesa da legalidade, requerer a intervenção do juiz com vista à abertura do incidente de qualificação da insolvência nos casos em que o juiz ex officio o deva fazer.
É o caso.
Procede o recurso, restando revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que aprecie o mérito do requerimento apresentado pelo Ministério Público, com vista à abertura do incidente da qualificação.

3. Custas
O Ministério Público nos processos em que age em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, como se no caso se configura, está isento de custas (artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida e, em determinar, a prossecução dos autos com a apreciação do mérito do requerimento apresentado pelo Ministério Público.
Sem custas.
Évora, 30 de Março de 2023
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário


__________________________________________________
[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18/3, com alterações, v. https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=3119&tabela=leis&so_miolo=
[2] Acórdão da RC de 10/3/2015 (proc. n.º 631/13.9TBGRD-L.C1) e Ac. RG de 25/2/2016 (proc. n.º 1857/14.3TBGMR-DG1), in www.dgsi.pt.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 3ª ed. págs. 687 e 688.
[4] Neste sentido, Acórdão da RG de 30/5/2018 (616/16.3T8VNF-E.G1), disponível em www.dgsi.pt.